Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0007995-74.2007.4.03.6119/SP
2007.61.19.007995-9/SP
RELATOR : Juiz Convocado PAULO DOMINGUES
APELANTE : ROGERIO MAIA reu preso
ADVOGADO : MARCIO AMATO
: ALIANE CRISTINA MOREIRA SEEMANN
APELADO : Justica Publica
EXCLUIDO : EDUARDO TSUGUIO SATO

VOTO-VISTA

O Juiz Federal Convocado MÁRCIO MESQUITA:


Trata-se de Apelação Criminal nº 0007995-74.2007.403.6119 interposta por Rogerio Maia contra a sentença que o condenou a 7 (sete) anos de reclusão, em regime inicial fechado, e 700 (setecentos) dias-multa, como incurso no artigo 33, caput, c.c. artigo 40, inciso I, da Lei nº 11.343/2006.

O feito foi levado a julgamento na sessão de 04.12.2012. Em seu voto, o E. Relator Juiz Federal Convocado Paulo Domingues, afastou a preliminar de nulidade argüida pela Procuradoria Regional da República e negou provimento à apelação.


Pedi vista dos autos para melhor apreciar a questão preliminar.


Peço vênia ao E. Relator para acolher a preliminar de nulidade argüida pela Procuradoria Regional da República, em parecer da lavra do DD. Procurador Regional da República Márcio Domene Cabrini, pelos seguintes fundamentos:


APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. DELAÇÃO PREMIADA. NULIDADE. PARECER.
1. A formalização da prisão em flagrante do apelante não corresponde à realidade dos fatos.
2. A autuação das informações prestadas por réu colaborador em apartado, sem possibilidade de exame por parte de outro réu, gera nulidade absoluta.
3. A simples existência de delação, com o conhecimento do julgador, tem potencial para influenciar a formação de sua convicção. A prolação de sentença condenatória contra o réu delatado com base em provas diversas viola os princípios do livre convencimento motivado do juiz, do contraditório e da ampla defesa.
4. Essa colenda Primeira Turma afastou a possibilidade de que provas obtidas em decorrência de eventual delação premiada sejam mantidas em segredo durante o trâmite da ação penal. (TRF3. HC 200903000135897. HC 36392. Relator(a) JUIZ MÁRCIO MESQUITA. Órgão julgador: PRIMEIRA TURMA. Fonte DJF3 CJ1 DATA: 02/09/2009 PÁGINA: 147).
5. A necessidade de proteger o delator não pode implicar na condenação do delatado sem que sua defesa tenha acesso à totalidade das provas produzidas em seu desfavor.
... Juntamente com os autos da presente ação penal, vieram também os autos de petição criminal nº 2009.03.00.033248-4, referente a documentos da ação penal nº 2008.61.19.001379-5, na qual figura como réu Eduardo Tsuguio Sato, em razão do desmembramento dos presentes autos, bem como dos autos nº 2007.61.19.008650-2, contendo notícia da existência de delação premiada por parte de Eduardo contra Rogério Maia...
2. Tendo em vista as informações contidas nos autos de petição criminal nº 2009.03.00.033248-4, bem como o procedimento adotado com relação à referida delação, patente a nulidade absoluta da presente ação penal, desde a formalização do auto de prisão em flagrante de fls. 07/18 e do oferecimento da denúncia até a prolação da sentença.
O auto de prisão em flagrante de fls. 07/18 não retrata o que realmente aconteceu, mascarando a forma como os fatos se desenvolveram. No documento, não há qualquer notícia sobre a existência de depoimento do réu colaborador. Este depoimento está retratado às fls. 15/17 dos autos nº 2009.03.00.033248-4, nas quais o Delegado Federal responsável pela prisão narra expressamente que o flagrante de Rogério Maia somente foi possível em virtude da delação realizada por Eduardo Tsuguio Sato.
3. Ao que parece, o escopo das autoridades que atuaram no caso era proteger o réu delator, impedindo que o delatado soubesse do conteúdo do seu depoimento e assim, buscasse vingança. Assim, à folha 16 dos presentes autos consta que Eduardo permaneceu em silêncio perante a autoridade policial. Porém, espantosamente, observa-se que o documento de fl. 80 dos autos da ação penal contra Rogério Maia revela a efetiva colaboração de Eduardo Tsuguio Sato, que, na verdade, prestou declarações à autoridade policial, colhidas em termo apartado.
4. As declarações prestadas por Eduardo constam apenas à fls. 17 dos autos nº 2009.03.00.033248-4, de forma que não foram juntadas na presente ação penal. Assim, trata-se de importante prova do crime e de como os fatos realmente ocorreram. Contudo, a defesa de Rogério Maia dela não teve conhecimento, não podendo exercer o contraditório e ampla defesa.
Não obstante a existência da delação, é certo que a denúncia oferecida não relata essa circunstância e narra apenas que a prisão do apelante Rogério Maia se deu em razão de denúncia anônima e diligências policiais.
(...)
Mesmo após a defesa argumentar que suspeitava da delação premiada, ainda assim foi negado acesso a essa informação, que constava nos autos nº 2007.61.19.008650-2, também em trâmite perante o juízo a quo.
O policial federal Marcos Morais, testemunha de acusação, contou em seu depoimento de fls. 584/586, que o número de telefone de Rogério Maia foi obtido pelo celular de Eduardo e o local onde o apelante seria encontrado para buscar a dorga (Hotel Formule 1), foi fornecido por um taxista. Nada falou sobre a delação.
O mesmo ocorreu no depoimento de Maurício Manzolli, que disse que a prisão de Rogério Maia partiu do conteúdo de denúncia anônima e 'de elementos colhidos junto a Eduardo, no sentido de que ele, efetivamente, entregaria a substância proscrita a terceria pessoa' (fls. 735/736). Nada comentou sobre a delação.
Por fim, a sentença condenatória de fls. 1.237/1.240 fundamentou a autoria por parte de Rogério Maia tão-somente nos depoimentos dos policiais, sendo estas as únicas provas de autoria mencionadas no decreto condenatório (...)
Ocorre que essa condenação encotnra-se embasada tão somente em provas que sabidamente não retratam o efetivo desencadeamento dos fatos; as provas determinantes para a prisão em flagrante de Rogério, que certamente influenciaram a formação da convicção do julgador, não foram submetidas ao crivo do contraditório.
A prolação de sentença condenatória contra o réu delatado com base em provas diversas viola os princípios do livre convencimento motivado do juiz, já que a simples existência de informações prestadas pelo réu colaborador, com pleno conhecimento pelo julgador, sem dúvida tem potencial para influenciar a tomada de decisão.
5. A ocultação da existência da delação configurou, ainda, flagrante violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, porque essa prova crucial não pode ser questionada pela defesa de Rogério.
É certo que nos autos de petição criminal nº 2009.03.00.033248-4 há informação de que o sigilo da delação se justificou na necessidade de garantir a segurança do delator Eduardo Tsuguio Sato. Por isso, na decisão de fls. 68/69 daquele feito há permissão expressa para que as testemunhas omitam nos depoimentos prestados na presente ação penal a existência da referida delação. Para tanto, fundamentou-se nos arts. 8º e 15, §2º, ambos da Lei nº 9.807/99.
Contudo, o procedimento adotado não encontrado respaldo no ordenamento jurídico pátrio. A Lei nº 9.807/99 não prevê a possibilidade de que eventual delação premiada seja mantida em segredo da defesa dos delatados. As medidas de proteção previstas para o réu colaborador estão previstas no art. 15 e no art. 7º da referida lei. Nessas, não se inclui a manutenção da delação como espécie de 'prova secreta', como ocorreu no presente caso. (grifos do original)

