Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 28/08/2018
HABEAS CORPUS Nº 0004307-79.2017.4.03.0000/SP
2017.03.00.004307-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
IMPETRANTE : CELSO VILARDI e outros.
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI e outro(a)
: SP285764 NARA SILVA DE ALMEIDA
IMPETRADO(A) : JUIZO FEDERAL DA 3 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
PACIENTE : JOSE SETTI DIAZ
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI
No. ORIG. : 00010714020164036181 3P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PENAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. CONHECIMENTO. SUPERVENIÊNCIA DE DECISÃO DA AUTORIDADE IMPETRADA REJEITANDO AS ALEGAÇÕES FORMULADAS EM RESPOSTA ESCRITA À ACUSAÇÃO. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. AUSÊNCIA DE ELEMENTAR DO TIPO. ATIPICIDADE. FRAUDE RELACIONADA A BENEFÍCIOS DA LEI ROUANET. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. RECLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA ANTES DA PROLAÇÃO DA SENTENÇA. POSSIBILIDADE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL CRIMINAL.
1. Conhecimento do writ, ante a superveniência de decisão da autoridade impetrada rejeitando as alegações formuladas em resposta escrita à acusação.
2. Para que se caracterize o crime de associação criminosa, é imprescindível que aqueles que se associarem o façam "para o fim específico de cometer crimes". Além do dolo específico ("para o fim de"), é necessário que a união se dê para a prática de crimes indeterminados ("cometer crimes"), pois a prática de crime determinado ou de crimes determinados caracterizaria o concurso de pessoas (CP, art. 29).
3. A leitura da denúncia mostra que se imputa ao paciente o suposto cometimento de um único crime. Nada mais há na denúncia relacionando o paciente aos corréus da ação penal, de modo que, à toda evidência, não está caracterizada a estabilidade e a permanência, tampouco os crimes indeterminados, para a configuração do delito de associação criminosa.
4. Não é necessária a instrução processual para se chegar a essa conclusão, na medida em que, pelos princípios da correlação entre a acusação e a sentença, do contraditório e da ampla defesa, a acusação deverá estar descrita na denúncia de forma clara quanto ao fato criminoso e todas as suas circunstâncias (CPP, art. 41). Com efeito, se o acusado defende-se dos fatos a ele imputados, estes devem estar bem descritos e conformar-se, em princípio, ao tipo legal supostamente transgredido, a fim de que a ampla defesa possa ser exercida. Se os fatos não se amoldam ao tipo invocado, falta justa causa para a ação penal.
5. É certo que o acusado defende-se de fatos, e não da capitulação que consta na denúncia ou queixa, bem como que o momento processual adequado para eventual correção desta capitulação é o da prolação da sentença, nos termos do art. 383 do CPP. Excepcionalmente, porém, é possível proceder a tal correção em momento diverso, inclusive o de recebimento da denúncia, nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado, com a aplicação dos institutos despenalizadores previstos na legislação, em especial a transação penal e a suspensão condicional do processo.
6. No caso, há um aparente conflito de normas, pois o MPF imputa ao paciente a prática do delito de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º), enquanto os impetrantes defendem que a conduta do paciente amolda-se, em tese, ao crime do art. 40 da Lei nº 8.313, de 23.12.1991, conhecida como Lei Rouanet.
7. O exame dos autos revela que a intenção do paciente (sem estabelecer qualquer juízo de valor prévio acerca da sua eventual ilicitude), era valer-se do benefício fiscal decorrente da Lei Rouanet, qual seja, a dedução do imposto de renda do valor aplicado no projeto cultural alegadamente fraudado. Assim, esse conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat generali), pois, no caso, o suposto uso fraudulento dos benefícios da Lei Rouanet são incriminados pelo art. 40 dessa Lei, que, por isso, constitui norma especial em relação ao estelionato e, ainda, ao tipos descritos na Lei nº 8.137/90, sobretudo aquele do art. 2º, IV.
8. É certo também que tal fato constitui especial modalidade de crime contra a ordem tributária, de sorte que o pagamento integral do valor do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, constitui causa extintiva da punibilidade. Contudo, não há como reconhecer, neste writ, a extinção da punibilidade do paciente pelo pagamento integral do tributo, haja vista que tal situação depende de manifestação específica da autoridade fazendária, não presente nos autos, a ser aferida na origem.
9. Considerando o reconhecimento da atipicidade da imputação no que tange ao crime de associação criminosa, bem como a pena máxima do crime remanescente, previsto no art. 40 da Lei Rouanet, a competência para o exame da suficiência do pagamento realizado é do Juizado Especial Federal Criminal.
10. Habeas corpus conhecido. Ordem concedida em parte.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, CONHECER do habeas corpus do habeas corpus e, em o fazendo, CONCEDER PARCIALMENTE A ORDEM para trancar a ação penal de origem, por ausência de justa causa, no que tange à imputação de prática, pelo paciente, do delito de associação criminosa (CP, art. 288), bem como reclassificar a outra conduta a ele imputada para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet, a ser processado e julgado perante o Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, assegurando ao paciente, ainda, a possibilidade do reconhecimento da extinção da punibilidade desde que tenha havido o pagamento integral do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, o que deverá ser verificado pelo juízo impetrado, na origem, e, em consequência, não deverá ser procedida à instrução em relação ao paciente, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 21 de agosto de 2018.
NINO TOLDO
Desembargador Federal


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HABEAS CORPUS Nº 0004307-79.2017.4.03.0000/SP
2017.03.00.004307-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
IMPETRANTE : CELSO VILARDI
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI e outro(a)
: SP285764 NARA SILVA DE ALMEIDA
IMPETRANTE : NARA SILVA DE ALMEIDA
: ALEXANDRE DE OLIVEIRA RIBEIRO FILHO
PACIENTE : JOSE SETTI DIAZ
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI e outro(a)
IMPETRADO(A) : JUIZO FEDERAL DA 3 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
CO-REU : ANTONIO CARLOS BELINI AMORIM
: TANIA REGINA GUERTAS
: BRUNO VAZ AMORIM
: FELIPE VAZ AMORIM
: ZULEICA AMORIM
: FABIO CONCHAL RABELLO
: FABIO LUIZ RALSTON SALLES
: CINTIA APARECIDA ANHESINI
: KATIA DOS SANTOS PIAUY
: ELISANGELA MORAES PASTRE
: CELIA BEATRIZ WESTIN DE CERQUEIRA LEITE
: FABIO EDUARDO DE CARVALHO PINTO
: CAMILA TOSTES COSTA
: ADRIANA SEIXAS BRAGA
: ELIZABETH CAMPOS MARTINS FONTANELLI
: PEDRO AUGUSTO DE MELO
: MARIA DE LOURDES ROUVERI DE CAMARGO
: JONNY MUNETOSHI SUYAMA
: FLAVIA REJANE FAVARO MORENO
: VERONIKA LAURA AGUDO FALCONER
: JOSIMARA RIBEIRO DE MENDONCA
: MARIA ANTONIETTA CERVETTO SILVA
: RODRIGO VENDRAMINI MACHADO
: RICARDO MACIEL DE GOUVEIA ROLDAO
: ODILON JOSE DA COSTA FILHO
: OGARI DE CASTRO PACHECO
: MARCO ANTONIO HAIDAR MICHALUATE
: JUAN CORRAL
No. ORIG. : 00010714020164036181 3P Vr SAO PAULO/SP

VOTO-VISTA

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI
Pedi vista dos autos para melhor refletir sobre a questão de mérito posta a deslinde perante este Tribunal.
Cuida o caso, consoante minudente relatório da lavra do Des. Fed. Nino Toldo, ao qual me reporto para fins descritivos, de habeas corpus impetrado em favor de José Setti Diaz, contra ato do Juízo da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, que recebeu a denúncia oferecida nos autos da ação penal nº 0001071-40.2016.4.03.6181, em que se imputa a prática do crime previsto no art. 171, §3º e 288 do CP.
Os impetrantes alegam, em apertada síntese, que:
i) no tocante à imputação do delito de associação criminosa, a denúncia seria inepta, pois "não narra nem mesmo a associação entre o Paciente e o 'Grupo Bellini Cultural' para cometimento da suposta fraude envolvendo o único aporte do escritório". Sustentam que, apesar de ter sido imputada ao paciente a prática do delito de associação criminosa, tratar-se-ia, em verdade, de suposto crime único, em concurso de pessoas, razão pela qual pugnam pelo trancamento da ação penal no que tange à imputação do delito do art. 288 do Código Penal;
ii) em relação à imputação do delito de estelionato (art. 171, §3º, CP), aduzem que, por força do princípio da especialidade, a conduta descrita na denúncia amolda-se, em tese, ao tipo penal previsto no art. 40 da Lei Rouanet (nº 8.313/91), e mesmo que não houvesse previsão de crime específico para a fraude envolvendo incentivos fiscais da Lei Rouanet, a conduta seria enquadrada no art. 2º, IV da Lei 8.137/90, sendo que, em ambas as hipóteses, o pagamento integral do tributo conduz à extinção da punibilidade.
Ao final, pleiteiam o trancamento da ação penal.
Antes de adentrar no mérito, mostra-se necessário um breve resumo dos fatos, para melhor elucidação.
Depreende-se da denúncia:

