Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 29/10/2015
AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0046406-79.2008.4.03.0000/SP
2008.03.00.046406-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES
AGRAVANTE : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
ADVOGADO : SP246604 ALEXANDRE JABUR e outro(a)
AGRAVADO(A) : LUIZ CELSO SANTOS espolio
REPRESENTANTE : LIA ALTENFELDER SANTOS
ORIGEM : JUIZO FEDERAL DA 2 VARA DE SANTOS > 4ªSSJ > SP
No. ORIG. : 2008.61.04.009079-6 2 Vr SANTOS/SP

EMENTA

DIREITOS CONSTITUCIONAL E CIVIL. DIREITO DE PASSAGEM FORÇADA. ENCRAVAMENTO DE IMÓVEL. DESLOCAMENTO DE ALDEIA INDÍGENA. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.
I - Agravo de instrumento interposto pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI - em face de particular, pretendendo a antecipação dos efeitos da tutela recursal, a fim de que o Agravado venha a tolerar a passagem diuturna de indígenas, sobre sua propriedade rural, e de órgãos públicos e privados os quais, respectivamente, prestem serviços aos indígenas ou detenham expressa autorização da FUNAI para acessar a Aldeia de Cerro Corá.
II - No caso vertente, uma parcela da população indígena, residente até então na Aldeia do Agüapeú, mudou-se para os fundos da Terra Indígena de mesmo nome, constituindo um novo aldeamento de nome Cerro Corá. Tal mudança deu-se por razões próprias da etnia Guarani, segundo seus costumes, crenças e tradições.
III - Quanto à possibilidade de utilização de transporte fluvial, a notícia que se tem é a de que a navegabilidade é variável, conforme menciona a União, existindo apenas dois barcos para atender a Comunidade em apreço. O primeiro barco, segundo consta, encontra-se sem motor e o segundo, embora em bom estado, demanda uso de gasolina, algo nem sempre possível de ser comprado pela comunidade. A navegabilidade é restrita, pois depende das estações do ano, sendo que o rio sobe em épocas de chuvas e os galhos de árvores e a correnteza quase sempre impedem a passagem do barco. Vê-se, por outro prisma, que determinadas pessoas têm acesso sobre a propriedade do Agravado, como os comodatários da Fazenda residentes em áreas próximas à Aldeia Cerro Corá, mas outras não têm a mesma benesse.
IV - No tocante ao confinamento (voluntariamente ou não) a que se sujeitaram os indígenas dessa nova aldeia Cerro Corá, responde o Agravado sob o argumento de que, por serem índios, "nada mais natural que se emaranhem na mata". O que se tem em vista no presente caso não é a inexistência absoluta de passagem dos indígenas daquela aldeia ao centro urbano mais próximo, ou seja, de Mongaguá, mas sim a visível dificuldade para acessá-lo. Perquire-se, isso sim, se o encravamento deve ser absoluto (e não parcial) e involuntário (e não por moto próprio), para que façam jus, ou não, à determinação judicial de acesso, prevista no art. 1.285 do Código Civil.
V - O Enunciado 88 do CEJ (Centro de Estudo Judiciários do Conselho da Justiça Federal) dispõe que "O direito à passagem forçada, previsto no art. 1.285 do Código Civil, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica". O Enunciado proporcionou uma leitura mais alargada socialmente do conceito de "encravamento de imóvel", fugindo à regra hermética e encrustada de que encravamento pressupõe isolamento total e instransponível.
VI - Tal conceito possui intersecção direta com a noção de função social da propriedade, direcionada da Constituição Federal para o art. 1.228, § 1º, do Código Civil. Assim, se determinada propriedade impede o adequado acesso de outra à via pública, colocando-se em risco de vida da população que nesta se fixou, de alguma maneira falta o elemento jurídico da função social em relação à primeira.
VII - O obstáculo ao acesso à educação e à saúde da Comunidade indígena vizinha, da forma como se depreende nestes autos, é algo que não pode ser tolerado com a argumentação oposta do mero direito de propriedade. Não se está a discutir a posse ou o uso da propriedade alheia, mas sim o mero direito de passagem, de transposição.
VIII - A transposição, no presente caso, é requisito mínimo para a dignidade humana dos integrantes da aldeia indígena em questão, sob pena de se conceber uma comunidade fadada ao confinamento, com crescente deterioração social por foça do abandono e isolamento forçado. Aceitar e incentivar o isolamento social como algo intrínseco à natureza indígena é refutar as regras elementares de convívio trazidas pela Constituição Federal, e enterrar aquelas outras regras relativas à dignidade da pessoa humana.
IX - No caso vertente, a única passagem fluvial (a qual supera o tempo de 1 hora de viagem) é inadequada e insuficiente para a consecução dos fins de transporte e coloca em risco a integridade da população daquela Comunidade. Deve ser tida, pois, como suplementar. Sendo assim, determino que seja permitido o acesso dos integrantes da Comunidade Indígena Cerro Corá através da propriedade lindeira do Agravado, sem necessidade de prévia autorização deste ou de qualquer subordinado, como condição para a passagem dos moradores da aldeia à via pública. Da mesma forma ficam autorizados a transpor a referida propriedade os órgãos públicos acima mencionados, que tenham vinculação com a assistência aos membros da Comunidade em apreço. Todas as medidas de cuidado, preservação e proteção à propriedade alheia, assim como o cadastramento dos moradores da Comunidade indígena Cerro Corá e órgãos públicos poderão ser levadas a cabo entre as partes, consensualmente, para a melhor execução da presente determinação.
X - Agravo de instrumento provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 20 de outubro de 2015.
COTRIM GUIMARÃES
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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Data e Hora: 21/10/2015 15:26:50



AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 0046406-79.2008.4.03.0000/SP
2008.03.00.046406-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES
AGRAVANTE : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
ADVOGADO : SP246604 ALEXANDRE JABUR e outro(a)
AGRAVADO(A) : LUIZ CELSO SANTOS espolio
REPRESENTANTE : LIA ALTENFELDER SANTOS
ORIGEM : JUIZO FEDERAL DA 2 VARA DE SANTOS > 4ªSSJ > SP
No. ORIG. : 2008.61.04.009079-6 2 Vr SANTOS/SP

RELATÓRIO

O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator): Trata-se de agravo de instrumento interposto pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI em face de decisão proferida pelo MM. Juízo Federal da 2ª Vara de Santos - SP que indeferiu o pedido de tutela antecipada formulado nos autos de Ação Civil Pública proposta em face do Espólio de Luiz Celso Santos, para que a ré "tolere a passagem diuturna de indígenas e de órgãos públicos e privados que, respectivamente, prestem serviços aos indígenas ou detenham autorização da FUNAI para acessar a Aldeia Cerro Corá, sob pena de multa diária em valor não inferior a R$ 10.000,00 e, se necessário, arrombamento da porteira" (fls. 124/127).


Em suas razões, a parte Agravante pugna pela antecipação dos efeitos da tutela recursal, uma vez que a demora na desobstrução da via terrestre já vem causando e certamente causará danos aos índios da Aldeia de Cerro Corá. Aduz que o perigo da demora evidencia-se das inúmeras restrições às quais os índios daquele aldeamento estão sendo submetidos e que a verossimilhança consiste no direito de passagem decorrente do encravamento da aldeia.


O pedido de liminar foi indeferido (fls. 132/134).


O Juízo de origem prestou informações às fls. 141/146.


Contraminuta às fls. 152/169.


O parecer da Procuradoria Regional da República é pelo provimento do recurso (fls. 181/191).


É o breve relatório.


VOTO

O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator): Trata-se de Agravo de Instrumento interposto pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI - em face do Espólio de Luiz Celso Santos, pretendendo a antecipação dos efeitos da tutela recursal, a fim de que o Agravado venha a tolerar a passagem diuturna de indígenas, sobre sua propriedade rural, e de órgãos públicos e privados os quais, respectivamente, prestem serviços aos indígenas ou detenham expressa autorização da FUNAI para acessar a Aldeia de Cerro Corá.


O Agravado - Espólio de Luiz Celso Santos - responde ao presente recurso forte no argumento de que a passagem forçada - prevista no art. 1.285, do Código Civil - pressupõe que o imóvel encravado deva ser naturalmente impedido de contato com a via pública, e não de forma voluntária, ou seja, se o proprietário vem a forçar o mencionado encravamento, não restará direito à passagem pela propriedade vizinha.


Segundo o Agravado, pois, não há direito à passagem forçada se o encravamento resultar de ato do próprio proprietário do imóvel que se alega encravado.


No caso vertente, em Setembro de 2006, uma parcela da população indígena, residente até então na Aldeia do Agüapeú, mudou-se para os fundos da Terra Indígena de mesmo nome, constituindo um novo aldeamento de nome Cerro Corá. Tal mudança deu-se por razões próprias da etnia Guarani, segundo seus costumes, crenças e tradições.


Neste particular, o Agravado aduz que há alternativa de passagem, que não a terrestre, ou seja, há no imóvel outra via alternativa de acesso à cidade de Mongaguá, por via fluvial.


Quanto ao transporte fluvial mencionado nos autos, a notícia que se tem é a de que a navegabilidade em tela é variável, conforme menciona a União, existindo apenas dois barcos para atender a Comunidade em apreço (fls. 12). O primeiro barco, segundo consta, encontra-se sem motor e o segundo, embora em bom estado, demanda uso de gasolina, algo nem sempre possível de ser comprado pela comunidade.


