Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 07/06/2019
EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE Nº 0001631-25.2012.4.03.6115/SP
2012.61.15.001631-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal MAURICIO KATO
EMBARGANTE : ALAIDE APARECIDA BENTO RABATINI
ADVOGADO : ANDRE LUIS RODRIGUES (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EMBARGADO(A) : Justica Publica
No. ORIG. : 00016312520124036115 10P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PENAL E PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO MEDIANTE FINANCIAMENTO JUNTO À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. FINANCIAMENTO COM DESTINAÇÃO ESPECÍFICA. DELITO DESCRITO NO ART. 19 DA LEI N. 7.492/86. DESNECESSIDADE DE ABALO AO SISTEMA FINANCEIRO PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. ART 26 DA LEI N. 7.492/86. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. EMBARGOS INFRINGENTES REJEITADOS.
1. Nos termos do artigo 609, parágrafo único, do Código de Processo Penal, os embargos infringentes e de nulidade são restritos à matéria objeto de divergência.
2. É competente a Justiça Federal para julgar a ação penal quando configurado o delito descrito no art. 19 da Lei n. 7.492/86. Para a configuração do crime, basta a obtenção, mediante fraude, de financiamento em instituição financeira, sem necessidade de abalo ao sistema financeiro.
3. Embargos infringentes rejeitados.


ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, rejeitar os embargos infringentes, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 30 de maio de 2019.
RAQUEL SILVEIRA
Juíza Federal Convocada


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EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE Nº 0001631-25.2012.4.03.6115/SP
2012.61.15.001631-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal MAURICIO KATO
EMBARGANTE : ALAIDE APARECIDA BENTO RABATINI
ADVOGADO : ANDRE LUIS RODRIGUES (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
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RELATÓRIO

Trata-se de embargos infringentes opostos por Alaíde Aparecida Bento Rabatini, em face do acórdão de fls. 424/428-verso, proferido pela Egrégia Décima Primeira Turma desta Corte que, por maioria, rejeitou a preliminar de incompetência da Justiça Federal, nos termos do voto divergente do Des. Fed. Nino Toldo, acompanhado do Des. Fed. José Lunardelli.

Vencido o Des. Fed. Relator Fausto de Sanctis, que reconhecia, de ofício, a incompetência da Justiça Federal.

No mérito, por unanimidade, a Turma negou provimento ao recurso de apelação interposto pela embargante, mantendo integralmente a sentença que a condenou à pena privativa de liberdade de 02 (dois) anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime aberto, bem como ao pagamento de 10 dias-multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do salário mínimo vigente em agosto de 2009, pela prática do delito previsto no artigo 19 da Lei nº 7.492/1986.

O acórdão foi assim ementado:

"PENAL E PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. ART. 19 DA LEI Nº 7.492/1986. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA JUSTIÇA FEDERAL SUSCITADA DE OFÍCIO PELO RELATOR REJEITADA. ALEGAÇÃO DE ERRO DE TIPO A AFASTAR O DOLO DA CONDUTA DA ACUSADA. ART. 20 DO CÓDIGO PENAL. ELEMENTOS PROBATÓRIOS CONSTANTES DOS AUTOS INDICATIVOS DE SUA ATUAÇÃO DOLOSA (LIVRE E CONSCIENTE). MANUTENÇÃO DA CONDENAÇÃO IMPOSTA EM 1º GRAU DE JURISDIÇÃO.
- Preliminar de incompetência absoluta da Justiça Federal refutada por maioria. Para o Relator, os fatos narrados na denúncia configurariam, em tese, o delito de estelionato (artigo 171 do Código Penal), e não Crime contra o Sistema Financeiro Nacional, de modo que não se justificaria o julgamento da causa perante a Justiça Federal, razão pela qual suscitou, de ofício, preliminar de incompetência absoluta, a fim de que fosse anulada a sentença e declinada a competência. Todavia, nos termos do voto divergente apresentado, prevaleceu, por maioria, o entendimento de que os fatos se amoldariam à figura imputada na denúncia, ou seja, ao artigo 19 da Lei nº 7.492/1986, de modo que o julgamento prosseguiu para o enfrentamento dos temas veiculados no apelo.
- Pretende a recorrente o reconhecimento da figura estampada no art. 20 do Código Penal, segundo a qual o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei - assim, acaso acolhida sua pretensão, haveria a exclusão do dolo e, como o crime no qual restou incursa não prevê figura culposa (art. 19 da Lei nº 7.492/1986), sua absolvição seria de rigor.
- Compulsando os autos, depreende-se a impossibilidade de ser levar a efeito o reconhecimento do erro vindicado, uma vez que as provas nele constantes apontam para a atuação livre e consciente da acusada com o desiderato de obter financiamento junto à instituição financeira mediante o emprego de fraude. De rigor, portanto, a manutenção do édito penal condenatório.
- Preliminar de incompetência absoluta da Justiça Federal suscitada de ofício pelo Relator refutada por maioria. Negado provimento ao recurso de Apelação interposto pela acusada ALAIDE APARECIDA BENTO RABATINI".

