D.E. Publicado em 30/08/2018 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar parcial provimento à apelação e à remessa oficial, havida por submetida, vencidos os Desembargadores Federais Antônio Cedenho e Marli Ferreira, que o faziam em extensão diversa, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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VOTO-VISTA
Trata-se de apelação interposta pelo Ministério Público Federal em face de sentença que julgou improcedentes pedidos formulados em ação civil pública, para que Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. fosse condenada a se abster de trafegar em rodovias federais com excesso de peso, sob pena de multa de R$ 10.000,00 a cada infração, e a pagar, por violação ao patrimônio público, ao meio ambiente e à segurança dos usuários, danos materiais e morais coletivos, calculados, respectivamente, em R$ 4.780.640,16 e R$ 25.226.246,08.
Decidiu o Juízo de Origem que, embora o MPF tenha interesse em exigir a tutela de interesses envolvidos pelas adversidades do transporte rodoviário e os pedidos sejam juridicamente possíveis, em atenção ao papel preventivo da garantia de ação, a condenação ao cumprimento de obrigação de não fazer acabaria por se sobrepor ao poder de polícia dos órgãos de trânsito, com possibilidade de incidência de multas de mesmo teor e usurpação das atribuições dos Poderes Legislativo e Executivo.
Considerou também que não há prova de nexo de causalidade entre o excesso de carga e a deterioração dos pavimentos das estradas federais, com repercussões no meio ambiente e na segurança dos usuários. Ponderou que existem outros eventos causadores, como a falta de manutenção, clima, temperatura e qualidade do material asfáltico.
Sustenta o MPF, em razões recursais, que a existência de responsabilidade administrativa dos transportadores/embarcadores não impede a condenação judicial, seja porque os autos de infração não têm sido suficientes para desencorajar a prática - Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. recebeu um total de 1.633 autuações num período de cinco anos -, seja porque a responsabilidade civil é independente de qualquer outra.
Argumenta que a multa requerida exerce função coercitiva, representando uma forma de pressão ao cumprimento de ordem judicial e diferindo da penalidade correspondente ao poder de polícia administrativo.
Alega que, segundo as estatísticas e os estudos oficiais, o tráfego com excesso de peso danifica as rodovias, aumenta os níveis de poluição pela maior queima de combustível, traz danos à concorrência e põe em risco os demais usuários. Afirma que a tutela inibitória do Poder Judiciário se torna necessária, assim como a reparação de danos, tanto materiais - prejuízo ao patrimônio público -, quanto morais - perda da segurança, confiabilidade e integridade ambiental das estradas federais.
Explica que, no primeiro caso, o ressarcimento deve retratar um percentual dos investimentos públicos na infraestrutura do país, e, no segundo, uma porção do capital social da empresa.
Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. apresentou contrarrazões. Insiste na preliminar de falta de interesse de agir, sob o fundamento de que a obrigação de não fazer reproduziria uma norma já prevista em nível legislativo e a multa estabelecida para a garantia de cumprimento produziria efeitos abstratos e genéricos, em sobreposição, inclusive, à penalidade administrativa aplicável à mesma infração ("bis in idem").
Invoca também preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, argumentando que compete ao Poder Legislativo legislar sobre trânsito e transporte e ao Poder Executivo, a fiscalização do tráfego de veículos. Afirma que o MPF pretende assumir as atribuições de outros órgãos, mediante o agravamento de multa por infração de trânsito.
Aponta ainda inépcia da petição inicial (pedido incerto), seja porque não existem meios de a empresa controlar o transporte de carga de fornecedores contratados, como consta em um dos itens da obrigação de fazer, seja porque o MPF não especificou o procedimento de apuração da sanção pecuniária, em caso de ilícito. Sustenta que o momento da exigibilidade permanece obscuro (depois da autuação ou do processo administrativo).
