Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 25/09/2019
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0001220-18.2012.4.03.6006/MS
2012.60.06.001220-2/MS
RELATOR : Desembargador Federal HÉLIO NOGUEIRA
APELANTE : ASSOCIACAO DOS PRODUTORES DE SOJA DO MATO GROSSO DO SUL APROSOJA
ADVOGADO : MS007602 GUSTAVO PASSARELLI DA SILVA e outro(a)
APELADO(A) : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : CARLOS FELIPE DA SILVA RIBEIRO
No. ORIG. : 00012201820124036006 1 Vr NAVIRAI/MS

EMENTA

CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS DEMARCATÓRIOS. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE POSSE TRADICIONAL. LEGITIMIDADE E INTERESSE DA ENTIDADE ASSOCIATIVA. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR E LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO.
1. A demarcação de terra indígena é ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário). Trata-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade (presunção juris tantum), cabendo à parte contrária impugná-lo, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-lo. Precedentes.
2. Não se mostra cabível a oposição ao ato administrativo, baseada em direito possessório e com fulcro em títulos legitimadores de posse, como meio a obstar, por si, a realização do processo de demarcação de terra indígena e os diversos atos que o compõem, os quais gozam de presunção de legitimidade e se encontram amparados em comando constitucional preeminente, sendo vedado, inclusive, o manejo de ação de interdito possessório contra a demarcação.
3. A demarcação de terras indígenas não configura esbulho possessório ou qualquer forma de perda ou restrição da propriedade, posto que se trata de ato meramente declaratório de uma situação jurídica pré-existente. Precedentes.
4. Iniciado o procedimento de demarcação, a legislação assegura o direito ao contraditório e à participação dos interessados durante o trâmite do processo administrativo demarcatório. Possíveis questionamentos acerca dos reflexos de eventual procedimento demarcatório sobre a esfera jurídica dos entes e indivíduos afetados podem ser suscitados oportunamente no curso do procedimento administrativo, consoante preceitua o art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996.
5. A parte autora pretende seja declarada, previamente à efetiva realização de qualquer procedimento demarcatório, a imunidade, frente a eventual demarcação, no Município de Naviraí/MS, de terras com ocupação por não-índios na data da promulgação da Constituição da República de 1988, bem como que seja reconhecida a impossibilidade de ampliação de área de reservas situadas naquela localidade.
6. O pedido autoral implica em restringir, aprioristicamente, a amplitude de eventuais processos demarcatórios, obstando seu prosseguimento desde a fase de estudo, identificação e delimitação das áreas que constituam possíveis terras de tradicional ocupação indígena. Tal pretensão não possui qualquer respaldo no ordenamento jurídico, consubstanciando incabível restrição à efetividade do comando constitucional de demarcação das terras indígenas pela União (art. 231, da Constituição da República; e art. 67, do ADCT).
7. Não se encontra configurado o binômio "necessidade" e "utilidade" da tutela jurisdicional, vez que, em face da realização de meros estudos antropológicos no bojo de processos de demarcação de terras indígenas, inexiste necessidade de obtenção da tutela reclamada, porquanto se trata de ato administrativo decorrente de mandamento constitucional, do qual não resulta qualquer moléstia a direitos da Apelante ou de seus filiados. Por outro lado, a pretensão formulada pela Recorrente não se mostra adequada ao fim pretendido, vez que o controle de legalidade e constitucionalidade do ato administrativo demarcatório não pode ser efetuado aprioristicamente, mediante limitação geral e abstrata exarada em provimento jurisdicional genérico.
8. No que concerne à legitimidade ad causam, a Recorrente postula, em nome próprio, pela tutela de interesses individuais alheios, não compreendidos por suas finalidades institucionais ou pela atividade econômica de seus associados. A tutela pleiteada visa à defesa da propriedade dos detentores de títulos legitimadores de posse sobre as áreas submetidas a estudos antropológicos e demarcatórios, de modo a obstar procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas. Em sentido amplo, a matéria versada na lide abrange eventuais direitos de todos os cidadãos detentores de posse ou de títulos de propriedade sobre terras abarcadas por processos administrativos demarcatórios, não se restringindo aos associados da Apelante ou à atividade econômica por eles desenvolvida.
9. Ainda que se entenda que a matéria versada na lide trata de hipótese de tutela de direitos de natureza meramente individual, observa-se que a veiculação de tal pleito mediante representação da associação autora dependeria da autorização expressa de seus filiados, de modo a possibilitar que a APROSOJA atuasse na qualidade de representante dos interesses de determinados associados. Precedentes.
10. A análise do pedido deduzido na exordial conduz à conclusão pela ausência de interesse processual e de legitimidade ativa ad causam. Precedentes.
11. Honorários advocatícios sucumbenciais majorados para R$ 6.000,00 (seis mil reais), para cada Ré, nos termos do art. 85, §§ 8º e 11, do Código de Processo Civil.
12. Negado provimento ao recurso de apelação.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, negar provimento ao recurso de apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.



São Paulo, 17 de setembro de 2019.
ADRIANA TARICCO
Juíza Federal Convocada


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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Data e Hora: 19/09/2019 14:14:16



APELAÇÃO CÍVEL Nº 0001220-18.2012.4.03.6006/MS
2012.60.06.001220-2/MS
RELATOR : Desembargador Federal HÉLIO NOGUEIRA
APELANTE : ASSOCIACAO DOS PRODUTORES DE SOJA DO MATO GROSSO DO SUL APROSOJA
ADVOGADO : MS007602 GUSTAVO PASSARELLI DA SILVA e outro(a)
APELADO(A) : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : CARLOS FELIPE DA SILVA RIBEIRO
No. ORIG. : 00012201820124036006 1 Vr NAVIRAI/MS

RELATÓRIO

A EXMA. JUÍZA FEDERAL CONVOCADA ADRIANA TARICCO (RELATORA):


Trata-se de apelação interposta por Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso do Sul (APROSOJA) contra a sentença de fls. 283/285, que extinguiu o feito, sem resolução do mérito, sob o fundamento de ilegitimidade ativa ad causam, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil. A parte autora foi condenada ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios de sucumbência, fixados em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), em rateio, para cada Ré, na forma do art. 85, §§ 2º e 8º, do diploma processual civil.

A Apelante alega que possui legitimação para ajuizamento da presente demanda, tendo em vista que a tutela postulada visa a resguardar interesse comum a toda a categoria dos associados da Requerente, consubstanciado no reconhecimento da impossibilidade de demarcação de terras indígenas em áreas ocupadas por não-índios na data da promulgação da Constituição da República de 1988. Aduz que o entendimento fixado pelo STF no julgamento do RE 573.232 - referente aos limites subjetivos da coisa julgada formada em ação ajuizada por entidade associativa - não comporta aplicação ao caso em exame, ante a não correspondência da presente demanda com os fundamentos fáticos e jurídicos do aludido precedente. No mérito, sustenta, em síntese, que as propriedades que tenham titulação anterior a 05/10/1998 e que, nessa data, não fossem objeto de ocupação indígena, não poderão ser consideradas como terras indígenas, na forma do art. 231, da Constituição da República. Pleiteia, assim, prestação jurisdicional que declare a impossibilidade de que as propriedades que possuam titulação e ocupação por não-índios, desde período anterior ao marco temporal estabelecido pelo STF na Pet. 3.388/RR, sejam objeto de estudos destinados a embasar processo demarcatório, bem como que reconheça a impossibilidade de ampliação de área de reservas localizadas no Município de Naviraí/MS. Requer, nesses termos, a reforma da sentença recorrida, para que sejam julgados procedentes os pedidos deduzidos na exordial (fls. 287/303).