Retomo aqui o entendimento assentado em voto proferido no HC nº 2009.03.00.033589-7, referido no parecer do DD. Procurador Regional da República, sendo conveniente, antes de descer às minúcias do caso concreto, tecer algumas considerações de ordem geral.


A problemática do caráter sigiloso do acordo de réu colaborador, ou acordo de delação premiada, deve ser analisada sob duplo aspecto: por primeiro, o sigilo da própria existência do acordo e de seus termos; e em segundo lugar, o sigilo do conteúdo das declarações prestadas.

O caráter sigiloso das medidas de proteção à testemunhas, vítimas e réus colaboradores é estabelecida no §5º do artigo 2º da Lei nº 9.807/1999.

Dessa forma, tanto a própria existência do acordo de delação premiada quanto os termos e condições em que foi celebrado interessam somente ao réu colaborador, ao órgão da Acusação e ao Juízo.

Com efeito, a aceitação do acordo, os seus termos, e o seu cumprimento pelo réu colaborador têm influência apenas na aplicação da sanção penal, em nada afetando o direito de defesa dos supostos delatados, posto que não constituem prova que possa ser utilizada contra os corréus.

Quanto ao segundo aspecto, qual seja, o acesso dos réus delatados às declarações incriminadoras feitas com relação à sua pessoa, não há como sustentar a possibilidade de sigilo.

Se as declarações do réu delator servirão como prova, e terão influência no convencimento do Julgador, não há como negar o direito de acesso dos acusados, sob pena de frontal violação ao direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal.

Entendimento contrário, ou seja, admitir-se a legalidade de sigilo dos depoimentos incriminadores dos delatores corresponderia a dar foros de validade e possibilitar a condenação de alguém com base em "prova secreta".

Em outras palavras, o corréu delatado tem direito de conhecer os fatos que lhe são atribuídos pelo delator e a abrangência das declarações, com vistas a planejar da melhor maneira possível sua defesa, exercendo o contraditório da prova.

No sentido do caráter sigiloso do próprio acordo de delação premiada, mas não das declarações incriminadoras, situa-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça:


PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ACORDO DE COOPERAÇÃO. DELAÇÃO PREMIADA. DIREITO DE SABER QUAIS AS AUTORIDADES DE PARTICIPARAM DO ATO. ADMISSIBILIDADE. PARCIALIDADE DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO. SUSPEITAS FUNDADAS. ORDEM DEFERIDA NA PARTE CONHECIDA. I - HC parcialmente conhecido por ventilar matéria não discutida no tribunal ad quem, sob pena de supressão de instância. II - Sigilo do acordo de delação que, por definição legal, não pode ser quebrado. III - Sendo fundadas as suspeitas de impedimento das autoridades que propuseram ou homologaram o acordo, razoável a expedição de certidão dando fé de seus nomes. IV - Writ concedido em parte para esse efeito.
STF, 1ª Turma, HC 90688/PR, Rel.Min. Ricardo Lesandowski, DJe 24.04.2008
HABEAS CORPUS. INTERCEPTAÇÃO CLANDESTINA DE LIGAÇÕES TELEFÔNICAS. ART. 10 DA LEI N.º 9.296/96. ARGÜIDA NULIDADE DECORRENTE DE PARTICIPAÇÃO DE JUIZ FEDERAL IMPEDIDO NA FASE INVESTIGATÓRIA PRÉ-PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE CONTAMINAÇÃO DAS PROVAS COLHIDAS PELA POLÍCIA FEDERAL. DESINFLUÊNCIA DESTAS NA CONVICÇÃO DO JUIZ SENTENCIANTE. DELAÇÕES PREMIADAS EM OUTROS AUTOS HOMOLOGADAS PELO MESMO JUIZ IMPEDIDO. QUESTÃO FORA DA AÇÃO PENAL EM TELA E, PORTANTO, DESTE WRIT. 1. Hipótese em que Juiz Federal, potencial vítima do "grampo telefônico", deferiu diligências investigatórias requeridas pela Força-Tarefa composta por membros do Ministério Público e da Polícia Federal. Posteriormente, depois de ter-se deparado com provas contundentes da existência do crime, quando o próprio autor material do "grampo" confessou o delito, acolhendo a exceção oposta pelo Ministério Público Federal, deu-se por impedido/suspeito, remetendo os autos da investigação em andamento para o substituto. 2. É mister observar que a atuação do Magistrado impedido, até aquele momento, se restringiu a deferir diligências as quais se mostravam absolutamente pertinentes e necessárias à continuidade do trabalho inquisitivo-investigatório em andamento. Também não se pode olvidar que o foco central das investigações estava em outros episódios que caracterizariam, em tese, exploração de prestígio ou tráfico de influência, e lavagem de dinheiro. 3. As providências investigatórias determinadas pelo Juízo Federal - que não agiu de ofício, mas sim acolheu requerimento da Força-Tarefa - eram mais do que razoáveis e pertinentes naquelas circunstâncias, razão pela qual se evidenciaram proporcionais e adequadas, sem malferimento a direito fundamental do investigado. E, mesmo que o Juízo quisesse proceder de modo tendencioso, pretendendo interferir no resultado da prova a ser colhida, nem assim poderia fazê-lo, simplesmente porque não detinha o domínio das diligências em questão, que, é claro, foram realizadas pelo aparato policial. 4. O juiz, ainda que formalmente impedido para a futura ação penal, não teve interferência direta na produção dos elementos de prova na fase pré-processual, porque sobre estes não teve ingerência, razão pela qual não se pode tê-los como de origem ilícita. 5. Ainda que assim não fosse, as instâncias ordinárias, soberanas na aferição do quadro fático-probatório, consideraram os elementos de prova, ora impugnados, coligidos na fase pré-processual, prescindíveis, na medida que, mesmo os desconsiderando, sobejariam provas de autoria e materialidade do crime, provenientes de fontes independentes, obstando o pretendido reconhecimento de nulidade por derivação. 6. Não se mostra pertinente a discussão em torno de delação premiada oferecida a Réus pelo Ministério Público, e homologada pelo respectivo Juízo, em outros autos. O que interessa para a ação penal em tela são seus efetivos depoimentos prestados, os quais foram cotejados com as demais provas pelo juiz da causa para formar sua convicção, sendo garantido ao ora Paciente o livre exercício do contraditório e da ampla defesa. Eventual nulidade desses acordos efetivados em outras ações penais - cuja discussão refoge aos limites de cognição deste writ - não tem o condão de atingir os depoimentos tomados na presente ação penal. 7. Ordem denegada.
STJ, 5ª Turma, HC 70878/PR, Rel.Min. Laurita Vaz, DJe 16.06.2008

