Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 02/10/2018
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0002564-67.2013.4.03.6113/SP
2013.61.13.002564-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal VALDECI DOS SANTOS
APELANTE : Caixa Economica Federal - CEF
ADVOGADO : SP148205 DENISE DE OLIVEIRA e outro(a)
APELADO(A) : Ministerio Publico Federal
ADVOGADO : WESLEY MIRANDA ALVES e outro(a)
No. ORIG. : 00025646720134036113 3 Vr FRANCA/SP

EMENTA

PROCESSO CIVIL. APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR. CDC. CONTRATOS BANCÁRIOS. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS COM RELEVÂNCIA SOCIAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. VENDA CASADA. FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO. TRANSPARÊNCIA. INFORMAÇÃO. APELAÇÃO IMPROVIDA.
I - O STJ reforçou o entendimento de que o MPF tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos dotados de relevância social no que é acompanhado por esta 1ª Turma do TRF da 3ª Região. Este entendimento tem guarida no art. 81, parágrafo único e art. 82, I e 83 do CDC. Nem a eventual existência de associação civil seria suficiente para afastar a legitimidade ativa do MP nestas condições.
II - A CEF, enquanto pessoa jurídica pública nacional que presta serviços de natureza bancária, financeira e de crédito mediante remuneração no mercado de consumo, enquadra-se no conceito de fornecedora do artigo 3º, caput e § 2º do CDC. A jurisprudência do STF (ADI 2591) e do STJ (Súmula nº 297) é pacífica ao assentar que os princípios do CDC são aplicáveis aos contratos de mútuo bancário. O STJ ressalva, tão somente, que nos contratos bancários é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas (Súmula nº 381).
III - A alegação de venda casada em decorrência da celebração de financiamentos imobiliários junto à CEF é corriqueira em inúmeras ações que correm na Justiça Federal, e a reiteração dos casos configura verdadeira litigância de massa. Não é relevante para o julgamento da ação a particularidade da situação de cada um dos mutuários ouvidos pelo MPF, o que dispensaria a necessidade de produção de prova testemunhal no âmbito judicial com a participação de patronos da CEF. A pretensão defendida na ação civil pública transcende a esfera jurídica daqueles mutuários, e o seu julgamento poderia ser realizado como questão meramente de direito, o que dispensaria a necessidade de avaliação minuciosa das oitivas pelo juízo. O teor do artigo 6º, VIII do CDC vem a calhar, neste contexto, precisamente em função da verossimilhança da alegação, perceptível por regras ordinárias de experiência.
IV - Nas relações de consumo, deve imperar a harmonia e a transparência entre os contratantes (art. 4º do CDC), objetivo esse que pode ser atingido, entre outras formas, com o oferecimento de informação adequada e com especificação correta a respeito dos produtos ou serviços ofertados pelos fornecedores, práticas que visam garantir a liberdade de escolha dos consumidores, além de representar direitos básicos dos mesmos (art. 6º, II e III do CDC).
V - O fornecedor que condiciona a oferta de um produto ou de um serviço à aquisição de outro produto ou serviço incorre em prática abusiva, popularmente conhecida como "venda casada" (art. 39, I do CDC). A prática em questão ganha especial gravidade quando combinada com outra prática considerada abusiva, é dizer, se o fornecedor vier a se prevalecer da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social (art. 39, IV do CDC).
VI - A redação do art. 39, I do CDC, ao tratar da venda casada não faz qualquer ressalva quanto a eventual vantagem econômica obtida pelo consumidor ao adquirir os produtos ou contratar os serviços de modo conjunto em comparação com a soma dos valores quando adquiridos de forma isolada. O abuso consiste na limitação da possibilidade de escolha do consumidor, quando o fornecedor, ciente do interesse do consumidor por apenas um determinado produto ou serviço, deixa de realizar a oferta de modo isolado, aproveitando a oportunidade para oferecer àquele um pacote de produtos ou serviços.
VII - Nestas condições, o fornecedor, mesmo na ausência de dolo ou má-fé, acaba por tratar a aquisição nestes termos como a praxe comercial, considerando pressuposta, evidente ou irrecusável a oportunidade de negócio e a vantagem comercial. A prática tem o intuito de dissuadir a aquisição de modo separado ou ocultar do consumidor tal possibilidade. Ocorre, no entanto, que por maior que seja o desconto oferecido para a aquisição do produto ou serviço adicional, o valor da contratação total dificilmente implicará num custo inferior à aquisição isolada daquele único produto ou serviço que inicialmente despertou o interesse do consumidor. Ao mesmo tempo, o fornecedor tem ganhos de escala, auferindo um lucro maior pelo incremento do número de vendas, mesmo com uma suposta diminuição de sua margem de lucro em relação a transações isoladas e individualizadas - que com frequência sequer seriam concretizadas se não fossem ofertadas por meio de venda casada.
