D.E. Publicado em 27/09/2012 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação para reformar a sentença e não conhecer do pedido de indisponibilidade de bens e determinar a baixa dos autos à vara de origem para regular processamento do feito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
Apelação interposta pelo Ministério Público Federal contra sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, com fulcro nos artigos 267, inciso I, c.c. o 295, parágrafo único, inciso III, do Código de Processo Civil, e artigo 17, § 11, da Lei nº 8.429/92, proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal em Marília/SP, nos autos da ação civil por atos de improbidade administrativa, ao fundamento de inépcia da exordial por conter pedido juridicamente impossível, já que incapaz de dar início à persecutio criminis ou outras investigações com base em denúncia anônima (fls. 48/68).
Na inicial, o Parquet federal traz descrição e demonstra detalhadamente as circunstâncias fáticas e jurídicas que embasam a ação, de modo a permitir, com o seu prosseguimento, a apuração da existência ou não dos atos imputados aos requeridos. Não obstante o pleito de responsabilização dos implicados, esclarece o órgão ministerial que seu objetivo maior é ver ultimadas as obras da barragem dos Ribeirão dos Índios, que inconclusas pela omissão do poder público municipal de Marília provoca uma situação social aflitiva às pessoas atingidas pela falta de água tratada.
Em seu apelo (fls. 71/109), alega-se:
a) ausência de ilegalidade na instauração de procedimento com base em investigações deflagradas por denúncia anônima;
b) embora a Constituição Federal vede o anonimato (art. 5º, IV), é certo que, se a notícia traz em seu bojo elementos concretos mínimos a orientarem as investigações, impõe-se a averiguação da veracidade dos fatos narrados, que também se faz indispensável até em razão de sua gravidade, consoante precedentes jurisprudenciais transcritos;
c) ainda que se trate de denúncia anônima, se se reveste de aparente ilicitude penal, tem o Estado o dever de verificar a veracidade das afirmações por meio de investigações, que poderão, se for o caso, dar início a inquérito policial;
d) in casu, a partir da delação anônima, foram feitas averiguações pelo órgão ministerial, que constatou que "as obras da represa para o abastecimento de água dos moradores da Zona Norte de Marília/SP estavam paralisadas há aproximadamente 01 (um) ano, nas quais haviam sido utilizadas verbas públicas da União, informações estas que deram ensejo à instauração de procedimento administrativo (Autos nº 1.34.007.000113/2006-13) em 02 de junho de 2006" (fl. 106).
e) instaurou-se o procedimento administrativo com base nas investigações e não na denúncia anônima como sustentado pelo juízo, daí que não há que se falar em nulidade no trabalho de campo que resultou na colheita de elementos de prova, na qual se revelou a existência de fortes indícios da prática de vários atos de improbidade (Lei 8.429/92, art. 17, § 6º);
f) requer seja provido o recurso, para cassar a sentença recorrida, a fim de que o feito tenha regular prosseguimento, nos termos do artigo 17, § 7º, da Lei nº 8.429/92, bem como a apreciação do pleito de liminar de indisponibilidade.
Mantida a sentença, determinou o juízo a quo fossem os autos encaminhados ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (fl. 111).
Em seu parecer, o Procurador Regional da República reafirma os argumentos despendidos na apelação e destaca que não há no sistema jurídico nacional vedação à investigação ou à apuração de fato levado ao conhecimento de autoridade em razão de denúncia anônima, caso assim fosse, conduziria à nulidade de todas as investigações iniciadas a partir dos sistemas de "disque-denúncia" e formas similares. Afirma ainda que a vedação constitucional ao anonimato se traduz em condicionante da liberdade de manifestação do pensamento, contudo não pode ser invocada para suprimir ao cidadão o direito de informar às autoridades a existência de um fato ilícito, nem mesmo de impedir estas de cumprirem o seu dever constitucional de preservar a legalidade. Também não há que se falar em constrangimento ilegal no procedimento investigatório, tampouco em impossibilidade jurídica do pedido que impeça o julgamento da ação. Por fim, requer a reforma da sentença recorrida e que seja determinado o prosseguimento do feito.