Alega, no mérito, que os autos de infração usados como fundamento da petição inicial não transparecem tanta confiabilidade. Explica que uma parte se refere ao tráfego com excesso de peso nos eixos, cuja origem vem relacionada às péssimas condições das rodovias federais, e o número das autuações, em proporção aos embarques do período, possui baixa representatividade, a ponto de inviabilizar a tutela judicial inibitória e a cominação de pena de R$ 10.000,00.
Acrescenta que a Lei n° 13.103/2015 concedeu anistia para grande parcela das infrações e ampliou a margem de tolerância do excesso de peso nos eixos a 10%, o que, pela regra da retroatividade da norma punitiva mais benéfica, causaria o cancelamento de 273 autuações.
Afirma ainda que a multa coercitiva equivale à penalidade administrativa, com efeitos abstratos e genéricos ("bis in idem"), a intercorrência de outros fatores rompe o nexo de causalidade entre o excesso de peso e a degradação das rodovias e a base de cálculo dos danos materiais e morais se ressente de razoabilidade, referindo-se a critérios totalmente distintos dos eventuais prejuízos.
A Procuradoria Regional da República se manifestou pelo provimento da remessa oficial e da apelação.
Em sessão de julgamento, a eminente relatora deu parcial provimento ao reexame obrigatório e ao recurso do MPF, para condenar Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. ao pagamento de danos morais coletivos, calculados em R$ 10.000.000,00.
Pedi vista para melhor exame dos autos.
Primeiramente, a remessa oficial deve incidir. Como a ação popular a prevê para a hipótese de carência processual ou improcedência do pedido (artigo 19 da Lei n° 4.717/1965), a ação civil pública, enquanto mecanismo destinado à tutela de direitos coletivos similares, faz jus ao mesmo tratamento.
As preliminares de falta de interesse processual, impossibilidade jurídica do pedido e inépcia da petição inicial também não procedem; integram, na realidade, o próprio mérito da causa.
Como será exposto ao longo da fundamentação, o Ministério Público tem interesse em exigir a tutela de interesses coletivos ameaçados ou violados pelas adversidades do transporte rodoviário de carga, ativando a responsabilidade civil (independente) e pedindo a cominação de multa coercitiva, prevista expressamente na legislação como um dos instrumentos da jurisdição coletiva, com a regulamentação, inclusive, do procedimento de apuração - cumprimento de sentença.
Ouso divergir, porém, do profundo voto da eminente relatora nas abordagens seguintes.
O inquérito civil em apenso indica que Syngenta Proteção de Cultivos Ltda., na condição de embarcadora, sofreu 1.633 autuações administrativas por tráfego de veículo com excesso de peso. O número, num período de quatro anos (2010 a 2014), não deixa de ser substancial, mesmo que, segundo o balanço contábil da empresa, os embarques tenham sido vultosos no intervalo.
A quantidade de autos de infração, com uma média de 408 por ano, é suficiente para originar um conflito social que exija atuação dos órgãos de defesa de interesses coletivos sob impacto do trânsito, sem que a multa administrativa venha alcançando maior efetividade preventiva.
Ademais, o poder de polícia da Administração Pública não retira a responsabilidade civil decorrente da violação a bens da coletividade. A legislação estabelece a independência das instâncias, em respeito à diversidade de objeto de cada uma: enquanto que as normas de trânsito objetivam primariamente a segurança na utilização de vias públicas, com ameaça de multa punitiva (artigos 6° e 161 da Lei n° 9.503/1997), a lei civil mira a reparação de danos causados a terceiros e se vale da sanção pecuniária para inibir novas infrações (artigos 1° e 11 da Lei n° 7.347/1985).
Como a própria empresa admite, o excesso de peso nos eixos ou no conjunto do veículo de carga (peso bruto total) é capaz, ainda que em combinação com outros fatores, de danificar o pavimento das rodovias federais, o que reclama não uma fiscalização administrativa, voltada à segurança do trânsito, mas uma reação da jurisdição coletiva, que se propõe à prevenção ou reparação de prejuízos já provocados ao patrimônio público, ao meio ambiente e aos demais usuários (artigo 1°, I, IV e VIII, da Lei n° 7.347/1985).