Nos embargos infringentes (fls. 432/438), a defesa requer a prevalência do voto vencido proferido pelo Des. Fed. Relator Fausto de Sanctis, que reconhecia, de ofício, a incompetência da Justiça Federal.

Os embargos infringentes foram admitidos (fl. 440) e redistribuídos, nos termos do artigo 266, §2º, do Regimento Interno desta Corte.

A Procuradoria Regional da República manifestou-se pela rejeição dos embargos (fls. 443/446).

É o relatório.

À revisão.



MAURICIO KATO
Desembargador Federal


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EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE Nº 0001631-25.2012.4.03.6115/SP
2012.61.15.001631-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal MAURICIO KATO
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VOTO

Nos termos do artigo 609, parágrafo único, do Código de Processo Penal, os embargos infringentes e de nulidade são restritos à matéria objeto de divergência.

No presente caso, a discordância cinge-se ao reconhecimento da incompetência da Justiça Federal para julgar o feito, com a determinação da remessa dos autos à Justiça Estadual de São Carlos/SP.

Passo, pois, a analisar a questão devolvida à Quarta Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região por meio deste recurso.

O voto preliminar do Des. Fed. Relator Fausto de Sanctis reconhecia a incompetência da Justiça Federal para o julgamento dos fatos imputados à embargante nos seguintes termos (fls. 420/423):

