D.E. Publicado em 23/11/2015 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação para afastar a extinção do processo sem resolução do mérito e, com fundamento no art. 515, § 3º, do CPC, julgar procedente o pedido, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
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VOTO
Em seu apelo, os autores requerem a reforma da sentença que extinguiu o processo sem julgamento do mérito por ilegitimidade ativa e passiva ad causam, bem assim o julgamento do mérito para obter provimento hábil a afastar a aplicação da Resolução/CFM nº 2013/2013 no ponto em que veda a realização de procedimento de fecundação in vitro com óvulos de doadora conhecida, disposição repetida na Resolução/CFM nº 2121/2015, revogadora daquele texto normativo.
Depreende-se da leitura dos autos haver o juízo a quo declarado a ilegitimidade dos autores para a presente lide, à consideração de não estarem autorizados a discutir, em nome próprio, a aplicação da Resolução/CFM nº 2013/2013 e, portanto, a atuação dos conselhos de fiscalização da medicina.
Decretou, ainda, a ilegitimidade passiva ad causam do Conselho Regional de Medicina, ao fundamento de não constar do rol de suas atribuições a intervenção pretendida pelos autores, não se lhe podendo impor a realização de procedimento de fertilização in vitro, afeto exclusivamente aos profissionais e clínicas legalmente habilitadas.
A despeito da fundamentação exarada pelo magistrado, em primeiro grau jurisdicional, para decretar a carência da ação, a aferição da legitimidade ativa e passiva ad causam está adstrita à identificação dos sujeitos descritos como titulares da relação jurídica de direito material deduzida em juízo.
Nessa esteira, esclarece Moacyr Amaral Santos serem "legitimados para agir, ativa e passivamente, os titulares dos interesses em conflito; legitimação ativa terá o titular do interesse afirmado na pretensão; passiva terá o titular do interesse que se opõe ao afirmado na pretensão" (in Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, volume 1, Ed. Saraiva, 1990, p. 167).
Evidencia a leitura da inicial a titularidade dos autores para pleitearem o direito debatido, dada a inegável repercussão, em suas esferas jurídicas, da proibição inscrita na Resolução/CFM nº 2013/2013 (revogada pela Resolução/CFM nº 2121/2015), de realização de procedimento de reprodução assistida mediante doação de óvulos por pessoa conhecida.
Por outro lado, essa pertinência subjetiva não se verifica em face do médico que assiste ao casal demandante, profissional que, embora envolvido em questões atinentes à ética médica, não ostenta interesse direto na solução da controvérsia envolvendo a intervenção pretendida.
Em idêntico sentido decidiu esta Sexta Turma ao julgar o Mandado de Segurança cuja ementa segue adiante transcrita:
Também o Conselho Regional de Medicina ostenta legitimidade para figurar no polo passivo da presente lide, fato decorrente de sua atribuição fiscalizatória do cumprimento das diretrizes que vinculam os profissionais e entidades da área médica.
Outrossim, ao compulsar os autos (fls.39-41) percebe-se haver o Conselho, na esfera administrativa, denegado autorização para a doação de óvulos de Amanda Aurea da Silva Lucas à sua irmã, Adriana Aparecida da Silva Lucas de Souza, de molde a caracterizar franca oposição/resistência ao direito pleiteado pelos demandantes.
Diante das razões apontadas, forçoso reconhecer o equívoco do Juízo a quo em extinguir o processo sem conhecimento do mérito, afastando-se a sentença terminativa nos termos do disposto no art. 515, § 3º, do Código de Processo Civil.
A propósito de encontrar-se a demanda em termos para imediato julgamento, noto haver a alteração trazida pela Lei nº 10.352/01, ao incluir o referido parágrafo § 3º no art. 515, incorporado ao estatuto processual pátrio a denominada "teoria da causa madura", mediante a qual se faculta ao Tribunal, em sede de apelação, o imediato julgamento do feito nos casos em que afastada a causa de extinção do processo sem resolução de mérito imposta pela instância originária. Assim dispõe o artigo 515, in verbis:
Deflui da leitura do dispositivo em comento condicionar-se a aplicação da mencionada teoria à conjugação de dois requisitos, quais sejam, (i) versar a causa sobre questão exclusivamente de direito e (ii) encontrar-se o feito em estado que possibilite seu imediato julgamento.
Vale destacar que, em prestígio aos postulados da economia e da celeridade processual, encontramos posicionamento doutrinário e jurisprudencial no sentido de ser admissível o exame do mérito da causa pelo Tribunal inclusive nas hipóteses em que a demanda não envolver matéria exclusivamente de direito, desde que esteja suficientemente instruído o feito.
