Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 27/09/2012
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0006882-41.2009.4.03.6111/SP
2009.61.11.006882-1/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRE NABARRETE
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : CELIO VIEIRA DA SILVA e outro
APELADO : JOSE ABELARDO GUIMARAES CAMARINHA e outros
: JOSE LUIS DATILO
: ELCIO SENO

EMENTA

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IRREGULARIDADES APONTADAS EM EMAIL DE AUTORIA DESCONHECIDA. INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO APÓS AVERIGUAÇÃO. POSSIBILIDADE. SENTENÇA EXTINTIVA. REFORMADA. PEDIDO DE INDISPONIBILIDADE DE BENS. NÃO CONHECIDO. RETORNO DOS AUTOS À VARA DE ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO.
1. As irregularidades apontadas no email já eram do conhecimento do Parquet, consoante termo de declarações prestadas por cidadão, no qual relata que as obras da construção da barragem no Ribeirão dos Índios em Marília/SP encontravam-se paralisadas e que as verbas eram oriundas da União.
2. A partir da denúncia constante email, o órgão ministerial iniciou investigação e constatadas as irregularidades foi instaurado procedimento administrativo que culminou com esta ação civil pública.
3. É assente na jurisprudência e na doutrina que delações anônimas não são admitidas no sistema jurídico nacional. No entanto, aceita-se, com reservas e sopesamento, que sirva de suporte para prévia e sumária investigação, a ser feita com "prudência e discrição", de modo a se certificar sobre ocorrência de eventuais atos ilícitos administrativos ou penais, que, caso confirmados, darão azo à instauração de procedimento administrativo ou abertura de inquérito policial.
4. Relativamente à questão da delação anônima, tem prevalecido nos tribunais a ideia da necessidade de um equilíbrio entre os direitos fundamentais em jogo e o poder-dever de investigação da administração pública, decorrente do interesse público e de sua indisponibilidade quanto aos bens concretamente envolvidos, sem, contudo, descurar da premissa de que cada caso deve ser analisado per se.
5. A posição do Supremo Tribunal Federal em relação à denúncia anônima ou escritos apócrifos, não obstante muitos outros votos proferidos pelos seus ministros, encontra-se expressa no primoroso voto proferido pelo Ministro Celso de Mello, no Inq. 1.957/PR, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, julgado em 11.05.2005.
6. Uma vez que a ação civil pública foi intentada a partir de investigação pelo Ministério Público Federal e não da delação anônima, a qual serviu apenas de suporte para o trabalho de campo, não se sustenta o decreto de extinção da ação sem resolução do mérito, nos termos dos artigos 267, I, c.c. o 295, parágrafo único, III, do C.P.C., e artigo 17, § 11, da Lei 8.429/92.
7. Não se conhece do pedido de indisponibilidade de bens dos réus, pois implicaria supressão de instância e violação ao princípio do juiz natural.
8. Dá-se parcial provimento à apelação para reformar a sentença e não conhecer do pedido de indisponibilidade de bens e determinar a baixa dos autos à vara de origem para regular processamento do feito.


ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação para reformar a sentença e não conhecer do pedido de indisponibilidade de bens e determinar a baixa dos autos à vara de origem para regular processamento do feito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 13 de setembro de 2012.
André Nabarrete
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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Data e Hora: 18/09/2012 16:34:51



APELAÇÃO CÍVEL Nº 0006882-41.2009.4.03.6111/SP
2009.61.11.006882-1/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRE NABARRETE
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : CELIO VIEIRA DA SILVA e outro
APELADO : JOSE ABELARDO GUIMARAES CAMARINHA e outros
: JOSE LUIS DATILO
: ELCIO SENO

RELATÓRIO

Apelação interposta pelo Ministério Público Federal contra sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, com fulcro nos artigos 267, inciso I, c.c. o 295, parágrafo único, inciso III, do Código de Processo Civil, e artigo 17, § 11, da Lei nº 8.429/92, proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal em Marília/SP, nos autos da ação civil por atos de improbidade administrativa, ao fundamento de inépcia da exordial por conter pedido juridicamente impossível, já que incapaz de dar início à persecutio criminis ou outras investigações com base em denúncia anônima (fls. 48/68).


Na inicial, o Parquet federal traz descrição e demonstra detalhadamente as circunstâncias fáticas e jurídicas que embasam a ação, de modo a permitir, com o seu prosseguimento, a apuração da existência ou não dos atos imputados aos requeridos. Não obstante o pleito de responsabilização dos implicados, esclarece o órgão ministerial que seu objetivo maior é ver ultimadas as obras da barragem dos Ribeirão dos Índios, que inconclusas pela omissão do poder público municipal de Marília provoca uma situação social aflitiva às pessoas atingidas pela falta de água tratada.


