Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 17/04/2020
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0003070-62.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.003070-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
APELANTE : MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO
ADVOGADO : ARLETE MARIA DE SOUZA (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
APELADO(A) : Justica Publica
No. ORIG. : 00030706220154036181 4P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. PECULATO. ARTIGO 312 DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NATUREZA DO BEM JURÍDICO TUTELADO. NEGADO PROVIMENTO À APELAÇÃO DA DEFESA.
- Não deve ser admitida a aplicação do princípio da insignificância aos crimes perpetrados contra a Administração Pública. No crime de peculato a norma penal objetiva não só o resguardo do patrimônio público, mas também da moral administrativa, insuscetível de valoração econômica. Precedentes.
- A norma visa resguardar além da questão patrimonial, o funcionamento regular da atividade estatal, a moralidade, probidade e eficácia, não sendo viável o acolhimento da atipicidade material decorrente da aplicação do princípio da bagatela. Precedentes.
- Recurso da Defesa a que se nega provimento.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, NEGAR PROVIMENTO À APELAÇÃO DA DEFESA, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 26 de março de 2020.
MONICA BONAVINA
Juíza Federal Convocada


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0003070-62.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.003070-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
APELANTE : MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO
ADVOGADO : ARLETE MARIA DE SOUZA (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
APELADO(A) : Justica Publica
No. ORIG. : 00030706220154036181 4P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

Trata-se de Apelação Criminal interposta por MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO (fls. 363 e 366/376), nascida em 12.12.1979, por meio da Defensoria Pública da União, em face da sentença publicada aos 05.08.2016 (fl. 358), proferida pela MMª. Juíza Federal da 4ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, Dra. Renata Andrade Lotufo, que julgou procedente a pretensão punitiva estatal, para condenar a ré pela prática do delito insculpido no artigo 312, §1º, do Código Penal, à pena privativa de liberdade de 02 (dois) anos de reclusão e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, cada qual no valor mínimo legal, atualizados monetariamente desde a data do primeiro ato de execução no evento delitivo. Estabelecido o regime inicial ABERTO de cumprimento da pena. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas penas restritivas de direitos, consubstanciadas em prestação pecuniária no valor de 10 (dez) salários mínimos, em favor da União, bem como prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, ambas a serem designadas pelo juízo das execuções penais. Fixado o valor mínimo à título de reparação dos danos causados pela infração, em R$ 3.510,49 (três mil quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos), atualizados até 09.04.2012, nos termos do artigo 387, IV, do Código de Processo Penal (fls. 349/357).


Narra a denúncia que (fls. 259/261):


