D.E. Publicado em 10/03/2020 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, conhecer dos embargos infringentes e, no mérito, negar-lhes provimento, nos termos do voto do Desembargador Federal Fausto De Sanctis.
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VOTO CONDUTOR
O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS: Trata-se de Embargos Infringentes e de Nulidade opostos por ANTÔNIO SÉRGIO RODRIGUES em face de acórdão proferido pela Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, visando a prevalência do voto vencido que acolheu a preliminar de ilicitude da busca e apreensão domiciliar realizada, de modo a absolver o embargante com fundamento no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
Na sessão realizada em 17.10.2019, divergi do e. Relator, a fim de NEGAR PROVIMENTO aos Embargos Infringentes.
Passo aos fundamentos do meu voto.
Inicialmente, como bem pontuou o e. Relator à fl. 633, o dissenso é parcial, devolvendo, assim, a este órgão jurisdicional, a reapreciação da questão examinada pela Colenda Quinta Turma desta Corte, apenas no que diz respeito à possibilidade de acolhimento da preliminar de ilicitude da busca e apreensão domiciliar realizada, absolvendo-se o embargante com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
No caso concreto, entendo que não houve ilicitude da busca e apreensão realizada.
Nesse sentido, cumpre transcrever trecho das contrarrazões ministeriais aos Embargos Infringentes (fl. 619 verso/621):
O caso dos autos evidencia que a diretriz jurisprudencial consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal foi observada. Anoto que os depoimentos colhidos no âmbito do inquérito policial, por ocasião da prisão em flagrante do réu, apontam que a autoridade policial, informalmente, tinha conhecimento da verossimilhança das alegações contidas na delação anônima.
Manoel Carlso de Almeida Falcão, à fl. 2, afirmou que sabia que Antonio Sergio Rodrigues possuía 2 automóveis, o que levou à suspeita de que as mercadorias contrabandeadas estivessem no interior da residência em que um deles estava estacionado.
Evanil Aparecida Mendes Castanho, no mesmo sentido, afirmou perante a autoridade policial que sabia que Antonio Sergio Rodrigues, "desde sempre", estava envolvido com a venda de cigarros importados (fl. 4).
O que se observa, pelo cotejo de todos os elementos que constam nos autos, é que havia fundados indícios de certeza nos dados que foram transmitidos mediante comunicação anônima. É por isso que seria prescindível a tomada de outras diligências, tais como as sugeridas pela zelosa defesa do réu no recurso de apelação.
É possível afirmar, até mesmo, que a busca e apreensão no domicílio do réu era o único meio de prova para a apuração do fato delituoso e que eventuais diligências seriam inúteis no intuito de identificar se no interior da residência de Antonio Sergio Rodrigues eram armazenados cigarros contrabandeados.
Repiso que a adoção "de medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, 'com prudência e discrição', a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal", tem como único objetivo "conferir a verossimilhança dos fatos"; é o que diz o Supremo Tribunal Federal.
Levando em conta essa premissa, a delação anônima é legitima para justificar o deferimento de qualquer medida de persecução penal - como a expedição dos mandados de busca e apreensão deste caso, se já existe a certeza dos indícios de atividade criminosa que se pretende investigar, obtida de modo informal e sumário pelos agentes do Estado.
Foi exatamente o que entendeu o Eminente Relator André Nekatschalow ao rejeitar a preliminar:
"Veja-se, ademais, que segundo as informações dos policiais que participaram da diligência, já se tinha conhecimento na cidade de que o réu vendia cigarros importados (fls. 2/3 e 4). Tal fato, aliado às informações da notícia crime levada à Autoridade Policial por um investigador de polícia, que se mostraram verdadeiras, evidenciam a existência de fundadas razões para a atuação policial. A certeza dos indícios foi confirmada pelo próprio réu ao admitir, quando da prisão em flagrante, que realizava o comércio ilegal de cigarros havia vinte anos."