VIII - É certo que o consumidor pode optar e ter interesse na aquisição em conjunto dos produtos e serviços. No entanto, a avaliação ou a prova de qual era esse elemento subjetivo, a posteriori, não deve representar uma presunção contrária à parte hipossuficiente. O que deve diferenciar a mera técnica de vendas da prática abusiva é a demonstração por parte do fornecedor da transparência na contratação, comprovando que o consumidor, após ser informado da possibilidade de aquisição isolada dos produtos ou serviços ofertados, conscientemente fez a opção pela contratação de um pacote.
IX - O ônus em questão seria excessivo em transações ordinárias nas quais se espera que o consumidor tenha uma mínima consciência da prática abusiva do fornecedor. Esta expectativa se reforça quanto mais o consumidor, com facilidade, puder recusar a oferta e optar por contratar com outro fornecedor que lhe ofereça condições mais vantajosas num mercado onde impera a livre concorrência. Esta não é, no entanto, a realidade do mercado de serviços bancários no país, marcado por evidentes características oligopolistas. A contratação de um financiamento imobiliário não representa, em regra, um ato ordinário na vida dos consumidores.
X - Muito embora o contrato de adesão esteja previsto no artigo 54 do CDC, não é incomum que, nas próprias denominações ou no teor das cláusulas dos contratos redigidos pelas instituições financeiras, mais de um serviço seja adquirido por meio de um mesmo instrumento contratual.
XI - A título de exemplo, cumpre mencionar que não são raras as controvérsias apresentadas ao Poder Judiciário em que mutuários contratam, num mesmo ato, um financiamento imobiliário, uma conta corrente, além de um crédito pela modalidade "cheque especial". Nestas condições, o pagamento do financiamento principal com frequência é realizado por débito automático. A aquisição do pacote de serviços, à primeira vista, representa uma maior comodidade para o consumidor consciente e diligente. São frequentes, porém, as situações em que os mutuários realizam depósitos mensais nas contas em questão com o intuito de pagar as prestações do financiamento imobiliário, mas acabam se descuidando dos valores relativos às taxas de administração e demais custos de outros serviços contratados. Em pouco tempo a dívida dos serviços se confunde e passa a sofrer incidência dos juros remuneratórios mais altos do crédito de curto prazo. Ao tentar regularizar a dívida do financiamento imobiliário, as instituições financeiras acabam por oferecer toda espécie de óbice, compelindo os mutuários a regularizar, de uma só vez, as dívidas de todos os serviços contratados, que passam a ser tratadas como se fossem uma só. A situação pode acarretar, no limite, até mesmo na execução do imóvel dado como garantia. Hipóteses como essa poderiam ser menos frequentes se o mutuário tivesse adquirido tão somente o serviço que inicialmente lhe interessava, ou se tivesse optado pelo pagamento por meio de boletos bancários.
XII - É dever da instituição financeira, enquanto fornecedora, ser o máximo transparente possível em relação às possibilidades de contratação pelos consumidores. Um simples formulário apartado no ato da contratação, com as opções a respeito da forma de pagamento e seus custos, ou ainda um formulário com a declaração de opção pela contratação do pacote, com ciência de que os serviços não são condicionados uns aos outros, seria suficiente para robustecer sensivelmente a posição dos fornecedores. Se a transparência pode prejudicar as técnicas de venda, ao prestar as informações de maneira minuciosa, o fornecedor acaba por diminuir sensivelmente a margem de dúvidas quanto à sua conduta, ou qualquer alegação de abuso em suas práticas.
XIII - O artigo 39, parágrafo único do CDC faz alusão ao inciso III daquele dispositivo ao estabelecer que os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor sem solicitação prévia equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento em tais circunstâncias. Muito embora a hipótese discutida nos autos seja a do inciso I do artigo 39 do CDC, a sanção prevista no parágrafo único pode ser aplicada por analogia, o que equivale à condenação estabelecida pela sentença apelada, não se sustentando as alegações de pedido ou condenação genéricos.
XIV - Não se cogitando de litisconsórcio passivo necessário da CEF com outros bancos que atuam no mercado como seus concorrentes, não há que se falar que a decisão fere a isonomia ou gere constrangimentos capazes de prejudicar sua atuação no mercado de financiamentos imobiliários.
XV - Apelação improvida.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação para confirmar a sentença recorrida, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.