Não se trata, portanto, de assunção das atribuições do Poder Executivo. O Ministério Público, diante da disseminação do excesso de peso no transporte de carga e dos danos que a medida acarreta ao patrimônio público, ao meio ambiente e à integridade dos demais usuários da via, se funda num conflito de interesses de natureza coletiva, exigindo a cessação da violação ao direito e a reparação dos prejuízos já causados - fundamentos da atividade jurisdicional.
Segundo as informações do inquérito civil e do próprio parecer de engenharia juntado à contestação, o transporte com carga excedente danifica as rodovias, fortalecendo a pressão exercida pelo veículo sobre o pavimento asfáltico e exigindo investimentos governamentais para a manutenção preventiva e corretiva da via (bem público). Também contribui para a poluição ambiental, na medida em que provoca maior queima de combustíveis e aumenta o risco de lançamento de produtos, inclusive químicos, na superfície.
Outro efeito da infração corresponde ao comprometimento da segurança do trânsito. O tombamento de caminhões sobrecarregados, a redução da capacidade de frenagem, a queda da velocidade projetada para a rodovia, o lançamento de produtos químicos e a abertura de fendas/buracos na superfície fazem crescer a vulnerabilidade dos demais usuários (pedestres e motoristas).
Nessas circunstâncias, a concessão de tutela inibitória, no sentido de impedir o tráfego com excesso de peso, em descumprimento das leis e regulamentos vigentes, se torna necessária (artigo 11 da Lei n° 7.347/1985). Syngenta Proteção de Cultivos Ltda., como entidade embarcadora que veio a ser punida por carga excedente em mais de mil vezes, deve estar sob o alcance da condenação judicial.
A alegação de que o motivo de grande parte das autuações - excesso de peso nos eixos - pode decorrer das condições precárias preexistentes das rodovias não se justifica. Além de a empresa ter a obrigação de adotar as cautelas necessárias para evitar a remoção da carga durante o trajeto, de maneira a garantir a distribuição proporcional em cada eixo, o DNIT a autuou em regime de exclusividade, ou seja, com a exoneração da transportadora, nos termos do artigo 257, §4°, da Lei n° 9.503/1997:
A decisão significa que o peso encontrado excedeu o registrado na nota fiscal, fatura ou conhecimento, de modo que o embarcador assumiu o risco de que o transportador dirigisse sem maior preocupação quanto à manutenção da força exercida por cada eixo sobre o pavimento e deixasse de tomar precauções contra o deslocamento da carga e a má distribuição ao longo da viagem.
A elevação da margem de tolerância para 10% no excesso de peso por eixo (artigo 1°, II, da Lei n° 7.408/1985, na redação dada pela Lei n° 13.103/2015) tampouco acarreta grande alteração, porquanto, em caso de incidência retroativa, alcançaria 273 autuações e deixaria intacto o número significativo de 1.360. As infrações mantêm representatividade bastante para expor a perigo de dano interesses da coletividade e justificar tutela judicial inibitória.
A cominação de multa de R$ 10.000,00 como garantia de cumprimento da obrigação de não fazer - trafegar com excesso de peso - tem cabimento. Em primeiro lugar, comparavelmente à penalidade administrativa, não existe "bis in idem": aquela, por força da independência da responsabilidade civil, visa à prevenção/reparação de danos ao patrimônio público, ao meio ambiente e à integridade dos demais usuários (artigos 1° e 11 da Lei n° 7.347/1985), ao passo que esta focaliza a segurança do trânsito, decorrendo do poder de polícia sancionador e tendo destinação diversa - sinalização, engenharia de tráfego, policiamento, fiscalização e educação, na forma do artigo 360 da Lei n° 9.503/1997.
E, em segundo lugar, a multa coercitiva na jurisdição coletiva não produz efeitos abstratos e genéricos, nos moldes de uma autêntica norma jurídica, com a usurpação dos poderes legislativo e regulamentar.
