D.E. Publicado em 25/09/2019 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
Signatário (a): | ADRIANA DELBONI TARICCO:10381 |
Nº de Série do Certificado: | 11DE1801125F3505 |
Data e Hora: | 19/09/2019 14:14:16 |
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RELATÓRIO
A EXMA. JUÍZA FEDERAL CONVOCADA ADRIANA TARICCO (RELATORA):
Trata-se de apelação interposta por Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso do Sul (APROSOJA) contra a sentença de fls. 283/285, que extinguiu o feito, sem resolução do mérito, sob o fundamento de ilegitimidade ativa ad causam, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil. A parte autora foi condenada ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios de sucumbência, fixados em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), em rateio, para cada Ré, na forma do art. 85, §§ 2º e 8º, do diploma processual civil.
A Apelante alega que possui legitimação para ajuizamento da presente demanda, tendo em vista que a tutela postulada visa a resguardar interesse comum a toda a categoria dos associados da Requerente, consubstanciado no reconhecimento da impossibilidade de demarcação de terras indígenas em áreas ocupadas por não-índios na data da promulgação da Constituição da República de 1988. Aduz que o entendimento fixado pelo STF no julgamento do RE 573.232 - referente aos limites subjetivos da coisa julgada formada em ação ajuizada por entidade associativa - não comporta aplicação ao caso em exame, ante a não correspondência da presente demanda com os fundamentos fáticos e jurídicos do aludido precedente. No mérito, sustenta, em síntese, que as propriedades que tenham titulação anterior a 05/10/1998 e que, nessa data, não fossem objeto de ocupação indígena, não poderão ser consideradas como terras indígenas, na forma do art. 231, da Constituição da República. Pleiteia, assim, prestação jurisdicional que declare a impossibilidade de que as propriedades que possuam titulação e ocupação por não-índios, desde período anterior ao marco temporal estabelecido pelo STF na Pet. 3.388/RR, sejam objeto de estudos destinados a embasar processo demarcatório, bem como que reconheça a impossibilidade de ampliação de área de reservas localizadas no Município de Naviraí/MS. Requer, nesses termos, a reforma da sentença recorrida, para que sejam julgados procedentes os pedidos deduzidos na exordial (fls. 287/303).
Contrarrazões da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), às fls. 310/313.
O Ministério Público Federal (MPF) pugnou, preliminarmente, pela conversão do julgamento em diligência, com retorno dos autos à origem, em virtude da ausência de intimação do órgão ministerial oficiante em primeiro grau de jurisdição acerca da sentença proferida, assim como do recurso de apelação interposto. Em relação à pretensão autoral, manifestou-se pela extinção do feito sem resolução do mérito, em decorrência da ilegitimidade ativa ad causam e da ausência de interesse jurídico-processual da Recorrente, e, no mérito, pelo não provimento do recurso (fls. 321/330).
Às fls. 332, o julgamento foi convertido em diligência e determinada a baixa dos autos ao Juízo a quo, a fim de dar ciência ao órgão ministerial atuante naquela instância acerca da sentença prolatada na origem, bem como dos atos processuais posteriores.
Cumprida a diligência (fls. 334 e verso), os autos foram novamente remetidos com vista ao MPF, que reiterou o parecer anterior (fls. 336 e verso).
É o relatório.
VOTO
A EXMA. JUÍZA FEDERAL CONVOCADA ADRIANA TARICCO (RELATORA):
A matéria devolvida ao exame desta Corte será examinada com base na fundamentação que passo a analisar topicamente.
Direito intertemporal
Segundo as regras de direito intertemporal que disciplinam o sistema jurídico brasileiro no concernente à aplicação da lei no tempo, as inovações legislativas de caráter estritamente processual, como é a Lei nº 13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil), devem ser aplicadas, de imediato, inclusive nos processos já em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada (art. 14, do Código de Processo Civil de 2015).
Assim, aplica-se a lei nova aos processos pendentes, respeitados, naturalmente, os atos consumados e seus efeitos no regime do Código de Processo Civil de 1973.
Nesses termos, passo à análise da matéria devolvida à apreciação deste Tribunal.