É o relatório.
Dispensada a revisão, nos termos regimentais.
VOTO
O Ministério Público Federal recebeu email sem identificação do remetente, cujo teor se transcreve a seguir:
Após o recebimento dessa delação sem indicação de seu autor, o órgão ministerial iniciou investigação acerca dos fatos narrados e, ao confirmar a paralisação da obra e o envolvimento de verbas públicas da União, determinou a instauração de procedimento administrativo (autos nº 1.34.007.000113/2006-13 - 3 volumes e respectivos apensos em 38 volumes), que se encontra apensado a estes autos e que serviu de base para o ajuizamento desta ação civil por atos de improbidade administrativa, c.c. pedido de indisponibilidade de bens (fl. 106).
Primeiramente, cabe ressaltar que se constata do exame dos apensos desta ação civil pública, relacionada à construção da represa na zona norte de Marília (barragem no Ribeirão dos Índios), a instauração pelo Parquet federal de três procedimentos administrativos, a saber:
I - com base na delação recebida, foi formalizada em 02.06.2006 a Tutela Coletiva - Representação nº 1.34.007.000113/2006-13 (3 volumes), objeto desta ação civil pública;
II - nesse procedimento, o Procurador da República determinou que lhe fosse apensado o Procedimento Administrativo - Tutela Coletiva nº 1.34.007.000186/2007-88 (38 vol.), o qual foi instaurado, conforme Portaria nº 16, de 23.07.2007 (fl. 01), em razão também de denúncia formulada sem indicação da autoria e recebida via email (fl. 02), em que são relatadas irregularidades na construção de barragem no Ribeirão dos Índios. Verifica-se ainda que foram juntadas a estes autos, às fls. 10/26, cópias extraídas dos autos de outra Tutela Coletiva, a de nº 1.34.007.000115/2005-13 (que será cuidada no item III), consistente no termo de declarações de Luiz Antônio Silva Travitzky e documentos referentes à licitação, projetos e pagamentos realizados na construção da barragem no Ribeirão dos Índios, no Distrito Industrial de Marília/SP;
III - às fls. 03 do procedimento indicado no item anterior, consta certidão de servidor do órgão ministerial, no qual informa que em relação à referida barragem existe já em trâmite o "Procedimento Administrativo - Tutela Coletiva nº 1.34.007.000115/2005-13, distribuído ao Dr. Jefferson Aparecido Dias, no qual consta Termo de Declarações [fl. 06], de 27 de julho de 2005, em que Luiz Antônio Silva Travitzky afirma, dentre outras coisas, que as obras de construção daquela barragem estavam paradas, que as verbas para tal construção eram oriundas da União, e que a paralisação da construção e o desmatamento causavam dano ao meio ambiente." (sublinhei).
Resulta que, em relação à construção da barragem, desde 27 de julho de 2005, com as declarações prestadas por Luiz Antônio Silva Travitzky, o Ministério Público Federal no Município de Marília já tinha conhecimento das irregularidades relacionadas com a construção da barragem no córrego Ribeirão dos Índios, tanto que foi instaurado o Procedimento Administrativo nº 1.34.007.000115/2005-13. Ressalte-se que este é mais antigo do que os outros dois instaurados pelo Parquet federal e, à exceção das cópias juntadas às fls. 10/26 no Procedimento Administrativo 1.34.007.000186/2007-88, não há outras informações sobre o andamento desse de nº 1.34.007.000115/2005-13.
Quanto aos outros dois procedimentos administrativos iniciados por denúncia de autoria não conhecida, o de nº 1.34.007.000113/2006-13 serviu de suporte a esta ação civil pública, ao passo que o de nº 1.34.007.000186/2007-88 lhe segue em apenso.
Conclui-se, portanto, que os emails recebidos, apesar de não indicarem a autoria, limitam-se a relatar irregularidades que já haviam sido trazidas ao conhecimento do Ministério Público quando das declarações prestadas por Luiz Antônio Silva Travitzky, em 27.07.2005. Nesse contexto, os escritos anônimos certamente não tiveram relevo autônomo, possivelmente serviram apenas para aprimorar as investigações antes deflagradas. Essa tendência à perfectibilidade muito provavelmente se deve à obrigação estatal imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), que torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público.