São Paulo, 18 de setembro de 2018.
VALDECI DOS SANTOS
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): VALDECI DOS SANTOS:10082
Nº de Série do Certificado: 11DE18080664E707
Data e Hora: 20/09/2018 13:44:03



APELAÇÃO CÍVEL Nº 0002564-67.2013.4.03.6113/SP
2013.61.13.002564-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal VALDECI DOS SANTOS
APELANTE : Caixa Economica Federal - CEF
ADVOGADO : SP148205 DENISE DE OLIVEIRA e outro(a)
APELADO(A) : Ministerio Publico Federal
ADVOGADO : WESLEY MIRANDA ALVES e outro(a)
No. ORIG. : 00025646720134036113 3 Vr FRANCA/SP

RELATÓRIO

O DESEMBARGADOR FEDERAL VALDECI DOS SANTOS: Trata-se de apelação interposta pela Caixa Econômica Federal contra sentença que acolheu parcialmente o pedido formulado pelo Ministério Público Federal.


A ação civil pública foi interposta em face da Caixa Econômica Federal com o intuito de obter condenação da mesma à obrigação de não fazer consistente na abstenção de exigir ou sugerir, por ocasião da assinatura de financiamento imobiliário, a aquisição pelos mutuários de outros produtos oferecidos pela instituição financeira tais como a abertura de conta corrente para facilitar o pagamento das prestações.


A sentença acolheu parcialmente o pedido para condenar a CEF a abster-se de exigir, pressionar, constranger ou impor aos pretendentes a financiamentos imobiliários a aquisição de outros produtos e serviços da Caixa, tais como seguro de vida, seguro residencial, título de capitalização, plano de previdência privada e consórcio de automóveis, sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a cada contrato onde se verificar a infringência a esta decisão. Declarou que a Caixa Econômica Federal somente poderá exigir a abertura de conta corrente para o pagamento dessas prestações com os serviços básicos e gratuitos de que trata a Resolução n. 3.919/2010 do Conselho Monetário Nacional. Declarou a anulabilidade de todas as vendas de produtos e serviços contratados ao tempo da celebração de financiamentos de imóveis das quais resultou prejuízo aos respectivos consumidores, declarando, ainda a possibilidade dos consumidores lesados, com contratos de financiamento firmados a partir de 14/10/2008, pleitearem individualmente a devolução, com correção monetária e juros de mora legais, do quanto foi pago pelo(s) negócio(s) indesejado(s) e aqui caracterizados como vendas casadas.


Reconhecido o direito do autor e o justo receio de dano de difícil reparação das centenas (ou mesmo milhares) de consumidores que pretendam manter a mesma relação jurídica com a CEF, na Subseção de Franca, houve a antecipação parcial dos efeitos da tutela.