Em seu apelo (fls. 71/109), alega-se:


a) ausência de ilegalidade na instauração de procedimento com base em investigações deflagradas por denúncia anônima;


b) embora a Constituição Federal vede o anonimato (art. 5º, IV), é certo que, se a notícia traz em seu bojo elementos concretos mínimos a orientarem as investigações, impõe-se a averiguação da veracidade dos fatos narrados, que também se faz indispensável até em razão de sua gravidade, consoante precedentes jurisprudenciais transcritos;


c) ainda que se trate de denúncia anônima, se se reveste de aparente ilicitude penal, tem o Estado o dever de verificar a veracidade das afirmações por meio de investigações, que poderão, se for o caso, dar início a inquérito policial;


d) in casu, a partir da delação anônima, foram feitas averiguações pelo órgão ministerial, que constatou que "as obras da represa para o abastecimento de água dos moradores da Zona Norte de Marília/SP estavam paralisadas há aproximadamente 01 (um) ano, nas quais haviam sido utilizadas verbas públicas da União, informações estas que deram ensejo à instauração de procedimento administrativo (Autos nº 1.34.007.000113/2006-13) em 02 de junho de 2006" (fl. 106).


e) instaurou-se o procedimento administrativo com base nas investigações e não na denúncia anônima como sustentado pelo juízo, daí que não há que se falar em nulidade no trabalho de campo que resultou na colheita de elementos de prova, na qual se revelou a existência de fortes indícios da prática de vários atos de improbidade (Lei 8.429/92, art. 17, § 6º);


f) requer seja provido o recurso, para cassar a sentença recorrida, a fim de que o feito tenha regular prosseguimento, nos termos do artigo 17, § 7º, da Lei nº 8.429/92, bem como a apreciação do pleito de liminar de indisponibilidade.



Mantida a sentença, determinou o juízo a quo fossem os autos encaminhados ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (fl. 111).


Em seu parecer, o Procurador Regional da República reafirma os argumentos despendidos na apelação e destaca que não há no sistema jurídico nacional vedação à investigação ou à apuração de fato levado ao conhecimento de autoridade em razão de denúncia anônima, caso assim fosse, conduziria à nulidade de todas as investigações iniciadas a partir dos sistemas de "disque-denúncia" e formas similares. Afirma ainda que a vedação constitucional ao anonimato se traduz em condicionante da liberdade de manifestação do pensamento, contudo não pode ser invocada para suprimir ao cidadão o direito de informar às autoridades a existência de um fato ilícito, nem mesmo de impedir estas de cumprirem o seu dever constitucional de preservar a legalidade. Também não há que se falar em constrangimento ilegal no procedimento investigatório, tampouco em impossibilidade jurídica do pedido que impeça o julgamento da ação. Por fim, requer a reforma da sentença recorrida e que seja determinado o prosseguimento do feito.


É o relatório.


Dispensada a revisão, nos termos regimentais.





VOTO

O Ministério Público Federal recebeu email sem identificação do remetente, cujo teor se transcreve a seguir:


"OBRA DE CONSTRUÇÃO DE REPRESA NA ZONA NORTE DE MARÍLIA (FAZENDA STA. ANTONIETA), ESTÁ PARADA HÁ ANOS, AS EDIFICAÇÕES ESTÃO SE DETERIORANDO POR CAUSA DE EROSÕES, INFILTRAÇÕES E DEPREDAÇÕES. O PÁTIO DE OBRAS AINDA MANTEM FUNCIONÁRIOS MAS ESTES NÃO TRABALHAM. A MEU VER OS FATOS REPRESENTAM: MÁ GESTÃO DE RECURSOS PÚBLICOS (OBRA PARADA), RISCO DE GRANDE PREJUÍZO AO ERÁRIO (PERDA DO QUE JÁ FOI GASTO), GRANDE PREJUÍZO AMBIENTAL JÁ ESTABELECIDO E CRESCENTE E AINDA APARENTE DESRESPEITO A EXIGÊNCIAS TÉCNICAS E AMBIENTAIS QUE LEVA A FALTA DE FISCALIZAÇÃO DO ÓRGÃO FISCALIZADOR (TCE E CETESB) E FINALMENTE, PROPAGANDA ENGANOSA JÁ QUE A POPULAÇÃO NÃO ESTÁ SENDO BENEFICIADA PELA OBRA COMO DIZ O OUTDOR NA ESTRADA.
TRATA-SE DA MUITO CITADA NOS PALANQUES "BARRAGEM DO NORTE." (texto original constante do procedimento administrativo 1.34.007.000113/2006-13, autuado pelo Parquet como tutela coletiva - representação, fl. 01)


Após o recebimento dessa delação sem indicação de seu autor, o órgão ministerial iniciou investigação acerca dos fatos narrados e, ao confirmar a paralisação da obra e o envolvimento de verbas públicas da União, determinou a instauração de procedimento administrativo (autos nº 1.34.007.000113/2006-13 - 3 volumes e respectivos apensos em 38 volumes), que se encontra apensado a estes autos e que serviu de base para o ajuizamento desta ação civil por atos de improbidade administrativa, c.c. pedido de indisponibilidade de bens (fl. 106).