Do direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas
Consoante amplamente sedimentado pela doutrina e jurisprudência, a demarcação de terras indígenas decorre do reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, cuja propriedade é da União (art. 20, XI, da Constituição da República), tratando-se, portanto, de ato declaratório de uma situação jurídica preexistente.
Por tal razão, o constituinte originário estabeleceu que eventuais títulos privados existentes sobre tais terras serão considerados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos:
Trata-se, portanto, de um direito originário, que fundamenta a declaração de uma situação jurídica preexistente e preponderante sobre eventuais pretensões fundadas em títulos legitimadores de posse a favor de não índios.
Depreende-se que o constituinte estabeleceu um comando expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos por não índios sobre terras indígenas, cujos efeitos se estendem sobre vínculos jurídicos de origem pré-constitucional. Essa previsão visa ao resguardo da igualdade material dos indígenas, assegurando-lhes os meios para a digna subsistência, preservação e reprodução física e cultural.
Assim, são de propriedade da União as terras tradicionalmente ocupadas por índios, inclusive eventuais plantações e edificações incorporadas ao terreno, sendo assegurada à respectiva comunidade indígena a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos. Conforme aponta a jurisprudência:
Nesse sentido, sendo a Constituição da República o vértice axiológico do ordenamento jurídico, mostram-se inadmissíveis interpretações que busquem atribuir prevalência a situações jurídicas contrárias aos comandos da vigente ordem constitucional. Sobre a questão, elucida a doutrina:
Nessa perspectiva, acerca da posse nativa, a Constituição da República estabelece que são consideradas "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (art. 231, § 1º), as quais "destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" (§ 2º).
Visando à efetividade de tal comando constitucional, foi determinada à União a conclusão da demarcação das terras indígenas, nos termos do art. 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Em sede infraconstitucional, a matéria encontra-se regulada pelos artigos 17 a 21, da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio).
Observa-se, ainda, que o regramento constitucional conferido à matéria mostra-se consonante com o arcabouço normativo internacional ao qual o Brasil vinculou-se, por meio de tratados, mormente através da Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho, de 27 de junho de 1989, que dispõe sobre os Povos Indígenas e Tribais. Este tratado, internalizado pelo Decreto nº 5.051/2004, estabelece, em seu art. 14:
Tal convenção - conforme entendimento sedimentado pelo STF no julgamento do RE 349.703/RS -, enquanto tratado internacional de direitos humanos, incorpora-se ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma jurídica supralegal e, portanto, encontra-se hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, estando submetida apenas à conformação com as normas constitucionais.
Do marco temporal
A despeito das relevantes balizas normativas expostas acima, os parâmetros para a efetiva delimitação das circunstâncias que se subsumem ao conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" e "por eles habitadas em caráter permanente" (art. 231, § 1º, da Constituição da República) só vieram a ser precisamente estabelecidas pela jurisprudência quando do julgamento, pelo STF, em 19/03/2009, da Pet. 3.388/RR (Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049), denominado "Caso Raposa Serra do Sol".
No julgamento, o Ministro Menezes Direito, prolator do voto condutor, consignou, à luz da interpretação constitucional, a imprescindibilidade do reconhecimento da terra indígena para a preservação das comunidades que titularizam sua ocupação:
Nota-se que o reconhecimento da relevância que permeia a matéria - demandando-se, por conseguinte, especial cautela na apreciação dos casos que envolvem esta questão - não adveio exclusivamente do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, mas foi resultado de sólido desenvolvimento jurisprudencial do STF. Nesse sentido, em decisão publicada em 14/02/1997, no julgamento do RE 183.188-0, de relatoria do Ministro Celso de Mello, já se afirmou:
Conforme exposto, é cediço que a terra apresenta relevância central para os indígenas, sendo imprescindível à sua subsistência. Esse aspecto foi reafirmado pelo STF no caso Raposa Serra do Sol, em que o Min. Menezes Direito consignou que, uma vez constatado o denominado fato indígena, resta suplantado qualquer direito de cunho privado, que não poderá prevalecer sobre os direitos dos índios:
Examinadas tais premissas, resta perquirir acerca da denominada teoria do fato indígena, referida na fundamentação acima transcrita, a qual embasou o entendimento estabelecido no julgamento da Pet. 3.388/RR.