Contrarrazões da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), às fls. 310/313.

O Ministério Público Federal (MPF) pugnou, preliminarmente, pela conversão do julgamento em diligência, com retorno dos autos à origem, em virtude da ausência de intimação do órgão ministerial oficiante em primeiro grau de jurisdição acerca da sentença proferida, assim como do recurso de apelação interposto. Em relação à pretensão autoral, manifestou-se pela extinção do feito sem resolução do mérito, em decorrência da ilegitimidade ativa ad causam e da ausência de interesse jurídico-processual da Recorrente, e, no mérito, pelo não provimento do recurso (fls. 321/330).

Às fls. 332, o julgamento foi convertido em diligência e determinada a baixa dos autos ao Juízo a quo, a fim de dar ciência ao órgão ministerial atuante naquela instância acerca da sentença prolatada na origem, bem como dos atos processuais posteriores.

Cumprida a diligência (fls. 334 e verso), os autos foram novamente remetidos com vista ao MPF, que reiterou o parecer anterior (fls. 336 e verso).


É o relatório.


VOTO

A EXMA. JUÍZA FEDERAL CONVOCADA ADRIANA TARICCO (RELATORA):


A matéria devolvida ao exame desta Corte será examinada com base na fundamentação que passo a analisar topicamente.


Direito intertemporal


Segundo as regras de direito intertemporal que disciplinam o sistema jurídico brasileiro no concernente à aplicação da lei no tempo, as inovações legislativas de caráter estritamente processual, como é a Lei nº 13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil), devem ser aplicadas, de imediato, inclusive nos processos já em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada (art. 14, do Código de Processo Civil de 2015).

Assim, aplica-se a lei nova aos processos pendentes, respeitados, naturalmente, os atos consumados e seus efeitos no regime do Código de Processo Civil de 1973.

Nesses termos, passo à análise da matéria devolvida à apreciação deste Tribunal.


Do direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas


Consoante amplamente sedimentado pela doutrina e jurisprudência, a demarcação de terras indígenas decorre do reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, cuja propriedade é da União (art. 20, XI, da Constituição da República), tratando-se, portanto, de ato declaratório de uma situação jurídica preexistente.

Por tal razão, o constituinte originário estabeleceu que eventuais títulos privados existentes sobre tais terras serão considerados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos:


Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
(...)
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

Trata-se, portanto, de um direito originário, que fundamenta a declaração de uma situação jurídica preexistente e preponderante sobre eventuais pretensões fundadas em títulos legitimadores de posse a favor de não índios.

Depreende-se que o constituinte estabeleceu um comando expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos por não índios sobre terras indígenas, cujos efeitos se estendem sobre vínculos jurídicos de origem pré-constitucional. Essa previsão visa ao resguardo da igualdade material dos indígenas, assegurando-lhes os meios para a digna subsistência, preservação e reprodução física e cultural.

Assim, são de propriedade da União as terras tradicionalmente ocupadas por índios, inclusive eventuais plantações e edificações incorporadas ao terreno, sendo assegurada à respectiva comunidade indígena a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos. Conforme aponta a jurisprudência:

"Inquérito. (...) 5. Crime de dano ao patrimônio da União. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são propriedade da União - art. 20, XI, da Constituição Federal. As plantações e edificações incorporam-se ao terreno, tornando-se propriedade da União, que deverá indenizar o ocupante de boa-fé - art. 231, § 6º, da Constituição Federal e art. 1.255 do Código Civil. A propriedade das plantações e edificações é adquirida pela União por acessão - art. 1.248, V, do Código Civil -, ou seja, a plantação ou construção incorpora-se ao patrimônio da proprietária pela simples incorporação ao solo, sendo irrelevante a transferência da posse. São irrelevantes a tradição ou o ato administrativo de inventário ou tombamento dos bens no patrimônio público. Os particulares ocupantes não são proprietários das terras ou das acessões, pelo que não podem legitimamente destruí-los. (...). 6. Denúncia recebida em relação aos danos alegadamente praticados contra as acessões da Fazenda Depósito descritas na Tabela 1 do Laudo de Exame de Local 155/10 (fls. 188-189 do Anexo), vencido o relator."
(STF, Inq. 3.670/RR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 23/09/2014) - g.n.

Nesse sentido, sendo a Constituição da República o vértice axiológico do ordenamento jurídico, mostram-se inadmissíveis interpretações que busquem atribuir prevalência a situações jurídicas contrárias aos comandos da vigente ordem constitucional. Sobre a questão, elucida a doutrina:


"(...) há que se considerar que o exercício do poder constituinte, mesmo quando não resulte de um processo revolucionário, tem a pretensão de representar um 'recomeço', o que envolve ruptura com o passado, ao menos sob o ângulo jurídico. Nessa perspectiva, não deve ser superdimensionada a força de situações e vínculos jurídicos pré-constitucionais, muitas vezes em absoluta desarmonia com os valores e princípios do novo regime (...). É evidente que, quando o próprio constituinte, por meio de regra expressa, definir a solução para a questão intertemporal, prevendo ou vedando a incidência de norma constitucional sobre os efeitos de situações ocorridas no passado, a sua vontade tem de prevalecer".
(SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed., 3. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 552-553) - g.n.

Nessa perspectiva, acerca da posse nativa, a Constituição da República estabelece que são consideradas "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (art. 231, § 1º), as quais "destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" (§ 2º).

Visando à efetividade de tal comando constitucional, foi determinada à União a conclusão da demarcação das terras indígenas, nos termos do art. 67, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Em sede infraconstitucional, a matéria encontra-se regulada pelos artigos 17 a 21, da Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio).

Observa-se, ainda, que o regramento constitucional conferido à matéria mostra-se consonante com o arcabouço normativo internacional ao qual o Brasil vinculou-se, por meio de tratados, mormente através da Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho, de 27 de junho de 1989, que dispõe sobre os Povos Indígenas e Tribais. Este tratado, internalizado pelo Decreto nº 5.051/2004, estabelece, em seu art. 14:

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.

Tal convenção - conforme entendimento sedimentado pelo STF no julgamento do RE 349.703/RS -, enquanto tratado internacional de direitos humanos, incorpora-se ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma jurídica supralegal e, portanto, encontra-se hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, estando submetida apenas à conformação com as normas constitucionais.


Do marco temporal


A despeito das relevantes balizas normativas expostas acima, os parâmetros para a efetiva delimitação das circunstâncias que se subsumem ao conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" e "por eles habitadas em caráter permanente" (art. 231, § 1º, da Constituição da República) só vieram a ser precisamente estabelecidas pela jurisprudência quando do julgamento, pelo STF, em 19/03/2009, da Pet. 3.388/RR (Rel. Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049), denominado "Caso Raposa Serra do Sol".

No julgamento, o Ministro Menezes Direito, prolator do voto condutor, consignou, à luz da interpretação constitucional, a imprescindibilidade do reconhecimento da terra indígena para a preservação das comunidades que titularizam sua ocupação:

"Não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição. Sua organização social, seus costumes, língua, crenças e tradições estão, como se sabe, atrelados à terra onde vivem".

Nota-se que o reconhecimento da relevância que permeia a matéria - demandando-se, por conseguinte, especial cautela na apreciação dos casos que envolvem esta questão - não adveio exclusivamente do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, mas foi resultado de sólido desenvolvimento jurisprudencial do STF. Nesse sentido, em decisão publicada em 14/02/1997, no julgamento do RE 183.188-0, de relatoria do Ministro Celso de Mello, já se afirmou:

"Emerge claramente do texto constitucional que a questão da terra representa o aspecto fundamental dos direitos e das prerrogativas constitucionais assegurados aos índios, pois estes, sem a possibilidade de acesso às terras indígenas, expõem-se ao risco gravíssimo da desintegração cultural, da perda de sua identidade étnica, da dissolução de seus vínculos históricos, sociais e antropológicos e da erosão de sua própria percepção e consciência como povo e como nação que reverenciam os locais místicos de sua adoração espiritual e que celebram, neles, os mistérios insondáveis do universo em que vivem".