Em razões de apelação, a CEF informa que a sistemática hoje vigente para a assinatura de financiamento imobiliário não obriga a aquisição de outros produtos, e, quando há opção do cliente nesse sentido, há redução da taxa de juros do financiamento imobiliário em virtude da abertura de conta corrente, acompanhada ou não da contratação de outros produtos bancários. Refere que, mesmo no último caso, adota um sistema de premiação e pontuação semelhante. Aduz que a utilização de "pacotes de relacionamento" beneficia os clientes. Informa que a prática passou a ser adotada após composição judicial entre a CEF e o MPF nos autos da ACP nº 2008.72.02.0002769-7/SC, com a chancela daquele juízo. Argumenta que a decretação da revelia implica em ofensa à ampla defesa e ao contraditório, além de não obstar uma melhor instrução do processo. Aponta a ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal para interpor ação que discute direitos individuais disponíveis, de grupo de pessoas individualmente determináveis, participantes de relações jurídicas que estabelecem direitos divisíveis. Pela mesma razão, defende a inadequação da via da ação civil pública eleita para a defesa dos aludidos interesses, que não guardam previsão na legislação da ACP ou no CDC. Argui não restar evidente o constrangimento alegado nos autos que poderiam justificar a incidência do artigo 39, I do CDC. Sustenta que o pedido foi elaborado de forma genérica e que a sentença é ilíquida e, portanto, nula. Considerando a impossibilidade de se fixar condenação genérica, indaga as consequências de se reconhecer venda casada quando o mutuário se beneficiou dos outros produtos contratados, tais como, por exemplo, cartão de crédito, não sendo razoável deixar a critério do cliente entender se foi lesado ou não, tampouco estabelecer que a execução do julgado deva se fazer por mero requerimento administrativo. Assenta que houve ofensa aos termos do artigo 459, parágrafo único e 460 do CPC/73. Afirma que a prova obtida dentro do inquérito civil foi obtida com flagrante desrespeito ao princípio da proporcionalidade entre os sujeitos do processo e com afronta ao princípio da impessoalidade, já que os depoimentos foram acolhidos em fase inquisitorial sem a presença da CEF, sem a presença garantidora do advogado do investigado. Pontua que a Taxa de Operação Mensal (TOM) se aplica às operações do SFH e é autorizada pelo CMN, não se confundindo com a TA ou com a TRC. Assevera que ao oferecer desconto na taxa de juros do financiamento em decorrência da aquisição de outros produtos e serviços, a instituição financeira está apenas tentando atrair clientes para sua carteira, prática perfeitamente legal num mercado sujeito a forte concorrência que não configura venda casada, nem ofende normas consumeristas, uma vez que o desconto oferecido acaba sendo maior que o custo da cesta básica de serviços. Assinala ser incompreensível que o MPF não tenha dirigido a ação contra outras instituições financeiras que oferecem produtos semelhantes e que são alvos de um número maior de reclamações em órgãos de proteção ao consumidor. Ademais, manter a condenação dirigida apenas à CEF, nestas circunstâncias, notadamente ao se considerar os termos da antecipação da tutela, criaria uma distorção de mercado que atingiria o princípio da isonomia, além da própria liberdade empresarial da apelante. Entende que não existir risco de dano irreparável a sustentar a tutela. Assegura que a única hipótese de necessidade operacional inafastável de abertura de conta corrente diz respeito a hipótese de construção de imóvel, uma vez que os valores são liberados em parcelas. Alega que as tarifas cobradas pelos serviços bancários estão amplamente divulgadas em agências e no sítio da empresa na internet. Por todas as razões anteriormente apontadas, requer a reforma da sentença e o afastamento da multa fixada.

Em contrarrazões, o representante do Ministério Público Federal na 3ª Vara Federal de Franca opina pela manutenção da decisão.

O representante do Ministério Público Federal na Procuradoria Regional da República da 3ª Região manifesta-se pelo não provimento da apelação.

É o relatório.

VOTO

De início, quanto à preliminar de ilegitimidade ativa e inadequação da via eleita, é de se destacar que o Superior Tribunal de Justiça, em julgados recentes, reforçou o entendimento de que o Ministério Público Federal tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa de interesses individuais homogêneos dotados de relevância social, como é o caso dos autos, no que é acompanhado por esta Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Este entendimento tem guarida no artigo 81, parágrafo único e artigos 82, I e 83 do CDC. Destaco que nem a eventual existência de associação civil seria suficiente para afastar a legitimidade ativa do Ministério Público nestas condições.

Nesse sentido, colho da jurisprudência daquela Corte o seguinte julgado:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TELEFONIA FIXA E ACESSO À INTERNET. VENDA CASADA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. RELEVÂNCIA SOCIAL EVIDENCIADA. LEGITIMIDADE CONFIGURADA. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.
1. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação do direito que entendeu cabível à hipótese.
2. O Ministério Público tem legitimidade processual para a propositura de ação civil pública objetivando a defesa de direitos individuais homogêneos, mormente se evidenciada a relevância social na sua proteção.
3. No caso em apreço, a discussão transcende a esfera de interesses individuais dos efetivos contratantes, tendo reflexos em uma universalidade de potenciais consumidores que podem ser afetados pela prática apontada como abusiva.
4. Agravo interno não provido. 
(STJ, AINTARESP 201602042557, AINTARESP - Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial - 961976, Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJE DATA:03/02/2017)

Rejeito a matéria preliminar, em face do quanto aduzido.