De acordo com essa concepção, consideram-se terras indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição da República, eram ocupadas por indígenas, adotando-se, assim, o marco temporal de 5 de outubro de 1988 como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico.
Seguindo-se tal entendimento, deve-se analisar, em cada caso, em vista do conjunto probatório produzido, a situação fática acerca da existência, ou não, de ocupação tradicional, de acordo com o marco temporal fixado pelo STF.
Nesse ponto, deve-se ressaltar que, embora a decisão proferida na Pet. 3.388/RR não tenha produzido efeito erga omnes, o marco temporal para configuração da tradicionalidade da ocupação indígena veio a ser consolidado posteriormente, no julgamento do RMS nº 29.087 - denominado "Caso Guyrároka" (DJe 14/10/2014) -, em que reafirmou-se, no voto proferida pela Min. Cármem Lúcia, o mesmo entendimento estabelecido pelo Min. Roberto Barroso no julgamento da Pet. 3.388-ED, segundo o qual, "embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão do caso Raposa Serra do Sol ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite de superação das suas razões".
Nesses termos, as decisões proferidas em casos futuros devem, portanto, se orientar em consonância com os fundamentos determinantes fixados nos referidos precedentes do STF.
Inobstante o exposto, é relevante ponderar, por fim, que, a despeito do entendimento estabelecido nos precedentes acima referidos, não é possível afirmar, no atual estágio de desenvolvimento da jurisprudência acerca da matéria, que a teoria do fato indígena - a partir da qual estipulou-se como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico a data da promulgação da Constituição da República de 1988 - tenha restado definitivamente firmada pelo STF.
Nesse ponto, observa-se que, em recentes decisões, o Plenário do STF, em 16/08/2017, utilizou-se de fundamentos diversos para julgar as Ações Civis Originárias nº 362 e 366, cuja controvérsia era concernente à tradicionalidade da ocupação indígena sobre áreas submetidas a processo demarcatório.
Em seu voto, o Rel. Min. Marco Aurélio consignou que, desde a Constituição de 1934, é reconhecido o direito dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, havendo tal previsão sido igualmente estabelecida pela Constituição da República de 1988 (art. 20, XI, e art. 231). Com base em tais fundamentos constitucionais, bem como no teor dos laudos antropológicos produzidos naqueles autos, o STF concluiu que as áreas objeto das referidas demandas (Parque Nacional do Xingu e Reservas Indígenas Nambikwára e Parecis) constituem, de fato, áreas habitadas historicamente por indígenas.
Da análise dos votos proferidos pelo Rel. Min. Marco Aurélio nas referidas Ações Civis Originárias, depreende-se a inexistência, dentre os fundamentos determinantes, de referência à teoria do fato indígena, havendo a conclusão acerca da ocupação tradicional das terras por povos indígenas se pautado, essencialmente, pelos laudos antropológicos produzidos, os quais referem-se apenas à ocupação histórica da região.
Em vista de tais precedentes, depreende-se que a tese do marco temporal não constitui fundamento a limitar, aprioristicamente, a efetivação dos diversos atos administrativos que compõem o processo demarcatório. Nesse sentido, destaca-se a imprescindibilidade do desenvolvimento de estudos antropológicos sobre quaisquer áreas que constituam possível objeto de processos demarcatórios, inexistindo respaldo constitucional ou legal à pretensão de limitação prévia de tais atos administrativos.
Do esbulho renitente
Em relação ao aludido marco temporal, deve-se observar, ainda, que a interpretação atribuída ao art. 20, XI, da Constituição da República, no caso Raposa Serra do Sol - segundo a qual, para se aferir a tradicionalidade da ocupação, deveria ser demonstrada a presença dos índios em determinada área em 05/10/1988 -, foi expressamente ressalvada em relação às hipóteses em que restar caracterizado o denominado esbulho renitente.
De acordo com tal entendimento, caso demonstrado que a ausência de ocupação indígena no marco temporal estabelecido pelo STF tenha se dado por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), promovidos por parte de não índios, restará preservado o reconhecimento da ocupação tradicional indígena. Preserva-se, assim, a tutela dos direitos dos índios às suas terras, ainda que sua ocupação se encontrasse obstada em 05/10/1988, em razão de esbulho.