No mesmo sentido já decidiu esta Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no citado HC 2009.03.00.013589-7, de minha relatoria.

É certo que, admitida a necessidade de acesso dos réus delatados às declarações incriminadoras feitas pelo réu delator, a questão quanto ao sigilo da existência do acordo de delação premiada perde um pouco de sua substância.

Por óbvio, se não se pode negar o acesso do réu deletado às declarações incriminadoras feitas pelo réu delator, é certo que a existência da própria delação não pode ser ocultada. Assim, restará, no caso de necessidade de preservação da integridade do delator, diante de coações ou ameaças, a adoção das medidas de proteção previstas na Lei nº 9.807/1999, da mesma forma adotada com relação às testemunhas ou vítimas.

Portanto, ainda existente eventual acordo de delação premiada, a determinação de acesso à prova produzida (os depoimentos do delator) não significa quebrar o sigilo acerca da existência e dos termos e condições de eventual acordo, posto que eventual acordo, se realizado, é de ser feito em autos apartados da ação penal, até como forma de viabilizar a preservação do sigilo.

Assim, ao assegurar o direito de acesso da Defesa aos depoimentos do delator, não se está inviabilizando o instituto da delação premiada, mas apenas e tão somente assegurando o exercício do direito à ampla defesa dos demais corréus.

Ainda que assim não se entenda, no conflito entre o direito à ampla defesa, que implica em direito de acesso a todas as provas produzidas, e eventuais dificuldades práticas com relação à operacionalização da delação premiada, não tenho dúvidas em dar prevalência ao direito de ampla defesa.

Não é demais lembrar que o processo penal, do ponto de vista histórico, surge como uma limitação ao exercício do poder do Estado, e as limitações ao poder de punir são obviamente instituídas em favor do réu.

Do lado oposto, o réu colaborador é colaborador do Estado, no exercício do poder de punir. Não se olvida a necessidade de dar efetividade à repressão criminal e garantir a segurança dos cidadãos e da sociedade, mas essa efetividade não se pode dar às custas do direito à ampla defesa.


Isto posto, observo que no caso concreto assiste razão ao DD. Procurador Regional da República quanto à argumentação de que o auto de prisão em flagrante e a denúncia narram fatos divorciados da realidade, pois deliberadamente omitem que a prisão de Rogério Maia somente fora possível de realizar-se, bem assim a apreensão de droga em seu poder, em virtude da delação do corréu Eduardo.

É certo que as nulidades do inquérito não contaminam a ação penal, conforme consagrado entendimento jurisprudencial, anotado pelo E. Relator.

Mas, no caso dos autos, com a devida vênia, não se trata de nulidade apenas do auto de prisão em flagrante, mas também da denúncia, que deliberadamente omite que a localização de Rogério somente foi possível em razão das declarações de Eduardo.

Ademais, a nulidade também alcança a ação penal, em razão da "autorização" dada pelo Juízo às testemunhas, para que omitissem em seus depoimentos a existência das informações do delator, conforme consta da decisão de fls. 62 dos autos da Petição Criminal 2009.03.00.033248-4, em apenso, da lavra da MM. Juíza Federal Maria Isabel do Prado:


Ante o exposto, acatando o pedido Ministerial, autorizo as testemunhas da ação penal nº 2007.61.19.007995-9, retroativamente e para o futuro, que omitam em seus depoimentos a delação promovida por Eduardo Tsuguio Sato.

Com a devida vênia dos que entendem em sentido contrário, tenho para mim ser inconcebível que o Juiz combine antecipadamente com as testemunhas o teor do depoimento destas, ainda que com vistas a salvaguardar a segurança do réu delator.

O depoimento da testemunha deve ser ouvido pelo Juízo com vistas à busca da verdade; a credibilidade dos depoimentos e sua força de convencimento devem ser resultado do exame cuidadoso, pelo Julgador, de sua coerência com todo o conjunto probatório e de sua conformidade com as regras da experiência.

Se o Juiz acerta com a testemunha, antecipadamente, os termos de seu depoimento, "autorizando-a" a omitir determinados fatos, é porque já deu tal depoimento como fiel à realidade dos fatos; e assim, está irremediavelmente comprometido em sua parcialidade, diante da Defesa do réu que a nada teve acesso.