"(...)
Trata-se de feito no qual recorre a acusada ALAIDE APARECIDA BENTO RABATINI da r. sentença que a condenou como incursa no art. 19 da Lei nº 7.492/1986, impondo-lhe pena privativa de liberdade de 02 anos de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime aberto, bem como ao pagamento de 10 dias-multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do salário mínimo vigente em agosto de 2009, cabendo destacar que a pena corporal restou substituída por duas reprimendas restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e limitação de fim de semana, ambas com a mesma duração da privação de liberdade). Sustenta tese única por meio da qual deveria ser reconhecido no caso concreto erro de tipo a excluir o dolo de sua conduta.
DA COMPETÊNCIA PARA O JULGAMENTO DESTE FEITO
Impende, inicialmente, trazer a baila questão atinente à competência absoluta para o conhecimento e para o julgamento do presente feito, o que, tratando-se de matéria de ordem pública, é de enfrentamento necessário em qualquer fase processual. Anote-se que, em regra, o momento processual para que se proceda a adequação da capitulação jurídica do fato narrado na denúncia ao tipo penal previsto na lei é a prolação de sentença ante a aplicação da emendatio libelli (art. 383 do Código de Processo Penal: O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave).
Todavia, em situações excepcionais, como a presente, mostra-se possível ao julgador imiscuir-se na capitulação do delito, especialmente quando implicar no reconhecimento de tema de ordem pública, a fim de se evitar que a inadequada subsunção típica macule o instituto da competência.
(...)
Feitas tais considerações, tem-se que o art. 19 da Lei nº 7.492/1986 dispõe constituir crime obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira, culminando pena de reclusão de 02 a 06 anos e multa. A questão da competência jurisdicional para o tratamento dos casos de crime previsto no artigo mencionado tem ganhado bastante realce com o avolumar dos fatos em investigação, notadamente quando se percebe que meros financiamentos chamados "Abertura de Crédito para Financiamento de Bens e/ou Serviços" têm atraído a competência da Justiça Federal basicamente por força da qualificação de um dos polos contratantes. Por exemplo, veículos automotores, como carros e motocicletas, têm sido obtidos pela população graças ao grande volume creditício oferecido por várias instituições, inclusive financeiras, com a intermediação de concessionárias do setor.
Insta perquirir se o fato de um banco ou de uma instituição figurar no polo da relação creditícia ou haver vinculação do valor concedido ao bem teria o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal.
Com efeito, em uma análise perfunctória, fácil seria a conclusão de que tais fatos amoldar-se-iam ao disposto no art. 19 da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, sendo de competência desta Justiça Federal o tramitar do feito consoante o disposto no art. 109, VI, da Constituição Federal (Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira (...)). Todavia, não parece ser tão simples a questão.
Isso porque o tipo penal delineado em referido artigo tutela bem intangível, que corresponde a credibilidade do próprio Sistema Financeiro, a proteção do investidor e do mercado, desejando constituir um instrumento para a proteção do Sistema Financeiro Nacional. Disso não há qualquer dúvida. Mas todo e qualquer financiamento, no qual figure no polo obrigacional instituição financeira, quando obtido de forma fraudulenta, deve merecer a apreciação pela Justiça Federal?
Não resta dúvida que o tipo excogitado nada mais difere do crime de estelionato comum a não ser pela qualidade de um dos sujeitos da operação creditícia. Trata-se de uma forma especial de estelionato. A prática do delito previsto na Lei nº 7.492/1986, quando para a satisfação de uma necessidade qualquer de seu protagonista, atinge reflexamente o patrimônio alheio. Mas daí entender que enseja o comprometimento do Sistema Financeiro Nacional como um todo seria consagrar interpretação que confere extrema cautela do legislador e uma desarrazoada subtração de competência.
Para o efeito da legislação específica, tem-se entendido que financiamento significa a operação de crédito concedida com destinação específica (o que obriga a demonstração da aplicação do recurso), sendo que, em se tratando de fraude perpetrada, em tese, para a suposta obtenção de financiamento perante instituição financeira, a competência para processamento e para julgamento do delito é, em regra, da Justiça Federal. Nesse sentido:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSO PENAL. CONDUTA EM APURAÇÃO: OBTENÇÃO DE FINANCIAMENTO, MEDIANTE FRAUDE, PERANTE INSTITUIÇÃO FINANCEIRA PARA AQUISIÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. TIPO PREVISTO NO ART. 19 DA LEI 7.492/86. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Nos termos do art. 109, VI, da CF, os crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira são da competência da Justiça Federal nos casos determinados em lei. O art. 26 da Lei 7.492/86, que trata dos crimes contra o sistema financeiro nacional, dispõe que a ação penal, nesses casos, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante a Justiça Federal. 2. O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar esse dispositivo, fixou o entendimento de que o crime do art. 19 da Lei 7.492/86 será da competência da Justiça federal quando os recursos obtidos mediante fraude perante instituição financeira possuírem destinação específica. 3. In casu, a conduta em apuração diz respeito à concessão de fraudulenta de financiamentos por instituição financeira com finalidade definida (aquisição de veículo automotor), o que se subsume, em tese, ao tipo previsto no art. 19 da Lei 7.492/86, o que atrai a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito, nos termos do art. 26 daquele normativo. 4. Conflito conhecido para declarar a competência do juízo suscitado (JUÍZO FEDERAL DA 10ª VARA CRIMINAL ESPECIALIZADA EM CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO E CRIMES DE LAVAGEM DE VALORES DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO) (STJ, CC 151.188/SP, Rel. Min. ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 14/06/2017, DJe 23/06/2017) - destaque nosso.
Nos termos da Circular, da lavra do Banco Central do Brasil, nº 1.273, de 29 de dezembro de 1987, empréstimos são as operações realizadas sem destinação específica ou vínculo à comprovação da aplicação dos recursos, sendo certo que os financiamentos são as operações realizadas com destinação específica, vinculadas à comprovação da aplicação dos recursos.