Primeiramente, cabe ressaltar que se constata do exame dos apensos desta ação civil pública, relacionada à construção da represa na zona norte de Marília (barragem no Ribeirão dos Índios), a instauração pelo Parquet federal de três procedimentos administrativos, a saber:


I - com base na delação recebida, foi formalizada em 02.06.2006 a Tutela Coletiva - Representação nº 1.34.007.000113/2006-13 (3 volumes), objeto desta ação civil pública;


II - nesse procedimento, o Procurador da República determinou que lhe fosse apensado o Procedimento Administrativo - Tutela Coletiva nº 1.34.007.000186/2007-88 (38 vol.), o qual foi instaurado, conforme Portaria nº 16, de 23.07.2007 (fl. 01), em razão também de denúncia formulada sem indicação da autoria e recebida via email (fl. 02), em que são relatadas irregularidades na construção de barragem no Ribeirão dos Índios. Verifica-se ainda que foram juntadas a estes autos, às fls. 10/26, cópias extraídas dos autos de outra Tutela Coletiva, a de nº 1.34.007.000115/2005-13 (que será cuidada no item III), consistente no termo de declarações de Luiz Antônio Silva Travitzky e documentos referentes à licitação, projetos e pagamentos realizados na construção da barragem no Ribeirão dos Índios, no Distrito Industrial de Marília/SP;


III - às fls. 03 do procedimento indicado no item anterior, consta certidão de servidor do órgão ministerial, no qual informa que em relação à referida barragem existe já em trâmite o "Procedimento Administrativo - Tutela Coletiva nº 1.34.007.000115/2005-13, distribuído ao Dr. Jefferson Aparecido Dias, no qual consta Termo de Declarações [fl. 06], de 27 de julho de 2005, em que Luiz Antônio Silva Travitzky afirma, dentre outras coisas, que as obras de construção daquela barragem estavam paradas, que as verbas para tal construção eram oriundas da União, e que a paralisação da construção e o desmatamento causavam dano ao meio ambiente." (sublinhei).



Resulta que, em relação à construção da barragem, desde 27 de julho de 2005, com as declarações prestadas por Luiz Antônio Silva Travitzky, o Ministério Público Federal no Município de Marília já tinha conhecimento das irregularidades relacionadas com a construção da barragem no córrego Ribeirão dos Índios, tanto que foi instaurado o Procedimento Administrativo nº 1.34.007.000115/2005-13. Ressalte-se que este é mais antigo do que os outros dois instaurados pelo Parquet federal e, à exceção das cópias juntadas às fls. 10/26 no Procedimento Administrativo 1.34.007.000186/2007-88, não há outras informações sobre o andamento desse de nº 1.34.007.000115/2005-13.


Quanto aos outros dois procedimentos administrativos iniciados por denúncia de autoria não conhecida, o de nº 1.34.007.000113/2006-13 serviu de suporte a esta ação civil pública, ao passo que o de nº 1.34.007.000186/2007-88 lhe segue em apenso.


Conclui-se, portanto, que os emails recebidos, apesar de não indicarem a autoria, limitam-se a relatar irregularidades que já haviam sido trazidas ao conhecimento do Ministério Público quando das declarações prestadas por Luiz Antônio Silva Travitzky, em 27.07.2005. Nesse contexto, os escritos anônimos certamente não tiveram relevo autônomo, possivelmente serviram apenas para aprimorar as investigações antes deflagradas. Essa tendência à perfectibilidade muito provavelmente se deve à obrigação estatal imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), que torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público.


Não obstante essas considerações, que minimizam a força das delações referentes a esta ação civil pública, passo ao exame do apelo do autor, mormente quando, com base nelas, foram iniciadas e desenvolvidas intensivas investigações, que resultaram em quarenta e um volumes de documentos que se encontram apensados ao feito.


Destarte, a questão deduzida diz respeito à possibilidade de o Ministério Público proceder investigação, instaurar procedimento administrativo e ajuizar ação, a partir do conteúdo de email de autoria não conhecida.


O ordenamento jurídico constitucional a partir de 1988, ao dar maior relevo aos direitos e garantias fundamentais, na sua mais elementar função, implicou limites aos poderes do Estado. Dentre eles, o artigo 5º, inciso IV, dispõe que: "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".


No plano infraconstitucional, o artigo 14 da Lei de Improbidade Administrativa (nº 8.429/92) expressamente exige, para o processamento de denúncia, a identificação do denunciante, verbis:


"Art. 14. Qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada investigação destinada a apurar prática de ato de improbidade.
§ 1º. A representação, que será escrita ou reduzida a termo e assinada, conterá a qualificação do representante, as informações sobre o fato e sua autoria e a indicação das provas de que tenha conhecimento.
§ 2º. A autoridade administrativa rejeitará a representação, em despacho fundamentado, se esta não contiver as formalidades estabelecidas no § 1º deste artigo. A rejeição não impede a representação ao Ministério Público, nos termos do artigo 22 desta lei.
§ 3º. Atendidos os requisitos da representação, a autoridade determinará a imediata apuração dos fatos (...)" (sublinhei)


Da mesma forma, eventual representação ao órgão ministerial, a lei consigna:


"Art. 22. Para apurar qualquer ilícito previsto nesta lei, O Ministério Público, de ofício, a requerimento de autoridade administrativa ou mediante representação formulada de acordo com o disposto no art. 14, poderá requisitar a instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo."