"Origem da investigação:
O presente inquérito foi instaurado visando à apuração de ilícitos na contratação e execução de projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura, sob a égide da Lei 8.313/91 (Lei Rouanet), por meio dos quais, segundo provas colhidas, foram desviados cerca de R$21.008.914,80 em recursos públicos federais, por parte de organização criminosa liderada pelo grupo empresarial denominado BELLINI CULTURAL, com o envolvimento e associação de empresas patrocinadoras, em troca de obtenção de vantagens indevidas.
ANTONIO BELLINI e suas empresas foram proponentes junto ao Ministério da Cultura (MinC) de centenas de projetos - a par de outras colaboradoras e parceiras proponentes em seu nome - com utilização de verbas oriundas de incentivo fiscal, previstas na Lei Rouanet, por meio da prática reiterada de inúmeras fraudes desde o início do ano de 1998 até 29.06.2016, data da deflagração da Operação 'Boca Livre'.
[...] Dos projetos culturais segundo a Lei Rouanet
A presente denúncia insere-se dentro de um contexto de desvirtuamento dos objetivos da Lei Rouanet, os quais, inobstante a regular captação de recursos instituída para a promoção de projetos culturais em nível nacional, deixaram de ser atingidos por conta dos desvios de recursos públicos promovidos por parte dos denunciados, especialmente, a partir de falsos registros de pagamentos e de pactuação, entre eles, de contrapartidas ilícitas, dentre outras fraudes detectadas.
[...] IV - Das formas de desvio de recursos públicos
IV. 1) Da composição do Grupo Bellini
Segundo a Receita Federal, não existe formalmente constituída a pessoa jurídica 'BELLINI CULTURAL', tratando-se de uma mera denominação informal de representação de quatro pessoas jurídicas que, originariamente, a compuseram, sob a titularidade de Antonio Carlos Bellini Amorim, sendo elas: i) AMAZON BOOKS & ARTS, ii) SOLUÇÃO CULTURAL CONSULTORIA EM PROJETOS CULTURAIS LTDA, iii) VISION MIDIA E PROPAGANDA LTDA - ME, iv) MASTER PROJETOS E EMPREENDIMENTOS CULTURAIS LTDA -ME. Foram identificados vínculos importantes entre tais sociedades e que, a final, foram fundamentais para a caracterização da organização criminosa entre seus membros [...]
IV. 2) Das fraudes operadas pela organização criminosa
Segundo apurado, o Grupo Bellini Cultural se uniu, ainda, a diversos patrocinadores, alternadamente, na forma de organização criminosa, para o fim único obterem vantagem ilícita, mediante o desvio de recursos públicos, como adiante se detalha. Os desvios dos recursos públicos operados pela associação criminosa, comandada pelo Grupo Bellini, constituíam-se em cinco modalidades, a saber: a) superfaturamento; b) serviços/produtos fictícios; c) projetos duplicados; d) utilização de terceiros apara proposição de projetos; e) contrapartidas ilícitas às empresas patrocinadoras".

Especificamente em relação à modalidade de desvio "contrapartida ilícita", constou na denúncia:

"durante as investigações, verificou-se que uma das formas empregadas pela BELLINI CULTURAL para obter êxito na captação de recursos para seus projetos já aprovados e para promover o desvio de recursos públicos, foi a realização de uma 'contrapartida' em favor da empresa patrocinadora (incentivadora), criando um 'atrativo rentável', para que esta aportasse recursos em seus projetos. Desta forma, os desvios davam-se, também, em favor das incentivadoras, em favor das quais reverteu boa parte dos recursos delas mesmo captados. Essa contrapartida consistia, via de regra, ou na realização de um evento privativo a funcionários ou clientes da empresa patrocinadora, ou na edição de um livro corporativo, como prêmio pelo aporte nos projetos culturais do grupo BELLINI ou de seus colaboradores. [...] Assim, o incentivador, além de deduzir, em seu Imposto de Renda, os valores investidos no projeto (4% de isenção do lucro real para a pessoa jurídica patrocinadora) e ter sua marca vinculada ao produto cultural, era comumente beneficiado com um evento ou um produto. Para tanto, não necessitava despender recurso algum, mas utilizava-se de recursos da própria União [...]"

Prosseguindo, extrai-se da inicial que a pessoa jurídica DEMAREST-ALMEIDA ROTENBERG E BOSCOLI SOCIEDADE DE ADVOGADOS, da qual o denunciado e ora paciente era Diretor, faz parte do chamado "terceiro núcleo", que é composto por empresas patrocinadoras que realizaram aportes nos projetos culturais do Grupo BELLINI e procederam à dedução dos valores aportados nesses projetos tidos como fraudulentos, "avançando suas condutas muito além da mera prática de sonegação fiscal".
No tocante à participação da DEMAREST-ALMEIDA, ROTENBERG E BOSCOLI SOCIEDADE DE ADVOGADOS, a denúncia descreve que foi firmado um contrato de patrocínio com o grupo Bellini Cultural, por meio do qual a DEMAREST teria aportado a quantia de R$210.000,00 no Pronac nº 015477 intitulado "Celebração Musical", tendo como proponente a empresa RABELLO ENTRETENIMENTO EIRELI.
O Pronac 015477 destinava-se a duas apresentações com orquestra sinfônica: uma em local público e com acesso gratuito e outra com ingressos a preços populares.
No entanto, de acordo com a exordial, a DEMAREST teria recebido, em contrapartida ao aporte financeiro, um evento privado para seus clientes e funcionários, que consistiu em um stand up com o artista Fábio Porchat. Ou seja, os recursos utilizados para a elaboração do evento privado, que efetivamente ocorreu em 07/04/2016, no Teatro Net, em São Paulo, seriam oriundos da Lei Rouanet e, originariamente, destinavam-se à realização do projeto "Celebração Musical".
A fim de simular a realização do Pronac 015477, intitulado "Celebração Musical", foi realizado, na manhã do dia 07/04/2016, no mesmo local, um evento fechado, "no qual foram levadas algumas pessoas de entidades sociais pelo grupo Bellini para apresentação de provas em futura prestação de contas da suposta realização do referido Pronac, em mais um ato de simulação de execução de projeto cultural".
E conclui a denúncia: "por esta razão, pelo conluio com integrantes do grupo Bellini na contratação de contrapartidas ilícitas e pelo conhecimento da fraude na execução do Pronac contratado, incidiu José Setti Diaz na prática de associação criminosa e estelionato contra a União, a despeito do recolhimento, pelo escritório, do valor de R$256.629,00 a título de imposto de renda, vez que, conforme já acima ressaltado, os ilícitos ora denunciados vão muito além da prática de sonegação fiscal".
A denúncia foi recebida, em 05/12/2017.
Pois bem.
O Desembargador Federal Relator não conheceu do habeas corpus por entender que a ausência de pronunciamento por parte do juízo de primeiro grau acerca das questões aduzidas neste writ, que serão oportunamente discutidas no bojo das defesas prévias a serem apresentadas no feito originário, impede a apreciação por este Tribunal. Além disso, considerou que o mero recebimento da denúncia não representa, por si só, na situação dos autos, ilegalidade ou abuso de poder a ser corrigida de plano por este Tribunal, uma vez que o juízo de recebimento da denúncia é perfunctório, podendo ser revisto por ocasião da apreciação da resposta à acusação.
Peço vênia para discordar do Desembargador Federal Relator no tocante ao cabimento do habeas corpus.
Ao receber provisoriamente a denúncia, o Juízo impetrado fez uma análise perfunctória acerca da viabilidade da peça acusatória e da existência de justa causa.
É certo que, após a apreciação das respostas à acusação, o magistrado poderá absolver sumariamente o paciente, ou, ainda, reconsiderar a decisão de recebimento da denúncia, rejeitando-a.
No entanto, a admissibilidade da peça acusatória, ainda que provisória, configura, na presente hipótese, constrangimento ilegal no que se refere à imputação ao paciente do delito de associação criminosa, sendo o caso de concessão da ordem de habeas corpus para trancamento parcial da ação penal.
Aliás, na decisão que recebeu a denúncia, o magistrado manifestou-se acerca da insurgência da defesa de José Diaz, acostada às fls. 3290/3294 dos autos originários, sobre a imputação do delito do art. 288 do CP, como se observa a seguir:

"quanto aos pontos levantados pela defesa de José Diaz, tem-se que o delito tipificado no art. 288 do CP sequer exige a prática de crimes, mas sim a reunião de três ou mais pessoas com a finalidade específica de praticar crimes".