Nesses termos, destacou o Min. Carlos Ayres Britto, em seu voto, no julgamento da Pet. 3.388/RR:
No que tange aos aldeamentos extintos, restou pacificado não constituírem bens da União, enquanto terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 20, XI, da Constituição da República), consoante firmado na Súmula 650, do STF.
Em relação, porém, ao tratamento jurídico dispensado às áreas sujeitas a renitente esbulho, em que a expulsão dos indígenas decorreu da ocupação de suas terras por não índios, a jurisprudência veio a estabelecer contornos específicos, em precedentes que se seguiram ao leading case Raposa Serra do Sol.
Nesse sentido, verifica-se que nos casos "Terra Guyrároka" (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015) sedimentou-se a concepção do esbulho renitente em sentido estrito, de acordo com a qual o reconhecimento da expulsão de comunidades indígenas - de modo a excepcionar a necessidade de ocupação da terra no marco temporal de 05/10/1988 - exige a verificação, em cada caso, de ao menos um dos seguintes fatores: circunstâncias de fato que demonstrem a existência de controvérsia possessória judicializada; ou, em caso contrário, a presença de efetivo conflito possessório que perdure até a data da promulgação da Constituição da República de 1988.
Acerca de todo o exposto, esclarece a doutrina, em síntese:
Ressalta-se que a observância a tais parâmetros constitui pressuposto para a estabilidade e coerência da jurisprudência, bem como à efetivação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia (artigos 926 e 927, § 4º, ambos do Código de Processo Civil).
Cumpre anotar, por fim, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui precedentes no mesmo sentido, apontando, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos - internalizada pelo Decreto nº 678/92 -, que, se restar caracterizada a expulsão de indígenas e o impedimento de acesso a suas terras, por força de renitente esbulho, é imperioso que se assegure o direito daquela comunidade tradicional à recuperação do local de ocupação (Corte IDH, Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, sentença de 29 de março de 2006). É relevante notar, ademais, que a violação do direito à propriedade coletiva e à garantia e proteção judicial de comunidades indígenas já acarretou a condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH, Povo Indígena Xucuru e Seus Membros vs. Brasil, sentença de 5 de fevereiro de 2018), impondo-se a observância de tais direitos também em função das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro no plano internacional.
Exposto o conjunto normativo que rege a disciplina, assim como os delineamentos atribuídos à matéria pela interpretação jurisprudencial, passo ao exame das circunstâncias do caso concreto.
Do processo administrativo demarcatório
Consoante exposto, em conformidade com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, a demarcação de terra indígena constitui ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário). Trata-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade (presunção juris tantum), cabendo à parte contrária impugná-lo, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-lo. Confira-se:
Nesses termos, não se mostra cabível a oposição baseada em direito possessório, com fulcro em títulos legitimadores de posse, como fundamento a obstar, por si, a realização do processo de demarcação de terra indígena e os diversos atos administrativos que o compõem, os quais gozam de presunção de legitimidade e se encontram amparados em comando constitucional preeminente, sendo vedado, inclusive, o manejo de ação de interdito possessório contra a demarcação. Nesse sentido:
Assim, questionamentos acerca do direito real à posse do bem litigioso ou de eventuais vícios que maculem a validade da delimitação da área, somente poderão ser submetidos à apreciação judicial por meio de ação petitória ou demarcatória, respectivamente.
Tal entendimento decorre do fato de que, consoante já reconhecido pelo STJ, a demarcação de terras indígenas não configura esbulho possessório ou qualquer forma de perda ou restrição da propriedade, posto que se trata de ato meramente declaratório de uma situação jurídica pré-existente. Confira-se:
Portanto, em decorrência da própria natureza da terra indígena - enquanto propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios -, o ordenamento veda expressamente a oposição ao ato administrativo demarcatório (art. 19, § 2º, da Lei 6.001/73).