Conforme exposto, é cediço que a terra apresenta relevância central para os indígenas, sendo imprescindível à sua subsistência. Esse aspecto foi reafirmado pelo STF no caso Raposa Serra do Sol, em que o Min. Menezes Direito consignou que, uma vez constatado o denominado fato indígena, resta suplantado qualquer direito de cunho privado, que não poderá prevalecer sobre os direitos dos índios:

"O tema das terras indígenas sempre despertou a discussão quanto à prevalência dos direitos dos índios em face de situações anteriormente constituídas (...) Toda essa discussão está se não superada, pelo menos destituída da relevância antes merecida, pelo regime da Constituição de 1988 (...) O constituinte quis suplantar todas as pretensões e os supostos direitos sobre as terras indígenas identificadas a partir de 1988 (...) Conclui-se que uma vez demonstrada a presença dos índios em determinada área na data da promulgação da Constituição (5/10/1998) e estabelecida a extensão geográfica dessa presença, constatado o fato indígena por detrás das demais expressões de ocupação tradicional da terra, nenhum direito de cunho privado poderá prevalecer sobre os direitos dos índios. Com isso, pouco importa a situação fática anterior (posses, ocupações, etc). O fato indígena a suplantará, como decidido pelo constituinte dos oitenta." - g.n.

Examinadas tais premissas, resta perquirir acerca da denominada teoria do fato indígena, referida na fundamentação acima transcrita, a qual embasou o entendimento estabelecido no julgamento da Pet. 3.388/RR.

De acordo com essa concepção, consideram-se terras indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição da República, eram ocupadas por indígenas, adotando-se, assim, o marco temporal de 5 de outubro de 1988 como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico.

Seguindo-se tal entendimento, deve-se analisar, em cada caso, em vista do conjunto probatório produzido, a situação fática acerca da existência, ou não, de ocupação tradicional, de acordo com o marco temporal fixado pelo STF.

Nesse ponto, deve-se ressaltar que, embora a decisão proferida na Pet. 3.388/RR não tenha produzido efeito erga omnes, o marco temporal para configuração da tradicionalidade da ocupação indígena veio a ser consolidado posteriormente, no julgamento do RMS nº 29.087 - denominado "Caso Guyrároka" (DJe 14/10/2014) -, em que reafirmou-se, no voto proferida pela Min. Cármem Lúcia, o mesmo entendimento estabelecido pelo Min. Roberto Barroso no julgamento da Pet. 3.388-ED, segundo o qual, "embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão do caso Raposa Serra do Sol ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite de superação das suas razões".

Nesses termos, as decisões proferidas em casos futuros devem, portanto, se orientar em consonância com os fundamentos determinantes fixados nos referidos precedentes do STF.

Inobstante o exposto, é relevante ponderar, por fim, que, a despeito do entendimento estabelecido nos precedentes acima referidos, não é possível afirmar, no atual estágio de desenvolvimento da jurisprudência acerca da matéria, que a teoria do fato indígena - a partir da qual estipulou-se como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico a data da promulgação da Constituição da República de 1988 - tenha restado definitivamente firmada pelo STF.

Nesse ponto, observa-se que, em recentes decisões, o Plenário do STF, em 16/08/2017, utilizou-se de fundamentos diversos para julgar as Ações Civis Originárias nº 362 e 366, cuja controvérsia era concernente à tradicionalidade da ocupação indígena sobre áreas submetidas a processo demarcatório.

Em seu voto, o Rel. Min. Marco Aurélio consignou que, desde a Constituição de 1934, é reconhecido o direito dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, havendo tal previsão sido igualmente estabelecida pela Constituição da República de 1988 (art. 20, XI, e art. 231). Com base em tais fundamentos constitucionais, bem como no teor dos laudos antropológicos produzidos naqueles autos, o STF concluiu que as áreas objeto das referidas demandas (Parque Nacional do Xingu e Reservas Indígenas Nambikwára e Parecis) constituem, de fato, áreas habitadas historicamente por indígenas.

Da análise dos votos proferidos pelo Rel. Min. Marco Aurélio nas referidas Ações Civis Originárias, depreende-se a inexistência, dentre os fundamentos determinantes, de referência à teoria do fato indígena, havendo a conclusão acerca da ocupação tradicional das terras por povos indígenas se pautado, essencialmente, pelos laudos antropológicos produzidos, os quais referem-se apenas à ocupação histórica da região.

Em vista de tais precedentes, depreende-se que a tese do marco temporal não constitui fundamento a limitar, aprioristicamente, a efetivação dos diversos atos administrativos que compõem o processo demarcatório. Nesse sentido, destaca-se a imprescindibilidade do desenvolvimento de estudos antropológicos sobre quaisquer áreas que constituam possível objeto de processos demarcatórios, inexistindo respaldo constitucional ou legal à pretensão de limitação prévia de tais atos administrativos.



Do esbulho renitente


Em relação ao aludido marco temporal, deve-se observar, ainda, que a interpretação atribuída ao art. 20, XI, da Constituição da República, no caso Raposa Serra do Sol - segundo a qual, para se aferir a tradicionalidade da ocupação, deveria ser demonstrada a presença dos índios em determinada área em 05/10/1988 -, foi expressamente ressalvada em relação às hipóteses em que restar caracterizado o denominado esbulho renitente.

De acordo com tal entendimento, caso demonstrado que a ausência de ocupação indígena no marco temporal estabelecido pelo STF tenha se dado por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), promovidos por parte de não índios, restará preservado o reconhecimento da ocupação tradicional indígena. Preserva-se, assim, a tutela dos direitos dos índios às suas terras, ainda que sua ocupação se encontrasse obstada em 05/10/1988, em razão de esbulho.

Nesses termos, destacou o Min. Carlos Ayres Britto, em seu voto, no julgamento da Pet. 3.388/RR:

"Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. Para isso é que servem as regras constitucionais da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras indígenas, bem assim a imprescritibilidade dos direitos sobre elas".

No que tange aos aldeamentos extintos, restou pacificado não constituírem bens da União, enquanto terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 20, XI, da Constituição da República), consoante firmado na Súmula 650, do STF.

Em relação, porém, ao tratamento jurídico dispensado às áreas sujeitas a renitente esbulho, em que a expulsão dos indígenas decorreu da ocupação de suas terras por não índios, a jurisprudência veio a estabelecer contornos específicos, em precedentes que se seguiram ao leading case Raposa Serra do Sol.

Nesse sentido, verifica-se que nos casos "Terra Guyrároka" (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015) sedimentou-se a concepção do esbulho renitente em sentido estrito, de acordo com a qual o reconhecimento da expulsão de comunidades indígenas - de modo a excepcionar a necessidade de ocupação da terra no marco temporal de 05/10/1988 - exige a verificação, em cada caso, de ao menos um dos seguintes fatores: circunstâncias de fato que demonstrem a existência de controvérsia possessória judicializada; ou, em caso contrário, a presença de efetivo conflito possessório que perdure até a data da promulgação da Constituição da República de 1988.