Ademais, tenho ainda para mim que é inconcebível, consoante o ordenamento jurídico pátrio vigente, que o juízo autorize qualquer testemunha a omitir fato ocorrido, porquanto a situação equivale a verdadeira manipulação da prova, expressamente vedada; e mais, equivale a uma autorização do juízo para que alguém pratique crime expressamente tipificado no artigo 342 do Código Penal, in verbis:

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:
Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.
§ 1o As penas aumentam-se de um sexto a um terço, se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. (grifos acrescidos)

De outro vértice, se a intenção da medida de sigilo da existência de delação era a proteção do delator, a lei de proteção à testemunhas fornece diretrizes para tanto, conforme artigos 15 e 8º da Lei 9.807/1999:

Art. 15. Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva.
§ 1o Estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos.
§ 2o Durante a instrução criminal, poderá o juiz competente determinar em favor do colaborador qualquer das medidas previstas no art. 8o desta Lei.
§ 3o No caso de cumprimento da pena em regime fechado, poderá o juiz criminal determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados. (grifos acrescidos)
Art. 8o Quando entender necessário, poderá o conselho deliberativo solicitar ao Ministério Público que requeira ao juiz a concessão de medidas cautelares direta ou indiretamente relacionadas com a eficácia da proteção.

Por estas razões, acolho a preliminar suscitada pela DD. Procuradoria Regional da República para anular o processo desde a denúncia, inclusive, e julgo prejudicado o recurso de apelação.

É como voto.



MARCIO MESQUITA


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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0007995-74.2007.4.03.6119/SP
2007.61.19.007995-9/SP
RELATOR : Juiz Convocado PAULO DOMINGUES
REL. ACÓRDÃO : Juiz Federal Convocado MARCIO MESQUITA
APELANTE : ROGERIO MAIA reu preso
ADVOGADO : MARCIO AMATO
: ALIANE CRISTINA MOREIRA SEEMANN
APELADO : Justica Publica
EXCLUIDO : EDUARDO TSUGUIO SATO

EMENTA

PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. DELAÇÃO PREMIADA. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE E DENÚNCIA QUE OMITEM CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO CRIMINOSO. "AUTORIZAÇÃO" DADA PELO JUÍZO PARA QUE AS TESTEMUNHAS OMITAM DOS DEPOIMENTOS REFERÊNCIAS AO RÉU COLABORADOR. NULIDADE ABSOLUTA. NECESSIDADE DE PROTEÇÃO AO RÉU DELATOR QUE DEVE SER FEITA NA FORMA LEGAL.
1. Apelação Criminal interposta por Rogerio Maia contra a sentença que o condenou a 7 (sete) anos de reclusão, como incurso no artigo 33, caput, c.c. artigo 40, inciso I, da Lei nº 11.343/2006.
2. A problemática do caráter sigiloso do acordo de réu colaborador, ou acordo de delação premiada, deve ser analisada sob duplo aspecto: por primeiro, o sigilo da própria existência do acordo e de seus termos; e em segundo lugar, o sigilo do conteúdo das declarações prestadas.
3. O caráter sigiloso das medidas de proteção à testemunhas, vítimas e réus colaboradores é estabelecida no §5º do artigo 2º da Lei nº 9.807/1999. Dessa forma, tanto a própria existência do acordo de delação premiada quanto os termos e condições em que foi celebrado interessam somente ao réu colaborador, ao órgão da Acusação e ao Juízo.
4. Quanto ao segundo aspecto, qual seja, o acesso dos réus delatados às declarações incriminadoras feitas com relação à sua pessoa, não há como sustentar a possibilidade de sigilo. Se as declarações do réu delator servirão como prova, e terão influência no convencimento do Julgador, não há como negar o direito de acesso dos acusados, sob pena de frontal violação ao direito ao contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, assegurado pelo artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal.
5. Entendimento contrário, ou seja, admitir-se a legalidade de sigilo dos depoimentos incriminadores dos delatores corresponderia a dar foros de validade e possibilitar a condenação de alguém com base em "prova secreta".
6. É certo que, admitida a necessidade de acesso dos réus delatados às declarações incriminadoras feitas pelo réu delator, a questão quanto ao sigilo da existência do acordo de delação premiada perde um pouco de sua substância. Por óbvio, se não se pode negar o acesso do réu deletado às declarações incriminadoras feitas pelo réu delator, é certo que a existência da própria delação não pode ser ocultada. Assim, restará, no caso de necessidade de preservação da integridade do delator, diante de coações ou ameaças, a adoção das medidas de proteção previstas na Lei nº 9.807/1999, da mesma forma adotada com relação às testemunhas ou vítimas.
7. Ao assegurar o direito de acesso da Defesa aos depoimentos do delator, não se está inviabilizando o instituto da delação premiada, mas apenas e tão somente assegurando o exercício do direito à ampla defesa dos demais corréus. Ainda que assim não se entenda, no conflito entre o direito à ampla defesa, que implica em direito de acesso a todas as provas produzidas, e eventuais dificuldades práticas com relação à operacionalização da delação premiada, não tenho dúvidas em dar prevalência ao direito de ampla defesa.
8. O processo penal, do ponto de vista histórico, surge como uma limitação ao exercício do poder do Estado, e as limitações ao poder de punir são obviamente instituídas em favor do réu. Do lado oposto, o réu colaborador é colaborador do Estado, no exercício do poder de punir. Não se olvida a necessidade de dar efetividade à repressão criminal e garantir a segurança dos cidadãos e da sociedade, mas essa efetividade não se pode dar às custas do direito à ampla defesa.
9. O auto de prisão em flagrante e a denúncia narram fatos divorciados da realidade, pois deliberadamente omitem que a prisão de Rogério Maia somente fora possível de realizar-se, bem assim a apreensão de droga em seu poder, em virtude da delação do corréu Eduardo.
10. É certo que as nulidades do inquérito não contaminam a ação penal, conforme consagrado entendimento jurisprudencial. Mas, no caso dos autos, não se trata de nulidade apenas do auto de prisão em flagrante, mas também da denúncia, que deliberadamente omite que a localização de Rogério somente foi possível em razão das declarações de Eduardo.
11. A nulidade também alcança a ação penal, em razão da "autorização" dada pelo Juízo às testemunhas, para que omitissem em seus depoimentos a existência das informações do delator.
12. É inconcebível que o Juiz combine antecipadamente com as testemunhas o teor do depoimento destas, ainda que com vistas a salvaguardar a segurança do réu delator. O depoimento da testemunha deve ser ouvido pelo Juízo com vistas à busca da verdade; a credibilidade dos depoimentos e sua força de convencimento devem ser resultado do exame cuidadoso, pelo Julgador, de sua coerência com todo o conjunto probatório e de sua conformidade com as regras da experiência.
13. Se o Juiz acerta com a testemunha, antecipadamente, os termos de seu depoimento, "autorizando-a" a omitir determinados fatos, é porque já deu tal depoimento como fiel à realidade dos fatos; e assim, está irremediavelmente comprometido em sua parcialidade, diante da Defesa do réu que a nada teve acesso.
14. É inconcebível, consoante o ordenamento jurídico pátrio vigente, que o juízo autorize qualquer testemunha a omitir fato ocorrido, porquanto a situação equivale a verdadeira manipulação da prova, expressamente vedada; e mais, equivale a uma autorização do juízo para que alguém pratique crime expressamente tipificado no artigo 342 do Código Penal.
15. Se a intenção da medida de sigilo da existência de delação era a proteção do delator, a lei de proteção à testemunhas fornece diretrizes para tanto, conforme artigos 15 e 8º da Lei 9.807/1999.
16. Preliminar acolhida. Processo anulado.


ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os integrantes da Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, acolher a preliminar suscitada pela DD. Procuradoria Regional da República para anular o processo desde a denúncia, inclusive, e julgar prejudicado o recurso de apelação, nos termos do voto vista do Juiz Federal Convocado Márcio Mesquita, acompanhado, em retificação de voto, pelo Relator Juiz Federal Convocado Paulo Domingues e pela Desembargadora Federal Vesna Kolmar, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.



São Paulo, 05 de março de 2013.
MARCIO MESQUITA
Relator para o acórdão


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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0007995-74.2007.4.03.6119/SP
2007.61.19.007995-9/SP
RELATOR : Juiz Convocado PAULO DOMINGUES
APELANTE : ROGERIO MAIA reu preso
ADVOGADO : MARCIO AMATO
: ALIANE CRISTINA MOREIRA SEEMANN
APELADO : Justica Publica
EXCLUIDO : EDUARDO TSUGUIO SATO

RETIFICAÇÃO DE VOTO

Considerando as razões aduzidas pelo MM. Juiz Federal Convocado Márcio Mesquita, revejo meu posicionamento anterior e retifico meu voto para anular o processo desde a denúncia, inclusive, e julgar prejudicado o recurso de apelação, nos termos do voto vista apresentado.


PAULO DOMINGUES
Relator


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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0007995-74.2007.4.03.6119/SP
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RELATOR : Juiz Convocado PAULO DOMINGUES
APELANTE : ROGERIO MAIA reu preso
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APELADO : Justica Publica
EXCLUIDO : EDUARDO TSUGUIO SATO

VOTO

A Procuradoria Regional da República suscita a nulidade do processo por vício na lavratura do auto de prisão em flagrante. Sustenta que a denúncia oferecida não relata a existência da "delação" e apenas narra que a prisão do apelante decorreu da denúncia anônima e das diligências policiais. Argumenta que as declarações prestadas por Eduardo:


"constam apenas à fl. 17 dos autos nº 2009.03.00.033248-4, de forma que não foram juntadas na presente ação penal. Assim, trata-se de importante prova do crime e de como os fatos realmente ocorreram. Contudo, a defesa de Rogério Maia dela não teve conhecimento, não podendo exercer o contraditório e ampla defesa".

O Procurador Regional sustenta ainda, que "É certo que nos autos de petição criminal nº 2009.03.00.033248-4 há informação de que o sigilo da delação se justificou na necessidade de garantir a segurança do delator Eduardo Tsuguio Sato. Por isso, na decisão de fls. 68/69 daquele feito há permissão expressa para que as testemunhas omitam nos depoimentos prestados na presente ação penal a existência da referida delação. Para tanto, fundamentou-se nos arts. 8º e 15º, § 2º, ambos da Lei nº 9.807/99.

Contudo, o procedimento adotado não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio. A Lei nº 9.807/99 não prevê a possibilidade de que eventual delação premiada seja mantida em segredo da defesa dos delatados. As medidas de proteção previstas para o réu colaborador estão previstas no art. 15 e no art. 7º da referida lei. Nesas, não se inclui a manutenção da delação como espécie de "prova secreta", como ocorreu no presente caso".

Não assiste razão ao órgão ministerial, como a seguir se demonstrará.

De acordo com o auto de prisão em flagrante, Eduardo Tsuguio Sato foi preso pela Polícia Federal no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, em 27/9/2007, após denúncia anônima de que desembarcaria de vôo procedente de Portugal com uma grande quantidade de substância entorpecente. Realmente, havia 4.255 gramas de maconha (skunk) em sua bagagem. A Polícia Federal, então, utilizou um número de telefone celular obtido com Eduardo para contatar a pessoa que receberia a droga no hotel Fórmula 1 de Alphaville, em Barueri/SP - onde a Polícia Federal encontrou Rogério Maia, ora apelante, que restou preso (fls. 7/24).

A petição criminal nº 2009.03.00033248-4, noticia que Eduardo Tsuguio Sato, ao ser preso em flagrante, resolveu "colaborar" com a Polícia Federal, almejando o benefício da delação premiada. Confessou que foi contratado por um brasileiro conhecido como Tio para buscar o skunk na Holanda, por R$ 10.000,00. Também, que no retorno ao Brasil, deveria dirigir-se ao hotel Fórmula 1 em Barueri/SP, onde se hospedaria, e contataria o traficante para entregar a droga.

O Delegado de Polícia Federal responsável pelo flagrante, visando garantir a segurança de Eduardo, cuja colaboração considerou fundamental para a identificação e prisão do proprietário da droga (Rogério Maia), determinou a formalização de autos em apartado ao inquérito policial 21.0315/07 (petição criminal nº 2009.03.00033248-4).

Encerrada a fase administrativa, Rogério Maia e Eduardo Tsuguio Sato foram denunciados pelo crime do artigo 33 c/c 40, I, da Lei 11.343/2006 (fls. 2/5).