Nesse quadro normativo, evidencia-se que delações anônimas não são admitidas no sistema jurídico nacional. Na lição de Alexandre de Moraes, "a proibição é ampla" e "abrange mensagens apócrifas, injuriosas, difamatórias ou caluniosas" e sua "finalidade constitucional é destinada a evitar manifestação de opiniões fúteis, infundadas, somente com o intuito de desrespeito à vida privada, à intimidade, à honra de outrem; ou ainda, com a intenção de subverter a ordem jurídica, o regime democrático e o bem-estar social." Todavia, esclarece que, excepcionalmente, é possível a adoção de medidas para a apuração da idoneidade das informações, conforme afirmou o Ministro Celso de Mello, em completo e fundamentado estudo, "vê-se, portanto, não obstante o caráter apócrifo da delação ora questionada, que, tratando-se de revelação de fatos revestidos de aparente ilicitude penal, existia, efetivamente, a possibilidade de o Estado adotar medidas destinadas a esclarecer, em sumária e prévia apuração, a idoneidade das alegações que lhe foram transmitidas, desde que verossímeis, em atendimento ao dever estatal de fazer prevalecer - consideradas razões de interesse público - a observância do postulado jurídico da legalidade, que impõe, à autoridade pública, a obrigação de apurar a verdade real em torno da materialidade e autoria de eventos supostamente delituosos (trecho do voto - STF - Inq. 1957/PR, Rel. Min. Carlos Velloso - Informativo STF nº 393, p. 3)" (in Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional, 7ª edição. Atlas, p. 141/143)


Ante a literalidade do preceito constitucional e das normas destacadas haveria de ser afastada qualquer delação que não tivesse a indicação do denunciante, porque, na lição de José Afonso da Silva, "a liberdade de manifestação de pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato." (Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª edição, Malheiros, 2000, p. 248).


Por seu turno, na doutrina e na jurisprudência consolidou-se a posição no sentido de que a denúncia anônima não pode servir de base para qualquer medida que importe restrição a direito individual ou condenação, mas, todavia, admite-se que, com a devida cautela, sejam promovidas averiguações e diligências prévias com o objetivo de obter eventuais indicativos de procedência, para só então decidir instaurar ou não um procedimento administrativo para apuração exaustiva do suposto fato delituoso.


Nesse contexto, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal refuta veementemente os casos em que o Estado deu início ao processo com fundamento apenas em peças de autoria desconhecida, mas, por outro lado, tem acolhido, com as devidas reservas e o necessário sopesamento, em cada caso, os diversos bens envolvidos no fato concreto quando a ação é oriunda de documento sem indicação de seu autor e que serviu de parâmetro para prévia averiguação e posterior instauração de procedimento administrativo ou inquérito. Esse posicionamento tem como leading case o julgamento do Inq. nº 1.957/PR, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, S.T.F., Plenário, 11.05.2005, que, pela sua expressão e o foco no assunto de interesse destes autos, transcrevo excertos do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello (fls. 261/279) acerca da questão de ordem suscitada relativamente à delação anônima:


"O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: Sabemos, Senhor Presidente, que o veto constitucional ao anonimato, nos termos em que anunciado (CF, art. 5º, IV, "in fine"), busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e na formulação de denúncias apócrifas, pois, ao exigir-se a identificação de seu autor, visa-se, em última análise, com tal medida, a possibilitar que eventuais excessos derivados de tal prática sejam tornados passíveis de responsabilização, "a posteriori", tanto na esfera civil quanto no âmbito penal, em ordem a submeter aquele que os cometeu às conseqüências jurídicas de seu comportamento.
Essa cláusula de vedação - que jamais deverá ser interpretada como forma de nulificação das liberdades do pensamento - surgiu, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72, § 12). Com tal proibição, o legislador constituinte, ao não permitir o anonimato, objetivava inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, para, desse modo, viabilizar a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais, panfletos ou denúncias apócrifas, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele Estatuto Fundamental (JOÃO BARBALHO, "Constituição Federal Brasileira - Comentários", p. 423, 2ª ed., 1924, F. Briguiet; CARLOS MAXIMILIANO, "Comentários à Constituição Brasileira", p. 713, item nº 440, 1918, Jacinto Ribeiro dos Santos Editor, "inter alia").
Vê-se, portanto, tal como observa DARCY ARRUDA MIRANDA ("Comentários à Lei de Imprensa", p. 128, item nº 79, 3ª ed., 1995, RT), que a proibição ao anonimato tem um só propósito, qual seja, o de permitir que o autor do escrito ou da publicação possa expor-se às conseqüências jurídicas derivadas de seu comportamento abusivo.
Nisso consiste, portanto, a "ratio" subjacente à norma, que, inscrita no inciso IV do art. 5º, da Constituição da República, proclama ser "livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (grifei).
Torna-se evidente, pois, Senhor Presidente, que a cláusula que proíbe o anonimato - ao viabilizar, "a posteriori", a responsabilização penal e/ou civil do ofensor - traduz medida constitucional destinada a desestimular manifestações abusivas do pensamento, de que possa decorrer gravame ao patrimônio moral das pessoas injustamente desrespeitadas em sua esfera de dignidade, qualquer que seja o meio utilizado na veiculação das imputações contumeliosas.
Esse entendimento é perfilhado por ALEXANDRE DE MORAES ("Constituição do Brasil Interpretada", p. 207, item nº 5.17, 2002, Atlas), UADI LAMMÊGO BULOS ("Constituição Federal Anotada", p. 91, 4ª ed., 2002, Saraiva) e CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS ("Comentários à Constituição do Brasil", vol. 2/43-44, 1989, Saraiva), dentre outros eminentes autores, cujas lições enfatizam, a propósito do tema, que a proibição do anonimato - por tornar necessário o conhecimento da autoria da comunicação feita - visa a fazer efetiva, "a posteriori", a responsabilidade penal e/ou civil daquele que abusivamente exerceu a liberdade de expressão.
Lapidar, sob tal perspectiva, o magistério de JOSÉ AFONSO DA SILVA ("Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 244, item nº 15.2, 20ª ed., 2002, Malheiros), que, ao interpretar a razão de ser da cláusula constitucional consubstanciada no art. 5º, IV. "in fine", da Lei Fundamental, assim se manifesta:
"A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí porque a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta. (...)." (grifei)
É inquestionável, Senhor Presidente, que a delação anônima, notadamente quando veicular a imputação de supostas práticas delituosas, pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais - igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional - dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição.
O caso veiculado na presente questão de ordem suscitada pelo eminente Ministro MARCO AURÉLIO pode traduzir, eventualmente, a ocorrência, na espécie, de situação de conflituosidade entre direitos básicos titularizados por sujeitos diversos.
Com efeito, há, de um lado, a norma constitucional, que, ao vedar o anonimato (CF, art. 5º, IV), objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade (como a honra, a vida privada, a imagem e a intimidade), buscando inibir, desse modo, delações de origem anônima e de conteúdo abusivo. E existem, de outro, certos postulados básicos, igualmente consagrados pelo texto da Constituição, vocacionados a conferir real efetividade à exigência de que os comportamentos individuais, registrados no âmbito da coletividade, ajustem-se à lei e mostrem-se compatíveis com padrões ético-jurídicos decorrentes do próprio sistema de valores que a nossa Lei Fundamental consagra.
Assentadas tais premissas, Senhor Presidente, entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, "hic et nunc", em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina (DANIEL SARMENTO, "A Ponderação de Interesses na Constituição Federal", p. 193/203, "Conclusão", itens nºs. 1 e 2, 2000, Lumen Juris; LUÍS ROBERTO BARROSO, "Temas de Direito Constitucional", p. 363/366, 2001, Renovar; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 220/224, item nº 2, 1987, Almedina; FÁBIO HENRIQUE PODESTÁ, "Direito à Intimidade. Liberdade de Imprensa. Danos por Publicidade de Notícias", in Constituição Federal de 1988 - Dez anos (1988-1998)", p. 230/231, item nº 5, 1999, Editora Juarez de Oliveira; J. J. GOMES CANOTILHO, "Direito Constitucional", p. 661, item nº 3, 5ª ed., 1991, Almedina; EDILSOM PEREIRA DE FARIAS, "Colisão de Direitos", p. 94/101, item nº 8.3, 1996, Fabris Editor; WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, "Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade", p. 139/172. 2001, Livraria do Advogado Editora; SUZANA DE TOLEDO BARROS, "O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais", p. 216, "Conclusão", 2ª ed., 2000, Brasília Jurídica).