Não se pode perder de vista o senso de realidade. Em uma cidade pequena, e este é o caso de Cesário Lange, dificilmente uma averiguação prévia, nos moldes formulados pela defesa, passaria despercebida, sobretudo porque o réu é figura conhecida na cidade. Essa perspectiva do real não pode ser afastada.
Se os agentes de polícia tinham conhecimento da plausibilidade dos relatos apócrifos, é por se ter por cumprida a investigação informal e cautelosa a que a jurisprudência alude e afastada a preliminar aduzida pela defesa.
No caso, os policiais já sabiam previamente que o embargante se dedicava ao comércio de cigarros contrabandeados.
Por outro lado, a informação de que ele estaria comercializando cigarros contrabandeados do Paraguai, apenas veio corroborar informações prévias que autoridade policial já possuía.
Não há que se falar, assim, que a medida de busca e apreensão teve como base única e exclusivamente a denúncia apócrifa, pois a atuação do embargante em delitos de contrabando envolvendo cigarros oriundos do Paraguai já era de conhecimento notório na cidade de Cesário Lage/SP.
A vedação à instauração de procedimentos criminais baseados exclusivamente em denúncia anônima, busca evitar que investigações sejam levadas a efeito na presença de apenas uma única informação, sem qualquer aferição prévia da possibilidade de sua veracidade.
Sendo de conhecimento da polícia a existência de prática delituosa, previamente à notícia anônima, esta vem apenas corroborar elemento de informação acerca da prática de crime, franqueando a possibilidade de início das investigações.
Por outro lado, cumpre ainda destacar que, ainda que não houvesse diligência prévia acerca da informação veiculada pela notícia anônima, não há ilegalidade na realização da busca e apreensão, pois no caso o mandado era inclusive dispensável, pois a manutenção da arma de fogo e dos cigarros configuram crime permanente, cuja consumação se prolonga no tempo, e, por isso, o ingresso nas residências ocorreu em estado de flagrância. Nesse sentido: STJ, HC 286.546/SP, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 22.09.2015, DJe 15.10.2015; TRF3, Ap. Crim. 0015511-07.2017.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Desembargador Federal Nino Toldo, j. 26.09.2019, DJe 02.10.2019; TRF3, Ap. Crim. 0001693-51.2018.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Juiz Federal Convocado Alessandro Diaféria, j. 09.04.2019, DJe 16.04.2019.
Ante o exposto, voto no sentido de NEGAR PROVIMENTO aos Embargos Infringentes.
É o voto.
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RELATÓRIO
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:
Trata-se de embargos infringentes opostos pela defesa de ANTONIO SERGIO RODRIGUES, contra decisão proferida pela Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que, por maioria, deu parcial provimento à apelação.
O acórdão restou assim ementado:
O embargante pretende a prevalência do voto vencido para que seja acolhida a preliminar de ilicitude da busca e apreensão domiciliar realizada, absolvendo-o com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal (fls. 593/608).
O Ministério Público Federal manifestou-se pelo desprovimento dos embargos infringentes, mantendo-se na íntegra o v. acórdão (fls. 615/621).
É o relatório.
À revisão.
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VOTO
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:
De início, cumpre ressaltar que, em sede de embargos infringentes, o reexame do Acórdão proferido em apelação está restrito à parte em que houver divergência entre os julgadores.
No caso, verifico que o dissenso é parcial, devolvendo, assim, a este órgão jurisdicional, a reapreciação da questão examinada pela Colenda Quinta Turma desta Corte, apenas no que diz respeito à possibilidade de acolhimento da preliminar de ilicitude da busca e apreensão domiciliar realizada, absolvendo-se o embargante com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
No julgamento da apelação, a Quinta Turma desta Corte, por maioria, deu parcial provimento ao recurso do embargante.
O voto vencedor dispôs que (fls. 567/569):
É nesse ponto que divergiu o voto vencido do E. Desembargador Paulo Fontes, ao asseverar que (fls. 571/573):
Como já salientado, a divergência restringe-se à possibilidade de acolhimento da preliminar de ilicitude da busca e apreensão domiciliar realizada, absolvendo-se o embargante com base no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal.
