Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 08/01/2013
HABEAS CORPUS Nº 0038099-34.2011.4.03.0000/SP
2011.03.00.038099-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
IMPETRANTE : Defensoria Publica da Uniao
ADVOGADO : DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
PACIENTE : LEA DWORA KREMER
ADVOGADO : ALAN RAFAEL ZORTEA DA SILVA (Int.Pessoal)
: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
IMPETRADO : JUIZO FEDERAL DA 6 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
CO-REU : SAMUEL SEMTOB SEQUERRA
: JAN SIDNEY MURACHOVSKY
: FERNANDO SALVADOR ALBERDI SEQUERRA AMRAM
No. ORIG. : 00116283320094036181 6P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

HABEAS CORPUS. CRIME DE LAVAGEM DE CAPITAIS. CITAÇÃO POR EDITAL. SUSPENSÃO DO PROCESSO. ARTIGO 366 DO CPP. APLICABILIDADE. STATUS SUPRALEGAL DO PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA QUE PREVALECE EM DETRIMENTO DA LEI DE 'LAVAGEM' (ARTIGO 2º, §2º, da Lei nº.9.613/98). ORDEM CONCEDIDA.
1. O status normativo supralegal do Pacto de San José da Costa Rica, que garante o direito de defesa mediante o prosseguimento da ação somente após a cientificação pessoal do acusado, que tem o direito de participação direta no processo que lhe é movido, prevalece em detrimento do artigo 2º, §2º, da Lei nº.9.613/98 que, ao afastar a aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal, permite que o processo crime prossiga, normalmente, contra um réu citado apenas fictamente que possivelmente ignora a existência do processo penal, em clara ofensa ao contraditório e à ampla defesa, devidamente regrados no Pacto de San José da Costa Rica.
2. Não é compatível com a garantia da ampla defesa prescrita no Pacto de São José da Costa Rica a inaplicabilidade do artigo 366 do Código de Processo Penal (artigo 2º, § 2º, da Lei n.º 9.613/98) aos delitos de lavagem de dinheiro, por macular com o grave vício da incerteza jurídica o ato fundamental do processo penal, isto é: citação do acusado, o que corrói a legitimidade do processo penal justo e equilibrado necessário à responsabilização penal de qualquer pessoa, ao propiciar que alguém possa ser condenado sem que tenha sido efetivamente cientificado da acusação e, por consequência, devidamente ouvido. Não se podem fechar os olhos ao fato público e notório de que, via de regra, o edital de citação, publicado na imprensa ou afixado na porta do Fórum, raramente cumpre o escopo de dar real ciência da acusação ao destinatário do ato ficto.
3. O artigo 366 do CPP não conduz à impunidade ao determinar a suspensão do processo na hipótese de citação por edital quando o acusado não comparece ou não constitui defensor, pois há salvaguardas contra tal risco ao se suspender também o prazo prescricional, bem como facultar a produção antecipada de provas urgentes e, se for o caso, a decretação de prisão preventiva. Aliás, crimes mais graves como o latrocínio no qual o patrimônio e a vida da vítima são atingidos ou até mesmo os delitos qualificados como hediondos pela Constituição observam a regra do art. 366 do CPP, o que bem evidencia a falta de razoabilidade da exceção contida no art. 2º, § 2º, da Lei n.º 9.613/98.

4. - Ordem concedida para anular a decisão que revogou a suspensão da ação penal e o curso do lapso prescricional e atos ulteriores praticados, aplicando-se o art. 366 do Código de Processo Penal.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, rejeitar a preliminar e conceder a ordem para anular a decisão que revogou a suspensão da ação penal e o curso do lapso prescricional e os atos ulteriores praticados no processo, aplicando-se o art. 366 do Código de Processo Penal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 18 de dezembro de 2012.
JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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HABEAS CORPUS Nº 0038099-34.2011.4.03.0000/SP
2011.03.00.038099-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
IMPETRANTE : Defensoria Publica da Uniao
ADVOGADO : DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
PACIENTE : LEA DWORA KREMER
ADVOGADO : ALAN RAFAEL ZORTEA DA SILVA (Int.Pessoal)
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IMPETRADO : JUIZO FEDERAL DA 6 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
CO-REU : SAMUEL SEMTOB SEQUERRA
: JAN SIDNEY MURACHOVSKY
: FERNANDO SALVADOR ALBERDI SEQUERRA AMRAM
No. ORIG. : 00116283320094036181 6P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:


Trata-se de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de LEA DWORA KREMER contra ato do Juízo Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo/SP que revogou a decisão que suspendeu a ação penal e o curso do lapso prescricional, com fulcro no artigo 366 do Código de Processo Penal, sob o fundamento de que o artigo 2º da Lei nº 9.613/98 veda expressamente a aplicação daquele dispositivo processual aos processos por crime nela estabelecidos.