Tenho para mim, portanto, Senhor Presidente, em face do contexto referido nesta questão de ordem, que nada impedia, na espécie em exame, que o Poder Público provocado por denúncia anônima, adotasse medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, "com prudência e discrição" (JOSÉ FREDERICO MARQUES, "Elementos de Direito Processual Penal", vol. I/147, item nº 71, 2ª ed., atualizada por Eduardo Reale Ferrari, 2000, Millenium) a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, com o objetivo de viabilizar a ulterior instauração de procedimento penal em torno da autoria e da materialidade dos fatos reputados criminosos, desvinculando-se a investigação estatal ("informatio delicti"), desse modo, da delação formulada por autor desconhecido, considerada a relevante circunstância de que os escritos anônimos - aos quais não se pode atribuir caráter oficial - não se qualificam, por isso mesmo, como atos de natureza processual.
Disso resulta, pois, a impossibilidade de o Estado, tendo por único fundamento causal a existência de tais peças apócrifas, dar início, somente com apoio nelas, à "persecutio criminis".
Daí a advertência substanciada em julgamento emanado da E. Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em que esse Alto Tribunal, ao pronunciar-se sobre o tema em exame, deixou consignado, com absoluta correção, que o procedimento investigatório não pode ser instaurado com base, unicamente, em escrito anônimo, que venha a constituir, ele próprio, a peça inaugural da investigação promovida pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público:
"INQUÉRITO POLICIAL. CARTA ANÔNIMA. O Superior Tribunal de Justiça não pode ordenar a instauração de inquérito policial, a respeito de autoridades sujeitas à sua jurisdição penal, com base em carta anônima. Agravo regimental não provido."
(Inq 355-AgR/RJ, Rel. Min. ARI PARGENDLER - grifei)
Vale referir, no ponto, o douto voto que o eminente Ministro ARI PARGENDLER, Relator, proferiu no mencionado julgamento:
"O artigo 5º, item IV, da Constituição Federal garante a livre manifestação do pensamento, mas veda o anonimato.
A carta anônima de fls. 3 e verso não pode, portanto, movimentar polícia e justiça sem afrontar a aludida norma constitucional." (grifei).
(...)
Cabe referir, ainda, que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão da delação anônima, analisada em face do art. 5º, IV, "in fine", da Constituição da República, já se pronunciou no sentido de considerá-la juridicamente possível, desde que o Estado, ao agir em função de comunicações revestidas de caráter apócrifo, atue com cautela, em ordem a evitar a consumação de situações que possam que possam ferir, injustamente, direitos de terceiros:
"CRIMINAL. RHC. NOTITIA CRIMINIS ANÔNIMA. INQUÉRITO POLICIAL. VALIDADE.
1. A delatio criminis anônima não constitui causa de ação penal que surgirá, em sendo o caso, da investigação policial decorrente. Se colhidos elementos suficientes, haverá, então, ensejo para a denúncia. É bem verdade que a Constituição Federal (art. 5º, IV) veda o anonimato na manifestação do pensamento, nada impedindo, entretanto, mas, pelo contrário, sendo dever da autoridade policial proceder à investigação, cercando-se, naturalmente, de cautela.
2. Recurso ordinário improvido."
(RHC 7.329/GO, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES - grifei)
"CONSTITUCIONAL, PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. (...). PROCESSO ADMINISTRATIVO DESENCADEADO ATRAVÉS DE 'DENÚNCIA ANÔNIMA'. VALIDADE. INTELIGÊNCIA DA CLÁUSULA FINAL DO INCISO IV DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (VEDAÇÃO DO ANONIMATO). (...). RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO."
(RMS 4.435/MT, Rel. Min. ADHEMAR MACIEL - grifei)
"(...) Carta anônima, sequer referida na denúncia e que, quando muito, propiciou investigações por parte do organismo policial, não se pode reputar de ilícita. É certo que, isoladamente, não terá qualquer valor, mas também não se pode tê-la como prejudicial a todas as outras validamente obtidas."
(RHC 7.363/RJ, Rel. Min. ANSELMO SANTIAGO - grifei)
Vê-se, portanto, não obstante o caráter apócrifo da delação ora questionada, que, tratando-se de revelação de fatos revestidos de aparente ilicitude penal, existia, efetivamente, a possibilidade de o Estado adotar medidas destinadas a esclarecer, em sumária e prévia apuração, a idoneidade das alegações que lhe foram transmitidas, desde que verossímeis, em atendimento ao dever estatal de faze prevalecer - consideradas razões de interesse público - a observância do postulado jurídico da legalidade, que impõe, à autoridade pública, a obrigação de apurar a verdade real em torno da materialidade e autoria de eventos supostamente delituosos.
Tal como asseverado pelo eminente Relator, o Ministério Público adotou, na espécie em análise, e no que concerne à carta anônima em questão, todas as cautelas ora mencionadas neste voto, procedendo, em conseqüência, de acordo com a orientação doutrinária e jurisprudencial que venho de expor.
(...).
Encerro meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, deixo assentadas as seguintes conclusões:
(a) os escritos anônimos não podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata instauração da "persecutio criminis", eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo, salvo quando tais documentos forem produzidos pelo acusado, ou, ainda, quando constituírem, eles próprios, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no delito de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o "crimen falsi", p. ex.);
(b) nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima ("disque-denúncia", p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, "com prudência e discrição", a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da "persecutio criminis", mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas; e
(c) o Ministério Público, de outro lado, independentemente da prévia instauração de inquérito policial, também pode formar a sua "opinio delicti" com apoio em outros elementos de convicção que evidenciem a materialidade do fato delituoso e a existência de indícios suficientes de sua autoria, desde que os dados informativos que dão suporte à acusação penal não tenham, como único fundamento causal, documentos ou escritos anônimos.
Sendo assim, e consideradas as razões expostas, peço vênia, Senhor Presidente, para acompanhar o douto voto proferido pelo eminente Relator, rejeitando, em conseqüência, a questão de ordem ora sob exame desta Suprema Corte.
É o meu voto." - (DJU 11.11.2005)


