Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 15/12/2014
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0016181-66.2014.4.03.0000/SP
2014.03.00.016181-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW
AGRAVANTE : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
ADVOGADO : RONALD DE JONG e outro
AGRAVADO(A) : MANOEL FERNANDO RODRIGUES e outro
: BENTA DA CONCEICAO DA SILVA RODRIGUES
ADVOGADO : SP143755 SIMONE CRISTINA LUIZ RODRIGUES e outro
INTERESSADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO e outro
INTERESSADO(A) : Ministerio Publico Federal
ADVOGADO : ADRIANA DA SILVA FERNANDES e outro
ORIGEM : JUIZO FEDERAL DA 8 VARA SAO PAULO Sec Jud SP
No. ORIG. : 00350950320034036100 8 Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO -AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE- NATUREZA DÚPLICE - SENTENÇA QUE JULGOU PARCIALMENTE OS PEDIDOS DOS RÉUS - REINTEGRAÇÃO DE POSSE NO IMÓVEL - RECURSO DE APELAÇÃO RECEBIDA NO EFEITO DEVOLUTIVO - APLICABILIDADE DO ARTIGO 558 DO CPC - AGRAVO PROVIDO.
1. A apelação será recebida somente no efeito devolutivo, nos termos da norma prevista no artigo 520 do Código de Processo Civil.
2. A sentença, ao mesmo tempo em que julgou parcialmente procedentes os pedidos deduzidos pelo espólio réu, concedeu-lhe ordem liminar, para o fim de determinar sua reintegração na posse do imóvel.
3. Impõe-se o recebimento do recurso de apelação tão somente no efeito devolutivo, na medida em que o deferimento da liminar na sentença produz os mesmos efeitos da confirmação da antecipação dos efeitos da tutela, nos termos da norma prevista no artigo 520, VII, do Código de Processo Civil.
4. Ao recurso de apelação poderá ser atribuído o efeito suspensivo, nos termos do art. 558 do CPC, se relevante o fundamento e presente o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, o que é o caso dos autos.
5. No caso concreto, conforme alegado pela agravante, a possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação se caracterizaria pela iminente retirada das famílias indígenas, o que, neste momento, poderia gerar um conflito social com consequências imprevisíveis, tendo em vista que, no local, foram encontradas cerca de 129 famílias, havendo imenso número de crianças e adolescentes (fls. 2448/2449vº).
6. A controvérsia não se limita apenas a um debate jurídico, mas também envolve questão de relevância social indiscutível, já que a acomodação dos indígenas, ao final do processo, caso mantida a improcedência de seu pleito, trará um desafio à Administração Pública, em especial à União Federal e à FUNAI.
7. Por outro lado, na impossibilidade de se restituir o imóvel ao estado anterior, se, ao final, os agravados lograrem êxito definitivo, a questão poderá, eventualmente, ser resolvida em perdas e danos.
8. A presente situação é típica daquelas em que se haverá de sacrificar um dos dois polos de interesse. O critério para tal há de ser em desfavor daquele que sofrerá menos prejuízos concretos, caso não seja obstada, ainda que provisoriamente, a ordem de reintegração. E, nesta ordem de ideias, convém que a situação fática já estabelecida no presente momento, isto é, a ocupação dos indígenas, seja, por ora, preservada, ao menos até a apreciação da apelação por este E. Tribunal.
9. Agravo provido.


ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar provimento ao agravo de instrumento, para suspender a decisão de reintegração de posse em favor dos agravados, até a apreciação da apelação por este E. Tribunal, nos termos do relatório e votos que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 01 de dezembro de 2014.
PAULO FONTES
Desembargador Federal


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AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0016181-66.2014.4.03.0000/SP
2014.03.00.016181-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW
AGRAVANTE : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
ADVOGADO : RONALD DE JONG e outro
AGRAVADO(A) : MANOEL FERNANDO RODRIGUES e outro
: BENTA DA CONCEICAO DA SILVA RODRIGUES
ADVOGADO : SP143755 SIMONE CRISTINA LUIZ RODRIGUES e outro
INTERESSADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO e outro
INTERESSADO(A) : Ministerio Publico Federal
ADVOGADO : ADRIANA DA SILVA FERNANDES e outro
ORIGEM : JUIZO FEDERAL DA 8 VARA SAO PAULO Sec Jud SP
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VOTO CONDUTOR

Inicialmente, registro a admiração e apreço que tenho pelo E. Des. Federal André Nekatschalow, a quem peço vênia para externar a minha divergência, na forma abaixo.

Trata-se de agravo de instrumento interposto pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI contra decisão proferida pelo Juízo Federal da 8ª Vara de São Paulo - SP que, nos autos da ação de manutenção de posse ajuizada em face de Manoel Fernando Rodrigues e outra, que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos réus, a fim de reintegrá-los na posse do imóvel (com a concessão da medida liminar na sentença), recebeu o recurso de apelação em ambos os efeitos, salvo no que concerne aos efeitos da liminar concedida (efeito devolutivo).

Às fls. 2701/2704, o Juiz Federal ALESSANDRO DIAFERIA deferiu o efeito suspensivo para suspender a eficácia da liminar de reintegração de posse concedida na sentença, em favor do espólio agravado, até o reexame do presente feito pelo e. Relator originário, Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW.

Os agravados apresentaram contraminuta (fls. 2711/2758).

Parecer ministerial, às fls. 2760/2762vº, pelo provimento do agravo, para que a decisão que recebeu apenas no efeitos devolutivo as apelações quanto à revogação da liminar seja reformada, sendo os recursos recebidos no duplo efeito quanto à integralidade da sentença.