A denúncia foi recebida em 21/12/2007 para Rogério Maia e em 1/2/2008 para Eduardo Tsuguio Sato (fls. 260/261 e 520/522).

O Ministério Público Federal requereu o desmembramento do feito, em prol da celeridade processual, tendo em vista a perícia médica solicitada pela defesa de Eduardo (fls. 572).

O processo foi desmembrado em 22/2/2008 (fls. 574).

Na audiência de instrução e julgamento realizada em 29/2/2008, a defesa de Rogério Maia insurgiu-se contra a cisão da ação penal, especialmente porque tinha interesse na oitiva de Eduardo Tsuguio Sato que ...teria realizado delação premiada... O Ministério Público Federal pugnou pelo indeferimento do pleito, alertando que o corréu Eduardo Tsuguio Sato poderia ser ouvido como testemunha do juízo, caso a defesa de Rogério Maia solicitasse, o que foi acolhido pelo Juízo a quo (fls. 577/580).

Percebe-se que, ao contrário do que afirma a Procuradoria Regional da República, a confissão/delação do corréu não constituiu assunto totalmente desconhecido e segregado da defesa de Rogério Maia, que divergiu - e continua divergindo - do desmembramento do processo, não havendo razão para que se acolha a alegação de vício no inquérito policial.

Com efeito, a dinâmica dos fatos demonstra que, se houve eventual vício cometido no inquérito policial, a situação foi superada no decorrer da ação penal, pois a defesa de Rogério Maia em nenhum momento questionou a existência da confissão/delação do corréu, mas sim a cisão processual.

De se lembrar antiga lição no sentido de que eventuais defeitos do inquérito - exceto os que atinem com o corpo de delito - não contaminam a relação processual que originou.

Nesse sentido é a posição jurisprudencial:


"HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. NULIDADES. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. VÍCIO NO INQUÉRITO POLICIAL. IRREGULARIDADE QUE NÃO VICIA A AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. EXCESSO DE PRAZO. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA.
1. As questões referentes à suspeição do Ministério Público, nulidade no parecer da psicóloga e no indeferimento de diligências não foram questionadas e tampouco debatidas na instância precedente, que limitou-se a examinar outros temas ali propostos pela defesa.
Desse modo, fica esta Corte impedida de se manifestar sobre tais matérias, sob pena de indevida supressão de instância.
2. No que se refere aos alegados vícios no inquérito policial, a jurisprudência desta Superior Corte de Justiça já se firmou no sentido de que eventuais irregularidades ocorridas na fase inquisitorial não possuem o condão de macular todo o processo criminal.
3. Ademais, as mencionada nulidades ocorridas no inquérito não passam de meras imperfeições, sequer comprovadas nos autos e, portanto, inaptas para anular as provas colhidas na fase inquisitorial, especialmente quando não demonstrada a ocorrência de qualquer prejuízo.
4. O pedido para que o réu aguarde o julgamento em liberdade, diante de alegado excesso de prazo na formação da culpa, fica prejudicado com a superveniência de sentença condenatória.
5. Ordem parcialmente conhecida e, nesta extensão, denegada.
(STJ - HC 216.201/PR, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 2/8/2012, DJe 13/8/2012)."

"HABEAS CORPUS. AMEAÇA E HOMICÍDIO TENTADO. INDICAMENTO INDIRETO. IRREGULARIDADE. INEXISTÊNCIA. VÍCIOS NA FASE INVESTIGATÓRIA. NÃO CONTAMINAÇÃO DA AÇÃO PENAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESTA EXTENSÃO, DENEGADA.
1. Na hipótese vertente, não se vislumbra qualquer irregularidade no indiciamento indireto do paciente apta a inquinar a nulidade do inquérito policial.
2. Eventuais irregularidades ocorridas na fase investigatória, dada a natureza inquisitiva do inquérito policial, não contaminam, necessariamente, a ação penal.
3. O pedido de trancamento da ação penal não foi analisado pelo Tribunal a quo, o que impede a sua apreciação por esta Corte, sob pena de supressão de instância.
4. Ordem parcialmente conhecida e, nesta extensão, denegada.
(STJ - HC 194.473/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/4/2012, DJe 3/5/2012)."

Ademais, não houve nenhuma nova prova fornecida a partir do depoimento de Eduardo que já não estivesse nos autos do inquérito ou do processo, ou seja, o apelido, o número do telefone e o local de encontro com o comprador da droga.

Afasto, portanto, a preliminar arguida pela Procuradoria Regional da República.

A defesa, por sua vez, requer a nulidade do processo por violação ao direito de prova, decorrente do desmembramento do feito e a nulidade da sentença, pois o flagrante foi preparado e as provas obtidas na busca e apreensão, realizada sem mandado judicial, são ilícitas.

Também não lhe assiste razão.

O caso dos autos retrata crime de narcotráfico internacional em estado de flagrância delitiva.

Como acima colocado, Eduardo Tsuguio Sato foi preso em flagrante no Aeroporto Internacional de São Paulo, ao regressar da Europa com 4.255 gramas de maconha (skunk) em sua bagagem. A Polícia Federal utilizou um número de telefone celular obtido com Eduardo para confirmar a informação de que a droga seria entregue no hotel Fórmula 1, em Barueri/SP. O próprio apelante Rogério Maia atendeu a chamada telefônica e combinou um encontro no apartamento 460, onde foi preso. Na mesma ocasião, foram apreendidos mais 1.235 gramas de maconha (skunk) que Rogério Maia guardava no cofre do apartamento 604 do hotel Comfort Suítes, em Barueri/SP, onde estava hospedado, além de grande quantidade de dinheiro em espécie (três mil e quinhentos euros, mil dólares americanos e seis mil e quinhentos reais), e em cheques de terceiros (quatro mil e duzentos reais) (fls. 7/24).

Ou seja, o encontro de Rogério Maia com a Polícia Federal, objetivando adquirir o entorpecente trazido do exterior, mais a maconha guardada no cofre do hotel Comfort Suítes, onde o apelante estava hospedado, caracterizam a dilação temporal do estado de flagrância permitida ao crime de narcotráfico internacional, que é permanente.