Conforme já relatado, a ação foi interposta, em outras palavras, com o intuito de coibir a prática de venda casada pela Caixa por ocasião da assinatura de contratos de financiamento imobiliário, quando é comum a contratação concomitante pelos mutuários de outros serviços bancários oferecidos pela instituição financeira, tais como a abertura de conta corrente para o débito automático de prestações, cheque especial, ou ainda seguros, cartão de crédito, entre outros.


A Caixa Econômica Federal, enquanto pessoa jurídica pública nacional que presta serviços de natureza bancária, financeira e de crédito mediante remuneração no mercado de consumo, enquadra-se no conceito de fornecedora do artigo 3º, caput e § 2º do CDC. A jurisprudência dos egrégios Supremo Tribunal Federal (ADI 2591) e Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 297) é pacífica ao assentar que os princípios do Código de Defesa do Consumidor são aplicáveis aos contratos de mútuo bancário. O Superior Tribunal de Justiça ressalva, tão somente, que nos contratos bancários é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas (Súmula nº 381).

Cumpre destacar que o artigo 6º, VIII do CDC prevê a facilitação da defesa dos direitos dos consumidores com a possibilidade de inversão do ônus da prova se verificada a hipossuficiência do consumidor ou a verossimilhança da alegação.

Na hipótese da presente ação civil pública, não se cogitou a inversão do ônus da prova, e o Ministério Público Federal apresentou documentos com a transcrição de oitivas de mutuários para ilustrar suas alegações. A CEF questiona a regularidade das oitivas apresentadas para fundamentar a decisão apelada por não se tratarem de provas testemunhais propriamente ditas, uma vez que foram produzidas unilateralmente pelo Ministério Público Federal, sem a participação de seus patronos.

A menção ao artigo 6º, VIII do CDC vem a calhar, neste contexto, precisamente em função da verossimilhança da alegação, perceptível por regras ordinárias de experiência. A alegação de venda casada em decorrência da celebração de financiamentos imobiliários junto à CEF é corriqueira em inúmeras ações que correm na Justiça Federal, e a reiteração dos casos configura verdadeira litigância de massa. Por esta razão, como já aludido, é justificada a interposição de ação civil pública pelo Ministério Publico Federal. Também por esta razão não é relevante para o julgamento da ação a particularidade da situação de cada um dos mutuários ouvidos pelo MPF, o que dispensaria a necessidade de produção de prova testemunhal no âmbito judicial com a participação de patronos da CEF.

As oitivas apresentadas pelo Ministério Público Federal servem apenas de conjunto indiciário para ilustrar sua argumentação. É de rigor destacar que a pretensão defendida na presente ação transcende a esfera jurídica daqueles mutuários, e o seu julgamento poderia ser realizado como questão meramente de direito, o que dispensaria a necessidade de avaliação minuciosa das oitivas pelo juízo.

Nas relações de consumo, deve imperar a harmonia e a transparência entre os contratantes (art. 4º do CDC), objetivo esse que pode ser atingido, entre outras formas, com o oferecimento de informação adequada e com especificação correta a respeito dos produtos ou serviços ofertados pelos fornecedores, práticas que visam garantir a liberdade de escolha dos consumidores, além de representar direitos básicos dos mesmos (art. 6º, II e III do CDC.


O fornecedor que condiciona a oferta de um produto ou de um serviço à aquisição de outro produto ou serviço incorre em prática abusiva, popularmente conhecida como "venda casada" (artigo 39, I do CDC). A prática em questão ganha especial gravidade quando combinada com outra prática considerada abusiva, é dizer, se o fornecedor vier a se prevalecer da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social (artigo 39, IV do CDC).


A Caixa sustenta que não há qualquer abuso em oferecer e celebrar, concomitantemente, mais de um contrato de serviço bancário com seus clientes. Afirma que a coincidência das contratações é acompanhada de uma sistemática de premiação e pontuação por meio da qual seus clientes obtêm expressivas vantagens econômicas, tais como isenções ou cobrança de taxas e juros em patamares inferiores àqueles que seriam praticados em contratações isoladas. Nestas condições, não haveria a prática de venda casada, mas apenas a oferta de pacotes de relacionamento que, quando contratados, respeitariam a autonomia da vontade de seus clientes. Entende que a prática representa técnica de venda regular, não havendo qualquer indício de efetivo condicionamento ou constrangimento de mutuários para aquisição de serviços adicionais.