O Relator Desembargador Federal André Nekatschalow levou para julgamento, negando provimento ao agravo e, nesta mesma sessão de julgamento, votei em divergência com o E. Relator, para dar provimento ao agravo.

Razão assiste à agravante.

Inicialmente, nota-se que a sentença proferida na ação possessória, observado o seu caráter dúplice, deliberou pela improcedência dos pedidos da parte autora, ora agravante, e pela parcial procedência dos pedidos dos réus, ora agravados, antecipando a tutela para determinar (fls. 2558/2567) o que segue:

Ante o exposto, improcede o pedido formulado pela autora, e procedem os pedidos formulados pelos réus na contestação de reintegração deles na posse do imóvel e de condenação da autora a pagar-lhes indenização pela destruição do muro que cerca o imóvel e na obrigação de desfazimento das construções e das plantações realizadas no imóvel pelos índios.

Dispositivo.

Resolvo o mérito nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, para: i) julgar improcedente o pedido formulado pela autora; e ii) julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos réus, a fim de reintegrá-los na posse do imóvel, condenar a autora na obrigação de pagar-lhes indenização pela derrubada do muro que cerca o imóvel, cujo valor será apurado na fase de liquidação de sentença, e condená-la na obrigação de desfazer construções e plantações realizadas no imóvel.

Casso a liminar concedida à autora e declaro a ineficácia de todos os atos praticados com base nela, com efeitos retroativos (ineficácia retroativa; ex tunc).

Concedo medida liminar para determinar a reintegração dos réus na posse do imóvel. Fixo prazo de 90 (noventa) dias para desocupação voluntária do imóvel pelos índios. Terminado este prazo poderão ser adotadas medidas, a pedido dos réus, para sua reintegração na posse do imóvel.

Porque sucumbiram em grande parte do pedido condeno a autora e a União à restituição, aos réus, das custas e honorários periciais despendidos por estes, e a pagar-lhes os honorários advocatícios, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), considerando a grande complexidade da causa, sua tramitação por quase dez anos, a produção e acompanhamento de provas periciais demoradas e complexas e a realização de audiência para oitiva de testemunhas, além da necessidade de manifestação sobre extensas e prolixas manifestações da autora, da União e do Ministério Público Federal.

Os valores dos honorários periciais e das custas deverão ser restituídos com correção monetária a partir da data do efetivo pagamento ou depósito, pelos índices da tabela das ações condenatórias em geral, sem a Selic, previstos na Resolução n 134/2010, do Conselho da Justiça Federal, ou da que a substituir. Os honorários advocatícios serão atualizados pelos mesmos índices, a partir da data desta sentença.

Remeta a Secretaria mensagem ao Setor de Distribuição - SEDI, a fim de cumprir o que determinado pelo Tribunal Regional Federal da Terceira Região quanto à posição na demanda do Ministério Público Federal, que deverá figurar como custus legis e não como assistente da autora (fls. 1.636/1.638). O SEDI deverá apenas excluir o Ministério Público Federal da posição de assistente.

Registre-se. Publique-se. Intimem-se a Funai, a União e o Ministério Público Federal.

(g.n.)

No caso dos autos, como se vê, a sentença, ao mesmo tempo em que julgou parcialmente procedentes os pedidos deduzidos pelo espólio réu, concedeu-lhe ordem liminar, para o fim de determinar sua reintegração na posse do imóvel.

Em seguida, ao receber os recursos de apelação interpostos pela FUNAI (ratificadas pela União) e pelo Ministério Público Federal, o MM. Juízo de primeiro grau assim deliberou (fl. 2696):

"1. Fls. 2400/2445, 2448/2507 e 2513/2520: recebo nos efeitos devolutivo e suspensivo os recursos de apelação interpostos pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO, pela UNIÃO e pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, salvo quanto à parte da sentença em que cassada a liminar concedida à FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO e concedida a liminar a para a reintegração de JOSÉ ÁLVARO PEREIRA LEITE - ESPÓLIO na posse do imóvel, relativamente à qual recebo as apelações somente no efeito devolutivo, a fim de manter sua plena eficácia."

Esta, portanto, é a decisão objurgada neste recurso.

Quanto ao recebimento do recurso de apelação, na espécie, bem andou a r. decisão agravada, ao deliberar pelo efeito unicamente devolutivo. Seria um contrassenso determinar, na própria sentença, a produção imediata de seus efeitos (tanto pela cassação da liminar anterior, que era favorável à FUNAI autora/agravante, quanto pela concessão da liminar aos réu/agravado) e conceder efeito suspensivo ao recurso de apelação, quando de seu recebimento.

Deste modo, impunha-se o recebimento do recurso de apelação somente no efeito devolutivo, na medida em que a antecipação dos efeitos da tutela na sentença, em favor dos réus, produziu os mesmos efeitos de uma confirmação da antecipação dos efeitos da tutela nos termos previstos no artigo 520, VII, do Código de Processo Civil.

Por outro lado, é certo que, nos termos do artigo 527, III, que remete à norma do artigo 558 do Código de Processo Civil, pode ser deferido o efeito suspensivo ao recurso, quando houver possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação ao direito da parte, e se evidenciada a relevância da fundamentação. É nesta quadra que deve ser resolvida, provisória e precariamente, a solução liminar requerida pela parte agravante.

No caso concreto, conforme alegado pela agravante, a possibilidade de dano irreparável ou de difícil reparação se caracterizaria pela iminente retirada das famílias indígenas, o que, neste momento, poderia gerar um conflito social com consequências imprevisíveis, tendo em vista que, no local, foram encontradas cerca de 129 famílias, havendo imenso número de crianças e adolescentes (fls. 2448/2449vº).

De outro lado, os agravados poderão argumentar que tiveram seu direito reconhecido e que permanecerá lesado, se a sentença, aguardada por longo período de tempo, não for cumprida.