No que concerne à observância do contraditório em âmbito administrativo, consigna-se que, iniciado o procedimento de demarcação, nos termos expostos acima, a legislação de regência assegura o direito ao contraditório e à participação dos interessados durante o trâmite do processo administrativo. Nesse sentido, observa-se que possíveis questionamentos acerca dos reflexos de eventual procedimento demarcatório sobre a esfera jurídica dos entes e indivíduos afetados podem ser suscitados oportunamente no curso do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, consoante preceitua o art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996, in verbis:
Assim, a legislação assegura a efetiva participação e contraditório aos entes envolvidos e demais interessados, em momento adequado, no procedimento administrativo-demarcatório.
Ocorre que, no caso em tela, consoante se depreende da análise dos autos, a pretensão autoral não tem por escopo a impugnação a eventual violação ao direito de oportuna manifestação dos interessados no curso do procedimento administrativo demarcatório, nos termos do art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996, e tampouco visa a suscitar, através da via adequada e em momento oportuno, questionamentos acerca do direito real à posse de determinado bem litigioso ou de vícios que maculem a validade da delimitação de área.
Em realidade, conforme se extrai dos termos dos pedidos deduzidos na exordial e da fundamentação que os embasa (fls. 2/27), pretende a Apelante que seja declarada, previamente à efetiva realização de qualquer procedimento demarcatório, a imunidade, frente a eventual demarcação, "em Naviraí, MS, de terras com ocupação por não-índios na data da promulgação da CF/88", bem como para que seja reconhecida "a impossibilidade de ampliação de área de reservas localizadas em Naviraí, MS" (fls. 26).
Depreende-se, nesses termos, que a causa de pedir deduzida pela parte autora recai sobre os atos administrativos - especialmente estudos preliminares de natureza étnico-antropológica, direcionados à análise para possível identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas - que compõem o processo demarcatório.
Contudo, da análise do arcabouço normativo que rege a matéria, não se depreende a existência de amparo legal a amparar a pretensão da Recorrente no sentido de impor restrições genéricas a tais atos administrativos.
O acolhimento de tal pleito implicaria em restringir, aprioristicamente, a amplitude do processo administrativo demarcatório, obstando seu prosseguimento desde a fase de estudo, identificação e delimitação das áreas que constituem possíveis terras de tradicional ocupação indígena. Esta pretensão, em evidência, não possui qualquer respaldo no ordenamento jurídico, consubstanciando incabível restrição à efetividade do comando constitucional de demarcação das terras indígenas pela União (art. 231, da Constituição da República; e art. 67, do ADCT).
Acerca do marco temporal fixado pelo STF no caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR), cumpre anotar que, inobstante tenha sido adotada, em tal precedente, a denominada teoria do fato indígena - a partir da qual estipulou-se como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico a data da promulgação da Constituição da República de 1988 -, não se mostra possível o deferimento de tutela jurisdicional ampla que, em caráter genérico e abstrato, determine que todas as terras que não se encontrassem ocupadas por indígenas no marco temporal de 5 de outubro de 1988 não poderão ser submetidas a qualquer ato que integre o procedimento demarcatório, inclusive estudos antropológicos.
Primeiramente, tal pleito, não se referindo à análise do marco temporal específico da ocupação indígena sobre qualquer área em concreto, mostra-se genérico e abstrato, violando a previsão dos artigos 322 e 324, do Código de Processo Civil, nos termos dos quais o pedido deve ser certo e determinado, tendo em vista que a indeterminação impede a defesa da parte ré ou o próprio julgamento do mérito.
Ademais, deve-se ter em vista que a conclusão acerca da inexistência de ocupação tradicional indígena imprescinde da efetiva realização dos estudos antropológicos previstos no Decreto nº 1.775/1996 (art. 2º), de modo que o pleito autoral apresenta insuperável incongruência intrínseca em seus fundamentos. Ressalta-se, ainda, que tal estudo deve aferir não apenas a existência de eventual ocupação indígena em 05/10/1988, mas tem de analisar, igualmente, se a ausência de índios na região se deu por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), conforme consignado no julgamento da Pet. 3.388/RR e sedimentado pela jurisprudência nos casos "Terra Guyrároka" (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015).