Acerca de todo o exposto, esclarece a doutrina, em síntese:


"Com isso, o STF entendeu que por 'terras tradicionalmente ocupadas pelos índios' (art. 20, XI, da CF/88) devem ser entendidas aquelas que: (i) as comunidades indígenas ocupavam na data da promulgação da CF/88 (marco temporal); conquanto que (ii) as comunidades ostentassem o caráter de perdurabilidade no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica, com o uso da terra para o exercício das tradições, costumes e subsistência indígena (...). Ainda que o STF, nesse mesmo caso (Raposa Serra do Sol), tenha acatado os marcos temporal e da tradicionalidade da ocupação, cabe notar que o Tribunal reconheceu a exceção do chamado 'renitente esbulho', pela qual as terras seriam ainda indígenas mesmo sem a ocupação no dia 5 de outubro de 1988, caso fosse comprovada que a ausência de ocupação houvesse se dado por 'efeito de renitente esbulho por parte de não índios' (...). Por essa ótica, o renitente esbulho [em sentido estrito] exige situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até a data da promulgação da CF/88 (marco temporal), sendo provado por (i) circunstâncias de fato ou, pelo menos, (ii) por uma controvérsia possessória judicializada (...). A partir deste último caso [Terra Indígena Limão Verde], a tese do renitente esbulho em sentido estrito ganhou seus contornos atuais, tendo o Min. Relator Teori Zavascki condicionado a existência do esbulho ao critério do marco temporal, afirmando que, 'há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passo, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada (ARE n. 803.462-AgR-MS, Rel. Min. Teori Zavacki, julgado em 9-12-2014)".
(RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 788-790)

Ressalta-se que a observância a tais parâmetros constitui pressuposto para a estabilidade e coerência da jurisprudência, bem como à efetivação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia (artigos 926 e 927, § 4º, ambos do Código de Processo Civil).

Cumpre anotar, por fim, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui precedentes no mesmo sentido, apontando, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos - internalizada pelo Decreto nº 678/92 -, que, se restar caracterizada a expulsão de indígenas e o impedimento de acesso a suas terras, por força de renitente esbulho, é imperioso que se assegure o direito daquela comunidade tradicional à recuperação do local de ocupação (Corte IDH, Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, sentença de 29 de março de 2006). É relevante notar, ademais, que a violação do direito à propriedade coletiva e à garantia e proteção judicial de comunidades indígenas já acarretou a condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH, Povo Indígena Xucuru e Seus Membros vs. Brasil, sentença de 5 de fevereiro de 2018), impondo-se a observância de tais direitos também em função das obrigações assumidas pelo Estado brasileiro no plano internacional.

Exposto o conjunto normativo que rege a disciplina, assim como os delineamentos atribuídos à matéria pela interpretação jurisprudencial, passo ao exame das circunstâncias do caso concreto.


Do processo administrativo demarcatório


Consoante exposto, em conformidade com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, a demarcação de terra indígena constitui ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário). Trata-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade (presunção juris tantum), cabendo à parte contrária impugná-lo, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-lo. Confira-se:


AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR. EXECUÇÃO DE SENTENÇA EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. INTERESSE PÚBLICO MANIFESTO. ÁREA ENCRAVADA EM ESPAÇO DA RESERVA INDÍGENA IBIRAMA-LA KLANÓ, RECONHECIDA POR PORTARIA DO MINISTRO DA JUSTIÇA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO DE ÁREA DA UNIÃO. GRAVE LESÃO À ECONOMIA PÚBLICA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
I - (...)
III - Desapropriação de área encravada em espaço demarcado como reserva indígena pela Portaria do Ministério da Justiça 1.128/03, cuja validade está sendo discutida na ACO 1.100 (Relator Ministro Ricardo Lewandowski).
IV - A demarcação de terra indígena é ato meramente formal, que apenas reconhece direito preexistente e constitucionalmente assegurado (art. 231 da CF). Os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade, não afastada na hipótese. (...)
(STF, SL 610 AgR., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, j. 04/02/2015) - g.n.

Nesses termos, não se mostra cabível a oposição baseada em direito possessório, com fulcro em títulos legitimadores de posse, como fundamento a obstar, por si, a realização do processo de demarcação de terra indígena e os diversos atos administrativos que o compõem, os quais gozam de presunção de legitimidade e se encontram amparados em comando constitucional preeminente, sendo vedado, inclusive, o manejo de ação de interdito possessório contra a demarcação. Nesse sentido:


"19.6 Vedação ao interdito possessório contra a demarcação
A disposição do § 2º permite àquele que se sinta prejudicado com a demarcação apenas o ajuizamento de ações petitórias ou demarcatórias. "No juízo 'petitório', a pretensão deduzida no processo tem por supedâneo o direito de propriedade, ou seus desmembramentos, do qual decorre o direito à posse do bem litigioso", de modo que a discussão estará centrada no direito real. Em contrapartida, a ação demarcatória visa tão somente a apontar vícios que possam comprometer a validade ou alterar a delimitação da área, que foi definida pelo procedimento administrativo de demarcação.
Essa vedação das medidas judiciais cabíveis é muito mais um consectário lógico da natureza da posse indígena que uma restrição de direitos processuais. Como a terra indígena é de propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios, é impossível que qualquer direito possessório possa a ela ser oposto. A única possibilidade para que o terceiro mantenha a área de seu interesse é desconstituir a condição indígena da área, por exemplo, se opondo a tradicionalidade da ocupação, apontando vícios nos procedimentos de demarcação ou comprovando que a área controversa está fora dos limites demarcados.
No que se refere ao interdito proibitório, somente "é adequado a utilização do interdita proibitório quando ainda não ocorre moléstia à posse do demandante, existindo apenas uma ameaça de esbulho ou turbação. Trata-se, pois, de demanda repetitiva". Desse modo, não será cabível o interdito proibitório, uma vez que a União, ao reconhecer a terra como pertencente a povos indígenas, reconhece que sobre ela incide a proteção do art. 231, § 6º, da Constituição. Nesse sentido:
TERRAS INDÍGENAS. INTERDITO PROIBITÓRIO. TURBAÇÃO INDEMONSTRADA. IMPROCEDÊNCIA. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ART. 927. ESTATUTO DO ÍNDIO, ART. 19. 1. O artigo927 do CPC, para outorgar proteção possessória, exige, entre outras condições, a prova da posse e da turbação ou esbulho. 2. Iniciada a demarcação das terras pela FUNAI para o fim de reconhecimento de terras indígenas, a interposição de interdito possessório contra turbação inexistente nada mais é do que oposição disfarçada ao ato administrativo, o que é vedado pelo parágrafo 2º. do artigo 19 da lei n. 6.001/73 (Estatuto do Índio). 4. Ação improcedente. Apelações providas. Sucumbência invertida. (TRF4 - AC - Apelação Cível - 200204010217158. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data da decisão: 17/12/2008. Fonte: D.E. Data: 09/02/2009. Relator Marga Inge Barth Tessler)
ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CAUTELAR. TERRAS INDÍGENAS. DEMARCAÇÃO. PROIBIÇÃO DE INGRESSO, TRÂNSITO OU PERMANÊNCIA DE NÃO-ÍNDIOS NA ÁREA A SER DEMARCADA. A ação cautelar é a via adequada para impedir a extração de madeira por parte dos índios, para permitir o ingresso no imóvel daquele que é tido como seu proprietário, uma vez que a proibição de ingresso, trânsito ou permanência de pessoas não-índios partiu de ato administrativo um órgão do Governo, não se podendo falar, em princípio, em esbulho ou turbação. Há, na hipótese, um ato administrativo. Ademais, por força de dispositivo lega, contra a demarcação de terras indígenas não cabe a concessão de interdito proibitório (Lei n. 6.001, de 1973, art. 19, § 2º). (TRF1 - AC - Apelação Cível - 9601155457. Órgão Julgador: Terceira Turma. Data da decisão: 24/09/1997. Fonte: D.J. Data: 14/10/1996. Relator Juiz Tourinho Neto)
Desse modo, sendo intentada ação de interdito, deve o feito ser extinto sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, no RE nº 97867, DJ de 12.08.1983. É preciso observar que o interdito proibitório é vedado tão somente nos casos de procedimento demarcatório. Em se tratando de turbação, seu manejo continua perfeitamente cabível. É o caso, por exemplo, de ocupação indígena em propriedades efetivamente particulares. Essa situação, entretanto, deve ser tratada pelo juiz com muito cuidado, uma vez que, na maioria dos casos, se trata de uma forma legítima de protesto dos índios contra a ocupação de terras que, apesar de não demarcadas, são de ocupação tradicional e foram indevidamente apropriadas por particulares".
(VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 3ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, pp. 155/157) - g.n.