Isso reforça a conclusão de que esta Corte poderia pronunciar-se sobre a matéria posta neste writ, sem que houvesse indevida supressão de instância.
E mais.
Sobreveio aos autos, em 15/05/2018, a informação de que a autoridade impetrada proferiu decisão nos autos originários (cuja disponibilização ocorreu em 11/05/2018), em que apreciou as defesas preliminares e confirmou o recebimento da denúncia, determinando o prosseguimento do feito, uma vez que não verificadas as hipóteses de absolvição sumária (fls. 435/466).
Pois bem.
Da análise da peça acusatória, depreende-se que não há exposição clara e objetiva de fatos que se enquadrem à figura típica do artigo 288 do Código Penal, sendo, portanto, inepta nesse ponto.
A pessoa jurídica DEMAREST, através de seu Diretor, teria agido em conluio com os integrantes do Grupo BELLINI Cultural, a fim de desviarem os recursos oriundos da Lei Rouanet, que deveriam ser aplicados no Pronac nº 015477 intitulado "Celebração Musical". O desvio se deu através de contrapartida ilícita em favor da DEMAREST, que teria feito um aporte de recursos (R$210.000,00) na condição de patrocinadora do evento cultural "Celebração Musical". Tal contrapartida consistiu na realização de evento privado destinado aos próprios funcionários da DEMAREST, em comemoração aos 68 anos da empresa.

Verifica-se, portanto, que a denúncia não traz qualquer descrição acerca da associação entre o paciente e os integrantes do Grupo Bellini com o fim de cometer crimes, não havendo qualquer elemento indicativo da durabilidade e permanência dessa suposta associação. Na verdade, o Parquet Federal descreveu apenas o cometimento de fraude e desvio envolvendo a DEMAREST, através de seu representante legal, em concurso de pessoas, tratando-se, portanto, de crime único. Tal constatação é perceptível ictu oculi, independentemente de qualquer exame antecipado de mérito.

Ressalte-se que as declarações transcritas na denúncia, que foram prestadas por Fabio Eduardo de Carvalho Pinto, Marcela Prado Torres Fontes e Bruno Vas Amorim, além de trecho de interceptação telefônica entre Zuleica Amorim e Antonio Carlos Bellini Amorim, apenas evidenciam o ajuste entre os envolvidos para a consecução daquela fraude específica, referente ao Pronac 015477.
A denúncia deve conter elementos mínimos que garantam ao acusado o direito à ampla defesa e ao contraditório, nos termos do que dispõe o art. 41 do CPP, o que não se observa no presente caso.
A caracterização do crime de associação criminosa demanda a reunião estável de mais de três pessoas para o fim específico de cometer crimes. Não se pode confundir a associação estável com escopo criminoso com a associação ocasional para o cometimento de um crime, que configura concurso de agentes, como ocorre no caso dos autos.

Sobre o delito do art. 288 do CP, trago os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci:

"O objeto da conduta é a finalidade de cometimento de crimes. A associação distingue-se do mero concurso de pessoas pelo seu caráter de durabilidade e permanência, elementos indispensáveis para a caracterização do crime previsto neste tipo. Nessa ótica: STJ: 'A estrutura central deste crime reside na consciência e vontade de os agentes organizarem-se em bando ou quadrilha [hoje, com a denominação de associação criminosa] com a finalidade de cometer crimes. Trata-se de crime autônomo, de perigo abstrato, permanente e de concurso necessário, inconfundível com o simples concurso eventual de pessoas' (Denun na APn 549-SP, C.E., rel. Felix Fischer, 21.10.2009, v.u.).
[...] Finalidade específica: a reforma introduzida pela Lei 12.850/2013 incluiu, no tipo penal, o termo específico, referindo-se ao fim dos agentes. Nada mais fez o legislador que consagrar a orientação doutrinária e jurisprudencial no sentido de se exigir a finalidade especial de cometer crimes, o que configura o caráter de durabilidade e estabilidade da associação, diferenciando-se do mero concurso de agentes. [...] Por outro lado, para se concretizar a estabilidade e a permanência, devem os integrantes da associação pretender realizar mais de um delito. Não fosse assim e tratar-se-ia de concurso de agentes, como já mencionado".
(Código Penal Comentado, 14ª ed., Ed Forense, pag. 1058/1060)

Em suma, considerando que a denúncia não descreve que o paciente teria se associado com os integrantes do Grupo Bellini, de forma duradoura, com a finalidade de cometer crimes, deve ser reconhecida a inépcia da denúncia, que conduz ao trancamento da ação penal especificamente em relação a essa imputação.
Nesse sentido, colaciono os seguintes precedentes:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE. INÉPCIA DA DENÚNCIA. FRAUDE A PROCESSO SELETIVO PARA INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR. REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP PREENCHIDOS. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. ELEMENTOS DO TIPO. DEMONSTRAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. DENÚNCIA INEPTA. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. Este Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento segundo o qual, em razão da excepcionalidade do trancamento da ação penal, tal medida somente se verifica possível quando ficarem demonstrados - de plano e sem necessidade de dilação probatória - a total ausência de indícios de autoria e prova da materialidade delitiva, a atipicidade da conduta ou a existência de alguma causa de extinção da punibilidade. É certa, ainda, a possibilidade de trancamento da persecução penal nos casos em que a denúncia for inepta, não atendendo o que dispõe o art. 41 do Código de Processo Penal, o que não impede a propositura de nova ação desde que suprida a irregularidade. Precedentes. 3. Para o oferecimento da denúncia, exige-se apenas a descrição da conduta delitiva e a existência de elementos probatórios mínimos que corroborem a acusação. Provas conclusivas acerca da materialidade e da autoria do crime são necessárias apenas para a formação de um eventual juízo condenatório. Embora não se admita a instauração de processos temerários e levianos ou despidos de qualquer sustentáculo probatório, nessa fase processual, deve ser privilegiado o princípio do in dubio pro societate. De igual modo, não se pode admitir que o Julgador, em juízo de admissibilidade da acusação, termine por cercear o jus accusationis do Estado, salvo se manifestamente demonstrada a carência de justa causa para o exercício da ação penal. 4. A alegação de inépcia da denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do CPP e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o exercício da ampla defesa e do contraditório pelo réu. 5. No caso em exame, quanto ao crime descrito no art. 311-A, III, do Código Penal, a denúncia exibe a tipificação legal da conduta praticada, traz a qualificação da paciente e expõe os atos supostamente criminosos, com as suas circunstâncias. Nesse contexto, verifica-se que, além de a paciente ter sido devidamente qualificada, juntamente com outros denunciados, no início da denúncia, a acusação, ao relatar os fatos supostamente criminosos, faz referência a "todas as provas dos denunciados" - mencionando, inclusive, declaração de expert no sentido de que "os trinta e seis candidatos receberam orientações prévias acerca da metodologia a ser utilizada para codificação". 6. Deve ser reconhecida a inépcia no tocante ao delito previsto no art. 288, parágrafo único, do Código Penal. Isso porque, para caracterização do crime de quadrilha e bando, exige-se a demonstração do elemento subjetivo específico do tipo, do intuito de "cometer crimes". Ademais, faz-se necessário comprovar o caráter de durabilidade e estabilidade da associação, o que a distingue do concurso de pessoas. 7. No caso aqui analisado, a peça acusatória não descreve vínculo durável entre a paciente e os demais denunciados para o cometimento de "crimes". Pelo contrário, a acusação, ao descrever a suposta prática do crime de associação criminosa, afirmou estar "comprovado que os denunciados, todos residentes em Goiânia ou em cidades próximas, frequentaram os mesmos cursos preparatórios e lá se associaram com o fim específico de cometerem crimes". Todavia, encontra-se comprovado nos autos que a paciente reside na cidade de Torrinha/SP, localizada a mais de 750km de Goiânia/GO. 8. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para determinar o trancamento da Ação Penal n. 0015053-44.2014.8.13.0470, apenas em relação à paciente e somente no tocante ao crime de quadrilha, sem prejuízo de eventual oferecimento de nova inicial acusatória em razão desse mesmo delito, desde que observados os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.
(STJ. HC 201703086510. Ministro Ribeiro Dantas. Quinta Turma. DJe 24/04/2018) - grifei

