Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 03/03/2015
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0006365-54.2008.4.03.6181/SP
2008.61.81.006365-7/SP
RELATOR : Desembargador Federal PAULO FONTES
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : CAMILO ALVES DA SILVA NETO
: ANTONIO NERI DE ANDRADE
ADVOGADO : SP231003 MARCIO ROBERTO CAMPOS e outro

EMENTA

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - RECEBIMENTO DA DENUNCIA - ARTS. 149 E 207 DO CP - INDICIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE - PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE - RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO.
1. Os recorridos foram denunciados nestes autos como incurso no delito do artigo 149 e 207, c/c arts. 29 e 70, todos do Código Penal.
2. A denúncia afirma que os trabalhadores foram aliciados com o fim de serem levados do Sergipe para este Estado de São Paulo, sem assegurar condições de retorno ao local de origem, alojadas em local de condições precárias, conforme fotografias fornecidas pela própria empresa, junto com outras várias pessoas. Submetidas a uma jornada exaustiva de trabalho por dia, sem qualquer registro nem dia de folga, com salário bem inferior ao prometido e não conseguiam ganhar o suficiente sequer para pagar a dívida do alojamento e da viagem.
3. Nesse aspecto, tenho que a denúncia possui, pelo menos neste juízo de cognição sumária, aptidão para embasar a pretensão punitiva estatal, porquanto alicerçada no Auto de Prisão em Flagrante, Boletim de Ocorrência, nos depoimentos das testemunhas e vítimas, bem como no interrogatório dos réus, bem como nos próprios documentos juntados no pedido de liberdade provisória em anexo.
4. Prevalece nessa fase do processo o princípio do in dubio pro societate, não podendo o magistrado a quo rejeitar a denúncia por ausência de materialidade, sendo que os fatos narrados na denúncia constituem, em tese, os crimes descritos nos artigos 149 e 207, do Código Penal.
5- Atendendo a inicial acusatória às prescrições do art. 41 do CPP, havendo fortes indícios de autoria e materialidade delitiva, a apuração adequada dos fatos e a aferição do elemento subjetivo do tipo devem ser feitas durante a instrução criminal.
6. Recurso a que se dá provimento para receber a denúncia e determinar o prosseguimento da ação penal.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento ao recurso ministerial, para receber a denúncia e determinar o prosseguimento da ação penal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 23 de fevereiro de 2015.
PAULO FONTES
Desembargador Federal


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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0006365-54.2008.4.03.6181/SP
2008.61.81.006365-7/SP
RELATOR : Desembargador Federal PAULO FONTES
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : CAMILO ALVES DA SILVA NETO
: ANTONIO NERI DE ANDRADE
ADVOGADO : SP231003 MARCIO ROBERTO CAMPOS e outro

RELATÓRIO


Trata-se de RECURSO EM SENTIDO ESTRITO interposto pela JUSTIÇA PÚBLICA contra decisão proferida pelo MM. Juiz Federal da 9ª Vara Federal de São Paulo/SP, que rejeitou a denúncia por ausência de prova da materialidade dos fatos, com fundamento no artigo 43, III, do Código de Processo Penal (fls. 66/71).

Consta da denúncia (fls. 63/65) que:

"Consta dos inclusos autos de inquérito policial que em janeiro e fevereiro de 2008, os denunciados, previamente ajustados e em identidade de propósitos, aliciaram trabalhadores com o fim de leva-los a outra localidade do território nacional.
Consta, também, que em 26 de fevereiro de 2008, na Rua Benedito Ventura Netão, no. 2, Osasco, os denunciados, previamente ajustados e em identidade de propósitos, reduziram quatro pessoas à condição análoga a de escravo, submetendo-as a jornada exaustiva e restringindo sua locomoção em razão da dívida contraída com o empregador.
Narram os autos que no início do presente ano Antônio Néri, conhecido como Cowboy viajou até Sergipe e ali, em pequenas localidades dos municípios de Malhador e Nossa Senhora das Dores, aliciou quatro trabalhadores, Juraci Pereira dos Santos, Gailson Ramiro dos Santos, Carlos Henrique Santos Dorea e Valdez dos Santos prometendo-lhes condições excelentes de trabalho nesta Capital, com carteira assinada e salário em torno de R$ 1.500,00 (um mil e quinhentos reais).
Ao chegarem aqui, porém, os trabalhadores foram alojados na empresa de Camilo, em local de condições precárias, conforme fotografias fornecidas pela própria empresa no apenso, junto com outras vinte e seis pessoas. Ali eram submetidas a uma jornada de dez a doze horas por dia, sem qualquer registro nem dia de folga, com salário bem inferior ao prometido. Eram cobrados em R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais) pelo alojamento e como, para ter direito a salário, dependiam do trabalho oferecido por Camilo e Antônio, o que nem sempre havia, não conseguiam ganhar o suficiente sequer para pagar a dívida do alojamento e da viagem.
Após algum tempo nessas condições, as vítimas pediram para retornar ao estado de origem, o que foi negado por Camilo, que condicionou a liberação à quitação de toda a divida assumida por eles. Ademais, Antônio Néri havia retido, ainda em Sergipe, os documentos de Juraci e Carlos Henrique, o que tornou a viagem de volta impossível. Por estes motivos, as vítimas procuraram a polícia militar, que prendeu os denunciados em flagrante." - grifos de acordo com o original

A rejeição da denúncia ocorreu em 28/05/2008 (fls. 66/71).


Inconformado, o Ministério Público Federal interpôs Recurso em Sentido Estrito (fls. 73/80), requerendo a reforma da decisão para o fim de recebimento da denúncia ofertada. Sustenta, em síntese, que a acusação deve ser recebida porque é verossímil e tendo em vista que o crime praticado não deixa vestígios e documentos, sendo provado por testemunhas e vítimas, em regular instrução processual.

As contrarrazões foram ofertadas às fls. 85/95. Requer a Defesa a manutenção da sentença que rejeitou a denúncia, alegando a inépcia, com a falta de identificação e classificação do crime, sendo a denúncia vaga e não propiciando que o acusado se defenda propriamente.

Foi mantida a decisão recorrida em sede de Juízo de retratação (fl. 96).

Após, subiram os autos a esta E. Corte, onde o Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso (fls. 98/100).

Dispensada a revisão, na forma regimental.

É O RELATÓRIO.


VOTO

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal em face da decisão que rejeitou a denúncia ofertada por ausência de materialidade dos fatos, com fundamento no artigo 43, inciso III, do Código de Processo Penal.

O recurso interposto pelo Ministério Público Federal comporta provimento.

A denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal.

Insta salientar que os recorridos foram denunciados nestes autos como incurso no delito do artigo 149 e 207, c/c arts. 29 e 70, todos do Código Penal, tipo penal que tutela a liberdade de ir e vir do indivíduo e a organização do trabalho.

Os indícios de materialidade e autoria dos fatos em tese delituosos estão presentes no Auto de Prisão em Flagrante (fls. 02/18), Boletim de Ocorrência (fls. 19/22), nos depoimentos das testemunhas e vítimas, bem como no interrogatório dos réus.

A denúncia afirma que os trabalhadores foram aliciados com o fim de serem levados do Sergipe para este Estado de São Paulo, sem assegurar condições de retorno ao local de origem, e, ao chegarem aqui, os trabalhadores eram alojados na empresa, em local de condições precárias, conforme fotografias fornecidas pela própria empresa no apenso às fls. 59/89, junto com outras várias pessoas.

Consta, ainda, que ali eram submetidas a uma jornada exaustiva de trabalho por dia, sem qualquer registro nem dia de folga, com salário bem inferior ao prometido. E como, para ter direito a salário, dependiam do trabalho oferecido pelos recorridos, o que nem sempre havia, não conseguiam ganhar o suficiente sequer para pagar a dívida do alojamento e da viagem.