Nesse sentido é a jurisprudência do C. STJ:

"...não merece reparos o auto de prisão em flagrante realizado de forma escorreita, dentro do que preceitua o Código de Ritos Penal, porquanto os crimes pelos quais o paciente é acusado - narcotraficância e associação para o tráfico - permitem a dilatação temporal do estado de flagrância, na medida em que possuem natureza jurídica de delito permanente; assim, havendo fortes indícios de que a droga pertence ao paciente e de que ele estava coordenando a atuação dos demais corréus para o seu transporte e entrega, não há falar em ausência de estado de flagrância...
(HC 160.726/ES, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 31/5/2011, DJe 27/6/2011)"
"...Não há falar em flagrante preparado se, diante dos elementos coligidos aos autos, não se puder evidenciar que o paciente ou os co-réus foram induzidos à prática de crime de tráfico de drogas por parte de agente policial. Presentes fortes elementos de prova, apontados na sentença condenatória, de que o paciente, não obstante não estar comercializando a droga no momento da prisão, portava, juntamente com outros co-réus, elevada quantidade de substância tóxica, caracterizado está o crime de traficância e o estado de flagrância, na medida em que a consumação do ilícito em questão já vinha se protraindo no tempo e era preexistente à ação policial...
(HC 92.724/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 14/04/2009, DJe 01/06/2009)."

Além do exposto, resta claro que não se tratou, aqui, de induzimento, pela polícia, à prática de um crime. A polícia simplesmente deu continuidade à diligência iniciada com a prisão de Eduardo, prosseguindo com os atos que se iriam realizar de todo modo caso prosseguisse a atividade criminosa.

Pelo mesmo motivo, não há que se falar em invasão de domicílio.

Segundo Giuliana Meschiati Milani, recepcionista do hotel Comfort Suites no dia dos fatos, Rogério Maia chegou com os policiais, que se identificaram e pediram para que ela os acompanhasse ao apartamento. A recepcionista afirmou que o apelante não se opôs a entrada no apartamento, onde presenciou a abertura do cofre e a retirada da maconha/skunk. (fls. 1060).

Como já afirmado, trata-se de flagrante de crime permanente, que dispensa mandado de busca e apreensão. Confira-se os julgados do C. STJ:

"HABEAS CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. CRIME PERMANENTE. DESNECESSIDADE DE MANDADO JUDICIAL. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. VALIDADE DA VEDAÇÃO CONTIDA NO ART. 44 DA LEI N.º 11.343/06. TESE DE INOCÊNCIA. REEXAME DE PROVAS INCABÍVEL NA VIA ELEITA. ORDEM DENEGADA.
1. O Paciente foi preso em flagrante delito na posse de 01 (uma) porção de "maconha" e 04 (quatro) porções de "haxixe", tendo sido encontrados, ainda, em sua residência, "cocaína", uma balança de precisão e outros apetrechos relacionados ao tráfico.
2. Não procede a arguida irregularidade da prisão do Paciente, por ofensa ao princípio constitucional da inviolabilidade de domicílio, pois, sendo o tráfico ilícito de drogas delito permanente, pode a autoridade policial ingressar no interior do domicílio do agente, a qualquer hora do dia ou da noite, para fazer cessar a prática criminosa e apreender a substância entorpecente que nele for encontrada, sem que, para tanto, seja necessária a expedição de mandado de busca e apreensão. Precedente.
...
(STJ - HC 222.173/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2011, DJe 01/12/2011)"
"HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. RECEPTAÇÃO. ALEGADA NULIDADE DA PROVA OBTIDA COM A BUSCA E APREENSÃO REALIZADA. FLAGRANTE DE CRIMES PERMANENTES. DESNECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DE MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO. EIVA NÃO CARACTERIZADA. ORDEM DENEGADA.
1. O paciente foi acusado da prática de delitos de natureza permanente, quais sejam, tráfico de entorpecentes e receptação na modalidade "ocultar".
2. É dispensável o mandado de busca e apreensão quando se trata de flagrante de crime permanente, podendo-se realizar a apreensão sem que se fale em ilicitude das provas obtidas. Doutrina e jurisprudência.
3. Ordem denegada.
(STJ - HC 188.195/DF, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 28/10/2011)"

Quanto ao desmembramento do feito, também nada há a prover.

A medida derivou de requerimento do Ministério Público Federal, em prol da celeridade processual, tendo em vista a perícia médica solicitada pela defesa de Eduardo Tsuguio Sato. Ato contínuo, na audiência de instrução e julgamento de 29/2/2008, a defesa de Rogério Maia insurgiu-se contra a cisão, o que foi rechaçado pela acusação e pelo Juízo Federal. O mesmo tema foi retomando no habeas corpus impetrado em favor de Rogério Maia, denegado pela Primeira Turma dessa Corte, e nas alegações finais da defesa.

Ou seja, trata-se de assunto mais que repisado, na verdade, precluso.

Observa-se que ao contrário do que alega a defesa, a cisão processual foi determinada para beneficiar o apelante, a fim de evitar demora na finalização da instrução processual por conta de providência que em princípio só interessaria ao corréu. Ademais, o desmembramento deriva da discricionariedade do magistrado na forma do artigo 80 do Código de Processo Penal e desde que motivado - como ocorreu - inexiste nulidade. Nesse sentido:


"HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE HOMICÍDIO SIMPLES. CISÃO DO JULGAMENTO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. APLICAÇÃO DO ART. 80 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO FUNDAMENTADA. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO.
1. Inexiste nulidade na separação dos julgamentos da ora Paciente com o de seu corréu, uma vez que, diante da impossibilidade de o defensor público do corréu atuar em sua defesa, por se encontrar de licença médica, houve, na espécie, tão somente, a aplicação literal do art. 80 do Código de Processo Penal.
2. A cisão ou desmembramento do feito constitui faculdade do juiz, de sorte que não restando evidenciado qualquer prejuízo decorrente, não há como se reconhecer a nulidade. Precedente.
3. Ordem denegada.
(STJ - HC 163.605/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 3/5/2012, DJe 10/5/2012)"

Os outros temas abordados nas razões de apelação a título de nulidade - sem qualquer inovação - como o cerceamento de defesa decorrente do incidente de dependência toxicológica e o uso de algemas no interrogatório, já foram exaustivamente examinados e afastados, inclusive em sede de habeas corpus.