(...)
Consta dos autos que MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO, voluntária e conscientemente, em período compreendido entre 12.02.2010 a 29.09.2011, apropriou-se de valores pertencentes a clientes da Caixa Econômica Federal, no valor total de R$ 3.510,49 (três mil, quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos), atualizados até 9/4/2012, dos quais tinha a posse em razão de seu cargo como economiária.
Ante a contestação de irregularidades no pagamento do Abono Salarial/PIS, na agência Tatuapé da CEF, por beneficiários que alegaram não terem efetuado os devidos saques, foi instaurado o Processo Administrativo Disciplinar - PAD nº SP.0270.2011.G.000529 no âmbito da instituição financeira.
O PAD teve como origem o Pedido de Averiguação de Saques do PIS/Abono Salarial de Ângela Roberta Pereira Tosta (nº PIS/PASEP 124.64732.06-2) contestando os saques efetuados nos dias 12.02.2010 e 17.11.2010 no valor de R$ 510,00 (quinhentos e dez reais) cada, nas agências Shopping Frei Caneca (Agência 2897) e Tatuapé (Agência 0270), respectivamente (fls. 14-15).
De igual maneira, houve o Pedido de Averiguação de Saques do PIS/Abono Salarial feito por Luana Marques de Andrade (nº PIS/PASEP 132.90094.77-3) contestando o saque efetuado em 31.05.2011 no valor de R$ 545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais) na agência Tatuapé (fls. 23).
Houve ainda Pedido de Averiguação efetuado por Alessandra Abella Solano (nº PIS/PASEP 124.69947.40-7) alegando o saque irregular no valor de R$ 510,00 (quinhentos e dez reais) no dia 17.11.2010 na agência Tatuapé (fls. 55).
Por fim, houve ainda Pedido de Averiguação de Adriana Aparecida Rodrigues Neves (nº 132.20915.77-8), onde se contestou o saque ocorrido em 28.06.2011 no valor de R$ 545,00 (quinhentos e quarenta e cinco reais) na agência Tatuapé (fls. 89).
Visando apurar o ocorrido, a Comissão do PAD solicitou cópia da Fita de Caixa da agência Tatuapé, local onde foram efetuados os saques em três dos casos, nas datas dos mesmos.
Assim, ficou comprovado que o saque no valor de R$ 510,00 (quinhentos e dez reais) no dia 31.05.2011, de titularidade de Luana Marques de Andrade, foi processado pelo funcionário de matrícula nº CO85558 (fls. 53-54), qual seja MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO (fls. 115).
Através da Cópia da Fita de Caixa, ficou demonstrado que MICHELE também foi a responsável pelos dois saques no valor de R$ 510,00 (quinhentos e dez reais) cada, do dia 17.11.2010, que pertenciam a Alessandra Abella Solano e Ângela Roberta Pereira Tostão (fls. 83).
Houve pedido de Esclarecimentos efetuado por Peter Anderson Bresciani Fidalgo, o qual viria a ser ex-cunhado de MICHELE, tendo em vista o não reconhecimento, por parte do cliente, de diversas transações bancárias na conta de n° 3454-9. Dentre elas, uma transferência no valor de R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais) no dia 14.07.2011, tendo como conta credora n° 3232.013.5084-0, de titularidade de MICHELE (fls.126, 146 e 181).
Além disso, houve a ocorrência de 05 (cinco) saques sem cartão no valor de R$ 100,00 (cem reais) nas datas de 20.09.2011 (fls. 138), 22.09.2011 (fls. 139), 23.09.2011 (fls. 140), 07.10.2011 (fls. 141), 10.10.2011 (fls. 142) e 17.10.2011 (fls. 143), que Fidalgo negou ter realizado.
De acordo com o Relatório das Transações, ficou demonstrado que todos os saques foram realizados na Agência Sapopemba (Agência 4011), agência onde MICHELE trabalhava à época dos mesmos.
MICHELE atuou na Agência Shopping Frei Caneca (Agência 2879), pelo período de 11.04.2009 a 27.04.2010, sendo transferida para a Agência Tatuapé (Agência 0270), onde atuou de 28.04.2010 a 30.07.2011 (fls. 09), sendo então transferida para Agência Sapopemba (fls. 115 e 177).
Portanto, as datas e locais dos saques dos valores referentes ao PIS/Abono Salarial bem como das movimentações bancárias efetuadas na conta de titularidade de Peter Anderson são todas condizentes com os períodos e agências onde estava lotada MICHELE.
Nos autos do PAD, foi ouvida Priscila Aparecida Côrrea da Silva, que laborava junto com MICHELE na agência Tatuapé, tendo relatado que, tendo em vista as contestações dos clientes, procurou juntamente com a Gerente de Retaguarda, Helena, esclarecimentos de MICHELE, uma vez que através de pesquisa no sistema 'UNIX' ficou demonstrado que os pagamentos tinham sido efetuados por tal operadora, mas não havia documentação correspondente.
Quando indagada, MICHELE informou à depoente que se tratava de pagamentos de abono de PIS que ela efetuou para colegas de faculdade (fls.176).
Graziela Lourenço Miranda de Alencar, gerente na agência Tatuapé na data dos fatos, informou que não foram encontrados documentos dos saques contestados através do sistema 'Metrofile' e que questionou a funcionária em relação a estes. Nesta oportunidade, MICHELE lhe disse que a falta de documentos seria decorrência do sistema 'Metrofile' ser falho, além dos saques terem sido feitos para pessoas que trabalhavam na empresa da noiva do ex-cunhado, o que contraria a versão dada à Priscila.
Diante da versão emanada por MICHELE, Graziela informou que as pessoas titulares dos valores sacados haviam formalizado suas contestações, tendo MICHELE se comprometido a ressarcir os valores pagos, o que não ocorreu.
Graziela ainda informou que foi procurada pelo ex-cunhado de MICHELE, Peter Anderson, contestando movimentação de conta corrente que ele abriu com a intenção de fazer um financiamento habitacional mas que afirmava nunca ter movimentado, tampouco possuindo a senha do cartão (fls. 177).
Ficou constatado que a conta de Peter Anderson e utilizada por MICHELE possuía um saldo devedor de R$ 890,49 (oitocentos e noventa reais e quarenta e nove centavos) (fls. 198).
Andrea de Castro Leal relatou que, após constatação de que os saques tinham ocorrido no caixa da funcionária MICHELE, esta informou que os saques tinham sido efetuados por solicitação de seu ex-cunhado atendendo a um pedido da noiva dele. Segundo Andrea, MICHELE chegou a ressarcir um dos casos para o titular do PIS, tendo em vista ter debitado uma conta indevida em razão de erro na numeração (fls. 179).
Em sede policial, prestou depoimento Alessandra Kelly Pires da Silva, presidente da comissão do PAD n° SP.0270.2011.G.000529, que relatou não ter sido localizado nenhum comprovante de pagamento, porém ficou constatado que os pagamentos foram realizados pela empregada MICHELE através dos relatórios e fitas de auditoria de caixa.
Ademais, a depoente informou que MICHELE se comprometeu a devolver o dinheiro e apresentar os comprovantes mas não o fez, bem como abandonou o emprego após a instauração do referido PAD, não comparecendo às audiências na CEF, apesar de notificada (fls. 216).
Por fim, houve a oitiva de Peter Anderson Bresciani Fidalgo, que relatou que foi MICHELE a responsável por abrir sua conta e que, tempos depois, recebeu uma carta referente a um empréstimo no valor provável de R$ 3.000,00 (três mil reais) que o mesmo não contraiu, sendo então reembolsado pelo bando (fls. 235).
Dos valores apropriados por MICHELE referente ao pagamento de PIS/ABONO ficou constatado o prejuízo de R$ 2.620,00 (dois mil, seiscentos e vinte reais), enquanto os valores movimentados da conta de titularidade de Peter Anderson totalizaram um prejuízo de R$ 890,49 (oitocentos e noventa reais e quarenta e nove centavos), perfazendo o total de R$ 3.510,49 (três mil, quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos), em valores de abril/2012 (fls. 04)
Assim, resta comprovada tanto a autoria quanto a materialidade do delito por MICHELE, conforme se depreende da análise das cópias de fitas de caixa, onde se verifica que os pagamentos foram efetuados pela empregada; dos depoimentos em sede administrativa e policial que demonstraram que MICHELE deu versões conflitantes para esclarecer os ilícitos; além da conduta da própria denunciada no sentido de não apresentar defesa administrativa, chegando a abandonar o emprego.
Nota-se que não foram encontrados os documentos referentes aos pagamentos e saques pela Comissão do PAD (fls. 198-199), o que constitui indícios da consciência delitiva de MICHELE, pois esta possuía a oportunidade de subtrair tais documentos com a finalidade de ocultar ilícitos.
Assim agindo, MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO, voluntária e conscientemente, subtraiu, em proveito próprio, valores pertencentes a clientes da Caixa Econômica Federal, valendo-se da facilidade que lhe proporcionava a condição de empregada pública daquela Instituição Financeira.
(...)