Não obstante essas considerações, que minimizam a força das delações referentes a esta ação civil pública, passo ao exame do apelo do autor, mormente quando, com base nelas, foram iniciadas e desenvolvidas intensivas investigações, que resultaram em quarenta e um volumes de documentos que se encontram apensados ao feito.
Destarte, a questão deduzida diz respeito à possibilidade de o Ministério Público proceder investigação, instaurar procedimento administrativo e ajuizar ação, a partir do conteúdo de email de autoria não conhecida.
O ordenamento jurídico constitucional a partir de 1988, ao dar maior relevo aos direitos e garantias fundamentais, na sua mais elementar função, implicou limites aos poderes do Estado. Dentre eles, o artigo 5º, inciso IV, dispõe que: "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato".
No plano infraconstitucional, o artigo 14 da Lei de Improbidade Administrativa (nº 8.429/92) expressamente exige, para o processamento de denúncia, a identificação do denunciante, verbis:
Da mesma forma, eventual representação ao órgão ministerial, a lei consigna:
Nesse quadro normativo, evidencia-se que delações anônimas não são admitidas no sistema jurídico nacional. Na lição de Alexandre de Moraes, "a proibição é ampla" e "abrange mensagens apócrifas, injuriosas, difamatórias ou caluniosas" e sua "finalidade constitucional é destinada a evitar manifestação de opiniões fúteis, infundadas, somente com o intuito de desrespeito à vida privada, à intimidade, à honra de outrem; ou ainda, com a intenção de subverter a ordem jurídica, o regime democrático e o bem-estar social." Todavia, esclarece que, excepcionalmente, é possível a adoção de medidas para a apuração da idoneidade das informações, conforme afirmou o Ministro Celso de Mello, em completo e fundamentado estudo, "vê-se, portanto, não obstante o caráter apócrifo da delação ora questionada, que, tratando-se de revelação de fatos revestidos de aparente ilicitude penal, existia, efetivamente, a possibilidade de o Estado adotar medidas destinadas a esclarecer, em sumária e prévia apuração, a idoneidade das alegações que lhe foram transmitidas, desde que verossímeis, em atendimento ao dever estatal de fazer prevalecer - consideradas razões de interesse público - a observância do postulado jurídico da legalidade, que impõe, à autoridade pública, a obrigação de apurar a verdade real em torno da materialidade e autoria de eventos supostamente delituosos (trecho do voto - STF - Inq. 1957/PR, Rel. Min. Carlos Velloso - Informativo STF nº 393, p. 3)" (in Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional, 7ª edição. Atlas, p. 141/143)
Ante a literalidade do preceito constitucional e das normas destacadas haveria de ser afastada qualquer delação que não tivesse a indicação do denunciante, porque, na lição de José Afonso da Silva, "a liberdade de manifestação de pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí por que a Constituição veda o anonimato." (Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª edição, Malheiros, 2000, p. 248).
Por seu turno, na doutrina e na jurisprudência consolidou-se a posição no sentido de que a denúncia anônima não pode servir de base para qualquer medida que importe restrição a direito individual ou condenação, mas, todavia, admite-se que, com a devida cautela, sejam promovidas averiguações e diligências prévias com o objetivo de obter eventuais indicativos de procedência, para só então decidir instaurar ou não um procedimento administrativo para apuração exaustiva do suposto fato delituoso.