A sanção pecuniária está fundada num conflito de interesses típico - tráfego com excesso de peso, em detrimento de bens da coletividade -, objetivando cessar um estado de lesividade concreto, delimitado. Representa uma medida destinada a assegurar o exercício da atividade jurisdicional. O Poder Judiciário não assume, nesse cenário, função legislativa ou regulamentar; apenas se vale de um instrumento processual para aplicar a norma jurídica, realizar justiça numa controvérsia devidamente caracterizada (artigo 11 da Lei n° 7.347/1985).
A jurisdição não se presta somente a reparações, mas também a prevenções, tanto que a CF permite a intervenção do Poder Judiciário diante da simples ameaça de lesão a direito, individual ou coletivo (artigo 5°, XXXV). E a efetividade dessa garantia constitucional demanda naturalmente mecanismos aptos a evitar a violação da ordem jurídica; a multa coercitiva representa um deles, condicionando a eficácia das decisões judiciais.
Se o efeito inibitório tem grande escala, a ponto de alcançar futuramente todo e qualquer tráfego com carga excedente, a abrangência se deve às próprias características do processo coletivo, voltado à resolução de litígios de massa. A restrição do objeto à reparação, sem papel preventivo, forçaria a propositura de ação a cada infração, o que multiplicaria as demandas e ampliaria o risco de contradições, em prejuízo justamente dos cânones da jurisdição coletiva.
Caso a empresa condenada deixe de cumprir a ordem judicial, o procedimento de aplicação da sanção não está no obscurantismo, como consta das contrarrazões. O MPF, assim que tiver conhecimento de cada infração, iniciará a fase de cumprimento de sentença, na qual o devedor poderá exercer plenamente a ampla defesa e o contraditório (impugnação). Haverá o descumprimento de condenação judicial específica, do qual resultará penalidade pecuniária, a ser exigida em incidente próprio e já vocacionado às garantias do executado (artigo 513 do CPC).
Dessa forma, o pedido para que Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. seja condenada a se abster de trafegar em rodovias federais com excesso de peso, sob risco de multa de R$ 10.000,00 a cada ilícito, merece procedência.
A exceção fica por conta de um dos itens do pedido, especificamente a responsabilidade pela carga de empresas contratadas. Os fornecedores de Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. representam sujeito autônomo de direito e obrigações e devem responder pessoalmente pelas infrações de trânsito. A solidariedade pelo excesso de peso apenas se estabelece entre transportador e embarcador (artigo 257, §6°, da Lei n° 9.503/1997), sem que se possam incluir os fornecedores de insumos, enquanto encarregados de meio próprio de transporte.
A condenação, entretanto, ao pagamento de danos materiais não se viabiliza. Embora efetivamente o transporte de carga excedente tenha potencial para causar danos às rodovias (patrimônio público) - tanto que se justifica a expedição de tutela inibitória -, não existe a possibilidade de atribuir os prejuízos atualmente existentes nos pavimentos a Syngenta Proteção de Cultivos Ltda.
De acordo com as informações do inquérito civil e o parecer de engenharia juntado à contestação, vários fatores colaboram para a deterioração das rodovias federais e a fragilização do interesse coletivo nelas corporificado, como a falta de manutenção preventiva e corretiva, o crescimento do tráfego, a qualidade dos materiais empregados, defeitos de projeção/execução das obras, o clima, a temperatura, entre outros. Apesar de o excesso de carga ser causa de degradação, não assume a condição com exclusividade, nem se sabe a proporção de sua real contribuição.
Atribuir responsabilidade apenas aos transportadores ou embarcadores implicaria a abstração de outros eventos igualmente relevantes ou até superiores em nível de causalidade. A falta de investimentos governamentais, os atrasos na concessão de serviço público (alternativa à escassez de verbas), o descumprimento de obrigações por entidade concessionária, a ineficiência no planejamento do fluxo de veículos e a fiscalização deficiente - os postos de balanças rodoviárias não mantêm uma regularidade adequada - não podem ficar à margem do processo de apuração das condições das rodovias, especificamente de sua capacidade em causar danos a interesses da coletividade.