Na verdade, o que ocorre nestes autos é que a controvérsia não se limita apenas a um debate jurídico, mas também envolve questão de relevância social indiscutível, já que a acomodação dos indígenas, ao final do processo, caso mantida a improcedência de seu pleito, trará um desafio à Administração Pública, em especial à União Federal e à FUNAI.

Por outro lado, na impossibilidade de se restituir o imóvel ao estado anterior, se, ao final, os agravados lograrem êxito definitivo, a questão poderá, eventualmente, ser resolvida em perdas e danos.

Há bons argumentos a sustentar cada ponto de vista e importa, neste momento, não se permitir que preponderem, neste juízo, questões condizentes com o mérito do recurso de apelação, que futuramente aportará a este Tribunal. Por ora, sendo a questão eminentemente acautelatória, nesta perspectiva haverá de ser tratada.

Pois bem.

A presente situação é típica daquelas em que se haverá de sacrificar um dos dois polos de interesse. O critério para tal há de ser em desfavor daquele que sofrerá menos prejuízos concretos, caso não seja obstada, ainda que provisoriamente, a ordem de reintegração. E, nesta ordem de ideias, convém que a situação fática já estabelecida no presente momento, isto é, a ocupação dos indígenas, seja, por ora, preservada, ao menos até a apreciação da apelação por este E. Tribunal.

Diante do exposto, dou provimento ao agravo de instrumento, para suspender a decisão de reintegração de posse concedida na sentença, em favor dos agravados, até a apreciação da apelação por este E. Tribunal.

É o voto.



PAULO FONTES
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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Data e Hora: 10/12/2014 10:08:00



AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0016181-66.2014.4.03.0000/SP
2014.03.00.016181-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW
AGRAVANTE : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
ADVOGADO : RONALD DE JONG e outro
AGRAVADO(A) : MANOEL FERNANDO RODRIGUES e outro
: BENTA DA CONCEICAO DA SILVA RODRIGUES
ADVOGADO : SP143755 SIMONE CRISTINA LUIZ RODRIGUES e outro
INTERESSADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO e outro
INTERESSADO(A) : Ministerio Publico Federal
ADVOGADO : ADRIANA DA SILVA FERNANDES e outro
ORIGEM : JUIZO FEDERAL DA 8 VARA SAO PAULO Sec Jud SP
No. ORIG. : 00350950320034036100 8 Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

Trata-se de agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo interposto pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI contra a decisão de fl. 2.696, proferida em ação de manutenção de posse, que recebeu somente no efeito devolutivo as apelações interpostas pela ora agravante, pela União e pelo Ministério Público Federal contra a sentença de improcedência de fls. 2.558/2.567, na parte em que cassou a liminar concedida em favor da FUNAI e determinou a reintegração dos réus na posse do imóvel.

A agravante alega, em síntese, o seguinte:

a) a decisão recorrida importa em lesão grave e de difícil reparação à população da Comunidade Indígena Jaraguá, na Aldeia Indígena Guarani Tekoa Puau;
b) 632 pessoas ocupam o imóvel, localizado na Estrada de Pirituba, São Paulo (SP), com área de 36.300 m²;
c) a área é de ocupação tradicional indígena, conforme estudo técnico da FUNAI, razão pela qual deve ser aplicada a Súmula n. 650 do Supremo Tribunal Federal e o art. 231 da Constituição da República;
d) a posse constitucional indígena relaciona-se diretamente ao conceito de habitat e de meio para a sobrevivência física e cultural do índio;
e) os arts. 22 a 24 do Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/73) permitem definir a posse do índio ou do silvícola como aquela necessária à habitação e ao exercício das atividades indispensáveis e economicamente úteis à sua subsistência;
f) ao responder os quesitos complementares ns. 12 e 13, do Ministério Público Federal, o perito judicial corrobora a afirmação de que a área ocupada fez parte de extinto aldeamento de Barueri e Pinheiros.
g) dessa forma, estão presentes todos os elementos caracterizadores da tradicionalidade da ocupação das terras indígenas, quais sejam: a habitação em caráter permanente, a utilização da terra para atividades produtivas, a preservação de recursos ambientais necessários ao bem estar e à reprodução física e cultural segundo os usos, costumes e tradições indígenas;
h) a Constituição da República reconhece o direito originário dos índios sobre as terras que ocupam, independente de título ou reconhecimento formal;
i) as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios incluem-se no domínio constitucional da União, ou seja, são inalienáveis, indisponíveis e insuscetíveis de prescrição aquisitiva;
j) devem ser declarados nulos os títulos de domínio dos réus, nos termos do art. 231, § 6º, da Constituição da República (fls. 2/84).

A liminar foi deferida pelo MM. Juiz Federal Alessandro Diaferia, em substituição regimental a este Relator (fls. 2.701/2.704).

A decisão liminar foi ratificada integralmente por este Relator (fl. 2.710).

Foram apresentadas contrarrazões (fls. 2.711/2.758).

O Ministério Público Federal manifestou-se pelo provimento do agravo de instrumento (fls. 2.760/2.762v.).

É o relatório.