Nesse contexto, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal refuta veementemente os casos em que o Estado deu início ao processo com fundamento apenas em peças de autoria desconhecida, mas, por outro lado, tem acolhido, com as devidas reservas e o necessário sopesamento, em cada caso, os diversos bens envolvidos no fato concreto quando a ação é oriunda de documento sem indicação de seu autor e que serviu de parâmetro para prévia averiguação e posterior instauração de procedimento administrativo ou inquérito. Esse posicionamento tem como leading case o julgamento do Inq. nº 1.957/PR, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, S.T.F., Plenário, 11.05.2005, que, pela sua expressão e o foco no assunto de interesse destes autos, transcrevo excertos do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello (fls. 261/279) acerca da questão de ordem suscitada relativamente à delação anônima:
Mais recentemente, em 02.10.2009, em decisão singular proferida nos autos do HC 100.042 MC/RO, nessa mesma linha de entendimento, o Ministro Celso de Mello examinou novamente a questão da delação anônima ou cartas apócrifas, cuja ementa praticamente reproduz as conclusões do voto anteriormente transcritas.
Trago ainda à colação o conteúdo dos acórdãos relatados pelos Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli, na esteira do posicionamento do Ministro Celso de Mello e, nos quais mencionam o entendimento, no mesmo sentido, de outros ministros da corte, verbis:
Em suma, como se verifica no voto e arestos transcritos, a jurisprudência da corte constitucional é assente no sentido da impossibilidade de o Estado, inclusive o Ministério Público, acionar o Poder Judiciário apoiado apenas em fundamento constante de peças de autoria desconhecida, a não ser que elas próprias constituam o corpo de delito, mas, no entanto, admite que o ente estatal adote medidas destinadas a esclarecer em sumária e prévia apuração a idoneidade das alegações contidas na delação anônima ou cartas apócrifas, que, se verossímeis, permitem que se instaure procedimento administrativo ou inquérito policial.
No âmbito da mais alta corte tem, portanto, prevalecido a ideia de um sopesamento entre os direitos fundamentais em jogo e o poder-dever de investigação da administração pública, decorrente do interesse público e de sua indisponibilidade, quanto aos bens concretamente envolvidos, sem, contudo, descurar da premissa de que cada caso deve ser analisado per se. A questão da denúncia anônima tem sido trabalhada sob o ângulo de uma visão estritamente principiológica (CF, art. 37, caput), em detrimento de vedação expressa da Constituição sobre o anonimato. Conclui-se, pois, que, para o S.T.F., com pequenas variações entre os ministros, a delação anônima não é instrumento dotado de juridicidade, é um desvalor dentro do ordenamento jurídico nacional, mas como ela pode conter informações que indicam indícios confiáveis de veracidade, que não devem ser ignorados pela administração, surge a obrigação de, mediante um juízo de ponderação, buscar por meio de uma averiguação feita com discrição e cautela sobre a exatidão dos fatos narrados.
Já no Superior Tribunal de Justiça tem prevalecido o entendimento de que, no sentido de prestigiar, com as devidas cautelas, a indisponibilidade do interesse público e o poder-dever de autotutela imposto à administração pública, não obstante a vedação constitucional do artigo 5º, inciso IV, e normas infraconstitucionais nesse mesmo sentido. Confira-se nos excertos dos arestos a seguir reproduzidos:
Com relação aos Tribunais Regionais Federais, as decisões acerca de delação anônima, em geral, não destoam do entendimento das cortes superiores, consoante se pode verificar nos excertos dos arestos a seguir transcritos:
In casu, é de se reformar a sentença de extinção e determinar o seu processamento, uma vez que a questão trazida pelo apelante se amolda ao entendimento doutrinário e jurisprudencial, no sentido de que a ação foi proposta não com base na denúncia anônima enviada ao Ministério Público Federal por meio de correio eletrônico, mas ajuizada com suporte no contido em processo administrativo e trinta e oito volumes a ele apensos, instaurado após constatar em prévia averiguação a verossimilhança dos fatos indicados no documento apócrifo.
Quanto à indisponibilidade de bens dos réus, não conheço do pedido, uma vez que sua análise por esta corte implicaria supressão de instância e violação ao princípio do juiz natural. O pedido deverá ser enfrentado pelo juízo a quo, com o retorno dos autos à primeira instância.
Ante o exposto, dou parcial provimento à apelação para reformar a sentença e não conhecer do pedido de indisponibilidade de bens dos réus e determinar a baixa dos autos à vara de origem para regular processamento.
É o voto.
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