A responsabilização de um único embarcador se revela ainda mais descabida. Se não bastasse a combinação de vários fatores ao estado calamitoso das estradas, o tráfego com excesso de peso representa uma operação generalizada na categoria econômica de transporte de carga; cada um dos infratores contribui ao declínio da qualidade das vias públicas, sem que a situação atual possa ser imputada a uma empresa em particular.
Estabelecer a responsabilidade de embarcador segundo determinada proporção do investimento público planejado para a infraestrutura de transportes do país equivale à individualização de violações que estão necessariamente dispersas.
Toda essa ponderação demonstra que o nexo de causalidade entre o embarque de carga excedente por Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. e os danos atualmente existentes nas rodovias federais é distante, indireto. Conquanto a empresa, conforme a primeira parte do voto, deva se abster de infrações sabidamente prejudiciais à qualidade dos pavimentos, inexiste possibilidade de imputação direta dos prejuízos em vigor. A responsabilidade se faria sem liame causal, em plena subversão do instituto de direito civil e administrativo (artigo 927 do CC e artigo 1° da Lei n° 7.347/1985).
O mesmo raciocínio se aplica aos danos morais. O nexo de causalidade entre o tráfego com excesso de peso e os interesses coletivos correspondentes ao patrimônio público, meio ambiente e segurança dos demais usuários se mostra longínquo. A frustração, a dor de cada membro da coletividade pela deterioração das rodovias, pela poluição do meio que nos dá a vida e pelos acidentes que vitimam pedestres e outros motoristas deve ser imputada a um conjunto de fatores, sem possibilidade de concentração numa causa e, muito menos, em único transportador ou embarcador.
Com a procedência de parte do pedido (obrigação de não fazer), ocorre sucumbência recíproca, cujos efeitos, porém, estão restritos às despesas processuais. A distribuição dos honorários de advogado fica excluída, seja porque o MPF apenas responde por eles em caso de litigância de má-fé (artigo 18 da Lei n° 7.347/1985), seja porque, na qualidade de órgão que não atua por intermédio de advogado, não faz jus à verba. A Constituição Federal, no artigo 128, II, a, também veda o recebimento de quaisquer honorários por membro do órgão ministerial.
Ante o exposto, com a vênia da relatora, dou parcial provimento à remessa oficial e à apelação do MPF, para condenar Syngenta Proteção de Cultivos Ltda. ao cumprimento de obrigação de não fazer, sob pena de multa de R$ 10.000,00 a cada infração.
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RELATÓRIO
Cuida-se de apelação interposta pelo Ministério Público Federal e de remessa oficial tida por submetida em face de sentença que, em ação civil pública, julgou improcedentes os pedidos formulados em face da empresa Syngenta Proteção de Cultivos Ltda.
Em apelação interposta a fls. 282/304 alega-se, em síntese, que em outubro de 2015 ajuizou ação civil pública contra a empresa apelada tendo por objetivo obrigá-la a se abster de dar saída a veículos de carga com excesso de peso de seus estabelecimentos comerciais ou de estabelecimentos de terceiros contratados a qualquer título. Além disso, pleiteou-se a indenização pelo dano material que o transporte com excesso de peso causa ao pavimento das rodovias federais, bem como a compensação pelo dano moral coletivo decorrente da conduta.
Sustenta, o recorrente, que em investigações realizadas em inquérito civil constatou que a apelada, nos últimos 5 (cinco) anos, foi autuada 1.633 (um mil, seiscentos e trinta e três) vezes pelo DNIT por excesso de peso no transporte de cargas em rodovias federais, além de outras 564 (quinhentas e sessenta e quatro) autuações aplicadas pelo DER/SP. Defende que o tráfego com excesso de peso além de causar prejuízos ao pavimento coloca em risco a vida humana.