VOTO

O MM. Juízo a quo julgou improcedente ação de manutenção de posse ajuizada pela FUNAI e parcialmente procedentes os pedidos deduzidos por Manoel Fernando Rodrigues e Benta da Conceição da Silva Rodrigues. Na oportunidade, cassou a liminar concedida à FUNAI e concedeu medida liminar em favor dos réus, para reintegrá-los na posse do imóvel:

Ação de manutenção de posse em que a autora pede que a comunidade indígena Garuani seja mantida na posse do imóvel assim descrito (sic): "Um terreno à Estrada de Pirituba formado pelo lote 4 na Fazenda Jaraguá, 31 subdistrito Pirituba, com área de 36.300,00 ms2, com as seguintes dividas: começa no marco 6, cravado na Margem da estrada de Pirituba e segue no rume N.E. 68 e 392 metros de distância até o marco 5, confrontando com o lote 3, de propriedade de Henrique Manzo e daí segue a direita no rumo S.E. 29 e 80 metros e 90 centímetros de distância até o marco número 7, confrontando com terras de Maria de Souza Aranha - daí segue a distância à direita no rumo S.O. 68 491,00 metros até o marco 8 cravado na margem da Estrada de Pirituba, confrontando com o lote 5 de Olga de Paiva Meira - daí segue à direita pela Estrada em linha sinuosa até o ponto de partida".
A autora afirma o seguinte:
- apesar de a posse dos índios Guaranis na área ser antiga, os réus ingressaram no Juízo Estadual da 1ª Vara Cível do Foro Regional IV - Lapa com ação de reintegração de posse com pedido de liminar cumulada com pedido de cominação de pena em face dos índios Olimpio Martins, Tino Gabriel, Paulino Gabriel e demais ocupantes do imóvel, deixando de mencionar que a área estava sendo ocupada por índios. O pedido de concessão da medida liminar foi deferido pelo. MM. Juiz estadual;
- a Funai e o Ministério Público Federal ingressaram nos autos afirmando a competência da Justiça Federal, mas o juízo estadual manteve a liminar, que, em agravo de instrumento, também foi mantida pelo 1 Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo;
- a comunidade Guarani está prestes a ser removida da área, que ocupa há muitos anos, apesar de a Constituição, no artigo 231, assegurar aos índios direitos originários sobre as terras que ocupam;
- em julho de 1999 foi instaurada na Procuradoria da República em São Paulo a representação n 182/1999, que tem a seguinte ementa: "COMUNIDADES INDÍGENAS. OCUPAÇÃO DE ÁREA CONTÍGUA À TERRA INDÍGENA DO JARAGUÁ POR CIDADÃO NÃO ÍNDIO QUE SE DIZ PROPRIETÁRIO. PROVÁVEL TERRENO DA UNIÃO, INTEGRANTE DO ANTIGO ALDEAMENTO INDÍGENA". Trata-se do mesmo imóvel ou de imóvel lindeiro ao que é objeto desta demanda e que, inclusive, é objeto da Portaria n 735/2002, editada pela Funai, destinada a demarcar a área como terra indígena.
O pedido de concessão de medida liminar foi deferido para manter a comunidade indígena na posse do imóvel (fls. 201/205).
Contra essa decisão os réus interpuseram agravo de instrumento no Tribunal Regional Federal da Terceira Região (fls. 223/280). O Tribunal Regional Federal da Terceira Região recebeu o agravo de instrumento apenas no efeito devolutivo (fl. 378) e, no julgamento do mérito desse recurso, negou-lhe provimento (fls. 1.497 e 1.572/.1.578).
Os réus contestaram. Requerem a extinção do processo sem resolução do mérito, por falta de interesse processual e ilegitimidade ativa para a causa, bem como a declaração de incompetência absoluta da Justiça Federal para processar e julgar a causa. No mérito requerem a improcedência dos pedidos, a reintegração deles na posse do imóvel, a condenação da autora em perdas e danos e ao desfazimento de construção e plantações, além da cominação de pena em caso de novo esbulho, no montante equivalente a um salário mínimo por dia (fls. 284/344). Os réus afirmam o seguinte:
- não omitiram a condição de índios dos invasores porque não há nenhuma prova de que se trata de índios;
- nem mesmo a autora sabe quem são os invasores do imóvel porque nem sequer declinou o nome de algum deles tampouco apresentou cadastros de tais pessoas nos órgãos competentes;
- o imóvel em questão não pertence à União, mas sim aos réus, tratando-se de bem particular invadido por um grupo de pessoas cuja qualidade de comunidade indígena Guarani não foi demonstrada, o que conduz à ausência de interesse processual, ilegitimidade ativa para a causa e incompetência absoluta da Justiça Federal;
- não existe mais o fictício aldeamento indígena que iria de Pinheiros a Barueri, tratando-se de área fortemente urbanizada, onde existem loteamentos residenciais, áreas comerciais e industriais e prédios públicos e privados, que não se encontram encravados em nenhum aldeamento indígena;
- a ser acolhida a tese da autora a maioria dos bairros da zona oeste de São Paulo e de Barueri não passaria de prolongamento de aldeamento indígena, desparecendo o direito de propriedade privada na maior a mais urbanizada cidade de América do Sul;
- o imóvel é de propriedade dos réus e foi invadido por um grupo de pessoas, que derrubaram parte do muro que cerca o imóvel, de modo que não se trata de ocupação, e sim de invasão de propriedade privada;
- a autora não apresentou cópia do ofício n 258;
- não se sabe a que área se refere a Portaria n 735/2002, editada pela Funai, não havendo prova de o imóvel em questão integrar área a ser supostamente demarcada como de ocupação indígena;
- a demarcação de terra indígena deverá respeitar a posse e propriedade particulares e não poderá violar direitos reconhecidos;
- a autora apresentou documentos que se referem à área indígena localizada na frente do imóvel dos réus e devidamente demarcada, objeto das matrículas ns 92.210 e 92.211 do 18 Cartório de Registro de Imóveis da Capital, sendo incontroverso tal fato, mas tal área indígena não tem nenhuma relação com a do imóvel dos réus;
- o que vem ocorrendo é nítida confusão, pois duas são as áreas em questão; uma, pertencente à reserva indígena Guarani, de propriedade da União, localizada de um lado do imóvel dos réus; outra, de propriedade dos réus, situada do lado oposto, não demarcada como terra indígena;
- a escritura de venda e compra devidamente registrada no 16 Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo, a certidão atualizada do imóvel (filiação até a origem) e o Certificado de Cadastro de Imóvel Rural - CCIR provam, de forma inequívoca, que a propriedade e a posse dos réus é bastante antiga, contando desde janeiro de 1977;
- parte do imóvel objeto desta demanda foi, inclusive, desapropriada pela Dersa, em ação de desapropriação movida em face dos réus, que tramitou na 6ª Vara dos Feitos da Fazenda;
- há que ser respeitada a posse e o direito de propriedade dos réus, nos termos do artigo 5, inciso XII, da Constituição do Brasil;