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA. ELEMENTOS OBJETIVO E SUBJETIVO ESPECIAL DO TIPO. DESCRIÇÃO INSUFICIENTE. FALTA DE JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS MÍNIMOS A REVELAR AUTORIA E MATERIALIDADE. DEMONSTRAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O trancamento da ação penal em sede de habeas corpus é medida excepcional, somente se justificando se demonstrada, inequivocamente, a ausência de autoria ou materialidade, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas, a ocorrência de causa extintiva da punibilidade ou a violação dos requisitos legais exigidos para a exordial acusatória. 2. Para caracterização do delito de associação criminosa, indispensável a demonstração de estabilidade e permanência do grupo formado por três ou mais pessoas, além do elemento subjetivo especial consiste no ajuste prévio entre os membros com a finalidade específica de cometer crimes indeterminados. Ausentes tais requisitos, restará configurado apenas o concurso eventual de agentes, e não o crime autônomo do art. 288 do Código Penal. 3. Na hipótese vertente, o Ministério Público não logrou êxito em descrever suficientemente os elementos objetivo e subjetivo do tipo penal, prejudicando o exercício da ampla defesa e do contraditório. Partindo da análise de um delito de roubo isoladamente considerado, concluiu, genericamente, pela existência de associação criminosa, sem a devida elucidação de que o paciente integrasse grupo criminoso estável e permanente, tampouco que estivesse imbuído do ânimo de se associar com vistas à pratica conjunta de crimes indeterminados, tornando inepta a inicial. 4. Além disso, dos elementos de informação expressamente referenciados pela peça vestibular (prova pré-constituída), não ressuma a existência de indícios mínimos de autoria e materialidade aptos à deflagração da ação penal, pelo que deve ser reconhecida a ausência de justa causa. 5. Ordem concedida para trancar a ação penal em relação ao paciente.
(STJ. HC 201602681710. Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Sexta Turma. DJe 14/03/2017) - grifei

José Setti Diaz foi também denunciado como incurso nas sanções do art. 171, §3º do CP.
Os impetrantes aduzem que a conduta narrada na inicial amolda-se ao delito previsto no art. 40 da Lei Rouanet (nº 8.313/91), por força do princípio da especialidade. Argumentam, ainda, que mesmo que não houvesse previsão de crime específico para a fraude envolvendo incentivos fiscais da Lei Rouanet, a conduta seria enquadrada no art. 2º, IV da Lei 8.137/90, sendo que, em ambas as hipóteses, o pagamento integral do tributo conduz à extinção da punibilidade.
Na decisão de recebimento da denúncia, o juízo impetrado assim se manifestou:

"para o recebimento da denúncia, necessária a prova da materialidade e indícios de autoria. Nesse momento processual, vale ainda destacar que vigora o princípio in dubio pro societate. No mais, o recebimento da denúncia tem como foco os fatos narrados na peça acusatória, sendo irrelevante neste momento a capitulação legal que foi dada pelo órgão acusador, desde que não implique alteração dos benefícios processuais penais a que teriam direito os denunciados.
[...] Dessa forma, eventual discussão sobre a capitulação dada pelo MPF a respeito das condutas é irrelevante nesta fase processual. Impende ressaltar que os fatos narrados constituem crimes plurissubjetivos, sendo que sua exata tipificação demanda dilação probatória".

Não vislumbro flagrante ilegalidade a ser corrigida no tocante à classificação jurídica constante na inicial.
No curso da instrução processual o acusado se defende dos fatos e não da capitulação jurídica atribuída na denúncia, que poderá ser confirmada ou modificada pelo magistrado quando da prolação da sentença, que é o momento processual adequado para aplicação do instituto da emendatio libelli, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal.
Esse é o entendimento de ambas as Turmas do Superior Tribunal de Justiça, conforme arestos que trago à colação:
PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO DE LEI VIOLADO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 284/STF. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO COMPROVADA. EMENDATIO LIBELLI. MOMENTO PROCESSUAL ADEQUADO. ACÓRDÃO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE.
1. Há deficiência na fundamentação do recurso especial em que a parte deixa de apontar quais dispositivos legais teriam sido supostamente malferidos pelo acórdão recorrido, o que determina a incidência, por analogia, do enunciado nº 284 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
2. A Corte Especial deste Sodalício firmou entendimento de que, para a demonstração da existência de similitude das questões de direito examinadas nos acórdãos confrontados, é imprescindível a indicação expressa do dispositivo de lei tido por violado.
3. De acordo com reiterados precedentes desta Corte, o momento adequado para o julgador utilizar-se da emendatio libelli, nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, é quando da prolação da sentença e não anteriormente no momento do recebimento da denúncia.
4. Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1417555/CE, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, j. 04/11/2014, DJe 17/11/2014)

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO-CABIMENTO. COMPETÊNCIA DAS CORTES SUPERIORES. MATÉRIA DE DIREITO ESTRITO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO DESTE TRIBUNAL, EM CONSONÂNCIA COM A SUPREMA CORTE. PROCESSUAL PENAL. CRIME DO ART. 171, § 3.º, DO CÓDIGO PENAL. TESE DE ERRO NA CAPITULAÇÃO DO CRIME PELA EXORDIAL ACUSATÓRIA. NULIDADE OU TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTE. IMPOSSIBLIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
[...]2. Sem embargo, mostra-se precisa a ponderação lançada pelo Ministro MARCO AURÉLIO, no sentido de que, "no tocante a habeas já formalizado sob a óptica da substituição do recurso constitucional, não ocorrerá prejuízo para o paciente, ante a possibilidade de vir-se a conceder, se for o caso, a ordem de ofício."
3. A emendatio libelli e a mutatio libelli - previstas, respectivamente, nos arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal - são institutos de que o Juiz pode valer-se quando da prolação da sentença. Não há previsão legal para utilização destes em momento anterior da instrução. Precedentes.
4. Explicite-se: "[n]ão é lícito ao Juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o indicar (STF, HC 87.324/SP, 1.ª Turma, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJ de 18/05/2007).
5. O eventual erro na definição jurídica da conduta não torna inepta a inicial acusatória, e, menos ainda, é causa de trancamento da ação penal, pois o acusado defende-se do fato ou dos fatos delituosos narrados na denúncia, e não da capitulação legal.
6. As teses referentes à ausência de constituição definitiva do crédito tributário não foram suscitadas e, tampouco, analisadas pelo Tribunal de origem, o que inviabiliza o seu exame por esta Corte, sob pena de indevida supressão de instância.
7. Ausência de ilegalidade flagrante que, eventualmente, ensejasse a concessão da ordem de habeas corpus de ofício.
8. Ordem de habeas corpus não conhecida.
(HC 213.043/MS, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, j. 06/08/2013, DJe 13/08/2013)

No mesmo sentido, transcrevo julgados desta Egrégia Corte:
PENAL E PROCESSO PENAL - REJEIÇÃO DA DENÚNCIA- RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - CORREÇÃO ANTECIPADA DA CAPITULAÇÃO CONTIDA NA DENÚNCIA - IMPOSSIBILIDADE -RECURSO PROVIDO. 1. Recurso em sentido estrito interposto contra a decisão que rejeitou denúncia com fundamento no artigo 395, incisos II e III, do Código de Processo Penal, por atipicidade e falta de justa causa 2. Como regra geral, é vedado ao Juiz, por ocasião do juízo de admissibilidade da acusação, conferir outra definição jurídica aos fatos narrados na denúncia. Eventual correção na capitulação do delito tem cabimento após a instrução probatória, quando da prolação da sentença , ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli. 3. Excepcionalmente, admite-se a antecipação do juízo de capitulação do fato quando presente hipótese de excesso ou abuso do poder de denunciar (STJ, HC 103.763/MG, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. 17.02.2009) ou quando da "qualificação jurídica do fato imputado depender a fixação da competência ou a eleição do procedimento a seguir" (STF, HC 94226, Rel. Min. Ayres Britto, Segunda Turma, j. 28/06/2011). 4. A denúncia trouxe narrativa congruente dos fatos, descrevendo conduta que, em tese, pode configurar crime. É precipitado cogitar de eventual equívoco no enquadramento da conduta descrita na inicial antes de ser aclarada a imputação na fase instrutória. Da nova capitulação penal data pelo magistrado decorreram reflexos jurídicos imediatos na ação penal promovida pelo Ministério Público, obstando prematuramente a persecutio criminis. 5. Ao réu cabe defender-se dos fatos expostos na denúncia e ao magistrado examinar estes fatos, não importando se a capitulação penal será distinta. 6. Recurso provido para receber a denúncia com a capitulação provisória nela contida, determinando o retorno dos autos ao juízo de origem para o regular prosseguimento do feito. (g.n.)
(RSE 0007891-22.2009.4.03.6181/SP, Rel. Des. Fed. Johonsom di Salvo Primeira Turma, j. 05/06/2012, DJF3 19/06/2012)