Nessa toada, apesar de alguns julgados diferenciarem financiamento de empréstimo, este gênero do qual aquele configura espécie, caracterizado, o primeiro, pela finalidade empreendedora, isto é, a necessidade de subsidiar diversas atividades de fomento (cf. STJ, Conflito de Competência n.º 112.244/SP, v.u., j. 25.08.2010; STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial n.º 510779/MT, Ministro Convocado Celso Limongi, v.u., j. 23.02.2010; e TRF/4, Apelação Criminal n.º 2003.71.00.042536-3/RS, Rel. Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, v.u., j. em 19.03.2009), certo é que para o suposto efeito de firmar a competência da Justiça Federal, aparentemente não houve a análise sob o enfoque da natureza da operação e sua relevância frente ao Sistema Financeiro Nacional.
Sob esta ótica, não obstante a definição conceitual de financiamento, trata-se, na hipótese aventada, de mero contrato de empréstimo, o que não autoriza, em termos materiais, apesar da peculiaridade, o deslocamento de competência. Ora, o que deve nortear a interpretação não seria meramente a qualidade de um dos sujeitos da relação negocial, ou seja, inserir-se no rol das instituições financeiras ou a estas equiparadas (art. 1º da Lei nº 7.492/1986), tampouco o fato de os recursos servirem para a aquisição de um determinado bem, mas a natureza efetiva da operação e sua relevância para o Sistema Financeiro Nacional.
Desta feita, não haveria a perfeita subsunção dos fatos à norma do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 quando há financiamento perante instituição financeira, a despeito de possuir alguma destinação específica e/ou vinculação dos recursos, na hipótese, por exemplo, de inexistir uma orquestração hábil a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional. Consigne-se que a interpretação não pode se enveredar por conclusão que apenas leve em conta a distinção entre empréstimo e financiamento e, assim, concluir esta última modalidade como sendo de competência federal.
Na verdade, os contratos firmados para financiamento de bem móvel possuem nítida natureza de contrato de caráter privado, cabendo ao Poder Público, tão-somente, a fiscalização e a adequação normativa, atividade de regulação que visa à proteção e à defesa do consumidor evitando que haja práticas abusivas por parte de instituições bancárias. Inserem-se, portanto, no campo das relações de consumo, o que força as instituições financeiras evitarem a imposição de obrigações excessivamente onerosas, reconhecendo-se a vulnerabilidade do consumidor.
Não caberia proteção desnecessária às instituições financeiras, com a inclusão de tal modalidade de contratação na definição do tipo de colarinho branco, até pelo fato de, em várias hipóteses, elas próprias concederem, por interpostas pessoas (um terceiro, uma concessionária ou um empresa comercial) tais financiamentos a pessoas sem condições financeiras para honrar suas dívidas, ou que comprometam significativamente os vencimentos percebidos ou mesmo a indivíduos desconhecidos ou sequer objeto de uma verificação da capacidade econômica mais detida, tamanha a certeza do ganho com a atividade desenvolvida, que encontra lastro nas próprias e extensas garantias previstas, cujas eventuais inadimplências normalmente são compensadas apenas com as taxas elevadas de remuneração do crédito concedido.
Portanto, está-se diante de uma atividade de caráter essencialmente privado, um serviço prestado por instituição financeira ao mercado de consumo, mediante remuneração, com cobertura mais que suficientemente garantida, o que faz com que incida a regra do art. 3º, § 2º, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), considerado constitucional pelo C. Supremo Tribunal Federal (ADI nº 2.591, em 07 de junho de 2006): Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Como discorre Milton Fornazari Júnior (in Da Distinção do Financiamento das Demais Operações de Crédito para fins da Configuração do Crime Previsto no Artigo 19 da Lei nº 7.492/86, Revista Criminal, Ano 03, vol. 06, jan/mar 2009, p. 151/162), bens duráveis destinados ao mero consumo, tais como a aquisição de veículos, motos, microcomputadores etc., ainda que se denominem 'financiamentos', na verdade são espécies de contratos de mútuo/empréstimo estritamente privados sem a presença do caráter empreendedor ou da atividade estatal de fomento, concedidos muitas das vezes em terminais eletrônicos ou via Internet, sem a observância de rigorosas cautelas.
Ora, parece que não seria defensável que um mero ato jurídico básico que retrate com fidelidade as relações entre a moeda e o crédito, típico contrato de empréstimo de coisa fungível, ainda que vinculado a um determinado bem, fosse atingir o Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade. Não se vislumbra sequer risco potencial a ele.
O art. 19 da excogitada lei federal somente pode possuir efetividade quando a fraude ao contrato de financiamento implicar em orquestração relevante, atingindo ou não mais de uma instituição financeira, ou na hipótese de financiamento de vários bens visando a atividade de fomento mercantil. Aí, nestas hipóteses, haveria que se invocar o art. 109, VI (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), da Constituição Federal, porquanto o inciso IV (delitos contra bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas) não há de ter aplicação diante de previsão específica (inciso VI).
Assim, na hipótese dos autos (financiamento para obtenção de veículo automotor perante a BV Financeira S.A.), por não se verificar ofensa, nem mesmo potencial, ao Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade, porquanto a natureza de tal modalidade de concessão de crédito volta-se exclusivamente ao interesse privado de forma preponderante, risco calculado, digerido pelo mercado e pouco consistente (quantidade e grau de garantias previstas e interveniência de terceiros no controle do preenchimento das condições econômicas devidas), não há que se falar no crime previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/1986, porquanto, em verdade, toca e releva apenas a interesses de cunho exclusivamente patrimonial e privado.
Destarte, considerando que os fatos em apreço configuram, em tese, delito de estelionato (art. 171 do Código Penal) e não crime contra o Sistema Financeiro Nacional, não se justifica o julgamento da causa perante a Justiça Federal, motivo pelo qual deve o feito ser encaminhado à Justiça Estadual de São Carlos/SP, nos termos do § 2º do art. 383 e primeira parte do art. 70, ambos do Código de Processo Penal.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto por RECONHECER, de ofício, a incompetência da Justiça Federal para o tramitar e para o julgamento do presente feito, determinando sua remessa à Justiça Estadual de São Carlos/SP, nos termos anteriormente expendidos".