O pedido do embargante deve ser acolhido.
A questão central posta a deslinde nestes embargos diz com a validade da diligência que originou as apurações em decorrência das quais se instaurou a presente ação penal, em que foi o embargante Antônio Sérgio Rodrigues condenado devido à prática dos delitos tipificados no art. 334, § 1º, IV, do Código Penal, e no art. 12 da Lei 10.826/03. Isso porque a diligência se deu a partir de denúncia anônima recebida pela Polícia Civil paulista, com base na qual se lavrou relatório policial e se requereu a decretação judicial de busca e apreensão em endereço sob controle do ora embargante.
Foi a partir de uma denúncia anônima, portanto, que foram realizadas diligências em cuja sequência se requereu a feitura de interceptações telefônicas no caso concreto. O restante do conjunto probatório foi colhido posteriormente às interceptações e quebras de sigilo, as quais nortearam toda a colheita de provas. Por conseguinte, deve-se examinar a natureza da denúncia anônima e as possibilidades de seu aproveitamento no direito pátrio, bem como, na sequência, a validade concreta do acervo probatório constante do processo.
Trata-se, a denúncia anônima, de informação, dada por qualquer pessoa não identificada, e dirigida à autoridade policial ou ao Ministério Público, quanto à suposta ocorrência de fato criminoso. Constitui, em síntese, uma delatio criminis sem identificação quanto a seu autor. Devido ao relevante fato de não se ter ciência quanto a seu autor, a denúncia anônima chegou a ter sua validade questionada abstratamente, inclusive com fundamento no art. 5º, IV, da Constituição da República, que prevê a livre manifestação do pensamento, com vedação do anonimato.
Hodiernamente, solidificou-se o entendimento de que a denúncia anônima não é, em si, nula ou ilegal, entendimento que perfilho. O artigo 5º, IV, da Constituição Federal, garante, de um lado, o livre exercício do pensamento, ou seja, dos frutos da criatividade e da racionalidade humana, tendo como contraponto a vedação ao anonimato, que se faz exatamente para que se possa individualizar e responsabilizar o autor nos casos em que por meio da manifestação do pensamento se lesem interesses jurídicos legítimos e direitos de terceiros. No caso da denúncia anônima, não se tem propriamente "manifestação do pensamento" no sentido que comumente se lhe dá: o de produto da criação racional, axiológica e artística humana, mas uma descrição de suposto fato específico a uma autoridade (obviamente, e como qualquer operação humana, feita com uso da razão lato sensu, mas sem o sentido de criação ou produção construída pelo intelecto que se confere, em regra, à locução "manifestação do pensamento"). Não se olvida que inexiste descrição sem algum traço valorativo; no entanto, a descrição de fato específico - não se está a tratar, aqui, da descrição científica de fenômenos - é marcada pelo traço predominante da objetividade (ou da tentativa de boa-fé nesse sentido), pela busca do relato imparcial, enquanto que a "manifestação do pensamento" envolve elementos claros de valoração ou de criação/construção - seja como opinião e valoração simples, seja como produções intelectuais e desenvolvimentos artísticos ou científicos de maior complexidade, que envolvam o poder sintetizador e desenvolvedor da mente humana. Claro é que, se se tratar de denunciação caluniosa ou fato similar, não se terá descrição, mas sim opinião ou construção fictícia com a roupagem aparente de descrição. Não me parece haver, em síntese, adequação semântica plena entre a denúncia anônima e a "vedação ao anonimato" prevista expressamente no que tange à "manifestação do pensamento", como opinião, posição ou construção do intelecto humano.
Saliento, porém, que tal conclusão não autoriza que se acolha de maneira livre a denúncia anônima. Certamente, vale com relação a esta última a mesma finalidade de cautela e proteção que constitui a ratio da vedação ao anonimato prevista no art. 5º, IV, da Constituição Federal: a de impedir que atos comunicativos humanos lesem terceiros sem que se possa imputar a alguém tal lesão. Tornarei ao tema adiante.