Assim, questionamentos acerca do direito real à posse do bem litigioso ou de eventuais vícios que maculem a validade da delimitação da área, somente poderão ser submetidos à apreciação judicial por meio de ação petitória ou demarcatória, respectivamente.

Tal entendimento decorre do fato de que, consoante já reconhecido pelo STJ, a demarcação de terras indígenas não configura esbulho possessório ou qualquer forma de perda ou restrição da propriedade, posto que se trata de ato meramente declaratório de uma situação jurídica pré-existente. Confira-se:


PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO BUSCANDO A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE PORTARIA DE DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. DECRETO 20.910/32. RECURSO PROVIDO.
1. Hipótese na qual se busca, mediante ação ajuizada em 16 de setembro de 2004, a nulidade da Portaria Ministerial 793/94, publicada no DOU de 20 de outubro de 1994, expedida pelo Ministro de Estado da Justiça, pela qual declarou de posse permanente indígena, para efeito de demarcação, terras situadas no Estado de Santa Catarina (Área Indígena Pinhal), caracterizadas como de ocupação tradicional e permanente indígena, nos termos dos arts. 231, da CF/88, e 17 da Lei 6.001/73. Importante registrar que, em consequência da referida demarcação, a parte autora recebeu a devida indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (art. 231, § 6º, da CF/88).
(...)
3. O procedimento de demarcação de terras indígenas não pode ser comparado ao apossamento administrativo também chamado de desapropriação indireta, caracterizado como verdadeiro esbulho possessório, sem a necessária garantia do contraditório e do devido processo legal.
4. A demarcação de terras indígenas é precedida de processo administrativo, por intermédio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área a ser demarcada constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
5. Ademais, o particular que eventualmente esteja na posse da área a ser demarcada, segundo o disposto no § 8º do art. 2º do Decreto 1.775/96, tem a possibilidade de se manifestar, apresentando à FUNAI razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de identificação e delimitação da área a ser demarcada.
6. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não perdem essa característica por ainda não terem sido demarcadas, na medida em que a demarcação tem efeito meramente declaratório. Assim entendido, não se pode falar em perda ou restrição da propriedade por parte de quem nunca a teve.
(...)
(REsp. 1097980 SC 2008/0223900-0, T1 - Primeira Turma, Rel. Min. Denise Arruda, DJe 01/04/2009) - g.n.

Portanto, em decorrência da própria natureza da terra indígena - enquanto propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios -, o ordenamento veda expressamente a oposição ao ato administrativo demarcatório (art. 19, § 2º, da Lei 6.001/73).

No que concerne à observância do contraditório em âmbito administrativo, consigna-se que, iniciado o procedimento de demarcação, nos termos expostos acima, a legislação de regência assegura o direito ao contraditório e à participação dos interessados durante o trâmite do processo administrativo. Nesse sentido, observa-se que possíveis questionamentos acerca dos reflexos de eventual procedimento demarcatório sobre a esfera jurídica dos entes e indivíduos afetados podem ser suscitados oportunamente no curso do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, consoante preceitua o art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996, in verbis:


"Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.
(...)
§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de que trata o parágrafo anterior". - g.n.

Assim, a legislação assegura a efetiva participação e contraditório aos entes envolvidos e demais interessados, em momento adequado, no procedimento administrativo-demarcatório.

Ocorre que, no caso em tela, consoante se depreende da análise dos autos, a pretensão autoral não tem por escopo a impugnação a eventual violação ao direito de oportuna manifestação dos interessados no curso do procedimento administrativo demarcatório, nos termos do art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996, e tampouco visa a suscitar, através da via adequada e em momento oportuno, questionamentos acerca do direito real à posse de determinado bem litigioso ou de vícios que maculem a validade da delimitação de área.

Em realidade, conforme se extrai dos termos dos pedidos deduzidos na exordial e da fundamentação que os embasa (fls. 2/27), pretende a Apelante que seja declarada, previamente à efetiva realização de qualquer procedimento demarcatório, a imunidade, frente a eventual demarcação, "em Naviraí, MS, de terras com ocupação por não-índios na data da promulgação da CF/88", bem como para que seja reconhecida "a impossibilidade de ampliação de área de reservas localizadas em Naviraí, MS" (fls. 26).

Depreende-se, nesses termos, que a causa de pedir deduzida pela parte autora recai sobre os atos administrativos - especialmente estudos preliminares de natureza étnico-antropológica, direcionados à análise para possível identificação, delimitação e demarcação de terras indígenas - que compõem o processo demarcatório.

Contudo, da análise do arcabouço normativo que rege a matéria, não se depreende a existência de amparo legal a amparar a pretensão da Recorrente no sentido de impor restrições genéricas a tais atos administrativos.

O acolhimento de tal pleito implicaria em restringir, aprioristicamente, a amplitude do processo administrativo demarcatório, obstando seu prosseguimento desde a fase de estudo, identificação e delimitação das áreas que constituem possíveis terras de tradicional ocupação indígena. Esta pretensão, em evidência, não possui qualquer respaldo no ordenamento jurídico, consubstanciando incabível restrição à efetividade do comando constitucional de demarcação das terras indígenas pela União (art. 231, da Constituição da República; e art. 67, do ADCT).

Acerca do marco temporal fixado pelo STF no caso Raposa Serra do Sol (Pet 3.388/RR), cumpre anotar que, inobstante tenha sido adotada, em tal precedente, a denominada teoria do fato indígena - a partir da qual estipulou-se como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico a data da promulgação da Constituição da República de 1988 -, não se mostra possível o deferimento de tutela jurisdicional ampla que, em caráter genérico e abstrato, determine que todas as terras que não se encontrassem ocupadas por indígenas no marco temporal de 5 de outubro de 1988 não poderão ser submetidas a qualquer ato que integre o procedimento demarcatório, inclusive estudos antropológicos.

Primeiramente, tal pleito, não se referindo à análise do marco temporal específico da ocupação indígena sobre qualquer área em concreto, mostra-se genérico e abstrato, violando a previsão dos artigos 322 e 324, do Código de Processo Civil, nos termos dos quais o pedido deve ser certo e determinado, tendo em vista que a indeterminação impede a defesa da parte ré ou o próprio julgamento do mérito.

Ademais, deve-se ter em vista que a conclusão acerca da inexistência de ocupação tradicional indígena imprescinde da efetiva realização dos estudos antropológicos previstos no Decreto nº 1.775/1996 (art. 2º), de modo que o pleito autoral apresenta insuperável incongruência intrínseca em seus fundamentos. Ressalta-se, ainda, que tal estudo deve aferir não apenas a existência de eventual ocupação indígena em 05/10/1988, mas tem de analisar, igualmente, se a ausência de índios na região se deu por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), conforme consignado no julgamento da Pet. 3.388/RR e sedimentado pela jurisprudência nos casos "Terra Guyrároka" (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015).