Aduz que as sanções administrativas aplicadas à apelada são insuficientes para inibir a prática ilegal. Deste modo, sem uma adequada resposta do Poder Judiciário a empresa continuará infringindo o Código de Trânsito Brasileiro e causando danos significativos ao patrimônio público, ao meio ambiente e à segurança dos usuários das rodovias.
Entende que negar a possibilidade de responsabilização civil da empresa sob o fundamento de que já há responsabilidade administrativa equivale a negar acesso à Justiça para o Ministério Público em defesa dos importantes direitos difusos envolvidos. De outro lado, encontra-se consagrado a independência das responsabilidades civil, penal e administrativa, já que o mesmo ato pode configurar ilícito civil, penal e administrativo concomitantemente.
Argumenta que a penalidade administrativa imposta à apelada não guarda identidade com a tutela inibitória veiculada na ação civil pública e que a recalcitrância da empresa em cumprir as normas legais autoriza a atuação do Poder Judiciário.
Aponta que inúmeros estudos científicos demonstram que o transporte com excesso de peso causa danos às rodovias e atenta contra a segurança, mormente diante da fadiga de equipamentos e componentes do veículo e da necessidade de trafegarem em velocidades menores, prejudicando o tráfego de veículos mais rápidos e assim aumentando as situações de risco.
Diz que, ao contrário do que se consignou na sentença, se os estudos comprovam que o transporte com excesso de carga causam danos e que se ficou provado que a apelada age à margem da lei, há nexo de causalidade entre o excesso de peso dos veículos e o dano verificado nas rodovias, devendo a empresa ser condenada no pagamento de danos materiais.
Quanto ao dano moral coletivo, argumenta que a agressão a valores imateriais da coletividade atingida pela conduta da ré provoca lesão moral difusa em relação à intranquilidade gerada nos usuários da rodovia federal pelo aumento da insegurança. Por ser o excesso de carga infração de conteúdo marcadamente econômico, decorrente de relação custo/benefício do transportador em prejuízo dos interesses difusos e coletivos, necessária, para fins punitivos-pedagógicos, a condenação.
Contrarrazões a fls. 382/417 alegando preliminares de falta de interesse processual do Ministério Público Federal, de impossibilidade jurídica do pedido e de inépcia parcial da petição inicial.
Na condição de custos legis, o MPF emitiu parecer pelo provimento do recurso.
É o relatório.
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Data e Hora: | 20/07/2018 19:35:02 |
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VOTO
A improcedência da ação também se verifica em relação ao pedido de dano material. Segundo o apelante, "havendo uma relação direta entre o tráfego com excesso de peso e os danos provocados na rodovia - e tendo em vista, como já observado, a efetiva ineficiência da penalidade administrativa aplicada - deve a apelada ser condenada ao pagamento de indenização por danos materiais".
O artigo 927 do Código Civil diz que "aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo".
Os danos materiais são aqueles que repercutem no patrimônio do lesado. E o patrimônio, por sua vez, é o conjunto das relações jurídicas de uma pessoa apreciáveis em dinheiro. O dano material é avaliado tendo em vista a diminuição sofrida no patrimônio e o objetivo do ressarcimento é justamente recompor o patrimônio lesado (Carlos Roberto Gonçalves in Responsabilidade Civil, Saraiva, 8ª edição, pág. 627).
Na espécie não se demonstrou que os caminhões da apelada tenham efetivamente causado dano às rodovias por onde transitam e foram autuados. Não há nos autos judiciais e nem nos do inquérito civil uma única prova referente - nem mesmo uma fotografia - a dano provocado na pista de rolamento de estrada federal por parte de caminhões da apelada.
Os danos materiais hão de ser certos, determinados e atuais, não se indenizando meras expectativas e probabilidades, de modo que, à míngua de comprovação, o pedido é improcedente.