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ART. 581, VIII, CPP. PRESCRIÇÃO. EMENDATIO LIBELLI. ART. 383 CPP. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA DE OFÍCIO PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL. ART. 654, § 2º, CPP. 1. O preceito da emendatio libelli (art. 383 CPP) está disposto no Título XII do Código de Processo Penal, "Da sentença", autorizando, como o próprio nome revela, uma nova capitulação dos fatos pelo juiz somente após o encerramento da instrução probatória. 2. Na esteira de entendimento jurisprudencial amparado pelo Supremo Tribunal Federal, o juiz não deve aplicar a norma contida no art. 383 do Código de Processo Penal, alterando a definição jurídica dos fatos, no momento de recebimento da denúncia, salvo em excepcionais casos de simples erro de direito na tipificação, para afastar as consequências processuais ou procedimentais decorrentes do erro, prejudiciais ao acusado, ou mesmo para a fixação do procedimento adequado e da competência do juízo (STF, HC 87324/SP, HC 89686/SP). 3. Caso em que se atribuiu nova classificação após a resposta da defesa dos recorridos à acusação, momento não propício para a mudança da definição jurídica, e apenas em razão dos fatos em si mesmos, mas não por exigências processuais. 4. O prejuízo originalmente causado aos cofres públicos pelo não recolhimento do IRPF totalizou R$ 5.370,75 (cinco mil, trezentos e setenta reais e setenta e cinco centavos), valor inferior ao parâmetro de R$ 10.000,00 (dez mil reais) adotado pela jurisprudência para aquilatar a relevância penal da ofensa (art. 20 da Lei 10.522/03), configurando-se causa excludente da tipicidade material. 5. Recurso parcialmente provido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício, para trancar a ação penal.
(RSE 0009270-09.2007.4.03.6103/SP, Rel. Des. Fed. Cotrim Guimarães, Segunda Turma, j. 02/07/2013, DJF3 11/07/2013)

Permitir ao juiz a aplicação da emendatio libelli no ato de recebimento da denúncia corresponderia a uma atuação substitutiva da função ministerial, o que violaria além do princípio acusatório, os princípios da igualdade e da imparcialidade.
Outrossim, revela-se incabível em sede de habeas corpus a discussão acerca da classificação jurídica do delito, por demandar dilação probatória.
Pelo exposto, peço vênia ao e. Relator Desembargador Federal Nino Toldo para dele divergir e conceder parcialmente a ordem para determinar o trancamento da ação penal em face do paciente, apenas no que tange à imputação da prática do crime previsto no art. 288 do Código Penal, mantido o conteúdo restante da exordial acusatória.
É o voto.

JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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HABEAS CORPUS Nº 0004307-79.2017.4.03.0000/SP
2017.03.00.004307-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
IMPETRANTE : CELSO VILARDI e outros.
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI e outro(a)
: SP285764 NARA SILVA DE ALMEIDA
IMPETRADO(A) : JUIZO FEDERAL DA 3 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
PACIENTE : JOSE SETTI DIAZ
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI
No. ORIG. : 00010714020164036181 3P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): Trata-se de habeas corpus impetrado pelos advogados Celso Vilardi, Nara Silva de Almeida e Alexandre de Oliveira Ribeiro Filho, em favor de JOSÉ SETTI DIAZ, contra ato da Juíza Federal da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP que transferiu para o momento da prolação da sentença a correção da capitulação jurídica dos fatos imputados ao paciente como estelionato contra a União e recebeu a denúncia oferecida contra o paciente e outros imputados pela prática, em tese, dos crimes capitulados nos arts. 171, § 3º, e 288 do Código Penal.


Os impetrantes alegam, em síntese, que a denúncia é inepta porque "não narra nem mesmo a associação entre o Paciente e o 'Grupo Bellini Cultural' para cometimento da suposta fraude envolvendo o único aporte do escritório". Sustentam que, apesar de ter sido imputada ao paciente a prática do delito de associação criminosa, tratar-se-ia, em verdade, de suposto crime único, em concurso de pessoas, razão pelo qual pugnam pelo trancamento da ação penal no que tange à imputação do delito do art. 288 do Código Penal.


Aduzem que, na espécie, não há que se falar em estelionato contra a União (CP, art. 171, § 3º), pois, consoante "pacificado nas Cortes Superiores, a correta capitulação do delito seria aquela do artigo 2º, IV, da Lei n. 8.137/1990".


Arguem, ainda, que, segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, "sempre que o delito tiver reflexos diretos na arrecadação tributária o pagamento integral do tributo deverá operar como causa de extinção da punibilidade", em atenção ao princípio da isonomia.


Por isso, requerem a concessão da ordem para haja o trancamento da ação penal em relação ao paciente.


A autoridade impetrada prestou informações (fls. 401/404v).


O Ministério Público Federal, pela Procuradoria Regional da República na Terceira Região, opinou pela denegação da ordem (fls. 406/408v).


É o relatório.



VOTO

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO: A discussão neste habeas relaciona-se à correção, ou não, da decisão que recebeu a denúncia na origem.


Os impetrantes buscam o trancamento da ação penal sob as alegações de inépcia da denúncia, em razão de incorreções na tipificação dos fatos imputados; existência de causa extintiva da punibilidade e atipicidade da conduta, bem como de ausência de justa causa.


A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é tranquila no sentido de que "o trancamento da ação penal constitui medida excepcional reservada aos casos em que seja patente a atipicidade da conduta, a ausência de indícios mínimos de autoria ou a presença de causa extintiva da punibilidade, a revelar evidente constrangimento ilegal decorrente da deflagração da ação penal" (HC 140.216 AgR/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Edson Fachin, j. 18.12.2017, DJe-027 DIVULG 14.02.2018, PUBLIC 15.02.2018).


No caso, as matérias ventiladas pelos impetrantes possuem natureza defensiva e, como tal, devem ser veiculadas em resposta escrita à acusação (CPP, art. 396-A) e submetidas ao juízo natural da causa. Somente depois de decisão por esse juízo é que poderiam ser submetidas a esta Corte, sob pena de configurar-se supressão de instância.


Em que pese matérias de ordem pública possam ser apreciadas a qualquer tempo e grau de jurisdição, isso não exime a parte do ônus de alegá-las oportunamente, tanto que nas instâncias superiores seu prequestionamento é imprescindível.


Verifico que o juízo impetrado determinou expressamente que os acusados - dentre eles o paciente - fossem citados para responder à acusação, nos termos do art. 396 do Código de Processo Penal (fls. 245/326).


Assim, o presente habeas corpus foi impetrado sem que houvesse pronunciamento do juízo impetrado acerca das questões arguidas pela defesa na resposta escrita à acusação, nos termos do art. 396-A, caput, do Código de Processo Penal.


Considerando, então, que ainda não houve pronunciamento do juízo natural sobre as questões suscitadas neste writ, que podem eventualmente levar à absolvição sumária do paciente (CPP, art. 397), não há - por ora - ato coator passível de impugnação por esta via, de modo que a apreciação dos argumentos veiculados pelos impetrantes, neste momento, implicaria indevida supressão de instância.

Observo que o mero recebimento da denúncia não representa, por si só, na situação dos autos, ilegalidade ou abuso de poder a ser corrigida de plano por este Tribunal, o que afasta a aplicação do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal. Isso porque o juízo de recebimento da denúncia é perfunctório, podendo ser revisto por ocasião da apreciação da resposta à acusação, na qual, consoante dispõe o art. 396-A, caput, do Código de Processo Penal, "o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário".