O voto preliminar, contudo, foi refutado pela maioria que, nos termos do voto divergente, julgou que os fatos se amoldariam à figura imputada na denúncia, ou seja, ao artigo 19 da Lei nº 7.492/1986.

A defesa alega a competência da Justiça Estadual para julgar o processo.

Sem razão.

Consta na denúncia que a embargante obteve, mediante fraude, financiamento no valor de R$ 19.626,72 (dezenove mil, seiscentos e vinte e seis reais e setenta e dois centavos) em nome de Luiz Antônio Rabatini, junto à instituição financeira BV Financeira S/A, para a aquisição do automóvel GM/Corsa Hatch, ano de 2002, cor preta, placas DGA 9942, na Guscar Veículos, localizada na subseção judiciária de São Carlos/SP.

Segundo se apurou nos autos, para a concessão do financiamento, a embargante utilizou uma cédula de identidade na qual constava o nome do seu tio Luiz Antônio Rabatini e o R.G. nº. 10.925.789-2-SP, número de registro que, na verdade, está cadastrado em nome de Antônio Cirilo Fernandes.

Dessa forma, a embargante obteve, mediante fraude, financiamento em instituição financeira.

A competência para julgar o feito, portanto, é da Justiça Federal.

Para a configuração do delito descrito no art. 19 da Lei n. 7.492/86, basta a obtenção, mediante fraude, de financiamento em instituição financeira, que se caracteriza pela destinação específica dos valores obtidos.

A descrição do tipo penal feita pelo art. 19 da Lei 7.492/86 limita-se a descrever a conduta de "obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira" e não exige, para a sua configuração, efetivo ou potencial abalo ao Sistema Financeiro.

Aqui, como a embargante fraudou o financiamento de um automóvel, em nome de terceiro, junto à instituição financeira BV Financeira S/A, está caracterizada a competência da Justiça Federal, na esteira da pacífica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

"CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA ENTRE A JUSTIÇA ESTADUAL E A JUSTIÇA FEDERAL. FRAUDE EM FINANCIAMENTO JUNTO A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA PARA A AQUISIÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. FINANCIAMENTO COM DESTINAÇÃO ESPECÍFICA. CARACTERIZAÇÃO, EM TESE, DO DELITO DESCRITO NO ART. 19 DA LEI N. 7.492/86. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE POTENCIAL ABALO DO SISTEMA FINANCEIRO COMO UM TODO PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. ART 26 DA LEI N. 7.492/86. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. O presente conflito negativo de competência deve ser conhecido, por se tratar de incidente instaurado entre juízos vinculados a Tribunais distintos, nos termos do art. 105, inciso I, alínea "d" da Constituição Federal - CF.
2. A nova orientação no âmbito do Ministério Público Federal no sentido de que compete à Justiça Estadual apurar condutas delitivas que afetam apenas o patrimônio de instituições financeira e não o Sistema Financeiro como um todo não prosperou nesta Corte, a qual entende que para a configuração do delito descrito no art. 19 da Lei n. 7.492/86, basta a obtenção, mediante fraude, de financiamento em instituição financeira com destinação específica dos valores obtidos. Em outras palavras, o Superior Tribunal de Justiça - STJ manteve sua jurisprudência no sentido de que o crime tipificado no art. 19 da Lei n. 7.492/86 não exige, para a sua configuração, efetivo ou potencial abalo ao Sistema Financeiro. Precedente.
3. Conforme art. 26 da Lei n. 7492/86,a ação penal, nos crimes previstos na mencionada lei, será promovida pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal.
4. Conflito de competência conhecido para declarar que compete o Juízo Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária do Estado do Maranhão.
(CC 161.707/MA, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, DJe: 19/12/2018)

Assim, deve prevalecer o voto vencedor que julgou competente a Justiça Federal para julgar a ação penal.

Ante o exposto, rejeito os embargos infringentes.

É como voto.


RAQUEL SILVEIRA
Juíza Federal Convocada


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Signatário (a): RAQUEL COELHO DAL RIO SILVEIRA:10309
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