In casu, embora eminentemente jurídica a análise a ser perpetrada, a inicial veio instruída com farta documentação, de receituários e ofícios a pareceres médicos atestando a situação clínica da autora Adriana e a indicação de técnicas de reprodução assistida a partir de óvulos oriundos, preferencialmente, de parente consanguínea, dada a considerável ampliação das chances de sucesso do procedimento.
Adentrando, então, no mérito da causa, saliento, inicialmente, a tutela concedida pelo Direito à concepção, quer seja natural, quer artificial, em prestígio à dita "autonomia reprodutiva" (Daniel Sarmento).
Tanto quanto a contracepção, a concepção compõe o núcleo do direito ao planejamento familiar, fruto exclusivo do exercício da autonomia privada do casal.
Nesses termos, os procedimentos e técnicas de reprodução humana assistida (forma de concepção ou fecundação artificial) encontram guarida no direito ao planejamento familiar, assim expresso no texto do § 7º do art. 226 da Constituição Federal de 1988, in verbis:
O Supremo Tribunal Federal, no histórico julgamento que reconheceu a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, salienta a relevância do "direito ao planejamento familiar", do qual derivaria direito de idêntica natureza, qual seja, o de recorrer às técnicas de reprodução humana assistida, a exemplo da fecundação in vitro:
Em harmonia com o art. 226 da Constituição Federal, o Código Civil reconhece, no § 2º do art. 1.565, a importância do planejamento familiar, direito cujo exercício deve contar com apoio educacional e financeiro do Estado.
Também a regulamentação dada pela Lei nº 9.263/1996 ao retro citado art. 226 da CF/88 acrescenta, in verbis:
(...)
Mas direito à reprodução, ínsito à condição humana, e integrante do núcleo dos direito de personalidade, não encontra supedâneo apenas no art. 226 da Constituição de 1988 e seus desdobramentos legais, afigurando-se-nos, ainda, como corolário do direito fundamental à saúde, assim expresso pela Carta Maior:
Na esteira do princípio consagrado pelo art. 196 da Constituição de 1988, a ciência vem aprimorando as técnicas de reprodução assistida por meio da correção de problemas de infertilidade, em defesa da manutenção de condições dignas de saúde para todos.
Esclarecidos os marcos legais de regulação da matéria, é na atividade normatizadora do Conselho Federal de Medicina que o estudo da reprodução assistida encontrou regramento mais detalhado, destacando-se a Resolução/CFM nº 2121/2015, que revogou a Resolução/CFM nº 2013/2013 recentemente e cujo item 1 do tópico dedicado aos Princípios Gerais dita, in verbis:
Diante desse cenário de tutela da aspiração reprodutiva como consequência do direito fundamental à saúde e ao planejamento familiar e, consequentemente, de autorização e facilitação de acesso às técnicas de procriação medicamente assistida, eventuais restrições, para se legitimarem, devem encontrar suporte lógico, científico e jurídico.
O direito à reprodução por técnicas de fecundação artificial não possui, por óbvio, caráter absoluto. Contudo, eventuais medidas restritivas de acesso às técnicas de reprodução assistida, ínsito ao exercício de direitos fundamentais de alta envergadura, consoante demonstrado, só se justificam diante do risco de dano efetivo a um bem relevante, análise a ser perpetrada, não raro, em face do caso concreto.
Sob esse aspecto, há de se investigar a aplicabilidade da regra limitadora ao livre planejamento familiar trazida pela Resolução/CFM nº 2121/2015, que revogou a Resolução/CFM nº 2.013/2013, conquanto aprovada em termos idênticos no ponto de interesse ao presente feito, a saber:
A intenção de resguardar a identidade de doadores(as) e receptores(as) encontra fundamento, principalmente, nos riscos de futuro questionamento da filiação biológica da criança gerada, desestabilizando as relações familiares e pondo em cheque o bem estar emocional de todos os envolvidos.
No entanto, há de se confrontar esse fundamento com a avaliação contida no Relatório da lavra do médico João Batista A. Oliveira, apresentado em nome da administração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), acerca da repercussão da regra do anonimato de doadoras de óvulos no caso ora examinado (fl. 27):
Outrossim, conforme salientado pelos interessados, em seu apelo, "o laço afetivo e a cumplicidade entre as irmãs, somados ao fato de que a irmã Amanda já possui a sua própria família, torna claro que a razão de ser da norma federal não se aplica a esse caso, no qual não existem chances de haver uma posterior disputa pela maternidade da criança" (fl. 133).
Com efeito, os laços consanguíneos existentes entre as irmãs e o fato da possível doadora haver constituído família tornam remota a chance de qualquer disputa em torno da maternidade.
Por outro lado, se o sigilo é importante para garantir aos doadores de gametas isenção de responsabilidade em face dos deveres inerentes às relações de filiação, sob esse aspecto também não se mostra consentâneo com o caso concreto, no qual a relação de parentesco verificada entre doadora, casal e futura criança caracteriza vínculo do qual decorrem obrigações preexistentes de cuidado e assistência mútua.