Nesses termos, verifica-se que a pretensão dos Autores não consiste em buscar a efetiva observância dos termos do Decreto nº 1.775/96 e dos comandos constitucionais que disciplinam a matéria, mas sim em obter, desde logo, provimento jurisdicional que declare, genericamente, que as propriedades compreendidas no âmbito dos limites territoriais do Município de Naviraí/MS, cuja titulação seja anterior à promulgação da Constituição da República de 1988, não poderão ser consideradas terras indígenas e tampouco objeto de estudos para demarcação.
Observa-se, no entanto, que, em face do sistema normativo que rege a matéria, a dedução de tal pretensão em juízo, nos moldes expostos pela Recorrente, caracteriza violação ao disposto nos artigos 17 e 18, ambos do Código de Processo Civil, vez que não demonstrado o interesse de agir e a legitimidade ativa ad causam.
Da ausência de legitimidade ativa ad causam e de interesse processual
A sentença recorrida (fls. 283/285) extinguiu o feito sem resolução do mérito, sob o fundamento de ilegitimidade ativa ad causam, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil.
O Ministério Público Federal, em seu parecer, manifestou-se, por sua vez, pela manutenção da sentença recorrida (fls. 321/330).
A Apelante, ao seu turno, sustenta que possui legitimação para ajuizamento da presente demanda, tendo em vista que a tutela postulada visa a resguardar interesse comum a toda a categoria dos associados da Requerente, consubstanciado no reconhecimento da impossibilidade de demarcação de terras indígenas em áreas ocupadas por não-índios na data da promulgação da Constituição da República de 1988. Pleiteia, assim, seja reconhecida sua legitimidade ativa e afastada a extinção da ação sem resolução do mérito.
O recurso não comporta provimento.
A Recorrente não possui interesse processual a deduzir a pretensão apresentada na lide e tampouco ostenta legitimidade ativa ad causam, seja enquanto substitua processual (art. 5º, da Lei 7.347/85, e art. 82, da Lei 8.078/90), em defesa de direitos metaindividuais, seja na qualidade de representante de seus associados (art. 5º, XXI, da CR/88).
Da análise do feito, verifica-se que inexiste nos autos a efetiva demonstração de eventual violação à esfera de direitos titularizados por associados da Requerente em decorrência direta dos estudos antropológicos e demais atos compreendidos no âmbito dos processos administrativos para fins de demarcação de terras indígenas.
Como é cediço, "para que esteja configurado o interesse de agir é indispensável que a ação seja necessária e adequada ao fim a que se propõe" (REsp. 954.508/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe 29/09/2008).
No caso, não se encontra configurado o binômio "necessidade" e "utilidade" da tutela jurisdicional, vez que, em face da realização de meros estudos antropológicos no bojo de processos administrativos de demarcação de terras indígenas, inexiste necessidade de obtenção da tutela reclamada, posto que se trata de ato administrativo decorrente de mandamento constitucional, do qual não resulta qualquer moléstia a direitos da Apelante ou de seus filiados. Por outro lado, a pretensão formulada pela Recorrente não se mostra adequada ao fim pretendido, vez que o controle de legalidade e constitucionalidade do ato administrativo demarcatório não pode ser efetuado aprioristicamente, mediante limitação geral e abstrata exarada em provimento jurisdicional genérico.
Nesse aspecto, é relevante ressaltar, conforme já exposto, que possíveis questionamentos acerca dos reflexos de eventual procedimento demarcatório sobre a esfera jurídica dos entes e indivíduos afetados podem vir a ser suscitados oportunamente, no curso do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, consoante preceitua o art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996. Não é possível, contudo, deduzir oposição antecipada e genérica ao processo demarcatório.
Conforme se depreende das razões acima expostas, a demarcação das terras indígenas, cuja realização se operacionaliza através de procedimento administrativo demarcatório, decorre de mandamentos constitucionais e legais, não sendo possível ao Poder Público, em qualquer instância, opor-se à sua mera realização.
Infere-se, nesses termos, que a parte autora não demonstrou a existência de interesse de agir, por força do qual "cabe ao autor demonstrar que o provimento jurisdicional pretendido será capaz de lhe proporcionar uma melhora em sua situação fática, o que será o suficiente para justificar o tempo, a energia e o dinheiro que serão gastos pelo Poder Público na resolução da demanda" (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 43).