A impetrante aponta a ilegalidade da decisão que deixou a aplicar do artigo 366 do Código de Processo Penal por violação ao Pacto de San José da Costa Rica.

Aduz, em resumo, que, ao obstar a incidência do citado artigo, a Lei nº 9.613/93 atenta contra a garantia da ampla defesa e do contraditório, uma vez que nega ao réu o direito de realmente tomar conhecimento da acusação que lhe é feita e de ser adequadamente ouvido e defendido, notadamente quando ignora a existência do processo.

Afirma que, conforme entendimento jurisprudencial e doutrinário dominantes, o Pacto de São José da Costa Rica tem hierarquia de norma supra legal, motivo pelo qual a regra prescrita no §2º do artigo 2º da Lei nº.9.613/98 com ele conflitante não prevalece.

Pede a reforma da decisão com a devida aplicação do artigo 366 do Código de Processo Penal.

Sem pedido liminar.

Requisitadas, foram prestadas informações pela autoridade apontada coatora ( fls.52/53).

Parecer da Procuradoria Regional da República no sentido de, preliminarmente, ser regularizada a representação processual e, no mérito, pela denegação da ordem.

É o relatório.








JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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HABEAS CORPUS Nº 0038099-34.2011.4.03.0000/SP
2011.03.00.038099-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
IMPETRANTE : Defensoria Publica da Uniao
ADVOGADO : DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
PACIENTE : LEA DWORA KREMER
ADVOGADO : ALAN RAFAEL ZORTEA DA SILVA (Int.Pessoal)
: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
IMPETRADO : JUIZO FEDERAL DA 6 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
CO-REU : SAMUEL SEMTOB SEQUERRA
: JAN SIDNEY MURACHOVSKY
: FERNANDO SALVADOR ALBERDI SEQUERRA AMRAM
No. ORIG. : 00116283320094036181 6P Vr SAO PAULO/SP

VOTO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

1. Da preliminar. A Procuradoria Regional da República suscita preliminar de ilegitimidade da atuação da Defensoria Pública da União ao seguinte argumento:


"(...) A Defensoria Pública da União, em nome próprio, impetrou o presente habeas corpus em favor de LEA DWORA KREMER.
Como ponto de partida, observa-se que as Defensorias Públicas não podem atuar em nome próprio, mas sempre em nome da parte.São elas espécie do gênero advocacia pública (...).
(...) Desta forma, se fosse caso de a DPU intervir nos autos, deveria fazê-lo em nome da parte e não em nome próprio, com as retificações necessárias na autuação.
Todavia, no caso em exame, tem-se que a Defensoria Pública da União não tem legitimidade ativa para representar judicialmente a paciente, pois não há qualquer indício de que esta seja hipossuficiente, de modo que a intervenção da DPU nos presentes autos, data máxima vênia, é incabível.
(...) Não havendo prova da hipossuficiência da paciente, é de incidir no caso concreto, portanto, a regra do art.263 do Código de Processo Penal (...)".

Pede a intimação da Defensoria Pública da União a fim de que comprove o estado de necessidade da paciente, sob pena de ser desconstituída a representação da Defensoria Pública, com a nomeação de defensor dativo ou intimação do advogado constituído nos autos de origem.

Rejeito a preliminar, porquanto as informações prestadas pela autoridade impetrada indicam que na ação penal originária a Defensoria Pública da União fora nomeada para defender a acusada, oferecendo resposta escrita à acusação, circunstância que lhe confere legitimidade para a impetração.

2. Do mérito. A paciente foi denunciada por ter praticado, em tese, o crime descrito no artigo 1º, inciso VI e §1º, inciso II, da Lei nº 9.613/98.

O processo foi suspenso em 09 de fevereiro de 2011, com supedâneo no artigo 366 do Código de Processo Penal, sendo desmembrados os autos em relação aos demais denunciados.

Posteriormente, em 18 de março de 2011, o Juízo de 1º grau reconsiderou a decisão anterior, de sobrestamento da ação penal, de forma a retomar o curso da ação penal, sob o fundamento de que o artigo 2º da Lei nº 9.613/98 expressamente prevê que não se aplica o disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal.

A impetrante aponta ser ilegal a decisão que revogou a aplicação do artigo 366 do Código de Processo Penal por violação ao Pacto de San José da Costa Rica, porque, ao obstar a incidência do citado artigo, a Lei nº 9.613/93 viola a garantia da ampla defesa e do contraditório, uma vez que nega ao réu o direito de realmente tomar conhecimento da acusação que lhe e feita e de ser ouvido, notadamente quando ignora a existência do processo.