- a informação do oficial de justiça de que os supostos índios estão no imóvel há aproximadamente quatro anos não se refere ao imóvel dos réus, e sim do de propriedade de José Álvaro Pereira Leite, assim como a representação n182/1999 do Ministério Público Federal.
A Fundação Nacional do Índio - Funai se manifestou sobre a contestação, em petição de fls. 394/400, não assinada, razão por que foi ratificada pela petição de fls. 435/436. Requer a rejeição das preliminares porque a qualidade de índios dos integrantes da comunidade que ocupa o imóvel é estabelecida por elementos antropológicos, e não formais ou cadastrais. No mérito salienta que (fls. 394/400):
- o imóvel em questão integra área que está em processo de demarcação como indígena;
- é irrelevante o fato de o imóvel estar registrado como de propriedade dos réus, pois tal registro não pode prevalecer quando de terra indígena se trata, o que, de fato, ocorre conforme informação fornecida, por solicitação do Ministério Público, pelo Serviço do Patrimônio da União, no sentido de que o imóvel localizado na rua Comendador José de Matto, 180, inclui-se entre os bens de propriedade da União;
- o imóvel é ocupado por integrantes da comunidade indigne Guarani, segundo apurado pela Funai, a quem compete identificar como indígena determinada população, além de o oficial de justiça haver identificado José Fernandes Soares como cacique e líder religioso dos Guaranis, tendo ainda o oficial de justiça identificado a presença, no imóvel, de aproximadamente 120 pessoas da comunidade indígena Guarani.
O Superior Tribunal de Justiça resolveu o conflito positivo de competência suscitado pelo juízo da Vara Cível do Foro Regional da Lapa em face deste juízo da 8ª Vara Cível da Justiça Federal em São Paulo, para declarar a competência deste juízo (fls. 402/411).
Deferida a produção de provas pericial, documental e testemunhal (fls. 472 e 1.452/1.453), os réus apresentaram parecer da Funai sobre a demarcação de área indígena no Jaraguá (fls. 497/500)
A União requereu o ingresso no feito (fl. 1.092/1.094).
Foram juntadas no curso do processo certidões de registro de Ofícios de Registro de Imóveis relativamente à cadeia dominial do imóvel objeto desta demanda (fls. 1.119/1.121, 1.382, 1.396, 1.435/1.437, 1.472, 1.582 e 1.623/1.626).
A Funai apresentou cópia dos autos do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Jaraguá - Tekoa Pyau (fls. 1.137/1.324).
O Ministério Público Federal e a Funai requereram a suspensão do processo pelo prazo de um ano para conclusão dos estudos destinados a estabelecer a exata delimitação da área da Aldeia Indígena do Jaraguá (fls. 1.328/1.332 e 1.410/1.414), o que foi indeferido (fls. 1.452/1.453).
O Ministério Público Federal agravou de instrumento contra a decisão de fls. 1.452/1.453, na parte em que lhe foi imposto o ônus de adiantar os honorários periciais da perícia na área de antropologia e indeferida a suspensão do processo (fls. 1.499/1.494).
Foi reconsiderada por este juízo a determinação de adiantamento, pelo Ministério Público Federal, dos honorários periciais da perícia de antropologia, determinada, de ofício, a produção dessa prova e atribuído o ônus do adiantamento dos respectivos honorários à Funai e aos réus (fls. 1.507/1.508).
O Tribunal Regional Federal da Terceira Região deferiu em parte o pedido de antecipação da tutela recursal para afastar o ônus imposto ao Ministério Público Federal de adiantamento dos honorários periciais (fls. 1.499/1.500). No julgamento do recurso, o Tribunal Regional Federal da Terceira Região, presente a reconsideração da decisão agravada, julgou prejudicado o agravo nessa parte e deu-lhe parcial provimento, a fim de que o Ministério Público Federal figure na demanda como custus legis (fls. 1.636/1.638).
Apresentados os laudos periciais (fls. 1.644/1.692, 1.699/1.743, 1.953/1.954, 1.955/2044, 2.143/2.152), as partes ofertaram suas manifestações e impugnações quanto a eles (fls. 1.749/1.772, 1.795/1.871, 1.878/1.921, 1.928/1.933, 1.943/1.947, 2.051/2.053, 2.077/2.086, 2.156, 2.161/2.176 e 2.178/2.180).
Foram ouvidas as testemunhas arroladas pelos réus (fls. 2.233/2.241).
As partes apresentaram alegações finais (fls. 2.253/2.276, 2.285 e 2.292/2.310).
O Ministério Público Federal apresentou parecer opinando pela procedência do pedido (fls. 2.314/2.329).
A Funai e o Ministério Público Federal apresentaram o despacho da Presidenta da Funai n 544, de 29.04.2013 (fls. 2.334/2.343, 2.345/2.348 e 2.384), relativa à demarcação de nova terra indígena, em que incluído o imóvel dos réus. Os réus o impugnaram (fls. 2.355/2.378).
É o relatório. Fundamento e decido.
(...)
Passo ao julgamento do mérito. A Funai afirma ser antiga a posse dos índios Guaranis na área do imóvel dos réus. Segundo a autora, o imóvel é de propriedade da União, nos termos dos artigos 20, inciso XI, e 231, 6, da Constituição do Brasil. A autora noticia também que tramita processo administrativo de demarcação de área a ser destinada a reserva indígena Guarani, em que incluído tal imóvel na área a ser demarcada.
Já os réus, MANOEL FERNANDO RODRIGUES e BENTA DA CONCEIÇÃO DA SILVA RODRIGUES, afirmam ser proprietários e possuidores do imóvel em questão, registrado na matrícula n 7.137, do 16 Cartório de Registro de Imóveis, imóvel esse também cadastrado em nome deles no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra (fls. 353/356).
Ocorre que nas áreas dos imóveis de matrículas ns 92.210 e 92.211, do 18 Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, que não se confundem com a área do imóvel registrado em nome dos réus, já foi realizada a demarcação, pela União, da área indígena Jaraguá, destinada ao grupo indígena Guarani, conforme Decretos ns 94.221, de 14 de abril de 1987, publicado no Diário Oficial da União de 15 de abril de 1987, e 88.118, de 23 de fevereiro de 1983. A demarcação da área indígena foi registrada no 18 Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, nas matrículas ns 92.210 e 92.211.
Segundo o acórdão do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Petição nº 3.388/RR, relator o Excelentíssimo Ministro Ayres Britto, em que julgada parcialmente procedente ação popular ajuizada para anular o ato de demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol, o Plenário acolheu a sugestão do ministro Menezes Direito, no sentido de fixar parâmetros, denominados salvaguardas institucionais, para as demarcações de áreas indígenas, presentes e futuras. Uma dessas condicionantes veda a ampliação de terra indígena já demarcada e consta expressamente do dispositivo do acórdão, nos seguintes termos: "(xvii) é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada".
Nesse sentido a seguinte decisão do Excelentíssimo Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, nos autos da Reclamação n 14.473 MC/RO, proferida em 21 de setembro de 2012, em que afirmou ter a Corte Suprema fixado a tese de impossibilidade de ampliação de área indígena já demarcada (...).