Nesses termos, verifica-se que a pretensão dos Autores não consiste em buscar a efetiva observância dos termos do Decreto nº 1.775/96 e dos comandos constitucionais que disciplinam a matéria, mas sim em obter, desde logo, provimento jurisdicional que declare, genericamente, que as propriedades compreendidas no âmbito dos limites territoriais do Município de Naviraí/MS, cuja titulação seja anterior à promulgação da Constituição da República de 1988, não poderão ser consideradas terras indígenas e tampouco objeto de estudos para demarcação.

Observa-se, no entanto, que, em face do sistema normativo que rege a matéria, a dedução de tal pretensão em juízo, nos moldes expostos pela Recorrente, caracteriza violação ao disposto nos artigos 17 e 18, ambos do Código de Processo Civil, vez que não demonstrado o interesse de agir e a legitimidade ativa ad causam.


Da ausência de legitimidade ativa ad causam e de interesse processual


A sentença recorrida (fls. 283/285) extinguiu o feito sem resolução do mérito, sob o fundamento de ilegitimidade ativa ad causam, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil.

O Ministério Público Federal, em seu parecer, manifestou-se, por sua vez, pela manutenção da sentença recorrida (fls. 321/330).

A Apelante, ao seu turno, sustenta que possui legitimação para ajuizamento da presente demanda, tendo em vista que a tutela postulada visa a resguardar interesse comum a toda a categoria dos associados da Requerente, consubstanciado no reconhecimento da impossibilidade de demarcação de terras indígenas em áreas ocupadas por não-índios na data da promulgação da Constituição da República de 1988. Pleiteia, assim, seja reconhecida sua legitimidade ativa e afastada a extinção da ação sem resolução do mérito.

O recurso não comporta provimento.

A Recorrente não possui interesse processual a deduzir a pretensão apresentada na lide e tampouco ostenta legitimidade ativa ad causam, seja enquanto substitua processual (art. 5º, da Lei 7.347/85, e art. 82, da Lei 8.078/90), em defesa de direitos metaindividuais, seja na qualidade de representante de seus associados (art. 5º, XXI, da CR/88).

Da análise do feito, verifica-se que inexiste nos autos a efetiva demonstração de eventual violação à esfera de direitos titularizados por associados da Requerente em decorrência direta dos estudos antropológicos e demais atos compreendidos no âmbito dos processos administrativos para fins de demarcação de terras indígenas.

Como é cediço, "para que esteja configurado o interesse de agir é indispensável que a ação seja necessária e adequada ao fim a que se propõe" (REsp. 954.508/RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJe 29/09/2008).

No caso, não se encontra configurado o binômio "necessidade" e "utilidade" da tutela jurisdicional, vez que, em face da realização de meros estudos antropológicos no bojo de processos administrativos de demarcação de terras indígenas, inexiste necessidade de obtenção da tutela reclamada, posto que se trata de ato administrativo decorrente de mandamento constitucional, do qual não resulta qualquer moléstia a direitos da Apelante ou de seus filiados. Por outro lado, a pretensão formulada pela Recorrente não se mostra adequada ao fim pretendido, vez que o controle de legalidade e constitucionalidade do ato administrativo demarcatório não pode ser efetuado aprioristicamente, mediante limitação geral e abstrata exarada em provimento jurisdicional genérico.

Nesse aspecto, é relevante ressaltar, conforme já exposto, que possíveis questionamentos acerca dos reflexos de eventual procedimento demarcatório sobre a esfera jurídica dos entes e indivíduos afetados podem vir a ser suscitados oportunamente, no curso do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, consoante preceitua o art. 2º, § 8º, do Decreto nº 1.775/1996. Não é possível, contudo, deduzir oposição antecipada e genérica ao processo demarcatório.

Conforme se depreende das razões acima expostas, a demarcação das terras indígenas, cuja realização se operacionaliza através de procedimento administrativo demarcatório, decorre de mandamentos constitucionais e legais, não sendo possível ao Poder Público, em qualquer instância, opor-se à sua mera realização.

Infere-se, nesses termos, que a parte autora não demonstrou a existência de interesse de agir, por força do qual "cabe ao autor demonstrar que o provimento jurisdicional pretendido será capaz de lhe proporcionar uma melhora em sua situação fática, o que será o suficiente para justificar o tempo, a energia e o dinheiro que serão gastos pelo Poder Público na resolução da demanda" (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, p. 43).

Por outro lado, no que concerne à legitimidade ad causam, observa-se que, em verdade, a Recorrente postula, em nome próprio, pela tutela de interesses individuais alheios, não compreendidos por suas finalidades institucionais (fls. 33) ou pela atividade econômica de seus associados. A tutela pleiteada visa à defesa da propriedade dos detentores de títulos legitimadores de posse sobre as áreas submetidas a estudos antropológicos e demarcatórios, de modo a obstar procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas. Efetivamente, é possível inferir que, em sentido amplo, a matéria versada na lide abrange eventuais direitos de todos os cidadãos detentores de posse ou de títulos de propriedade sobre terras abarcadas por processos administrativos demarcatórios, não se restringindo aos associados da Apelante ou à atividade econômica por eles desenvolvida.

Consoante exposto, a legitimação ativa para apresentar oposição a processos administrativos de demarcação de terras indígenas, por meio do ajuizamento de ações petitórias ou demarcatórias, restringe-se ao âmbito individual dos titulares do domínio imobiliário sobre os bens potencialmente afetados, não se estendendo ao ente associativo autor desta demanda.

Ressalta-se, nesse ponto, que inexiste nos autos a efetiva demonstração de eventual violação à esfera de direitos titularizados diretamente pela APROSOJA ou relacionados com sua finalidade institucional, em decorrência estrita dos estudos antropológicos e demais atos administrativos realizados para fins de demarcação.

Conclui-se, portanto, que a Apelante não integra a relação jurídica subjacente aos processos demarcatórios e tampouco apresenta interesse jurídico direto na pretensão deduzida na presente lide.

A análise do pedido deduzido na exordial conduz, por conseguinte, à conclusão pela ausência de interesse processual e de legitimidade ativa ad causam, vez que é patente a inexistência de qualquer utilidade para a Recorrente na tutela jurisdicional pleiteada, bem como a ausência de qualquer direito seu ameaçado ou violado.

Nesse sentido aponto os seguintes precedentes:


AGRAVO LEGAL. DECISÃO MONOCRÁTICA. CPC, ART. 557. CABIMENTO. PROCEDIMENTO DE DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. MUNICÍPIO DE PORÃ. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA NÃO CARACTERIZADA. EXTINÇÃO DO PROCESSO. INDEFERIMENTO DA INICIAL. LEGITIMIDADE. PROVIMENTO JURISPRUDENCIAL GENÉRICO. NÃO CABIMENTO.
1. É cabível decisão monocrática, pois, segundo o art. 557, § 1º do CPC, não há necessidade de a jurisprudência ser unânime ou de existir súmula dos Tribunais Superiores a respeito.
2. Na hipótese dos autos não se configura supressão de instância e, não tendo sido apreciado tema que não passou pelo crivo do juiz natural, indevida a declaração de nulidade do processo. Utilizando-se dos fundamentos veiculados pelo MM. Juiz em suas razões de decidir e não tendo avançado em tema que dependia de análises de fatos e provas, a r. decisão monocrática, ao reconhecer que o recurso de apelação devolve ao Tribunal ad quem o conhecimento de toda a matéria impugnada ("efeito devolutivo da apelação"), nos termos do art. 515, tratou de todas as questões efetivamente suscitadas no âmbito recursal.
3. É devido reconhecer que a controvérsia central deste agravo reside em veicular inconformismo com o julgamento, que manteve a sentença que julgou extinto o processo com base nos incisos I e VI do art. 267 do Código de Processo Civil, dado que a inicial não tem condições de ser deferida e falta ao Município de Porã legitimidade ativa.
4. Não há razão para suspender os estudos de demarcações de terras indígenas em todas as propriedades que comprovem não ocupação por índios em 05.10.88, na medida em que a questão deverá ser examinada e verificada caso a caso. Nesse sentido, o provimento jurisdicional não há de ser genérico, mas referido a uma situação concreta, perfeitamente identificável, levando-se em consideração as especificações das propriedades que poderão ser demarcadas, tais como nomes e proprietários, localizações, áreas, medições, números de registro e respectivos cartórios onde estão potenciais títulos aquisitivos.
5. Não há razão para que a apelante pleiteie que se reconheça que a causa de pedir deste processo não se confunde com o da Ação n.º 2008.60.05.001990-7, eis que a d. magistrada não chegou a essa conclusão. O que a Juíza Federal afirmou foi que o próprio apelante propôs outra ação de objeto assemelhado em que especifica a propriedade sobre a qual pretende que recaia provimento jurisdicional. Essa argumentação fez parte tão-somente de suas razões de decidir, de sua fundamentação, não chegando a prejudicar qualquer das ações.
6. Agravo legal a que se nega provimento.
(TRF-3, AC 156 MS 2010.60.05.000156-9, Primeira Turma, Desembargador Federal José Lunardelli, j. 30 de Agosto de 2011) - g.n.
DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. COMPROMISSO DE AJUSTE DE CONDUTA. MPF. FUNAI. GRUPOS DE TRABALHO PARA IDENTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO DE TERRAS. MUNICÍPIO DE LAGUNA CARAPÃ. ILEGITIMIDADE ATIVA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
1. Deve-se reconhecer a ilegitimidade ativa ad causam do Município de Laguna Carapã para postular o reconhecimento dos direitos afirmados.
2. No caso dos autos, não se reveste de plausibilidade a alegação de que o Ministério Público e a FUNAI teriam celebrado compromisso de ajuste de conduta (CAC) que prejudica direitos e obrigações do Município de Laguna Carapã, por conta da ausência de sua participação.
2.1. O apelante não dá conta, de modo claro e objetivo, de especificar quais direitos foram suprimidos direta e imediatamente pela celebração do CAC e pela mera edição das portarias.
2.1.1. Deveras, a FUNAI detém poder e competência para editar portarias para o desempenho de suas atividades, sem a necessidade de prestar contas a determinadas pessoas ou entidades, com referência ao desempenho de suas atribuições específicas.
2.1.2. As portarias n.ºs 788, 789, 790, 793, 792 e 791 (fs. 165/170) apenas objetivam constituir os Grupos Técnicos, determinar seu deslocamento a Municípios, e estabelecer prazos para a entrega de relatórios. Oportuno inclusive salientar que dessas portarias, apenas as de números 788 e 789 se relacionam ao Município apelante, mencionando-o.
2.2. O CAC, firmado entre a FUNAI e o Ministério Público Federal, objetiva tão somente compelir a FUNAI a proceder com estudos de natureza etnográfica, antropológica, histórica, jurídica e ambiental de terras no Mato Grosso do Sul, algumas delas no território do Município de Laguna Carapã. Como se verifica às fls. 85/93, o CAC não fixa limites territoriais definitivos para a configuração das terras indígenas, apenas pretende compelir a FUNAI a constituir grupos de trabalho para "identificação e delimitação, sem prejuízos de outras, das seguintes Terras Indígenas" (cf. cláusula primeira).
2.3. O CAC foi firmado com vistas a compelir a FUNAI a realizar atos administrativos que, independentemente da ação do Ministério Público Federal, já eram objeto de suas atribuições legais.
2.4. Na atual fase do procedimento administrativo não haverá a prática de atos expropriatórios irreversíveis, não se vislumbrando qualquer prejuízo ou violação a direitos e garantias decorrentes do referido estudo perpetrado pela FUNAI sem a participação da parte apelante.
2.5. O Decreto n.º 1.775/96, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, garante aos interessados, inclusive aos Estados e Municípios em que se localize a área sob demarcação, o direito a se manifestarem, conforme o art. 2º, §8º. Com isso, a legislação de fato assegura que, uma vez impulsionado o processo demarcatório, os entes envolvidos dele possam participar, no âmbito administrativo. Mas isso não significa que eles devam participar da celebração do CAC e da elaboração de portarias. São competências diversas. Precedente deste E. TRF 3. Manifestação do MPF.
3. Deve ser mantida a condenação do apelante ao pagamento de custas e honorários advocatícios, conforme fixado pelo Juízo a quo.
3.1. O artigo 20 do CPC estabelece que a parte vencida arcará com as despesas que o vencedor antecipou e a verba honorária, sendo inequívoco que, se o processo extingue-se sem exame de mérito, o vencido é a parte que formulou pedido que não pôde ser examinado. Assim, ao autor, ora apelante, que foi quem pleiteou a prestação jurisdicional, deve ser imputado o ônus da verba honorária.
3.2. O caso não se enquadra na hipótese de desistência (CPC, art. 26) anterior à citação, na qual o autor responde apenas pelas custas e despesas processuais, mas não por honorários de advogado.
3.3. Os recorridos foram intimados para apresentar contrarrazões no prazo legal (fls. 282/285), as quais foram apresentadas pela União (fls. 286/291), pela FUNAI (fls. 296/304) e pelo Ministério Público Federal (fls. 306/310).
4. Precedente deste E. TRF 3 em caso análogo.5. Apelação conhecida a que se nega provimento, mantida a decisão recorrida em todos os seus fundamentos.
(TRF da 3ª Região, AC n. 2008.60.05.001996-8, Rel. Des. Fed. José Lunardelli, j. 22.10.13)
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CONSTITUCIONAL. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO MUNICÍPIO DE CORONEL SAPUCAIA/MS. NULIDADE DA SENTENÇA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE POSSE TRADICIONAL. LEGITIMIDADE E INTERESSE DA PREFEITURA. INEXISTÊNCIA. DESIGNAÇÃO DE GRUPO DE ESTUDO. PROCEDIMENTO EM FASE EMBRIONÁRIA. INTERVENÇÃO PREMATURA DO PODER JUDICIÁRIO. SUCUMBÊNCIA MANTIDA. APELAÇÃO IMPROVIDA.
I. A preliminar de nulidade da sentença não procede.
II. Embora a nulidade do compromisso de ajustamento de conduta firmado entre o MPF e a FUNAI não corresponda ao objeto da ação, o fundamento adotado pelo Juiz de Origem - ilegitimidade de parte - mantém uma conexão lógica com o pedido efetivamente formulado.
III. Se a entidade federativa não está habilitada a questionar um instrumento de pressão ao cumprimento de obrigação constitucional, também não poderá fazê-lo em relação à própria atividade de que se abstinha a União.
IV. O Município de Coronel Sapucaia/MS não satisfez praticamente nenhuma das condições da ação.
V. A celebração do compromisso de ajustamento de conduta e o procedimento de identificação, delimitação e demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não envolvem uma relação jurídica de que ele participe diretamente. A não ser que tivessem recaído sobre imóveis públicos municipais, as medidas administrativas não ameaçam interesse jurídico da Prefeitura.
VI. A identificação, a delimitação e a demarcação de espaços tradicionalmente ocupados pelos índios caracterizam uma atribuição do Poder Executivo (artigo 1º do Decreto nº 1.775/1996). O procedimento é complexo e envolve desde a elaboração de estudos antropológicos, históricos, sociológicos, ambientais, cartográficos e fundiários até a expedição de decreto homologatório.
VII. Enquanto não houver o risco de deterioração da propriedade, geralmente materializado pela publicação de portaria favorável ao relatório técnico, a intervenção do Poder Judiciário é prematura. Existe a possibilidade de o grupo de trabalho negar a ocupação tradicional ou de o Ministro da Justiça desaprovar politicamente as conclusões.
VIII. Segundo os documentos juntados, a FUNAI, em resposta ao compromisso firmado com o MPF, nomeou simplesmente uma equipe para a regularização fundiária das etnias "Guarani Kaiowá" e "Guarani Ñandeva" no Estado do Mato Grosso do Sul. O processo não assumiu desenvoltura, vigor que desestabilizassem o domínio particular.
IX. Ademais, o Decreto nº 1.775/1996 prevê uma fase em que os Estados e os Municípios poderão apresentar manifestação e propor uma indenização pela mudança fundiária da região (artigo 2º, § 8º). A entidade governamental terá oportunidade de explicar todos os impactos políticos, econômicos e jurídicos que visualiza; cabe ao Poder Executivo a prerrogativa de analisá-los.
X. A isenção dos Municípios ao recolhimento de custas não significa a neutralização dos efeitos da sucumbência. O vencedor possui o direito de se ressarcir das despesas com a remuneração de advogado (artigo 4º, parágrafo único, da Lei nº 9.289/1996).
XI. Apesar de a União e a FUNAI não terem sido citadas, receberam intimação para responder ao recurso de apelação. O serviço de representação foi prestado e a quantia arbitrada pelo Juiz de Origem - 5% do valor da causa - refletiu uma atuação profissional menos exigente.
XII. Apelação a que se nega provimento.
(TRF-3, AC 159 MS 0000159-96.2010.4.03.6005, Segunda Turma, Rel. Des. Fed. Antonio Cedenho, j. 25 de Novembro de 2014) - g.n.
AGRAVO LEGAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. PEDIDO DE SUSPENSÃO DO PROCESSO DEMARCATÓRIO. ILEGITIMIDADE DO MUNICÍPIO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA: IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. 1. O artigo 2° da Lei n° 6.001/73 (Estatuto do Índio) estabelece que cabe ao Município atuar na "proteção das comunidades indígenas e proteção dos seus direitos". Infere-se do referido artigo, portanto, que os Municípios são legitimados a atuar em processos na defesa dos interesses indígenas. No entanto, no presente caso, o município de Sete Quedas objetiva proteger os interesses de seus munícipes e não das comunidades indígenas tal como autorizado pelo Estatuto do Índio. 2. Reconheço a falta de interesse de agir do Município de Sete Quedas/MS. Ao que se depreende do caso, o Município não faz um pleito em nome próprio, vez que invoca o direito de propriedade de terceiros. Não se pode confundir interesse financeiro com interesse jurídico, este inexistente, conforme se extrai das próprias manifestações da parte. 3. Nos termos do que dispõe o artigo 273 do Código de Processo Civil, para concessão da tutela antecipada deverá a parte trazer aos autos prova inequívoca, que seja suficiente para convencer o julgador da verossimilhança das alegações, somada ao fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Isso porque, com o acolhimento da pretensão relativa à antecipação da tutela, antecipa-se o próprio bem da vida que, se o caso, somente seria concedido na sentença final. 4. Considerando a matéria em discussão, a existência de posse indígena no Município agravante, não se deve atribuir a tutela de urgência nos termos requeridos, uma vez que a formação de um juízo de convicção decorrerá, no caso em questão, de dilação probatória nos autos do processo originário. 5. Não vislumbro o preenchimento dos requisitos exigidos no referido artigo 273 da lei processual, mesmo porque, como bem ressaltou a decisão agravada, a questão é controversa, necessitando, assim, de prova ainda mais contundente para definir a ocorrência ou não da posse indígena nos imóveis, bem como para verificar, nos casos de perda da posse, a forma pela qual os silvícolas deixaram de ocupar os imóveis. 6. No julgamento da Ação Popular n° 3388, referente a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal estabeleceu que na configuração de terras como indígenas é necessário aferir se a ocupação das terras pelos índios possui características de persistência e constância, na data da promulgação da Constituição Federal, em 05/10/1988. No entanto, conforme se extrai da leitura do acórdão, a tradicionalidade da posse nativa não se perde onde, ao tempo da promulgação da Constituição, a reocupação apenas não ocorreu em decorrência de esbulho por parte de não índios. 7. Não se mostra adequado, neste momento processual, excluir todas as propriedades rurais localizadas no Município de Sete Quedas, que tenham titulação e/ou posse comprovadas antes da Constituição de 1988, de eventual processo administrativo demarcatório de terras indígenas, vez que a existência de posse indígena é questão fática e, por isso, devem ser realizados os estudos e análises necessários. 8. Assim, havendo falta de interesse de agir do Município de Sete Quedas/MS e sendo necessária dilação probatória para cabal demonstração do direito pretendido pelo autor, não é o caso de, initio litis, antecipar-lhe a tutela. 9. Agravo legal a que se nega provimento.
(TRF-3, AI 00207695820104030000, Desembargador Federal Henrique Herkenhoff, Segunda Turma, e-DJF3: 25/11/2010, p. 175) - g.n.