Afirma que, conforme entendimento jurisprudencial e doutrinário dominantes, o Pacto de São José da Costa Rica tem hierarquia de norma supralegal, motivo pelo qual a regra prescrita no §2º do artigo 2º da Lei nº.9.613/98 com ele conflitante não prevalece, pois os comandos da lex superior têm preferência de aplicação, afastando, dessa forma, a antinomia existente.

Com razão a impetrante.

Dispõe o artigo 2º, §2º, da Lei nº.9613/98:


"Art.2º. O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:
(...) omissis
§2º. No processo por crime previsto nesta Lei, não se aplica o disposto no art.366 do Código de Processo Penal ".

O art. 366 do Código de Processo Penal assim dispõe:


Art.366. Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art.312.

Por sua vez, o art. 8º do Pacto de São José da Costa Rica determina o seguinte:


Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa;
d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;
e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei;
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
4. O acusado absolvido por sentença transitada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.
5. O processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça. Grifei.

O Supremo Tribunal Federal, em 3 de dezembro de 2008, pronunciou-se sobre a eficácia e integração dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico pátrio, ao julgar do RE 466.343/SP e HC 87.585/TO, em conjunto com o RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566, reconhecendo o status normativo supralegal dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos subscritos pelo Brasil, no caso, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão, verbis:


EMENTA: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito (RE 466.343/SP - - Rel. Min. Cezar Peluso - Dje 04.06.2009).

PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5O DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão "depositário infiel" insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (RE 349703/RS - Rel. Min. Carlos Bitto - Dje 04.06.2009). Grifei.

Como é cediço, a citação por edital é ficta, isto é, presume-se que a pessoa a qual se destina tenha sido cientificada da acusação que lhe é imputada; porém, na maioria da vezes, essa presunção não se verifica, o que conduz à situação processual na qual o imputado desconhece a acusação. Em face da incerteza advinda esse tipo de citação, o legislador, a fim de preservar a efetividade do direito de defesa, adotou como regra geral o procedimento descrito no artigo 366 do Código de Processo Penal que prescreve, para a hipótese de o acusado citado por edital não comparecer nem constituir advogado, a suspensão do processo e do curso do prazo prescricional.


No caso dos autos, o status normativo supralegal do Pacto de San José da Costa Rica, que garante o direito de defesa mediante o prosseguimento da ação somente após a cientificação pessoal do acusado, que tem o direito de participação direta no processo que lhe é movido, prevalece em detrimento do artigo 2º, §2º, da Lei nº.9.613/98 que, ao afastar a aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal, permite que o processo crime prossiga, normalmente, contra um réu citado fictamente que possivelmente ignora a existência do processo penal, em clara ofensa ao contraditório e à ampla defesa devidamente regrados no Pacto de San José da Costa Rica.

Não há justificativa razoável para excluir os crimes de lavagem de dinheiro da disciplina prescrita no artigo 366 do Código de Processo Penal, visto que, assim agindo, o legislador afronta diretamente a garantia da ampla defesa e do contraditório, que exige prévia e efetiva comunicação da acusação, nos termos no artigo 8º do Pacto de São José da Costa Rica que assegura toda pessoa o direito de: "b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados a preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor."

A citação ficta não assegura a certeza indispensável e necessária de que houve a comunicação prévia e pormenorizada ao imputado da acusação formulada e, por conseguinte, suprime, obviamente nos casos em que não ocorreu tal cientificação, a oportunidade de o acusado defender-se pessoalmente e de constituir defensor de sua escolha por ignorar a existência do processo, além de a própria defesa técnica, nomeada nessas circunstâncias anômalas da citação ficta, restar severamente limitada pela ausência de diálogo entre o acusado e o seu defensor que sequer o conhece e não ouve a sua versão da acusação (autodefesa).

Não é compatível com a garantia da ampla defesa prescrita no Pacto de São José da Costa Rica a inaplicabilidade do artigo 366 do Código de Processo Penal (artigo 2º, § 2º, da Lei n.º 9.613/98) aos delitos de lavagem de dinheiro, por macular com o grave vício da incerteza jurídica o ato fundamental do processo penal, isto é: citação do acusado, o que corrói a legitimidade do processo penal justo e equilibrado necessário à responsabilização penal de qualquer pessoa, ao propiciar que alguém possa ser condenado sem que tenha sido efetivamente cientificado da acusação e, por consequência, devidamente ouvido. Não se podem fechar os olhos ao fato público e notório de que, via de regra, o edital de citação, publicado na imprensa ou afixado na porta do Fórum, raramente cumpre o escopo de dar real ciência da acusação ao destinatário do ato ficto.

Nem se alegue que o sacrifício e a restrição impostos ao direito de defesa pela regra em análise são proporcionais e compatíveis com a política criminal estabelecida para a repressão desse tipo de delito, pois "a suspensão do processo constituiria um premio para os deliquentes astutos e afortunados e um obstáculo à descoberta de uma grande variedade de ilícitos que se desenvolvem em parceria com a lavagem e ocultação", conforme constou da Exposição de Motivos à Lei 9.613/98.