Na mesma direção, aplicando a salvaguarda que veda a ampliação de terra indígena já demarcada, constante do dispositivo do acórdão nos autos da Petição nº 3.388/RR, a seguinte decisão da Excelentíssima Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie, nos autos do mandado de segurança n 29.293, proferida em 18.11.2010 (...).
É certo que, no julgamento dos embargos de declaração opostos ao acórdão prolatado nos autos da Petição 3.388/RR, o Supremo Tribunal Federal afastou o efeito vinculante relativamente às salvaguardas estabelecidas no dispositivo do acórdão, mas deixou claro tratar-se de jurisprudência do Plenário do Supremo, a representar o sentido por ele atribuído ao texto da Constituição do Brasil quanto ao regime jurídico aplicável e toda e qualquer demarcação de terra indígena na forma do seu artigo 231. O acórdão do julgamento dos embargos de declaração ainda não foi publicado.
Também é importante enfatizar que, no julgamento desses embargos de declaração, o Plenário do Supremo Tribunal Federal manteve todas as salvaguardas, provendo-os apenas para prestar alguns esclarecimentos, nos seguintes termos (...).
Sendo vedada a ampliação de terra indígena já demarcada, conforme estabelecido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, não se pode deixar de observar tal jurisprudência, a fim de concluir que aos índios Guaranis é assegurada a posse e o usufruto das terras situadas apenas nas áreas dos imóveis de matrículas ns 92.210 e 92.211, do 18 Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo.
Tais áreas, conforme já salientado, não se confundem com a área do imóvel registrado em nome dos réus, segundo prova pericial produzida nestes autos, consubstanciada nos laudos periciais apresentados pelo engenheiro civil Jairo Sebastião Borriello de Andrade (fls. 1.644/1.692 e 2.143/2.152).
Os réus comprovaram a posse deles sobre o imóvel registrado na matrícula n 7.137, do 16 Cartório de Registro de Imóveis. Eles adquiriram esse imóvel por escritura pública lavrada em 19 de janeiro de 1977 e registrada no 16 Cartório de Registro de Imóveis em 04 de fevereiro de 1977 (fls. 348/356). Por força do artigo 1.204 do Código Civil, "Adquire-se a posse desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, dos poderes inerentes à propriedade".
Já os integrantes da comunidade indígena Guarani não têm justo título jurídico que lhes permita o exercício da posse na área do imóvel dos réus. Consoante enfatizado acima, aos índios Guaranis é assegurada a posse e o usufruto apenas das terras situadas nas áreas dos imóveis de matrículas ns 92.210 e 92.211, do 18 Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, dentro da reserva indígena já demarcada pela União, cuja ampliação é vedada por meio de nova demarcação, ressalvadas outras formas de aquisição da propriedade previstas na lei civil, como a compra e venda, seja pelos próprios índios, seja pela Funai, ou a desapropriação do imóvel dos réus pela União.
A impugnação da Funai ao título de propriedade dos réus é improcedente. O título de propriedade dos réus não contém vícios que o tornem nulo. Está comprovado o encadeamento entre todos os assentos desde a aquisição do imóvel por eles, conforme registro realizado em 04.02.1977, até 31.05.1922, este último que tem como transmitente do imóvel em questão Ambrosina de Toledo (conforme sucessão de registros descrita nos laudos periciais apresentados pelo engenheiro civil Jairo Sebastião Borriello de Andrade).
O fato de não haver prova cabal do registro do título de aquisição de Ambrosina de Toledo, anterior a 1922, não torna viciado o título de propriedade dos réus. Conforme explica Walter Ceneviva (Lei de Registros Públicos Comentada, São Paulo, editora Saraiva, 20ª edição, página 502) "O registro de imóveis no Brasil ainda não era, no último decênio do século XX, mas tendia a ser repositório específico e individuado de toda a propriedade imobiliária. Cada imóvel deve ser caracterizado e confrontado com exatidão, que o torne inconfundível com os demais. O artigo, entretanto, parte do falso pressuposto de que todos os imóveis brasileiros já estariam inseridos nas serventias imobiliárias, quando exige, sem exceção, o assentamento do título anterior. Ora, o pressuposto não corresponde à realidade jurídica e fática. Antes de 1 de janeiro de 1917, quando entrou em vigor o antigo Código Civil, o registro não era obrigatório. Subsistem áreas havidas antes dessa data. Seus titulares têm direito adquirido ao não registro, mesmo para assegurar disponibilidade. Pode o oficial, porém exigir para exame e matrícula a apresentação do título anterior".
Não havendo obrigatoriedade legal de registro, antes de 1917, não se pode classificar como inválido o registro de propriedade dos réus apenas porque o primeiro registro, na sucessão de assentamentos, tem como transmitente Ambrosina de Toledo, sem que este registro aluda ao registro anterior.
Além disso, esta demanda não é a sede processual adequada para desconstituir o registro de propriedade dos réus. Ela não foi ajuizada para tal finalidade. Vigora a presunção relativa de legalidade do registro de propriedade, que somente pode ser afastada por prova cabal de vícios no título, cujo ônus incumbe a quem impugna o título.
Em outras palavras, não cabia aos réus produzir prova da validade do título de propriedade. Tal validade é presumida, por força do registro da compra e venda no Ofício de Registro de Imóveis. À autora é que competia o ônus de produzir prova da invalidade do título. Tal prova não foi produzida.
Com efeito, o artigo 252 da Lei n 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), dispõe que "O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido".
Ainda de acordo com essa lei, o registro não pode ser cancelado, em virtude de decisão do Poder Judiciário, senão em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado (artigo 250, I).
Sobre o disposto no artigo 252 da Lei n 6.015/1973, Walter Ceneviva (obra citada, página 632) explica: "Ônus da prova incumbe ao autor da impugnação - Decorrência processual para o titular do registro, enquanto não cancelado, é a dispensa do ônus da prova, em virtude da presumida verdade deste".
É certo que, a teor do 6 do artigo 231 da Constituição do Brasil, "São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé".
Esse dispositivo alude às terras a que se refere o artigo 231. Quais são essas terras? As ocupadas pelos índios na data de promulgação da Constituição Federal, em 05.10.1988, que venham a ser objeto de processo de demarcação pela União.