Ademais, o entendimento, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e desta Corte, é tranquilo no sentido de que, após o oferecimento da resposta à acusação, é possível ao magistrado, além de absolver sumariamente o acusado (CPP, art. 397), reconsiderar a decisão de recebimento da denúncia e rejeitá-la, caso vislumbre a presença de uma das hipóteses previstas no art. 395 do Código de Processo Penal. A título exemplificativo, transcrevo as seguintes ementas de acórdão:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. ART. 22, CAPUT, DA LEI N.º 7.492/86. FALSIDADE IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. ARTS. 288 E 299 DO CÓDIGO PENAL. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. POSTERIOR REJEIÇÃO PELO JUÍZO PROCESSANTE. JUÍZO DE RETRATAÇÃO. POSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. ARGUMENTOS INSUBSISTENTES. SUFICIENTE DESCRIÇÃO DOS FATOS DELITIVOS E SUA EVENTUAL VINCULAÇÃO COM O DENUNCIADO. ELEMENTOS SUFICIENTES À ADMISSIBILIDADE DA EXORDIAL ACUSATÓRIA. MATERIALIDADE DELITIVA E INDÍCIOS DE AUTORIA. PROSSEGUIMENTO DO FEITO. DECISÃO RECORRIDA MANTIDA PELOS SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. O recebimento da denúncia não impede que, após o oferecimento da resposta do acusado (arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal), o Juízo reconsidere a decisão prolatada e, se for o caso, impeça o prosseguimento da ação penal.
2. A possibilidade de o acusado "arguir preliminares" por meio de resposta prévia, segundo previsto no art. 396-A do Código de Processo Penal, por si só, incompatibiliza o acolhimento da tese de preclusão pro judicato, dada a viabilidade de um novo exame de admissibilidade da denúncia.
3. Desse modo, permite-se ao Magistrado, após o oferecimento da defesa prévia, a revisão da sua decisão de recebimento da exordial, tal como ocorreu na presente hipótese.
(...)
8. Agravo regimental desprovido.
(STJ, AgRg no REsp 1.218.030/PR, Quinta Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 01.04.2014, DJe de 10.04.2014)
DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO SUFICIENTE. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. Recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão em que foi rejeitada a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal em face de diversos acusados, e na qual se imputou a eles a prática dos delitos tipificados nos artigos 4º, caput, e 16 da Lei 7.492/86.
2. O recebimento da denúncia é em regra prévio à fase de resposta à acusação, mas não há impedimento para que se reavalie a própria aptidão jurídica da denúncia após cumprido o disposto no art. 396-A do CPP. Pelo contrário, é dever do Magistrado impedir o prosseguimento da ação nas hipóteses em que tal fato contrariar o ordenamento jurídico. Além disso, é não só válido como recomendável que se reavaliem a denúncia e seu conteúdo após a primeira etapa de exercício do contraditório na dinâmica processual, qual seja, a de resposta à acusação, em que se apresenta pela primeira vez o acusado, o qual pode desde então conseguir trazer elementos fáticos e jurídicos que contribuam para um reexame da inicial e do contexto dos autos.
3. Após receber as respostas à acusação, pode o Magistrado: a) Absolver sumariamente o réu, nos termos do art. 397 do estatuto processual penal; b) Reavaliar a denúncia e, vislumbrando a ocorrência de qualquer das hipóteses previstas no art. 395 do CPP, reconsiderar o recebimento, rejeitando a exordial; c) Ratificar o recebimento e, ausentes as hipóteses de absolvição sumária, dar seguimento ao processo, nos termos da legislação processual. Assim, a decisão recorrida se amolda validamente ao conceito de decisão que rejeita o recebimento da denúncia, podendo-se considerar como uma tal decisão não apenas aquela tomada estritamente na fase do art. 395 do Código de Processo Penal, mas também aquela que, após submissão inicial do caso ao contraditório (mediante recebimento de resposta à acusação), reconsidera a decisão anterior (ainda que tacitamente) e, constatando a ocorrência de uma das hipóteses previstas nos incisos do art. 395 do CPP, rejeita a denúncia. Inexistência de error in procedendo.
(...)
5. Não preenchidos de maneira minimamente adequada os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, e prejudicada sensivelmente a compreensão das imputações e o exercício da defesa, deve ser a inicial rejeitada, nos termos do art. 395, I, do Código de Processo Penal. Decisão mantida. Recurso ministerial desprovido.
(TRF3, RSE 0003882-22.2006.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 06.12.2016, DJe 16.12.2016)

Por fim, registro que esta Turma já se pronunciou nesse sentido, no julgamento do agravo regimental interposto no habeas corpus nº 5001069-30.2018.4.03.0000, também de minha relatoria.

Portanto, repito, este Tribunal não pode, sob pena de incorrer em indevida supressão de instância, pronunciar-se sobre as teses trazidas no presente writ antes que o juízo impetrado as examine.

Posto isso, NÃO CONHEÇO do habeas corpus.

É o voto.

NINO TOLDO
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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Data e Hora: 21/08/2018 17:55:25



HABEAS CORPUS Nº 0004307-79.2017.4.03.0000/SP
2017.03.00.004307-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
IMPETRANTE : CELSO VILARDI e outros.
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI e outro(a)
: SP285764 NARA SILVA DE ALMEIDA
IMPETRADO(A) : JUIZO FEDERAL DA 3 VARA CRIMINAL SAO PAULO SP
PACIENTE : JOSE SETTI DIAZ
ADVOGADO : SP120797 CELSO SANCHEZ VILARDI
No. ORIG. : 00010714020164036181 3P Vr SAO PAULO/SP

VOTO COMPLEMENTAR

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO: Após apresentar meu voto, na sessão de 08.05.2018, pelo não conhecimento do habeas corpus porque as matérias nele deduzidas tinham natureza defensiva e, como tal, deveriam ser veiculadas em resposta escrita à acusação e submetidas ao juízo natural, que até então não se pronunciara, sob pena de configurar-se uma indevida supressão de instância, pediu vista o e. Desembargador Federal José Lunardelli.


Expus em meu voto que:


Em que pese matérias de ordem pública possam ser apreciadas a qualquer tempo e grau de jurisdição, isso não exime a parte do ônus de alegá-las oportunamente, tanto que nas instâncias superiores seu prequestionamento é imprescindível.
Verifico que o juízo impetrado determinou expressamente que os acusados - dentre eles o paciente - fossem citados para responder à acusação, nos termos do art. 396 do Código de Processo Penal (fls. 245/326).
Assim, o presente habeas corpus foi impetrado sem que houvesse pronunciamento do juízo impetrado acerca das questões arguidas pela defesa na resposta escrita à acusação, nos termos do art. 396-A, caput, do Código de Processo Penal.
Considerando, então, que ainda não houve pronunciamento do juízo natural sobre as questões suscitadas neste writ, que podem eventualmente levar à absolvição sumária do paciente (CPP, art. 397), não há - por ora - ato coator passível de impugnação por esta via, de modo que a apreciação dos argumentos veiculados pelos impetrantes, neste momento, implicaria indevida supressão de instância.
Observo que o mero recebimento da denúncia não representa, por si só, na situação dos autos, ilegalidade ou abuso de poder a ser corrigida de plano por este Tribunal, o que afasta a aplicação do art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal. Isso porque o juízo de recebimento da denúncia é perfunctório, podendo ser revisto por ocasião da apreciação da resposta à acusação, na qual, consoante dispõe o art. 396-A, caput, do Código de Processo Penal, "o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário".

Antes que o e. Desembargador Federal José Lunardelli apresentasse seu voto em sessão, os impetrantes atravessaram petição a ele dirigida (fls. 435/440) para informar que o juízo impetrado havia proferido decisão, disponibilizada em 11.05.2018, na qual confirmara o recebimento da denúncia, determinando o início da instrução processual. Em resumo, disseram que o constrangimento ilegal, que já era patente, então restava inconteste, pois os argumentos defensivos deduzidos ao juízo natural foram rejeitados. Pediram, então, o aditamento da impetração, mediante a juntada de cópia da decisão confirmatória do recebimento da denúncia (fls. 441/466), requerendo a concessão da ordem, tal como fora pedida, e, como ainda não havia sido concluído o julgamento, o retorno dos autos a este Relator para análise do mérito.


Na sessão de 22.05.2018, o e. Desembargador Federal José Lunardelli apresentou voto pelo conhecimento do habeas corpus e, no mérito, em antecipação, pela concessão parcial da ordem, nos seguintes termos:


Pelo exposto, peço vênia ao e. Relator Desembargador Federal Nino Toldo para dele divergir e conceder parcialmente a ordem para determinar o trancamento da ação penal em face do paciente, apenas no que tange à imputação da prática do crime previsto no art. 288 do Código Penal, mantido o conteúdo restante da exordial acusatória.

Observo que, nessa sessão, o voto do e. Desembargador Federal Fausto De Sanctis quanto ao conhecimento (ou não) do habeas corpus não foi colhido, embora eu tivesse alertado sobre isso, uma vez que o e. Desembargador José Lunardelli não cindiu o julgamento quanto à questão preliminar, proferindo voto de mérito, em antecipação. Constou da tira de julgamento:


Após a apresentação do voto vista pelo Des. Fed. José Lunardelli, no sentido de conceder parcialmente a ordem para determinar o trancamento da ação penal em face do paciente, apenas no que tange à imputação da prática do crime previsto no art. 288 do Código Penal, mantido o conteúdo restante da exordial acusatória e, tendo em vista o teor da petição atravessada pelos impetrantes nos autos, determinou-se a retomada do processo pelo Des. Fed. Relator para análise dessa questão, para requisição de mais informações à autoridade impetrada e nova vista ao MPF, ficando suspenso o julgamento do feito, devendo os autos serem remetidos para conclusão ao Exmo. Des. Fed. Relator. (Compareceu à sessão o advogado Alexandre Ribeiro Filho - OAB/SP 234.073 - solicitando preferência no julgamento do feito).

Vieram-me os autos conclusos (fls. 478) e requisitei informações complementares ao juízo impetrado, determinando que, com estas, nova vista fosse dada ao Ministério Público Federal - MPF (fls. 479).