Em suma: não vejo a denúncia anônima como abarcada de maneira plena pela cláusula expressa da vedação ao anonimato contida no art. 5º, IV, da Carta Constitucional brasileira. Ainda que assim não fosse, a própria vedação ao anonimato não deve ser interpretada de forma rígida, visto que, se nem sequer os próprios direitos fundamentais são absolutos, o mesmo se o diga das restrições expressas contidas nos textos normativos que os preveem. Assim, mesmo que se entendesse aplicável prima facie a cláusula de vedação ao anonimato nos casos de denúncia anônima, essa aplicação não afastaria de maneira apriorística a validade de tal espécie de denúncia, o que dependeria dos outros direitos fundamentais envolvidos, também prima facie, no caso concreto.
Como já destaquei acima, não poderia a denúncia anônima, por outro lado, constituir verdadeiro portal permissivo de lesões e ameaças a direitos da personalidade, tornando-se meio de vinditas pessoais e meio de ataques gerais à respeitabilidade e honra de terceiros. É justamente para reprimir tais excessos ilícitos, reitero, que há a previsão de vedação do anonimato como regra geral restritiva prevista no texto normativo do art. 5º, IV, da Constituição da República. Inexistindo a mesma vedação como regra no caso de comunicações de fatos típicos, deve haver uma contraposição quanto ao próprio potencial lesivo da denúncia anônima, o qual deve ser amplamente minorado.
Tal contraposição foi bem exposta e sintetizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: trata-se da vedação à instauração de procedimentos formais de investigação em face de alguém com base, apenas, em denúncia anônima. Recebida uma denúncia anônima desprovida de provas documentais, fica a polícia autorizada a, devido a esse alerta ainda frágil, diligenciar informalmente (como em atividades de patrulhamento e averiguação prévia de rotina) no sentido de verificar a verossimilhança e firmeza do quanto informado. Apenas se confirmados indícios iniciais pela própria autoridade policial (ou, excepcionalmente, se a denúncia, embora anônima, venha amparada em firme acervo probatório) é que se instaura o procedimento formal de apuração, o inquérito.
Essa foi a orientação traçada a partir do julgamento do acórdão paradigma do Supremo Tribunal Federal sobre o tema (HC 84.827, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 23/11/2007). No mesmo sentido, cito os seguintes precedentes:
EMENTA Constitucional e Processual Penal. Habeas Corpus. Possibilidade de denúncia anônima, desde que acompanhada de demais elementos colhidos a partir dela. Inexistência de constrangimento ilegal. 1. O precedente referido pelo impetrante na inicial (HC nº 84.827/TO, Relator o Ministro Marco Aurélio, DJ de 23/11/07), de fato, assentou o entendimento de que é vedada a persecução penal iniciada com base, exclusivamente, em denúncia anônima. Firmou-se a orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa "denúncia" são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações. 2. No caso concreto, ainda sem instaurar inquérito policial, policiais civis diligenciaram no sentido de apurar a eventual existência de irregularidades cartorárias que pudessem conferir indícios de verossimilhança aos fatos. Portanto, o procedimento tomado pelos policiais está em perfeita consonância com o entendimento firmado no precedente supracitado, no que tange à realização de diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito. 3.Ordem denegada. (HC 98.345, PRIMEIRA TURMA, REL. MIN. MARCO AURÉLIO. Publicado no DJe de 17.09.2010.)