Ainda que, conforme acórdão do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Petição nº 3.388/RR, a demarcação não produza efeito constitutivo, mas meramente declaratório, por reconhecer a posse, pelos índios, das terras por eles habitadas na data de promulgação da Constituição de 1988, a extinção e nulidade dos títulos dessas terras não decorre automaticamente do simples exercício da posse das terras pelos índios, mas sim do registro do ato de demarcação no Ofíc io de Registro de Imóveis.
Esta é a norma que decorre do texto do 6 do artigo 231 da Constituição do Brasil, combinado com o do XXII de seu artigo 5, segundo o qual "é garantido o direito de propriedade". A garantia fundamental da propriedade não pode ficar suspensa nem sujeita a incertezas com base no mero exercício da posse de terras por índios. Enquanto não registrado no Ofício de Registro de Imóveis e tornado público o ato de demarcação da terra indígena, o título de propriedade da mesma área, registrado em nome de particular, é existente, válido e eficaz. Apenas a publicidade decorrente do registro do ato de demarcação no Registro de Imóveis gera os efeitos previstos no 6 do artigo 231 da Constituição do Brasil.
Se é certo que o ato de demarcação é meramente declaratório, no que tange ao reconhecimento da posse da terra pelos índios em 05.10.1988, em relação à nulidade e à consequente extinção de título de propriedade ou de posse da mesma área, tal ato é constitutivo-negativo ou desconstitutivo. Somente com o registro, no Ofício de Registro de Imóveis, do ato de demarcação, é que se tem a nulidade e a extinção do registro, efetivado em nome de outro proprietário que não a União, de terra indígena já devidamente demarcada.
Essa, aliás, é a opção prevista na Lei n 6.001/1973, e no Decreto n 1.775/1996.
Realmente, a Lei n 6.001/1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, estabelece nos artigos 17, inciso I, e 19, cabeça e 1 e 2:
Art. 17. Reputam-se terras indígenas:
I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição;
Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.
1º A demarcação promovida nos termos deste artigo, homologada pelo Presidente da República, será registrada em livro próprio do Serviço do Patrimônio da União (SPU) e do registro imobiliário da comarca da situação das terras.
2º Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória.
Por sua vez, interpretando tais dispositivos, o Presidente da República editou o Decreto n 1.775/1996, cujos artigos 1 e 6 dispõem:
Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n 6001, de 19 de dezembro de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o disposto neste Decreto.
Art. 6 Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.
Não há nenhuma dúvida de que tanto a Lei n 6.001/1973 como o Decreto n 1.775/1996 estão em conformidade com o sistema de registros públicos previsto na Lei n 6.015/1973, quando estabelecem a obrigatoriedade de registro, no Ofício de Registro de Imóveis, do ato de demarcação de terras indígenas.
Ante tal obrigatoriedade incide o sistema de registros públicos previsto na Lei n 6.015/1973, de que decorre que "O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido" (artigo 252).
Ainda, não incide o disposto no 2 do artigo 19 da Lei n 6.001/1973, segundo o qual "Contra a demarcação processada nos termos deste artigo não caberá a concessão de interdito possessório, facultado aos interessados contra ela recorrer à ação petitória ou à demarcatória". Considerados os limites semânticos deste dispositivo, ele incide apenas se o processo de demarcação já estiver concluído, situação em que não cabe mais a defesa da posse, mas da propriedade, com o registro do ato demarcatório. Com efeito, concluído o processo de demarcação e registrada esta no Ofício de Registro de Imóveis, ficam extintos os títulos de propriedade ou posse registrados em nome de outra pessoa que não a União, razão por que se afasta a possibilidade de interdito proibitório, cabendo apenas discussão da propriedade. Não é o caso dos autos. Ainda não foi concluído o processo de demarcação da nova área indígena para os índios Guarani.
Finalmente, a responsabilidade da autora é objetiva pelos danos decorrentes da concessão da medida liminar que manteve os índios na posse do imóvel. As construções e plantações realizadas no imóvel pelos índios e os danos no muro decorreram da concessão da medida liminar postulada pela autora. Mas não cabe a imposição de penalidade à autora, em caso de novo esbulho. A autora não pode responder por turbação ou esbulho futuros na posse dos réus. A responsabilidade por tais danos, em princípio, ressalvada eventual nova intervenção da Funai na defesa de turbação ou esbulho, é dos índios.
Ante o exposto, improcede o pedido formulado pela autora, e procedem os pedidos formulados pelos réus na contestação de reintegração deles na posse do imóvel e de condenação da autora a pagar-lhes indenização pela destruição do muro que cerca o imóvel e na obrigação de desfazimento das construções e das plantações realizadas no imóvel pelos índios.
Dispositivo.
Resolvo o mérito nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, para: i) julgar improcedente o pedido formulado pela autora; e ii) julgar parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos réus, a fim de reintegrá-los na posse do imóvel, condenar a autora na obrigação de pagar-lhes indenização pela derrubada do muro que cerca o imóvel, cujo valor será apurado na fase de liquidação de sentença, e condená-la na obrigação de desfazer construções e plantações realizadas no imóvel.
Casso a liminar concedida à autora e declaro a ineficácia de todos os atos praticados com base nela, com efeitos retroativos (ineficácia retroativa; ex tunc).
Concedo medida liminar para determinar a reintegração dos réus na posse do imóvel. Fixo prazo de 90 (noventa) dias para desocupação voluntária do imóvel pelos índios. Terminado este prazo poderão ser adotadas medidas, a pedido dos réus, para sua reintegração na posse do imóvel.
Porque sucumbiram em grande parte do pedido condeno a autora e a União à restituição, aos réus, das custas e honorários periciais despendidos por estes, e a pagar-lhes os honorários advocatícios, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), considerando a grande complexidade da causa, sua tramitação por quase dez anos, a produção e acompanhamento de provas periciais demoradas e complexas e a realização de audiência para oitiva de testemunhas, além da necessidade de manifestação sobre extensas e prolixas manifestações da autora, da União e do Ministério Público Federal.
Os valores dos honorários periciais e das custas deverão ser restituídos com correção monetária a partir da data do efetivo pagamento ou depósito, pelos índices da tabela das ações condenatórias em geral, sem a Selic, previstos na Resolução n 134/2010, do Conselho da Justiça Federal, ou da que a substituir. Os honorários advocatícios serão atualizados pelos mesmos índices, a partir da data desta sentença (...). (fls. 2.558/2.567)