Quanto aos danos morais, afirma o Ministério Público Federal que "não há dúvidas de que o dano moral coletivo efetivamente ocorreu, já que o tráfego de veículos com excesso de peso pelas rodovias federais aumenta o risco de acidentes que atingem a um número indeterminado de pessoas e, por isso mesmo, interessa à coletividade indistintamente. Tal dano decorre, portanto, da clara violação a direitos que estão relacionados ao bem-estar da coletividade".
Fala-se em dano moral coletivo no caso de lesão a valores morais de uma comunidade, isto é, quando ocorre lesão a interesses ou direitos titularizados pela coletividade.
Assim como no dano moral individual, o direito à indenização depende do preenchimento de certos requisitos, como a ação ou omissão do agente, culpa, nexo causal e dano. Para que se configure um dano moral coletivo a ofensa deve ser significativa e insuportável a interesses extrapatrimoniais compartilhados pela sociedade, ou, nos dizeres da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a condenação por dano moral coletivo deve "ser imposta somente aos atos ilícitos de razoável relevância e que acarretem verdadeiros sofrimentos a toda coletividade, pois do contrário estar-se-ia impondo mais um custo às sociedades empresárias" (AgInt no AREsp nº 964.666/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 25.10.2016, DJe 11.11.2016).
No caso de circulação de caminhões com excesso de peso tem-se que o grande lesado, além da Administração ludibriada, é a coletividade de usuários que trafegam pela rodovia, em sua grande maioria formada por veículos de menor porte que os caminhões da empresa apelada.
Como bem apontou o apelante em suas razões de inconformismo, não há dúvidas de que o tráfego de veículos com excesso de peso aumenta o risco de acidentes, risco este que atinge um número indeterminado de pessoas. O perigo que um caminhão com excesso de carga representa para os demais usuários é real e sério, consoante o estudo juntado pelo Ministério Público a fls. 196/197 dos autos do inquérito civil (apenso), pois o excesso de carga compromete a capacidade de frenagem do caminhão em decorrência do superaquecimento do sistema (que pode, inclusive, incendiar) e do aumento de distância de parada, reduz a estabilidade potencializando o risco de tombamentos, provoca desgaste acentuado de pneus e afeta a eficiência do sistema de suspensão.
O que se tem, então, é que um veículo que deveria se responsabilizar pela segurança dos demais, consoante estabelece a legislação de trânsito, é justamente aquele que os coloca em perigo. Confira-se, a propósito, a redação do § 2º do artigo 29 do Código de Trânsito Brasileiro:
Em outras palavras, a [má] conduta da apelada de permitir a saída de seus estabelecimentos de veículos com excesso de carga coloca em risco a coletividade, formada pelos demais usuários de veículos menores que se encontram em situação de vulnerabilidade. Basta lembrar que em caso de colisão ou tombamento, por exemplo, certamente as lesões mais graves serão suportadas pelos condutores e/ou passageiros dos veículos menores, que nada podem fazer contra os excessos praticados pela apelada. Excessos que, convenha-se, como apontou o apelante a fl. 301, decorrem unicamente do interesse mercantil da apelada "decorrente da relação custo-benefício do transportador em prejuízo dos interesses difusos e coletivos".
Nesse sentido, a apelada viola também o artigo 26, I, do Código de Trânsito Brasileiro, que de forma didática preceitua:
As irregularidades apontadas pelo Parquet realmente ocorreram. O documento de fls. 78 do apenso mostra um total de 1.633 (um mil seiscentos e trinta e três) multas aplicadas à apelada pelo DNIT, além de outras 564 (quinhentos e sessenta e quatro) autuações aplicadas pela DERSA.
Por outro lado, não se encontra comprovada a assertiva da empresa apelada de que "nem todos os fretes contratados pela SYNGENTA preveem que determinado caminhão estará carregado 100% com produtos da SYNGENTA. Em outras palavras, é com a contratação do chamado "frete fracionado". Nessas situações, a SYNGENTA sequer pode ser caracterizada como embarcadora" (fl. 393, item 41). A prova do fato desconstitutivo do direito do autor incumbe ao réu, nos moldes do artigo 373, II, do CPC (art. 333, II, do CPC/73). E nestes autos não há sequer um único contrato de transporte firmado pela apelada que comprove a sua tese.