Mais recentemente, em 02.10.2009, em decisão singular proferida nos autos do HC 100.042 MC/RO, nessa mesma linha de entendimento, o Ministro Celso de Mello examinou novamente a questão da delação anônima ou cartas apócrifas, cuja ementa praticamente reproduz as conclusões do voto anteriormente transcritas.


Trago ainda à colação o conteúdo dos acórdãos relatados pelos Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli, na esteira do posicionamento do Ministro Celso de Mello e, nos quais mencionam o entendimento, no mesmo sentido, de outros ministros da corte, verbis:


"EMENTA: HABEAS CORPUS. "DENÚNCIA ANÔNIMA" SEGUIDA DE INVESTIGAÇÕES EM INQUÉRITO POLICIAL. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS E AÇÕES PENAIS NÃO DECORRENTES DE "DENÚNCIA ANÔNIMA.". LICITUDE DA PROVA COLHIDA E DAS AÇÕES PENAIS INICIADAS. ORDEM DENEGADA.
Segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal, nada impede a deflagração da persecução penal pela chamada "denúncia anônima", desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados (86.082, rel. min. Ellen Gracie, DJe de 22.08.2008; 90.178, rel. min. Cezar Peluso, DJe de 26.03.2010, e HC 95.244, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 30.04.2010. No caso, tanto as interceptações telefônicas, quanto as ações penais que se pretende trancar decorreram não da alegada "notícia anônima", mas de investigações levadas a efeito pela autoridade policial. (...)"
(STF - 2ª Turma - HC 99.490, Rel. Ministro Joaquim Barbosa, v.u., DJe 01.02.2011)


"EMENTA: Constitucional e Processual Penal. Habeas Corpus. Possibilidade de denúncia anônima, desde que acompanhada de demais elementos colhidos a partir dela. Inexistência de constrangimento ilegal.
1. O precedente referido pelo impetrante na inicial (HC nº 84.827/TO, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ de 23/11/07), de fato, assentou o entendimento de que é vedada a persecução penal iniciada com base, exclusivamente, em denúncia anônima. Firmou-se a orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa "denúncia" são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações.
2. No caso concreto, ainda sem instaurar inquérito policial, policiais civis diligenciaram no sentido de apurar a eventual existência de irregularidades cartorárias que pudessem conferir indícios de verossimilhança aos fatos. Portanto, o procedimento tomado pelos policiais está em perfeita consonância com o entendimento firmado no precedente supracitado, no que tange à realização de diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito.
3. Ordem denegada."
(STF - 1ª Turma - HC 98.345/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Dias Toffoli, por maioria, DJe17.09.2010)


Em suma, como se verifica no voto e arestos transcritos, a jurisprudência da corte constitucional é assente no sentido da impossibilidade de o Estado, inclusive o Ministério Público, acionar o Poder Judiciário apoiado apenas em fundamento constante de peças de autoria desconhecida, a não ser que elas próprias constituam o corpo de delito, mas, no entanto, admite que o ente estatal adote medidas destinadas a esclarecer em sumária e prévia apuração a idoneidade das alegações contidas na delação anônima ou cartas apócrifas, que, se verossímeis, permitem que se instaure procedimento administrativo ou inquérito policial.


No âmbito da mais alta corte tem, portanto, prevalecido a ideia de um sopesamento entre os direitos fundamentais em jogo e o poder-dever de investigação da administração pública, decorrente do interesse público e de sua indisponibilidade, quanto aos bens concretamente envolvidos, sem, contudo, descurar da premissa de que cada caso deve ser analisado per se. A questão da denúncia anônima tem sido trabalhada sob o ângulo de uma visão estritamente principiológica (CF, art. 37, caput), em detrimento de vedação expressa da Constituição sobre o anonimato. Conclui-se, pois, que, para o S.T.F., com pequenas variações entre os ministros, a delação anônima não é instrumento dotado de juridicidade, é um desvalor dentro do ordenamento jurídico nacional, mas como ela pode conter informações que indicam indícios confiáveis de veracidade, que não devem ser ignorados pela administração, surge a obrigação de, mediante um juízo de ponderação, buscar por meio de uma averiguação feita com discrição e cautela sobre a exatidão dos fatos narrados.


Já no Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido o entendimento de que, no sentido de prestigiar, com as devidas cautelas, a indisponibilidade do interesse público e o poder-dever de autotutela imposto à administração pública, não obstante a vedação constitucional do artigo 5º, inciso IV, e normas infraconstitucionais nesse mesmo sentido. Confira-se nos excertos dos arestos a seguir reproduzidos:


"Ementa: (...). 7. Impõe-se destacar também que a "denúncia" anônima, quando fundada - vale dizer, desde que forneça, por qualquer meio legalmente permitido, informações sobre o fato e seu provável autor, bem como a qualificação mínima que permita sua identificação e localização -, não impede a respectiva investigação sobre a sua veracidade, porquanto o anonimato não pode servir de escudo para eventuais práticas ilícitas e ponto de transformar o Estado em verdadeiro paraíso fiscal.
8. Aliás, o art. 2º, § 3º, da Resolução nº 23/07, do Conselho Nacional do Ministério Público, é expresso ao prever a necessidade de tomada de providências, ainda que o conhecimento pelo Parquet de fatos constituidores, em tese, de lesão aos interesses e direitos cuja proteção está a seu cargo se dê por manifestação anônima."
(STJ - 2ª Turma - RMS 32.065/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, v.u., DJe 10.03.2011)


"Ementa: (...). 3. Denúncia anônima pode ser investigada, para comprovarem-se fatos ilícitos, na defesa do interesse público."
(STJ - 2ª Turma - RMS 30.510/RJ, Rel. Ministra Eliana Calmon, v.u., DJe 10.02.2010)