Pela argumentação apresentada pela CEF, a questão só poderia ser analisada de modo casuístico, e exigiria a prova cabal de conduta ilícita, demonstrando o dolo ou culpa de seu representante por ocasião da celebração do mútuo. A adoção deste entendimento praticamente impossibilitaria a realização de prova pelos consumidores, relegando ao acaso o reconhecimento da prática abusiva. A questão, como é a regra num contexto de relações jurídicas massificadas, deve ser tratada de modo objetivo, tendo em vista a opção do legislador pela proteção da parte hipossuficiente ao distribuir o ônus da prova.


A redação do artigo 39, I do CDC, ao tratar da venda casada não faz qualquer ressalva quanto a eventual vantagem econômica obtida pelo consumidor ao adquirir os produtos ou contratar os serviços de modo conjunto em comparação com a soma dos valores quando adquiridos de forma isolada.


O abuso consiste na limitação da possibilidade de escolha do consumidor, quando o fornecedor, ciente do interesse do consumidor por apenas um determinado produto ou serviço, deixa de realizar a oferta de modo isolado, aproveitando a oportunidade para oferecer àquele um pacote de produtos ou serviços.


Nestas condições, o fornecedor, mesmo na ausência de dolo ou má-fé, acaba por tratar a aquisição nestes termos como a praxe comercial, considerando pressuposta, evidente ou irrecusável a oportunidade de negócio e a vantagem comercial. A prática tem o intuito de dissuadir a aquisição de modo separado ou ocultar do consumidor tal possibilidade.


Ocorre, no entanto, que por maior que seja o desconto oferecido para a aquisição do produto ou serviço adicional, o valor da contratação total dificilmente implicará num custo inferior à aquisição isolada daquele único produto ou serviço que inicialmente despertou o interesse do consumidor. Ao mesmo tempo, o fornecedor tem ganhos de escala, auferindo um lucro maior pelo incremento do número de vendas, mesmo com uma suposta diminuição de sua margem de lucro em relação a transações isoladas e individualizadas - que com frequência sequer seriam concretizadas se não fossem ofertadas por meio de venda casada.


É certo que o consumidor, efetivamente, pode optar e ter interesse na aquisição em conjunto dos produtos e serviços. No entanto, a avaliação ou a prova de qual era esse elemento subjetivo, a posteriori, não deve representar uma presunção contrária à parte hipossuficiente. Por essas razões, o que deve diferenciar a mera técnica de vendas da prática abusiva é a demonstração por parte do fornecedor da transparência na contratação, comprovando que o consumidor, após ser informado da possibilidade de aquisição isolada dos produtos ou serviços ofertados, conscientemente fez a opção pela contratação de um pacote.


É de se destacar que o ônus em questão seria excessivo em transações ordinárias nas quais se espera que o consumidor tenha uma mínima consciência da prática abusiva do fornecedor. Esta expectativa se reforça quanto mais o consumidor, com facilidade, puder recusar a oferta e optar por contratar com outro fornecedor que lhe ofereça condições mais vantajosas num mercado onde impera a livre concorrência.


Esta não é, no entanto, a realidade do mercado de serviços bancários no país, marcado por evidentes características oligopolistas. A contratação de um financiamento imobiliário não representa, em regra, um ato ordinário na vida dos consumidores. Muito embora o contrato de adesão esteja previsto no artigo 54 do CDC, não é incomum que, nas próprias denominações ou no teor das cláusulas dos contratos redigidos pelas instituições financeiras, mais de um serviço seja adquirido por meio de um mesmo instrumento contratual.


A título de exemplo, cumpre mencionar que não são raras as controvérsias apresentadas ao Poder Judiciário em que mutuários contratam, num mesmo ato, um financiamento imobiliário, uma conta corrente, além de um crédito pela modalidade "cheque especial". Nestas condições, o pagamento do financiamento principal com frequência é realizado por débito automático. A aquisição do pacote de serviços, à primeira vista, representa uma maior comodidade para o consumidor consciente e diligente.


São frequentes, porém, as situações em que os mutuários realizam depósitos mensais nas contas em questão com o intuito de pagar as prestações do financiamento imobiliário, mas acabam se descuidando dos valores relativos às taxas de administração e demais custos de outros serviços contratados. Em pouco tempo a dívida dos serviços se confunde e passa a sofrer incidência dos juros remuneratórios mais altos do crédito de curto prazo. Ao tentar regularizar a dívida do financiamento imobiliário, as instituições financeiras acabam por oferecer toda espécie de óbice, compelindo os mutuários a regularizar, de uma só vez, as dívidas de todos os serviços contratados, que passam a ser tratadas como se fossem uma só.