Por outro lado, no que concerne à legitimidade ad causam, observa-se que, em verdade, a Recorrente postula, em nome próprio, pela tutela de interesses individuais alheios, não compreendidos por suas finalidades institucionais (fls. 33) ou pela atividade econômica de seus associados. A tutela pleiteada visa à defesa da propriedade dos detentores de títulos legitimadores de posse sobre as áreas submetidas a estudos antropológicos e demarcatórios, de modo a obstar procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas. Efetivamente, é possível inferir que, em sentido amplo, a matéria versada na lide abrange eventuais direitos de todos os cidadãos detentores de posse ou de títulos de propriedade sobre terras abarcadas por processos administrativos demarcatórios, não se restringindo aos associados da Apelante ou à atividade econômica por eles desenvolvida.
Consoante exposto, a legitimação ativa para apresentar oposição a processos administrativos de demarcação de terras indígenas, por meio do ajuizamento de ações petitórias ou demarcatórias, restringe-se ao âmbito individual dos titulares do domínio imobiliário sobre os bens potencialmente afetados, não se estendendo ao ente associativo autor desta demanda.
Ressalta-se, nesse ponto, que inexiste nos autos a efetiva demonstração de eventual violação à esfera de direitos titularizados diretamente pela APROSOJA ou relacionados com sua finalidade institucional, em decorrência estrita dos estudos antropológicos e demais atos administrativos realizados para fins de demarcação.
Conclui-se, portanto, que a Apelante não integra a relação jurídica subjacente aos processos demarcatórios e tampouco apresenta interesse jurídico direto na pretensão deduzida na presente lide.
A análise do pedido deduzido na exordial conduz, por conseguinte, à conclusão pela ausência de interesse processual e de legitimidade ativa ad causam, vez que é patente a inexistência de qualquer utilidade para a Recorrente na tutela jurisdicional pleiteada, bem como a ausência de qualquer direito seu ameaçado ou violado.
Nesse sentido aponto os seguintes precedentes:
Por outro lado, ainda que se entenda que a matéria versada na lide trata de hipótese de tutela de direitos de natureza meramente individual, deve-se observar que a veiculação de tal pleito mediante representação da associação autora dependeria da autorização expressa de seus filiados, de modo a possibilitar que a APROSOJA atuasse na qualidade de representante dos interesses de determinados associados.
Como é cediço, a pretensão voltada à tutela de direitos individuais pode ser deduzida por associações civis, pela via da representação processual, as quais, em tal hipótese, representam todos ou alguns de seus filiados em juízo, atuando em nome destes, na defesa dos seus interesses.
Deve-se observar, contudo, que a disciplina constitucional da representatividade das entidades associativas para o ajuizamento de ações judiciais (art. 5º, XXI, da CR/88) não se relaciona com o sistema de tutela coletiva, cuja natureza e regramento são específicos. Tal representatividade não se confunde, assim, com a autorização conferida pelo ordenamento jurídico aos colegitimados extraordinários (art. 5º, da Lei 7.347/85, e art. 82, da Lei 8.078/90), para, enquanto substitutos processuais, defenderem, em juízo, direitos metaindividuais titularizados por uma coletividade.
Considerados tais pressupostos, observa-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em precedente firmado no julgamento do RE 573.232/SC, estabeleceu, como fundamento determinante - e, portanto, com eficácia de precedente vinculante - o entendimento de que a disciplina constitucional acerca da representatividade das entidades associativas para o ajuizamento de ações judiciais, em nome e no interesse de seus filiados, impõe a observância da exigência contida no art. 5º, XXI, da CR/88, razão pela qual, em tal hipótese, é imprescindível a autorização expressa dos associados e a apresentação da lista destes junto à inicial.
Logo, no caso em exame, tendo em vista a ausência de legitimidade ativa ad causam, bem como de interesse processual, é de rigor a extinção do feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil.
Dos honorários advocatícios
Em vista da sucumbência da Apelante, majoro os honorários advocatícios sucumbenciais para R$ 6.000,00 (seis mil reais), para cada Ré, nos termos do art. 85, §§ 8º e 11, do Código de Processo Civil.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso de apelação.
É o voto.
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