Ementa: (...). 1. Ainda que com reservas, a denúncia anônima é admitida em nosso ordenamento jurídico, sendo considerada apta a deflagrar procedimentos de averiguação, como o processo administrativo disciplinar, conforme contenham ou não elementos informativos idôneos suficientes, e desde que observadas as devidas cautelas no que diz respeito à identidade do investigado. Precedentes desta Corte.
(STJ - 3ª Seção - MS 13.348/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, por maioria, DJe 16.09.2009)


"Ementa: (...). 1. Tendo em vista o poder-dever de autotutela imposto à Administração, não há ilegalidade na instauração de processo administrativo com fundamento em denúncia anônima. Precedentes do STJ,"
(STJ - 5ª Turma, REsp 867.666, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, v.u., DJe 25.05.2009)


Com relação aos Tribunais Regionais Federais, as decisões acerca de delação anônima, em geral, não destoam do entendimento das cortes superiores, consoante se pode verificar nos excertos dos arestos a seguir transcritos:


"AÇÃO CIVIL PÚBLICA - IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - INDEFERIMENTO DE PETIÇÃO INICIAL - IMPOSSIBILIDADE - EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SOBRE SUPOSTA PRÁTICA DE ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.
1. A existência de indícios sobre a suposta prática de ato de improbidade (artigo 17, § 6º, da Lei Federal nº 8.429/92) legitima a petição inicial da ação civil pública correlata.
2. Nesse contexto, o indeferimento da petição inicial impede, sem causa razoável, a análise, no curso regular do processo, dos indícios apontados pelo Ministério Público Federal.
3. Apelação provida."
(TRF 3ª Região - 4ª Turma - AC 2007.61.00.010400-7/SP, Rel. Des. Federal Fábio Prieto, DJe 26.08.2010, p. 865)


"Ementa: (...). I - Ainda que com ressalvas, a jurisprudência tem admitido a instauração de procedimento investigatório com base unicamente em denúncia anônima desde que encerre em seu bojo informações que se revistam de credibilidade e contenham informações suficientes para que a autoridade diligencie a procedência das afirmações feitas.
II - Não se trata de uma faculdade. Quando a notitia criminis trouxer ao conhecimento fatos revestidos de aparente ilicitude penal, o Estado tem a obrigação de apurar a procedência das afirmações feitas por meio de investigações.
III - Embora a denúncia anônima não possua, por si só, força probatória, é admitida como elemento válido a desencadear as investigações necessárias ao esclarecimento de supostos crimes.
IV - Não há ilegalidade na instauração de inquérito com base em investigações deflagradas por denúncia anônima, eis que a autoridade tem o dever de apurar a veracidade dos fatos alegados, devendo, contudo, proceder com cautela.
V - Emerge dos autos que, além da denúncia anônima, o inquérito policial está lastreado em outros elementos indiciários nos quais se baseou o Ministério Público para requisitar a instauração de inquérito policial à autoridade policial.
VI - Nesse sentido, verifica-se que a requisição ministerial está instruída com procedimento administrativo contendo, além da denúncia anônima, o documento subscrito por pessoa identificada, que teve que ser desentranhado com vistas à proteção de testemunha.
VII - Verificou-se a existência de investigação conexa pela Delegacia de Polícia Fazendária da Superintendência Regional de Mato Grosso do Sul (DELEFAZ/SR/MS), a qual vinha apurando inconsistências financeiras nas informações de alguns servidores e seus familiares ou empresas a eles relacionadas, o que motivou a reunião dos feitos. Portanto, tem-se que o inquérito policial não está lastreado unicamente em denúncia anônima.
(...).
(TRF 3ª Região, 2ª Turma - HC 0041700-19.2009.4.03.0000/MS, Rel. Des. Federal Cecília Mello, v.u., DJe 01.07.2010, p. 252)


"Ementa: (...). 2. Ademais, o fato de denúncia anônima ter deflagrado as investigações quanto à existência de irregularidades na contratação de empresa não gera qualquer nulidade, pois o Ministério Público apresentou documentos."
(TRF 1ª Região - 4ª Turma - AG 2005.01.00.071903-8, v.u., Des. Federal Hilton Queiroz)


In casu, é de se reformar a sentença de extinção e determinar o seu processamento, uma vez que a questão trazida pelo apelante se amolda ao entendimento doutrinário e jurisprudencial, no sentido de que a ação foi proposta não com base na denúncia anônima enviada ao Ministério Público Federal por meio de correio eletrônico, mas ajuizada com suporte no contido em processo administrativo e trinta e oito volumes a ele apensos, instaurado após constatar em prévia averiguação a verossimilhança dos fatos indicados no documento apócrifo.


Quanto à indisponibilidade de bens dos réus, não conheço do pedido, uma vez que sua análise por esta corte implicaria supressão de instância e violação ao princípio do juiz natural. O pedido deverá ser enfrentado pelo juízo a quo, com o retorno dos autos à primeira instância.


Ante o exposto, dou parcial provimento à apelação para reformar a sentença e não conhecer do pedido de indisponibilidade de bens dos réus e determinar a baixa dos autos à vara de origem para regular processamento.


É o voto.



André Nabarrete
Desembargador Federal


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