O MM. Juízo a quo analisou detidamente a prova dos autos e concluiu no sentido de que a demarcação ocorreu nas "áreas dos imóveis de matrículas ns 92.210 e 92.211, do 18º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, que não se confundem com a área do imóvel registrado em nome dos réus", conforme laudo do perito judicial (cf. sentença, fl. 2.564). Acrescentou que os réus comprovaram "o encadeamento entre todos os assentos desde a aquisição do imóvel por eles, conforme registro realizado em 04.02.1977, até 31.05.1922, este último que tem como transmitente do imóvel em questão Ambrosina de Toledo (conforme sucessão de registros descrita nos laudos periciais apresentados pelo engenheiro civil Jairo Sebastião Borriello de Andrade)" (cf. sentença, fl. 2.564v.).

Assim, considero não haver elementos que permitam infirmar a decisão agravada, que recebeu as apelações da FUNAI, da União e do Ministério Público Federal somente no efeito devolutivo na parte em que cassada a liminar concedida à FUNAI e concedida a liminar para determinar a reintegração de posse do imóvel em favor de Manoel Fernandes Rodrigues e Benta da Conceição da Silva Rodrigues:


1. Fls. 2400/2445, 2448/2507 e 2516/2520: recebo nos efeitos devolutivo e suspensivo os recursos de apelação interpostos pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO, pela UNIÃO e pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, salvo quanto à parte da sentença em que cassada a liminar concedida à FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO e concedida a liminar para determinação a reintegração de MANOEL FERNANDO RODRIGUES e BENTA DA CONCEIÇÃO DA SILVA RODRIGUES na posse do imóvel, relativamente à qual recebo as apelações somente no efeito devolutivo, a fim de manter sua plena eficácia
2. Ficam os réus MANOEL FERNANDO RODRIGUES e BENTA DA CONCEIÇÃO DA SILVA RODRIGUES intimados para apresentar contrarrazões.
3. Oportunamente, remeta a Secretaria os autos ao Tribunal Regional Federal da Terceira Região.
Publique-se. Intimem-se a FUNAI, a UNIÃO e o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. (fl. 2.696)

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento.

É o voto.


Andre Nekatschalow
Desembargador Federal


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