Por outro lado, ainda que se entenda que a matéria versada na lide trata de hipótese de tutela de direitos de natureza meramente individual, deve-se observar que a veiculação de tal pleito mediante representação da associação autora dependeria da autorização expressa de seus filiados, de modo a possibilitar que a APROSOJA atuasse na qualidade de representante dos interesses de determinados associados.

Como é cediço, a pretensão voltada à tutela de direitos individuais pode ser deduzida por associações civis, pela via da representação processual, as quais, em tal hipótese, representam todos ou alguns de seus filiados em juízo, atuando em nome destes, na defesa dos seus interesses.

Deve-se observar, contudo, que a disciplina constitucional da representatividade das entidades associativas para o ajuizamento de ações judiciais (art. 5º, XXI, da CR/88) não se relaciona com o sistema de tutela coletiva, cuja natureza e regramento são específicos. Tal representatividade não se confunde, assim, com a autorização conferida pelo ordenamento jurídico aos colegitimados extraordinários (art. 5º, da Lei 7.347/85, e art. 82, da Lei 8.078/90), para, enquanto substitutos processuais, defenderem, em juízo, direitos metaindividuais titularizados por uma coletividade.

Considerados tais pressupostos, observa-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em precedente firmado no julgamento do RE 573.232/SC, estabeleceu, como fundamento determinante - e, portanto, com eficácia de precedente vinculante - o entendimento de que a disciplina constitucional acerca da representatividade das entidades associativas para o ajuizamento de ações judiciais, em nome e no interesse de seus filiados, impõe a observância da exigência contida no art. 5º, XXI, da CR/88, razão pela qual, em tal hipótese, é imprescindível a autorização expressa dos associados e a apresentação da lista destes junto à inicial.

Logo, no caso em exame, tendo em vista a ausência de legitimidade ativa ad causam, bem como de interesse processual, é de rigor a extinção do feito sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil.

Dos honorários advocatícios


Em vista da sucumbência da Apelante, majoro os honorários advocatícios sucumbenciais para R$ 6.000,00 (seis mil reais), para cada Ré, nos termos do art. 85, §§ 8º e 11, do Código de Processo Civil.


Ante o exposto, nego provimento ao recurso de apelação.


É o voto.


ADRIANA TARICCO
Juíza Federal Convocada


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