Com efeito, eram cobrados R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais) pelo alojamento, fato admitido pelo recorrido Camilo, dono da empresa empregadora. Apura-se, também, dos documentos de fls. 21/31 do apenso a disparidade entre o valor recebido como salário e a dívida adquirida perante a empresa.

Por exemplo, no caso do trabalhador Valdez dos Santos, foi cobrado R$ 220,00 (duzentos e vinte reais) pela passagem de volta para o Estado de Sergipe, o valor do seu salário foi de R$ 87,18 (oitenta e sete reais e dezoito centavos) para o período de 07/02/2008 a 26/02/2008 (fls. 21/23). Soma-se à dívida o montante de R$ 260,00 cobrado pelo alojamento e alimentação fornecido pela empresa. Não é necessária operação aritmética de grande complexidade para se verificar que o trabalhador estava em constante débito para com a empresa.

Fato este que se repete nos documentos de fls. 24/31.

Nesse aspecto, tenho que a denúncia possui, pelo menos neste juízo de cognição sumária, aptidão para embasar a pretensão punitiva estatal, porquanto alicerçada no Auto de Prisão em Flagrante (fls. 02/18), Boletim de Ocorrência (fls. 19/22), nos depoimentos das testemunhas e vítimas, bem como no interrogatório dos réus, bem como nos próprios documentos juntados no pedido de liberdade provisória em anexo (feito nº 2008.61.81.010076-9).

Nesse sentido:


PENAL . PROCESSUAL PENAL . HABEAS CORPUS. ART. 168-A DO CÓDIGO PENAL . INÉPCIA DA DENÚNCIA . FALTA DE JUSTA CAUSA. INOCORRÊNCIA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL . IMPOSSIBILIDADE. I - denúncia que individualiza a conduta e expõe o fato imputado atendendo, assim, aos requisitos do art. 41 do CPP. II - Não se declara inepta a denúncia se o seu teor permitir o exercício do direito do contraditório e o da ampla defesa. III - O trancamento da ação penal , em habeas corpus, constitui medida excepcional que só deve ser aplicada quando evidente a ausência de justa causa, o que não ocorre quando a denúncia descreve conduta que configura crime em tese. IV - Ordem denegada.
(STF, HC 92.764/BA, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 08.04.2008, v.u, DJe 30.04.2008)

Merece prevalecer nessa fase do processo o princípio do in dubio pro societate, não podendo o magistrado a quo rejeitar a denúncia por ausência de materialidade, sendo que os fatos narrados na denúncia constituem, em tese, os crimes descritos nos artigos 149 e 207, c/c arts. 29 e 70, todos do Código Penal.

Assim, atendendo a inicial acusatória às prescrições do art. 41 do CPP, havendo fortes indícios de autoria e materialidade delitiva, a apuração adequada dos fatos e a aferição do elemento subjetivo do tipo devem ser feitas durante a instrução criminal.