Portanto, não se pode aceitar a alegação, desprovida de prova, de que tem como regra tolerância zero nos seus embarques e que nem todo caminhão fiscalizado estava com 100% de produtos SYNGENTA.
O ordenamento jurídico apenas dispensa de prova os fatos notórios, aqueles afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária, os admitidos no processo como incontroversos e aqueles em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade (artigo 374, CPC), o que não é a situação dos autos.
A prática abusiva da apelada, assaz violadora das normas cogentes e impositivas que regem o trânsito nas rodovias nacionais, que objetiva apenas maximizar os lucros mesmo que, ao assim agir, coloque em risco a segurança dos demais usuários das estradas, a coletividade, configura dano moral coletivo indenizável.
Segundo se entende, haverá dano moral coletivo quando ficar comprovada a conduta antijurídica do agente, a ofensa a interesses jurídicos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, titularizados por uma determinada coletividade (comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas), a intolerabilidade da ilicitude diante da realidade apreendida e da sua repercussão social e, por fim, houver nexo causal entra a conduta e o dano correspondente à violação do interesse coletivo. Portanto, além das infrações relativas à legislação de trânsito, deve ser observado que também caracterizado está o abuso de direito, definido no art. 187 do Código Civil, vez que configurado o resultado ilícito da ação, independentemente do elemento subjetivo ou da intenção do agente de prejudicar, do que resulta a responsabilidade objetiva.
Para a fixação do seu quantum, há de se observar os critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, visando desestimular a prática dos atos abusivos, considerando a culpa de seus executores e o bem jurídico protegido. In casu, restou demonstrado e evidente o atentado à segurança da coletividade injustificadamente atingida pela ambição da sociedade empresária apelada.
Conforme aludido em contrarrazões (fl. 392), a SYNGENTA é uma empresa global, com sede na Suíça e presente em aproximadamente 90 (noventa) países, líder mundial no setor do agronegócio. Com elevado grau de certeza é possível dizer que a apelada não ousa desafiar a lei de seu país sede como tem feito por aqui, de forma reiterada. Assim, arbitro os danos morais coletivos em R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais), que deverão ser destinados ao Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos, nos termos do artigo 13 da Lei nº 7.347/85.
Para a fixação do montante considerei não só o pedido formulado e a capacidade econômica da apelada, mas também o fato de que não se trata de uma conduta insignificante (já que realizada milhares de vezes), assim como os fins comerciais, que objetivam a majoração dos lucros mediante a exploração da álea alheia, isto é, o risco à integridade física e à vida dos motoristas que fazem uso diário das malhas rodoviárias.
Os juros de mora e a correção monetária incidentes sobre os valores fixados a título de dano moral coletivo deverão ser aplicados nos moldes das súmulas nº 54 e 362 do Superior Tribunal de Justiça, ou seja, juros de mora a partir do evento danoso e correção monetária a partir desta decisão, na forma do Manual de Orientação para Cálculos vigente no momento da execução.
Nesse sentido:
Consigna-se que na fase de cumprimento do acórdão deverá ser considerada a caracterização do evento danoso na data do Relatório Conclusivo do Inquérito Civil pelo Ministério Público Federal.
Por fim, consoante entendimento majoritário, a condenação da parte vencida no pagamento de honorários advocatícios somente é cabível na hipótese de comprovada litigância de má-fé. Deste modo, por critério de simetria em relação ao disposto no artigo 18 da Lei nº 7.347/85, o Ministério Público Federal e a União não podem ser beneficiadas quando se sagrarem vencedoras da lide. Neste sentido recentes julgados da 1ª e da 2ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça:
Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO à apelação e à remessa oficial havida por submetida.
É como voto.
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