"DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. CRIME DE PRECONCEITO CONTRA INDÍGENAS COMETIDO POR INTERMÉDIO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO. ART. 20, § 2º, DA LEI Nº 7.716 /89. PRELIMINARES DE INCOMPETÊNCIA, INÉPCIA DA DENÚNCIA, POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO SURSIS PROCESSUAL E INOBSERVÂNCIA DO RITO QUANTO AO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. NULIDADES. INOCORRÊNCIA. REJEIÇÃO DAS PREFACIAIS. MÉRITO. AUTORIA MATERIALIDADE E DOLO DEVIDAMENTE COMPROVADOS. INJÚRIA RACIAL. DESCLASSIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DECRETO CONDENATÓRIO MANTIDO. PENA. SUBSTITUIÇÃO. RESTRITIVAS. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE E PECUNIÁRIA. 1. Consoante o disposto no art. 231 da Constituição da República incumbe à União o dever de preservar as populações indígenas quanto à sua cultura (organização social, costumes, línguas, crenças e tradições) suas terras (as que tradicionalmente ocupam) seus bens, e, principalmente, como valor inestimável sua vida, a qual engloba a integridade física e a honra dos índios, quer em sua coletividade ou mesmo individualmente. 2. Destarte, havendo ofensa (contenda/disputa) a alguma destas garantias, ressai evidente o interesse da União, e por consequência, a vis atractiva da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, XI da Constituição Federal. 3. A denúncia deve observar criteriosamente os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, sob pena de inépcia. Entretanto, nos delitos dolosos, mostra-se dispensável a descrição do elemento subjetivo do tipo, bastante a menção do preceito legal, em tese, violado, razão por que inviável a rejeição liminar da peça acusatória. 4. Para a proposição do benefício insculpido no art. 89 da lei nº 9.099/95, a pena mínima que não pode ultrapassar 01 (um) ano, bem como devem restar preenchidos os demais requisitos. Hipótese inocorrente nos autos. 5. Conforme precedentes do STJ e desta Corte, além da posição majoritária da doutrina, o recebimento da denúncia para todos os efeitos - inclusive, obviamente, para fins de interrupção do prazo prescricional - ocorre na forma inscrita no artigo 396 do CPP, e não na fase do artigo 399 do referido Codex. 6. Uma situação de conflito, como a caracterizada pelo lançamento de um olhar não-indígena sobre uma cultura indígena, é facilmente traduzida pela estigmatização do grupo minoritário. Essa ideia de classificação leva da estigmatização à etnização dos grupos. Daí, por certo, a atribuição de qualificativos como "vagabundos", "sujos", "semi-civilizados" e "ignorantes", bem como da expressão "vivendo das benesses do poder branco" além de veicular o preconceito étnico, robustece o argumento de sua marginalização. 7. A imposição de diferenças por intermédio de atributos negativamente valorizados como os constantes no artigo que motivou a denúncia, mais a afirmação da suposta falta de identidade legítima, pode levar a uma política de segregação. É essa luta constante de negociação das fronteiras simbólicas entre os grupos em conflito que encontramos subjacente na atribuição de características negativas aos índios. 8. É a desqualificação dos indígenas, em especial os assentados neste Estado que procura marcar o lugar da etnia indígena como "outros", aqueles que não somos nós. E pouco importa quem sejam os identificados como "nós", pois são aqueles em posição de atribuir uma identidade vinculada a características negativas, o que resulta na conduta típica da incitação ao preconceito, prevista no artigo 20 da lei nº 7.716 /89. 10. Por intermédio dessa atribuição de características negativas que se dirigem genericamente aos índios, é que se pratica a discriminação étnica. 11. É cediço que discriminar significa: promover qualquer tipo de distinção, exclusão, restrição ou preferência. Também discrimina quem não reconhece as diferenças culturais das diversas etnias que compõem o tecido social, tencionando eliminá-las de forma antidemocrática. Consiste na negação dos princípios da igualdade e do pluralismo, mediante imposição de restrições ou exigências desarrazoadas. 12. Já o preconceito diz respeito à esfera da intimidade. Se a discriminação é posta como exteriorização objetiva, o preconceito, ao contrário, refere-se à atitude interior. Tem a ver com o modo de compreensão da realidade, situa-se no campo ideológico ou simbólico, enquanto a discriminação no campo real. 13. No que tange à caracterização do racismo penalmente relevante, é possível afirmar que o preconceito precede à discriminação, ordenando-a como ação plena de sentido. A rigor, o preconceito é tanto um estado intelectual quando um estado de ânimo (predisposição para agir). 14. O preconceito funciona como móvel da ação discriminatória, integrando, ao lado do dolo, o aspecto subjetivo do juízo de tipicidade dos crimes raciais. Exerce, pois, o papel de elemento motivador da prática discriminatória, deflagrando-a e saltando de um estado puramente anímico (racismo em estado latente) para dar vazão ao injusto penal (racismo em ato). Ou seja, o preconceito como algo intrínseco ao agente pode transformar-se em conduta discriminatória típica e ilícita. 15. In casu, no afã de externar sua posição contrária ao processo de demarcação da área da Raposa Terra do Sol no estado de Roraima, região Norte do país, o acusado, não se atendo apenas ao seu pensamento crítico, externou, com viés incitador e discriminatório, em sua coluna semanal do Jornal NH, sentimentos pessoais desprezíveis aos índios, em especial aos que habitam no Vale dos Sinos, incorrendo, portanto, no delito inscrito no art. 20, § 2º, da lei 7.716 /89. 16. Se as expressões discriminatórias revelam preconceito à coletividade (grupo) de índios, não há falar em tipificação no crime de injúria racial, previsto no art. 140 § 3º do Código Penal, mas sim no art. 20 da lei 7.716 /89, posto que aquele tipo penal prevê ofensa à honra subjetiva de um determinado indivíduo em razão da sua etnia. 17. Condenação mantida. 18. Pena corretamente aplicada (02 anos e 10 dias-multa) substituída por duas restritivas de direitos - prestação de serviços à comunidade e pecuniária - na forma do artigo 44 do CP. 19. Os valores da multa e da prestação pecuniária, fixados com sólidos fundamentos e alicerçados ainda na favorável situação econômica do réu, devem ser mantidos. Nada obsta que tais valores possam ser objeto de parcelamento, a critério do Juízo da Execução."(ACR 000494315 20 094047108, DESEMBARGADORA FEDERAL SALISE MONTEIRO SANCHOTENE - TRF4 - Sétima Turma - D.E. 27/05/2013)