Nesse sentido, o entendimento do TRF da 1ª Região:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. ART. 149 DO CP. FRUSTRAÇÃO DO DIREITO ASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA. ART. 203 DO CP. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. PROVA DA MATERIALIDADE. INDÍCIOS DE AUTORIA. REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. PREENCHIMENTO. RECEBIMENTO. RECURSO PROVIDO.
1. A denúncia imputa ao réu a submissão de trabalhadores a condições de trabalho degradantes, havendo não apenas desrespeito a normas de proteção do trabalho, mas desprezo a condições mínimas de saúde, segurança, higiene, respeito e alimentação, além de realização de trabalho sem equipamentos de proteção individual e descanso semanal.
2. O art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003, explicita as hipóteses em que se configura a condição análoga à de escravo. A submissão a trabalhos forçados, a jornada exaustiva, o trabalho em condições degradantes, a restrição da locomoção em razão de dívida com o empregador ou preposto são condutas típicas.
3. Somente após a fase instrutória, respeitado o contraditório, o Juiz poderia formar sua convicção sobre o fato de os acusados terem mantido ou não os trabalhadores em condições análogas a de escravos, seja mediante a submissão a trabalhos forçados, ou a condições de trabalho degradantes, ou a restrição de sua liberdade. As provas pré-processuais até então disponíveis não permitem a conclusão de que não houve a prática do delito do art. 149 do Código Penal.
4. No que concerne ao crime tipificado no art. 203 do CP, há indícios das condições de trabalho desumanas a que estavam submetidos os trabalhadores.
5. A justa causa para a ação penal está relacionada com a existência de um mínimo de provas que demonstrem indícios de autoria e materialidade do delito. Os fatos narrados na denúncia constituem, em tese, os crimes de redução à condição análoga à de escravo e frustração do direito assegurado por lei trabalhista. Assim, atendendo a inicial acusatória às prescrições do art. 41 do CPP, havendo fortes indícios de autoria e demonstrada a materialidade delitiva, a apuração adequada dos fatos e a aferição do elemento subjetivo do tipo devem ser feitas durante a instrução criminal.
6. Incabível a rejeição da denúncia, em razão da prevalência, nesta fase processual, do princípio in dubio pro societate.
7. Recurso em sentido estrito a que se dá provimento para receber a denúncia que imputa aos réus a prática dos delitos dos arts. 149 e 203 do Código Penal.
(TRF 1 - Terceira Turma - RESE: 0001315-05.2014.4.01.4302. Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NEY BELLO, Data de julgamento: 21/05/2014, data da publicação: 20/06/2014)
Não é outro o entendimento do TRF da 4ª Região:
PENAL E PROCESSUAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ART. 149 DO CP. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CONDIÇÕES DEGRADANTES DE TRABALHO. VALIDADE DA NORMA. FATOS DESCRITOS NA DENÚNCIA. SUPOSTA CONFIGURAÇÃO DO CRIME. IN DUBIO PRO SOCIETATE. ARTS. 41 E 395 DO CPP. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS. RECURSO PROVIDO.
1. Não há se falar em ofensa aos princípios da legalidade ou taxatividade, pois, embora o art. 149 do CP constitua tipo penal aberto, ele apresenta elementos normativos que possibilitam a interpretação segura da expressão "condições degradantes de trabalho".
2. Dos fatos narrados, infere-se haver fortes indícios de que a situação dos trabalhadores era degradante, notadamente porque ausentes condições mínimas de higiene, moradia, saúde e segurança. Assim e, considerando a irrelevância das condições socioeconômicas e da percepção da vítima sobre a situação, está caracterizado, em tese, o delito previsto no art. 149 do Código Penal.
3. Na fase de recebimento da denúncia, vige o princípio do in dubio pro societate, ou seja, só se admite seu desacolhimento caso haja prova definitiva de inocência.
4. Presentes os requisitos do art. 41 do CPP e, não configurando o caso nenhuma das hipóteses previstas no art. 395 do CPP, impõe-se o recebimento da peça acusatória.
(TRF4 - SÉTIMA TURMA RSE 50003807920124047012 - Relator: JUÍZA CONVOCADA SALISE MONTEIRO SANCHOTENE Data da decisão: /11/2012, data da publicação: 30/11/2012)

Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso ministerial, para RECEBER A DENÚNCIA e determinar o prosseguimento da ação penal em face de CAMILO ALVES DA SILVA NETO e ANTÔNIO NÉRI DE ANDRADE.


É COMO VOTO.


PAULO FONTES
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): PAULO GUSTAVO GUEDES FONTES:67
Nº de Série do Certificado: 3DDA401E3F58F0FE
Data e Hora: 15/12/2014 18:22:30