A situação pode acarretar, no limite, até mesmo na execução do imóvel dado como garantia. Hipóteses como essa poderiam ser menos frequentes se o mutuário tivesse adquirido tão somente o serviço que inicialmente lhe interessava, ou se tivesse optado pelo pagamento por meio de boletos bancários. A aludida vantagem econômica na oferta de um pacote de serviços pode vir a representar grande constrangimento para os consumidores quando, por uma razão qualquer, tornam-se inadimplentes e desejam regularizar sua situação.


Por todo exposto, é dever da instituição financeira, enquanto fornecedora, ser o máximo transparente possível em relação às possibilidades de contratação pelos consumidores. Um simples formulário apartado no ato da contratação, com as opções a respeito da forma de pagamento e seus custos, ou ainda um formulário com a declaração de opção pela contratação do pacote, com ciência de que os serviços não são condicionados uns aos outros, seria suficiente para robustecer sensivelmente a posição dos fornecedores. Se a transparência pode prejudicar as técnicas de venda, ao prestar as informações de maneira minuciosa, o fornecedor acaba por diminuir sensivelmente a margem de dúvidas quanto à sua conduta, ou qualquer alegação de abuso em suas práticas. Nem mesmo na hipótese de abertura de conta corrente para financiamento de construção de imóveis, a venda casada seria justificada.


Neste sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR. TELEFONIA. VENDA CASADA. SERVIÇO E APARELHO. OCORRÊNCIA. DANO MORAL COLETIVO. CABIMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. Trata-se de ação civil pública apresentada ao fundamento de que a empresa de telefonia estaria efetuando venda casada, consistente em impor a aquisição de aparelho telefônico aos consumidores que demonstrassem interesse em adquirir o serviço de telefonia.
2. (...)
5. O fato de ter as instâncias de origem desconsiderado a prova testemunhal da recorrida - porquanto ouvida na qualidade de informante - não está apto a configurar cerceamento de defesa, pois a própria dicção do art. 405, § 4º, do CPC, permite ao magistrado atribuir a esse testemunho o valor que possa merecer, podendo, até mesmo, não lhe atribuir qualquer valor.
6. Não tendo o autor sido capaz de trazer aos autos provas concretas de sua escorreita conduta comercial, deve suportar as consequências desfavoráveis à sua inércia. Fica, pois, afastado possível violação aos arts. 267, VI, 333, II e 334, II do CPC.
7. (...)
11. A prática de venda casada por parte de operadora de telefonia é capaz de romper com os limites da tolerância. No momento em que oferece ao consumidor produto com significativas vantagens - no caso, o comércio de linha telefônica com valores mais interessantes do que a de seus concorrentes - e de outro, impõe-lhe a obrigação de aquisição de um aparelho telefônico por ela comercializado, realiza prática comercial apta a causar sensação de repulsa coletiva a ato intolerável, tanto intolerável que encontra proibição expressa em lei.
12. Afastar, da espécie, o dano moral difuso, é fazer tabula rasa da proibição elencada no art. 39, I, do CDC e, por via reflexa, legitimar práticas comerciais que afrontem os mais basilares direitos do consumidor.
13. Recurso especial a que se nega provimento.
(STJ, REsp 1397870/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/12/2014, DJe 10/12/2014)

O artigo 39, parágrafo único do CDC faz alusão ao inciso III daquele dispositivo ao estabelecer que os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor sem solicitação prévia, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento em tais circunstâncias.

Muito embora a hipótese discutida nos autos seja a do inciso I do artigo 39 do CDC, a sanção prevista no parágrafo único pode ser aplicada por analogia, o que equivale à condenação estabelecida pela sentença apelada, não se sustentando as alegações de pedido ou condenação genéricos.

Por fim, não se cogitando de litisconsórcio passivo necessário da CEF com outros bancos que atuam no mercado como seus concorrentes, não há que se falar que a decisão fere a isonomia ou gere constrangimentos capazes de prejudicar sua atuação no mercado de financiamentos imobiliários.

Ante o exposto, nego provimento à apelação da Caixa Econômica Federal, na forma da fundamentação acima, para confirmar a sentença recorrida.

É o voto.




VALDECI DOS SANTOS
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): VALDECI DOS SANTOS:10082
Nº de Série do Certificado: 11DE18080664E707
Data e Hora: 20/09/2018 13:44:01