Enfim, inexiste nulidade na instrução processual e na sentença, que analisou detidamente o conjunto probatório e, após suficiente fundamentação, concluiu pela condenação, motivo pelo qual fica integralmente afastada a matéria preliminar arguida pela defesa.

No mérito, pretende-se a desclassificação da conduta para crime de uso de substância entorpecente ou a absolvição por inexistência de provas e de nexo causal entre as condutas do apelante e do corréu Eduardo Tsuguio Sato.

O pedido de desclassificação não procede.

Apesar das declarações das testemunhas de defesa de que Rogério Maia é um notório e contumaz consumidor de maconha - o que não se dúvida - a quantidade de droga e dinheiro encontrados em sua posse desmentem a condição de mero usuário.

Havia 1.235 gramas de maconha (skunk) no cofre do apartamento 604 do hotel Comfort Suítes, em Barueri/SP, onde Rogério Maia estava hospedado, além de muito dinheiro em espécie (três mil e quinhentos euros, mil dólares americanos e seis mil e quinhentos reais), e cheques de terceiros.

A situação como se deu o flagrante também não o favorece.

Eduardo Tsuguio Sato foi preso com 4.255 gramas de maconha (skunk), que seriam entregues no hotel Fórmula 1. A Polícia Federal interveio, passando-se pela mula para marcar o encontro, e foi prontamente atendida por Rogério Maia. O apelante chegou quinze minutos depois do contato telefônico e logo perguntou sobre o material encomendado, donde se subentende que ficaria com toda a droga ou parte dela. Acrescente-se que o número do telefone celular de Rogério Maia foi obtido com Eduardo Tsuguio Sato e esse detalhe - crucial - a defesa não explica.

Também não é crível que um mero usuário, que já possuía 1.235 gramas de skunk, mandasse trazer mais droga da Europa para consumo próprio. Seria um comportamento desmedido, mesmo para um viciado rico, o que não é o caso de Rogério Maia, pois, ao que consta nos autos sofreu um grande abalo financeiro após a morte do seu pai.

A testemunha de defesa Marcelo Cartocci declarou que manteve forte amizade com Rogério Maia entre 1989/1990 e 2004/2005, tanto que foi seu padrinho de casamento. Todavia, resolveu afastar-se do réu depois de ter um filho, pois o amigo era usuário de maconha. Afirmou que o vício arruinou a vida Rogério Maia, que se separou da mulher, com tem um filho, e dilapidou seu patrimônio, especialmente após o assassinato do pai (fls. 929/930).

Ou seja, o conjunto probatório indica que Rogério Maia, para sustentar o próprio vício, tornou-se narcotraficante.

Quanto ao nexo causal entre as condutas do apelante e do corréu, repito que a Polícia Federal só localizou Rogério Maia porque Eduardo Tsuguio Sato entregou seu número de telefone celular ao ser preso no Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, com a droga que foi buscar em continente europeu.

No interrogatório, Rogério Maia admitiu que aguardava uma pessoa que lhe venderia maconha e, no dia dos fatos, recebeu um telefonema e marcou um encontro no hotel em Barueri/SP, para onde se dirigiu e foi preso (fls. 581/583).

Em igual sentido são os testemunhos dos policiais federais Marcos Morais e Maurício Manzolli, responsáveis pela prisão em flagrante do réu (fls. 584/586 e 735/746).

Saliente-se, no mais, a tese de crime impossível, decorrente de flagrante preparado, não persevera. Rogério Maia já mantinha em depósito 1.235 gramas de skunk, antes de comparecer ao hotel Fórmula 1, para apanhar mais entorpecente com a mula Eduardo Tsuguio Sato, o que caracteriza - como acima colocado - dilação temporal do estado de flagrância. Claramente estava ele em atividade criminosa, não se podendo cogitar de preparação espúria pela autoridade policial.

Fica, portanto, mantida a condenação de Rogério Maia pelo crime dos artigos 33, caput, c/c 40, I, da Lei nº 11.343/2006.

Quanto à dosimetria da pena, na primeira fase, considerou-se o disposto no artigo 42 da lei nº 11.343/06, em especial a natureza e a quantidade da droga apreendida, para a fixação da pena-base de 6 anos de reclusão.

Nenhum reparo a ser feito.

O réu mantinha em depósito 1.235 gramas de skunk e dirigiu-se ao hotel Fórmula 1, para receber todo ou parte do carregamento de 4.255 gramas da droga que a mula Eduardo trouxe da Europa.

Ademais, cuida-se de skunk, termo utilizado para designar a maconha que foi cultivada em condições especiais para potencializar a concentração de tetraidrocanabinol/THC, substância ativa com poder narcótico presente na planta (www.imesc.gov.sp.br).

Na segunda fase não houve incidência de agravantes e atenuantes.

Passando para a terceira e última fase, mantenho o aumento da pena em 1/6 (um sexto), com fulcro no artigo 40, I, da lei nº 11.343/2006, o que perfaz 7 anos de reclusão. A internacionalidade do tráfico está plenamente caracterizada, pois o réu valeu-se de terceira pessoa aliciada - uma mula - para trazer o skunk da Europa, lembrando que essa variedade da droga, laboratorial, originou-se na Holanda.

Ainda na terceira fase, apesar dos esforços da defesa, entendo pela não incidência do benefício do artigo 33, caput e §4º, da lei nº 11.343/2006. A pessoa que se dispõe a traficar substância entorpecente da maneira utilizada pelo réu, evidentemente age animada pela affectio de pertencer a uma organização criminosa, apta a aliciar mulas e custear as operações.

Diante do exposto, mantenho a pena privativa de liberdade de Rogério Maia em 7 anos reclusão.

Sem reparo a pena de multa de 700 dias-multa, no valor unitário mínimo legal, eis que calculada em estrita observância ao critério bifásico eleito no artigo 43 da lei nº 11.343/2006.

Por derradeiro, mantenho o regime prisional inicial fechado pelos fundamentos expostos na sentença, observando que há notícia nos autos que o apelante já progrediu para o regime semiaberto (fls. 1449).

Pelo exposto, afasto a matéria preliminar e nego provimento à apelação criminal.

É como voto.



PAULO DOMINGUES
Juiz Federal Convocado


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