Desse modo, conciliam-se a possibilidade de denúncia anônima e o resguardo de quem é denunciado anonimamente, posto que, se de um lado não há possibilidade de se saber quem efetivou a denúncia (o que impede a responsabilização do denunciante leviano), de outro, a denúncia não gerará, por si, maiores consequências, em especial a instauração de investigação formal (com as consequências jurídicas e, em especial, sociais, que disso advém), necessitando-se de outras provas para que um procedimento formal seja instaurado. Estas são colhidas, em regra, por meio de diligências preliminares, ou seja, atividades da polícia que equivalem, materialmente, a apurações de rotina, informais e ainda não tomadas ao influxo de um procedimento, realizadas para que se apure a verossimilhança da informação anônima, e outros elementos que amparem a narrativa recebida de desconhecido. Tem-se, pois, apenas um impulso inicial, um ato de instigação para atividades de apuração preliminar que poderiam ser adotadas de ofício pela autoridade policial diante de indícios frágeis de ocorrência típica.
Em exemplo simples: informada a autoridade policial, por denúncia anônima, de que um homem está a agredir sua esposa no quintal da casa conjugal, poder-se-á enviar patrulha para passagem na rua dada como endereço. Confirmada a procedência da denúncia, evidentemente estar-se-á em situação de flagrante, com as consequências jurídicas pertinentes (contexto equivalente àquele em que o policial toma ciência, por suas atividades de patrulhamento, da ocorrência da prática delitiva, e imediatamente efetiva a prisão ou a perseguição do flagrado). Não confirmada (ou cabalmente infirmada, como em caso de nem sequer haver casal na residência, mas pessoa solitária), nada mais ocorrerá, sendo que o denunciado não sofrerá as consequências sociais e jurídicas de uma investigação formal (nem sequer se saberá que houve a denúncia).
Portanto, o que se veda no Direito brasileiro é que uma pessoa sofra os constrangimentos decorrentes da instauração de um procedimento de apuração formal com base, tão-somente, em denúncia cuja autoria é desconhecida. Não se veda, porém, a denúncia anônima em si, nem tampouco (por consequência lógica), que as autoridades que dela tomem conhecimento possam adotar providências iniciais no sentido de averiguar a verossimilhança de seu conteúdo. Diga-se que, se essa apuração fosse vedada, ter-se-ia verdadeira vedação absoluta da denúncia anônima, haja vista que, se não se pudesse fazer nem apuração formal nem apuração informal quanto aos supostos fatos nela descritos, seria ela - a denúncia anônima - absolutamente inócua, incapaz de gerar qualquer efeito jurídico ou empírico, o que, partindo da correta premissa de que se trata de modalidade válida de denúncia (com as cautelas já assinaladas), não teria sentido normativo ou lógico.
Um apontamento final. Se, por um prisma, a denúncia anônima deve ser vista com cautela, pelo potencial lesivo que ostenta, e a capacidade de dar vazão a manobras pessoais de grave baixeza moral contra denunciados (gerando acusações levianas ou deliberadamente falsas como fruto de ódio e antipatia pessoal), por outro, constitui instrumento importante, em especial quando contextos sociais específicos inibem terceiros que gostariam de colaborar com a lei, mas se sentem intimidados socialmente por esse contexto ou, especificamente, pela figura do denunciado. É o que pode ocorrer comumente entre vizinhos, em casos de familiares e pessoas próximas, de inferiores hierárquicos, et cetera. O contexto familiar, profissional ou de mera convivência no mesmo espaço geográfico inibem sobremaneira eventuais denúncias, o que não quer dizer que não sejam procedentes. A eliminação abstrata do instituto, além de, como já afirmei, não se afigurar juridicamente fundamentada no ordenamento brasileiro, impediria a mera informação inicial de práticas delitivas por vezes da maior gravidade (inclusive em crimes que têm como vítimas diretas menores e incapazes), informação essa que não dará por si vazão a um procedimento formal de investigação, mas a apurações iniciais que, elas sim, poderão ensejar a instauração de inquérito. Ressalvo apenas a excepcional hipótese, já referida, de denúncia anônima encaminhada com forte lastro probatório (em regra documental), que, hipoteticamente, seja firme por si para permitir a instauração de apuração formal.
Postos esses aclaramentos liminares, examino o caso concreto.