O artigo 366 do CPP não conduz à impunidade ao determinar a suspensão do processo na hipótese de citação por edital quando o acusado não comparece ou não constitui defensor, pois há salvaguardas contra tal risco ao se suspender também o prazo prescricional, bem como facultar a produção antecipada de provas urgentes e, se for o caso, a decretação de prisão preventiva. Aliás, crimes mais graves como o latrocínio no qual o patrimônio e a vida da vítima são atingidos ou até mesmo os delitos qualificados como hediondos pela Constituição observam a regra do art. 366 do CPP, o que bem evidencia a falta de razoabilidade da exceção contida no art. 2º, § 2º, da Lei n.º 9.613/98.

É excessivamente oneroso à ampla defesa e carece de legitimidade pela desproporcionalidade entre proveito gerado pela punição e a restrição imposta ao direito de defesa o prosseguimento do processo penal com base numa citação ficta que não gera a segurança necessária de que o acusado tomou conhecimento prévio e pormenorizado da acusação, o que permite a responsabilização penal de quem ignora a existência do processo penal. Há meios e medidas processuais cautelares mais eficazes para inibir criminalidade em matéria de lavagem de dinheiro que não imponham sacrifício tão intenso e desnecessário que praticamente esvazia o direito de defesa.

Discorrendo sobre a vedação à aplicação do artigo 366 pelo art. 2º, § 2º, da Lei n.º 9.613/98, ensina Marco Antonio de Barros, em sua obra "Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas, Ed. RT, 2004, pág 225/229), verbis:


"(...) Existem regras que constituem pontos basilares da estrutura do devido processo penal, que dão a necessária harmonia ao sistema jurídico e não podem ser excepcionadas sem dar lugar ao surgimento de injustiças. Para a efetividade e segurança na edição de uma decisão condenatória verdadeiramente justa, é de fundamental importância que o acusado tenha ciência real da existência do processo criminal. O prosseguimento do processo até final sentença, em ação penal na qual o réu foi fictamente citado, nos remete a um longo período de produção em série de condenações de réus revéis. Camuflava-se a efetividade das garantias do contraditório e da ampla defesa com o chamado faz-de-conta. Faz-de-conta que o réu tem ciência da existência da ação penal; faz-de conta que a sua defesa - ainda que elaborada em termos técnicos - , é a melhor; faz-de-conta que todas as providências tendentes ao estabelecimento da verdade real foram determinadas e realizadas, enfim, faz-de-conta que o processo criminal, assim concluído, não representa uma séria restrição à defesa de mérito.
São incontáveis os erros do Judiciário decorrentes da subserviência a esse superado sistema. Muitos inocentes, que até então desconheciam a existência dos processos, foram presos por força de mandados expedidos após o trânsito em julgado das sentenças condenatórias consubstanciadas em dados identificatórios do autor do crime falsamente fornecidos ou equivocadamente obtidos na fase das investigações. E estes expedientes ilícitos que tantas pessoas já prejudicaram são perfeitamente possíveis e serem utilizados o âmbito da criminalidade organizada, sobretudo se levarmos em conta a sofisticada atividade que caracteriza a neocriminalização deste fim de século. Portanto, vale-se o legislador de uma política criminal superada pelos resultados anteriormente produzidos, pois a fórmula que a lei apresenta contraria as garantias do contraditório e da ampla defesa, além de não contribuir para a efetividade concreta do processo criminal, fundamentos políticos estes, que motivaram a alteração do mencionado dispositivo penal.
(...)
Bem de ver, ainda, que a redação atual do art. 366, do CPP não representa um escudo para proliferação da impunidade. Ao contrário. O próprio legislador confere ao juiz a possibilidade de determinar a produção antecipada de provas consideradas urgentes. Além disso, o benefício da suspensão do processo é compensado com a suspensa do curso prescricional, cuja medida constitui um sério fardo imposto àquele que se encontre em local incerto e não sabido. E mais ainda, Esta o juiz autorizado a decretar a prisão preventiva do acusado, e ela é viável de ser determinada para garantia da instrução do processo."

Com tais considerações, deve-se aplicar o art. 366 do Código de Processo Penal aos crimes de lavagem de dinheiro, em consonância com o art. 8º do Pacto de San José da Costa Rica, os quais permitem que o processo seja suspenso enquanto o réu não comparecer pessoalmente para realizar sua defesa ou constituir defensor para tanto, em observância aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.

Com tais considerações, rejeito a preliminar e concedo a ordem para anular a decisão que revogou a suspensão da ação penal e do curso do lapso prescricional, bem como os atos ulteriores já praticados no processo, aplicando-se o art. 366 do Código de Processo Penal.

É o voto.



JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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