A navegabilidade é restrita, ainda como informa a União, pois que depende das estações do ano, sendo que o rio sobe em épocas de chuvas e os galhos de árvores e a correnteza quase sempre impedem a passagem do barco.


Vê-se, por outro prisma, que determinadas pessoas têm acesso sobre a propriedade do Agravado, como os comodatários da Fazenda residentes em áreas próximas à Aldeia Cerro Corá, mas outras não têm a mesma benesse.


Efetivamente, há dificuldades de acesso também a órgãos públicos, como a FUNASA - Fundação Nacional de Saúde, a Secretaria Municipal do Município de Mongaguá, a FUNAI e outras entidades, como relata a peça inicial, impedindo, até mesmo, de se atender a uma eventual urgência médica naquela Comunidade indígena.


No tocante ao confinamento (voluntariamente ou não) a que se sujeitaram os indígenas dessa nova aldeia Cerro Corá, responde o Agravado sob o argumento de que, por serem índios, "nada mais natural que se emaranhem na mata" (fls. 154).


Bem, o que se tem em vista no presente caso não é a inexistência absoluta de passagem dos indígenas daquela aldeia ao centro urbano mais próximo, ou seja, de Mongaguá, mas sim a visível dificuldade para acessá-lo. Perquire-se, isso sim, se o encravamento deve ser absoluto (e não parcial) e involuntário (e não por moto próprio), para que façam jus, ou não, à determinação judicial de acesso, prevista no art. 1.285 do Código Civil.


Por conta da reflexão acima, é de se destacar o conteúdo do Enunciado 88 do CEJ (Centro de Estudo Judiciários do Conselho da Justiça Federal):

"O direito à passagem forçada, previsto no art. 1.285 do Código Civil, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica".

O Enunciado acima proporcionou uma leitura mais alargada socialmente do conceito de "encravamento de imóvel", fugindo à regra hermética e encrustada de que encravamento pressupõe isolamento total e instransponível.


Vejo, pois, que tal conceito possui intersecção direta com a noção de função social da propriedade, direcionada da Constituição Federal para o art. 1.228, § 1º, do Código Civil.


Assim, se determinada propriedade impede o adequado acesso de outra à via pública, colocando-se em risco de vida da população que nesta se fixou, de alguma maneira falta o elemento jurídico da função social em relação à primeira.


O obstáculo ao acesso à educação e à saúde da Comunidade indígena vizinha, da forma como se depreende nestes autos, é algo que não pode ser tolerado com a argumentação oposta do mero direito de propriedade.


Não se está a discutir a posse ou o uso da propriedade alheia, mas sim o mero direito de passagem, de transposição.


A transposição ora tratada, de acordo com as provas existentes, é requisito mínimo para a dignidade humana dos integrantes da aldeia indígena em questão, sob pena de se conceber uma comunidade fadada ao confinamento, com crescente deterioração social por foça do abandono e isolamento forçado.


Aceitar e incentivar o isolamento social como algo intrínseco à natureza indígena é refutar as regras elementares de convívio trazidas pela Constituição Federal, e enterrar aquelas outras regras relativas à dignidade da pessoa humana.


No caso vertente, vejo que a única passagem fluvial (a qual supera o tempo de 1 hora de viagem) é inadequada e insuficiente para a consecução dos fins de transporte e coloca em risco a integridade da população daquela Comunidade. Deve ser tida, pois, como suplementar.


Sendo assim, determino que seja permitido o acesso dos integrantes da Comunidade Indígena Cerro Corá através da propriedade lindeira do Agravado, sem necessidade de prévia autorização deste ou de qualquer subordinado, como condição para a passagem dos moradores da aldeia à via pública.


Da mesma forma ficam autorizados a transpor a referida propriedade os órgãos públicos acima mencionados, que tenham vinculação com a assistência aos membros da Comunidade em apreço.


Todas as medidas de cuidado, preservação e proteção à propriedade alheia, assim como o cadastramento dos moradores da Comunidade indígena Cerro Corá e órgãos públicos poderão ser levadas a cabo entre as partes, consensualmente, para a melhor execução da presente determinação.


Ante o exposto, dou provimento ao presente recurso, para o fim de determinar o direito de passagem requerido pela Agravante em relação à propriedade do Agravado - espólio de Luiz Celso Santos - nos termos acima explicitados.


É como voto.


COTRIM GUIMARÃES
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): LUIS PAULO COTRIM GUIMARAES:10056
Nº de Série do Certificado: 25C3064DC68AE968
Data e Hora: 21/10/2015 15:26:54