A autoridade impetrada prestou informações complementares (fls. 482/486), nas quais disse, em resumo, que a justa causa para o exercício da ação penal requer apenas a existência de suporte probatório mínimo, tendo por objeto a materialidade e indícios de autoria delitiva e que a incursão em temas que demandam dilação probatória só pode ser feita após a instrução criminal. Assim, justificou a confirmação do recebimento da denúncia, quanto ao crime do art. 288 do Código Penal, ao fundamento de que a denúncia delineou as participações de cada denunciado na associação criminosa, mas que, por se tratar de matéria de mérito, a efetiva participação de cada denunciado será analisada após a instrução probatória. Em relação à classificação jurídica do fato, aduziu que se trata de tema prematuro e que a fraude praticada no delito previsto no art. 40 da Lei nº 8.313/91 objetiva a obtenção da redução de imposto de renda. Contudo, no caso dos autos, "a dedução do tributo era a própria fraude (meio) para a obtenção da vantagem ilícita, consistentes nas contrapartidas ilegais, verificando-se que a descrição dos fatos delitivos expostos na peça vestibular acusatória revela abrangência muito maior que o delito estabelecido no referido dispositivo".


O MPF, em sua manifestação (fls. 489/489v), reiterou o parecer anteriormente apresentado, pela denegação da ordem.


Vieram-me, então, conclusos os autos.


Pois bem. Feito este breve, mas necessário, relatório complementar, passo à análise das questões surgidas após a sessão de 08.05.2018.


A primeira delas diz respeito ao conhecimento do habeas corpus.


Como disse, após haver proferido meu voto pelo não conhecimento do writ porque implicaria (naquele momento) supressão de instância e enquanto o julgamento estava suspenso pelo pedido de vista do e. Desembargador Federal José Lunardelli, o juízo impetrado decidiu as questões suscitadas nas respostas escritas à acusação (CPP, art. 396-A), rejeitando-as e ratificando o recebimento da denúncia, designando o início da instrução probatória (CPP, art. 399).


Esse fato superveniente ao início do julgamento, mas antes do seu encerramento, tem impacto direto sobre o conhecimento do habeas corpus, pois o seu julgamento pela Turma não implicará mais supressão de instância. Por essa razão, retifico o voto que lancei na sessão de 08.05.2018 para, agora, conhecer do habeas corpus e examinar o pedido formulado pelos impetrantes, em todos os seus termos.


Antes, porém, entendo necessário esclarecer que, embora não tenha sido colhido o voto do e. Desembargador Federal Fausto De Sanctis quanto à questão preliminar (conhecimento ou não do writ), esse tema está prejudicado, na medida em que, com a minha retificação de voto para conhecer do pedido, ainda que Sua Excelência dele não conheça, deverá manifestar-se sobre o mérito, uma vez que restará vencido na questão preliminar.


De outra parte, também entendo necessário deixar claro que o e. Desembargador Federal José Lunardelli não divergiu de mim para conceder a ordem, mas apenas divergiu quanto a conhecer do pedido de habeas corpus. Uma vez conhecido o pedido, então me pronuncio sobre o seu mérito.


A ele, pois.


São dois pedidos: o primeiro refere-se à imputação pelo crime de associação criminosa (CP, art. 288) e, o segundo, à classificação jurídica do fato relativo ao uso fraudulento de incentivo fiscal com base na Lei Rouanet.


Em relação ao primeiro, os impetrantes argumentam, em síntese, que o fato imputado ao paciente é atípico (faltando, portanto, justa causa para a ação penal) porque a associação criminosa pressupõe que três ou mais pessoas se associem para o fim específico de cometer crimes. Como a denúncia, ao referir-se ao paciente, trata de apenas um suposto crime, faltaria elementar do tipo penal de associação criminosa.


Os impetrantes têm razão. Para que se caracterize o crime de associação criminosa (nova denominação típica dada pela Lei nº 12.850, de 02.08.2013, para o antigo crime de quadrilha ou bando), é imprescindível que aqueles que se associarem o façam "para o fim específico de cometer crimes". Além do dolo específico ("para o fim de"), é necessário que a união se dê para a prática de crimes indeterminados ("cometer crimes"), pois a prática de crime determinado ou de crimes determinados caracterizaria o concurso de pessoas (CP, art. 29).


Em antiga, mas ainda atual, lição quanto ao crime de quadrilha ou bando, assim dizia Heleno Cláudio Fragoso:


Associação é o acordo de vontades, de modo permanente, para consecução de fim comum. Como bem diz Maggiore, 360, "no fato associativo há algo mais do que acordo". O simples "acordo" para cometer um crime, não é punível. O que transforma o acordo em associação, e o torna punível pelo crime em exame, é a organização com caráter de estabilidade". É assim, uma certa permanência ou estabilidade o que distingue o crime em exame da simples participação criminosa (societas sceleris ou societas in crimine).
(Lições de direito penal, parte especial, Volume II, 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 282)

A leitura da longa denúncia (cópia a fls. 69/237, especialmente fls. 226/229) mostra que se imputa ao paciente o suposto cometimento de um único crime, relativo ao Pronac nº 0154771, intitulado "Celebração Musical"¸ pelo qual a empresa "Almeida, Rotenberg e Boscoli Sociedade de Advogados - Demarest", teria patrocinado um evento cultural e, como contrapartida, receberia um evento fechado para os seus clientes e funcionários, com um stand up do comediante Fábio Porchat.


Nada mais há na denúncia relacionando o paciente aos corréus da ação penal, de modo que, à toda evidência, não está caracterizada a estabilidade e a permanência, tampouco os crimes indeterminados, para a configuração do delito de associação criminosa.


É importante notar que não é necessária a instrução processual para se chegar a essa conclusão, na medida em que, pelos princípios da correlação entre a acusação e a sentença, do contraditório e da ampla defesa, a acusação deverá estar descrita na denúncia de forma clara quanto ao fato criminoso e todas as suas circunstâncias (CPP, art. 41).


Com efeito, se o acusado defende-se dos fatos a ele imputados, estes devem estar bem descritos e conformar-se, em princípio, ao tipo legal supostamente transgredido, a fim de que a ampla defesa possa ser exercida. Se os fatos não se amoldam ao tipo invocado, falta justa causa para a ação penal.


No caso, se o MPF descreve na denúncia um único fato criminoso supostamente praticado pelo paciente, a este não pode ser imputada a prática de associação criminosa porque faltam os elementos da estabilidade e permanência, bem como a mínima descrição de crimes indeterminados que dariam sustentação à imputada associação, diferenciando-a do concurso eventual de pessoas.


Portanto, como não está caracterizada a associação criminosa e isso - repito - independe da dilação probatória para ser reconhecido, falta elementar do tipo para a imputação e, em razão disso, falta justa causa para a ação penal, que deve ser trancada por ordem de habeas corpus.


Quanto ao segundo pedido, também têm razão os impetrantes. Imputa-se ao paciente o cometimento do crime de estelionato contra a União (CP, art. 171, § 3º) porque ele, valendo-se do suposto esquema montado pelo grupo empresarial "Bellini Cultural" e na condição de responsável pelos projetos envolvendo a empresa "Almeida, Rotenberg e Boscoli Sociedade de Advogados - Demarest", teria obtido, em favor desta, contrapartida ilícita consistente em show exclusivo do artista Fábio Porchat. De acordo com a denúncia:


A partir de informações encaminhadas pela Receita Federal, todos esses patrocinadores [indicados na denúncia, dentre os quais o Demarest], que realizaram aportes nos projetos culturais do Grupo BELLINI, procederam à dedução dos valores aportados nos projetos culturais tidos como fraudulentos, avançando suas condutas muito além da mera prática de sonegação fiscal.
A decisão das patrocinadoras acerca do aporte de recursos nos projetos culturais propostos pelo Grupo BELLINI estava condicionada ao atendimento, por este, de seu escopo institucional e financeiro. Para tanto, e sem qualquer respaldo legal, eram feitas prévias exigências/oferecimentos, os quais acarretavam um desvio de grande parte dos recursos dela captados e que deveriam ser empregados nos referidos projetos. Os projetos de incentivo à cultura eram, então desvirtuados, subsumindo-se o seu escopo à realização de eventos ou edição de livros que satisfaziam aos próprios interesses institucionais das patrocinadoras, gerando-lhes, ao mesmo tempo, o direito à obtenção do chamado incentivo fiscal (ou renúncia fiscal, pelo Estado), previsto na Lei Rouanet.
Desta forma, nasciam e eram formalizadas as chamadas "contrapartidas", por meio das quais as patrocinadoras efetuavam os aportes pretendidos pelo Grupo Bellini (captações), desde que lhes fosse assegurado que parte desses recursos retornaria a essas empresas - quer sobre a forma de eventos, quer de distribuição de livros, e, em alguns casos, sob a forma de dinheiro em espécie - sem prejuízo da sua posterior dedução do imposto de renda. Para tanto, o Grupo Bellini e a empresa incentivadora, na maioria dos casos, elaboravam um contrato de patrocínio, no qual a patrocinadora expressamente apoiava determinado projeto cultural, mediante a realização de determinado evento (em favor da própria empresa, de seus funcionários ou clientes).
É certo que, pela legislação, os incentivadores de projetos culturais baseados na Lei Rouanet têm o direito de receber até 10% dos produtos deles resultantes, com a finalidade de sua distribuição gratuita promocional. Contudo, no caso dos autos e em TODOS os patrocínios aqui registrados, os recursos que deveriam ser aplicados nos projetos culturais concebidos pelo Grupo Bellini (e que foram previamente aprovados pelo MinC) reverteram, quase que na sua totalidade e com base em acordos previamente pactuados:
a) ao "Primeiro Núcleo" do Grupo Bellini;
b) aos incentivadores (sob a forma de marketing ou benefícios institucionais ou em espécie);
c) a alguns proponentes colaboradores. Por esta razão, ilícitas se manifestaram as contrapartidas recebidas pelos patrocinadores.
[...]
De fato, o contrato de patrocínio abarcou, a pretexto de executor [sic] o suposto projeto cultural "Celebração Musical", teve, como objeto, o evento privado exigido pela empresa (para efetuar o correspondente aporte) e cujo título constou entre parênteses ("Espetáculo Fora do Normal").
Ocorre, porém, que não havia nenhum PRONAC aprovado com referido título. As provas colhidas são consistentes no sentido de que se tratou de uma contrapartida ilícita recebida pela empresa em razão do seu aporte no projeto cultural de nº 154771 "Celebração Musical", conforme o recibo apreendido.
BRUNO VAZ AMORIM, uma vez mais, admitiu, em sua oitiva, que o espetáculo privado feito em benefício do escritório DEMAREST representou, em verdade, uma contrapartida, em razão do aporte, pela empresa, no projeto cultural e que, portanto fora custeado com recursos públicos:
[...]
As provas colhidas revelaram-se contundentes, no sentido de que o proprietário da empresa DEMAREST atuou com dolo, consciência e vontade na contratação de contrapartida sem aporte algum em projeto cultural que, efetivamente, tivesse sido aprovado pelo MinC.
(Retirei os sublinhados).

O juízo impetrado, ao não rejeitar liminarmente a denúncia, recebendo-a (CP, art. 396), assim fundamentou, relativamente ao paciente:


Conforme referido, o recebimento da denúncia tem como foco os fatos narrados na peça acusatória, sendo irrelevante nesse momento a capitulação legal que foi dada pelo órgão acusador, desde que não implique alteração dos benefícios processuais penais a que teriam direito os denunciados.
Dessa forma, eventual discussão sobre a capitulação dada pelo MPF a respeito das condutas é irrelevante nessa fase processual. Impende ressaltar que os fatos narrados constituem crimes plurissubjetivos, sendo que a exata tipificação demanda dilação probatória.
[...]
No que diz respeito à alegação de extinção da punibilidade pelo pagamento dos tributos que foram deduzidos, não pode ser acolhida. Observe-se que no crime tributário, a fraude é praticada com a finalidade de suprimir ou reduzir tributo, enquanto que, no presente caso, a dedução do tributo era a fraude (meio) para a obtenção da vantagem ilícita, consistentes [sic] nas contrapartidas ilegais.
Com efeito, não se está diante de mero crime tributário, pois não se obtinha somente o não pagamento de tributos. Além da dedução tributária, as empresas obtinham as contrapartidas ilícitas, que eram justamente os shows, eventos e livros previstos contratualmente.
Assim, as contrapartidas ilícitas recebidas constituíam justamente a vantagem indevida, sendo que a dedução de tributos constituía o meio para a obtenção da referida vantagem, isto é, o meio fraudulento. Dessa forma, a dedução de tributo era o próprio modus operandi do esquema de desvio de recursos advindos da Lei Rouanet, o meio fraudulento para conseguir as contrapartidas ilícitas.
Assim, conclui-se que os fatos não se esgotavam no não pagamento de tributos mediante fraude, mas iam além, na medida em que as empresas patrocinadoras, além de não pagar tributos, recebiam as contrapartidas ilícitas.

Conforme se verifica nos trechos transcritos (da denúncia e da decisão que a recebeu, posteriormente ratificada), não se trata de ausência de tipicidade, de materialidade ou de indícios mínimos de autoria, tampouco da presença de causa extintiva de punibilidade.


Assiste razão aos impetrantes no que tange à tipificação da conduta imputada ao paciente.


Como disse antes, é certo que o acusado defende-se de fatos, e não da capitulação que consta na denúncia ou queixa, bem como que o momento processual adequado para eventual correção desta capitulação é o da prolação da sentença, nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal.


Excepcionalmente, porém, é possível proceder a tal correção em momento diverso, inclusive o de recebimento da denúncia, nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado, com a aplicação dos institutos benéficos previstos na legislação, em especial a transação penal e a suspensão condicional do processo.


De fato, se de antemão o magistrado percebe, no início do processo, que o fato enquadra-se em tipo penal que admite tais medidas, não faz sentido processar integralmente a ação penal (com apresentação de defesa pelo acusado, realização de instrução e oferecimento de alegações finais pelas partes) para, somente ao final, no momento de prolação da sentença, determinar a conversão do julgamento em diligência para, então, oferecê-las.


Isso, aliás, foi admitido pelo próprio juízo impetrado quando proferiu a decisão que recebeu a denúncia:


Conforme referido, o recebimento da denúncia tem como foco os fatos narrados na peça acusatória, sendo irrelevante nesse momento a capitulação legal que foi dada pelo órgão acusador, desde que não implique alteração dos benefícios processuais penais a que teriam direito os denunciados. [destaquei]

Assim, considero que, embora o momento adequado para a reclassificação jurídica da conduta imputada seja, em regra, o da prolação da sentença, em determinadas situações o juízo é autorizado a assim proceder em momento anterior, inclusive o de recebimento da denúncia, ante a desnecessidade de instrução probatória para tanto.


É esse exatamente o caso dos autos.


Há um aparente conflito de normas, pois o MPF imputa ao paciente a prática do delito de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º), enquanto os impetrantes defendem que a conduta do paciente amolda-se, em tese, ao crime do art. 40 da Lei nº 8.313, de 23.12.1991, conhecida como Lei Rouanet, que assim dispõe:


Art. 40.  Constitui crime, punível com reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, obter redução do imposto de renda utilizando-se fraudulentamente de qualquer benefício desta Lei.
§ 1º  No caso de pessoa jurídica respondem pelo crime o acionista controlador e os administradores que para ele tenham concorrido.
§ 2º  Na mesma pena incorre aquele que, recebendo recursos, bens ou valores em função desta Lei, deixa de promover, sem justa causa, atividade cultural objeto do incentivo.

O exame dos autos revela que a intenção do paciente (sem estabelecer qualquer juízo de valor prévio acerca da sua eventual ilicitude), enquanto representante da empresa "Almeida, Rotenberg e Boscoli Sociedade de Advogados - Demarest", era valer-se do benefício fiscal decorrente da Lei Rouanet, qual seja, a dedução do imposto de renda do valor aplicado no projeto cultural alegadamente fraudado.


Assim, esse conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat generali), pois, no caso, o suposto uso fraudulento dos benefícios da Lei Rouanet é incriminado pelo art. 40 dessa Lei, que, por isso, constitui norma especial em relação ao estelionato e, ainda, ao tipos descritos na Lei nº 8.137/90, sobretudo aquele do art. 2º, IV.


Dito isso, é certo também que tal fato constitui especial modalidade de crime contra a ordem tributária, de sorte que o pagamento integral do valor do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, constitui causa extintiva da punibilidade.


Contudo, não há como reconhecer, neste writ, a extinção da punibilidade do paciente pelo pagamento integral do tributo, haja vista que tal situação depende de manifestação específica da autoridade fazendária, não presente nos autos, a ser aferida na origem.


Ademais, considerando o reconhecimento da atipicidade da imputação no que tange ao crime de associação criminosa, bem como que a pena máxima do crime remanescente, previsto no art. 40 da Lei Rouanet, não é superior a dois anos de reclusão, a competência para o exame da suficiência do pagamento realizado é do Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP. Em consequência, não deverá ser procedida à instrução em relação ao paciente.


Posto isso, retifico o voto por mim proferido na sessão de 08.05.2018 para o fim de CONHECER do habeas corpus e, em o fazendo, CONCEDER PARCIALMENTE A ORDEM para trancar a ação penal de origem, por ausência de justa causa, no que tange à imputação de prática, pelo paciente, do delito de associação criminosa (CP, art. 288), bem como reclassificar a outra conduta a ele imputada, para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet, a ser processado e julgado perante o Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, assegurando ao paciente, ainda, a possibilidade do reconhecimento da extinção da punibilidade desde que tenha havido o pagamento integral do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, o que deverá ser verificado pelo juízo impetrado, na origem. Em consequência, não deverá ser procedida à instrução em relação ao paciente.


É o voto complementar.


NINO TOLDO
Relator


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