Conforme exposto na decisão que decretou a busca e apreensão (fls. 07/09 do apenso de capa cinza), a representação policial em que se requereu a medida foi realizada com base no relatório policial de fl. 05 (do mesmo apenso). É o que também consta da própria representação de fl. 02 (sempre do apenso de capa cinza). No relatório de inteligência em questão, reporta-se que "este setor [de investigação da delegacia de polícia de Cesário Lange] tem recebido denúncias de que na Rua Passa Três, 713, Centro, Cesário Lange/SP, indivíduo que atende pelo apodo de BARROCA estaria armazenando e comercializando grandes quantias de cigarros contrabandeados do Paraguai, em especial os da marca 'Eight', de origem paraguaia, para venda no varejo e atacado. Consta ainda que tal comercia se destina a abastecer pequenos comércios varejistas que repassam aos consumidores por preços inferiores aos de cigarros de origem legalizada" (fl. 05 do apenso de capa cinza). A partir desse relatório é que se representou e se decretou a busca e apreensão, a qual ensejou ou originou materialmente todas as demais diligências da apuração.
A partir das informações e das premissas aqui vertidas, resta claro que a nulidade reconhecida no voto vencido efetivamente existe. Isso porque, no caso concreto, não houve qualquer diligência preliminar propriamente dito. O que se deu foi, tão-somente, a lavratura de um relatório cujo conteúdo se resume à informação de que denúncias anônimas foram recebidas pela unidade policial. Ora, é certo que, materialmente, isso não constitui qualquer prova complementar, mas sim a documentação do material apócrifo oralmente colhido. Incontroverso, de qualquer modo, que não houve qualquer ação policial no sentido de colher evidências que dessem lastro às "denúncias anônimas", seja no sentido de observar o contexto do local e as atividades ali exercidas, seja para fins de documentar circunstâncias e ouvir pessoas.
Trata-se o relatório policial de fl. 05 (do apenso), no meu entender, de verdadeiro simulacro de diligências preliminares, cuja única função é aparentar a existência de mínimo suporte probatório para permitir a formalização de investigações e, mais ainda, a efetivação de diligência especialmente invasiva e que só pode ser realizadas com autorização judicial.
Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, verbis:
Cito, ainda, precedente desta E. Corte, em feito de minha relatoria (proc. nº 0002590-57.2007.4.03.6119, DJe 07/03/2017):
Acrescento, outrossim, que a situação concreta traz quadro grave do ponto de vista constitucional. Isso porque não se tem aqui "mera" instauração de inquérito, o que já seria vedado sem diligências preliminares efetivas que amparassem as "denúncias anônimas". O que se teve, exclusivamente com base na referida "denúncia" e nos documentos juntados a título de diligências preliminares, foi a autorização para busca e apreensão em endereço de alvo das notícias apócrifas.
Se a exigência de resguardo constitucional da honra dos alvos de denúncias anônimas já impõe, por si, a feitura de efetivas diligências que demonstrem materialmente a séria probabilidade de ser veraz a informação de autoria ignorada, a invasão das esferas de privacidade e intimidade de indivíduos exige cautelas substancialmente maiores.
Inexistindo diligências efetivas ou qualquer elemento a amparar denúncias anônimas (e não apenas a noticiar por escrito sua ocorrência), não há lastro jurídico para a determinação de diligências invasivas e para a instauração de inquérito policial. Sendo este o caso, e tendo as demais diligências e atos que alicerçaram a ação se originado dessa busca e apreensão inválida, de rigor a prevalência do voto vencido, que acolheu "a preliminar para considerar ilícita a busca e apreensão domiciliar, tendo em vista que foi autorizada à míngua dos requisitos legais, contaminando todas as demais provas do feito", levando à absolvição do réu, ora embargante.
Ante o exposto, conheço dos embargos infringentes e, no mérito, dou-lhes provimento, para reformar o acórdão recorrido e absolver o réu das imputações contidas nos autos.
É como voto.
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