Assim, a proibição inserta na norma questionada e a cautela representada pela preocupação que moveu o Conselho Federal de Medicina, ao erigi-la, parecem cair por terra diante da análise da situação concreta.
Por certo, não se está aqui a desqualificar a legitimidade da regra em testilha, considerando o alinhamento do anonimato dos doadores, em técnicas de reprodução artificial heterólogas (aquelas nas quais um ou ambos os gametas não provêm do casal), às múltiplas consequências, inclusive de ordem emocional, decorrentes da renúncia à paternidade/maternidade por parte desses doadores.
A questão posta não se coloca em face da idoneidade do texto, mas de sua aplicabilidade ao caso sub judice, considerando a razão maior de sua existência.
Assim também entendeu a Terceira Turma desta Corte ao afastar, por inadequação à situação concreta, a restrição quantitativa de óvulos em fecundação in vitro imposta pelo Conselho Federal de Medicina por meio da Resolução/CFM nº 1.957/2010:
A par do exposto, outra razão nos leva a flexibilizar a regra em testilha diante do caso concreto: a ausência de lei, em sentido estrito, a disciplinar, no Brasil, os procedimentos de concepção artificial, ou seja, o adequado emprego das técnicas de reprodução humana assistida.
Com efeito, as normas que minudenciam regras aplicáveis à reprodução assistida, emanadas do Conselho Federal de Medicina, ostentam natureza infralegal, veiculando preceitos eminentemente éticos, desprovidos de caráter sancionatório (exceto o disciplinar), o qual, em nosso ordenamento jurídico, é inerente às manifestações do Poder Legislativo.
E, nesse ponto, vale reconhecer, em breve digressão, as dificuldades consideráveis a serem enfrentadas pelo legislador, na futura disciplina da matéria, dada a controvérsia em torno do tema relativo à inviolabilidade do sigilo da identidade de doadores de gametas, entendendo alguns estudiosos de bioética ser imprescindível a regra do anonimato à luz do direito à intimidade e à privacidade, enquanto outros conclamam sua insubsistência em face do direito ao conhecimento da origem genética titularizado pelas crianças concebidas, direito de personalidade indissociável da condição humana.
A título elucidativo, pode-se lembrar, em defesa do anonimato, as palavras de Eduardo de Oliveira Leite, para quem a doação de gametas "é medida de generosidade, medida filantrópica", sendo essa consideração o "fundamento da exclusão de qualquer vínculo de filiação entre doador e a criança oriunda da procriação." (LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 26). De outro lado, como lembra Maria Christina de Almeida, "(...) toda pessoa necessita saber sua origem - trata-se de uma necessidade humana - e desenvolver sua personalidade" (DNA e estado de filiação à luz da dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 127).
Por espinhosas, as discussões nesse campo da bioética não ensejaram a formação de consenso sequer na esfera internacional, lembrando Rodrigo Bernardes Dias que "a doutrina e a jurisprudência, em diversos países, têm reconhecido dentre os direitos gerais de personalidade o direito ao conhecimento da origem genética", cujo exemplo mais célebre, segundo o mesmo autor, seria a decisão do Tribunal Constitucional Alemão: BverG 79.256; NSW 1989, 881 (Privacidade Genética. São Paulo: SRS Editora, 2008, fl. 201).
O caráter sigiloso das informações genéticas foi ponderado pela UNESCO, ao erigir a Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, de 1997, cujo art. 9º admite seja excepcionado pela lei e por razões de força maior:
De qualquer forma, enquanto pendentes de específica regulamentação legal as questões inerentes à reprodução humana assistida, há de se reconhecer a necessidade de sopesar a aplicabilidade do princípio do anonimato dos doadores de gametas mediante revisão judicial de sua serventia ao caso concreto.
Destarte, pelas razões declinadas, insta reformar o decisum combatido, declarando-se a legitimidade dos autores e do Conselho Regional de Medicina em Ribeirão Preto para comporem, respectivamente, os polos ativo e passivo da lide. No mérito, impõe reconhecer o direito de submeterem-se Adriana e Raimundo ao procedimento de fertilização in vitro a partir de óvulos doados pela irmã da autora, abstendo-se a autarquia ré de adotar quaisquer medidas ético-disciplinares contra os profissionais envolvidos nessa intervenção, aos quais se reserva o direito de aferir a viabilidade do procedimento mediante oportuna realização dos exames necessários.
Honorários advocatícios arbitrados em R$ 1.000,00, a cargo do Conselho Regional de Medicina, a teor do disposto no art. 20, § 4º, do CPC.
Ante o exposto, voto por dar provimento à apelação para afastar a extinção do processo sem resolução do mérito e, com fundamento no art. 515, § 3º, do CPC, julgar procedente o pedido.
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