A denúncia foi recebida em 26.03.2015 (fl. 262 e verso) e a sentença publicada aos 05.08.2016 (fl. 358).


Em suas razões recursais (fls. 366/376), a defesa postulou a absolvição da increpada, nos termos do artigo 386, III, do Código de Processo Penal (não constituir o fato infração penal), invocando a aplicação do princípio da insignificância, por entender que os valores subtraídos são irrisórios (abaixo do montante considerado pela Fazenda Nacional para fins de arquivamento das execuções fiscais), os quais não teriam o condão de lesar gravemente o bem jurídico tutelado.


Contrarrazões apresentadas pelo Ministério Público Federal às fls. 378/381.


A Procuradoria Regional da República emitiu parecer, às fls. 386/388, para que seja negado provimento à Apelação da defesa.


É o Relatório.


À revisão.






FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal Relator


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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0003070-62.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.003070-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
APELANTE : MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO
ADVOGADO : ARLETE MARIA DE SOUZA (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
APELADO(A) : Justica Publica
No. ORIG. : 00030706220154036181 4P Vr SAO PAULO/SP

VOTO

A JUÍZA FEDERAL CONVOCADA MONICA BONAVINA:

Confirmo o relatório.

O órgão do Ministério Público Federal ofereceu denúncia em face de MICHELE OLIVEIRA BRESCIANI FIDALGO como incursa nas sanções do artigo 312, parágrafo 1º, do Código Penal, porquanto, em apertada síntese, no interregno compreendido entre 12.02.2010 a 29.09.2011, teria se apropriado de valores pertencentes a clientes da referida empresa pública (Abono Salarial/PIS e numerário existente em conta corrente), no valor de R$ 3.510,49 (três mil, quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos), dos quais tinha a posse em razão de seu cargo como economiária (fls. 259/261).

A sentença acostada às fls. 349/357 julgou procedente a pretensão punitiva estatal, para condenar a ré como incursa nas sanções do art. 312, § 1º, do Código Penal, à pena privativa de liberdade de liberdade de 02 (dois) anos de reclusão e ao pagamento de 10 (dez) dias-multa, cada qual no valor mínimo legal, atualizado monetariamente desde a data do primeiro ato de execução no evento delitivo. Foi estabelecido o regime inicial ABERTO de cumprimento da pena. A pena privativa de liberdade foi substituída por duas penas restritivas de direitos, consubstanciadas em prestação pecuniária no valor de 10 (dez) salários mínimos, em favor da União, bem como prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, ambas a serem designadas pelo juízo das execuções penais. Foi fixado o valor mínimo a título de reparação dos danos causados pela infração, em R$ 3.510,49 (três mil quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos), atualizados até 09.04.2012, a teor do que dispõe o artigo 387, IV, do Código de Processo Penal.

Feitas tais considerações, cabe considerar que a defesa requer a absolvição da increpada, invocando a aplicação do princípio da insignificância, por entender que os valores subtraídos são irrisórios (abaixo do montante considerado pela Fazenda Nacional para fins de arquivamento das execuções fiscais), os quais não teriam o condão de lesar gravemente o bem jurídico tutelado.

Peculato. Artigo 312 do Código Penal.

O artigo 312 do Estatuto Penal Repressivo dispõe acerca do crime de peculato nos seguintes termos:

Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:
Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa
§ 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

O crime de peculato é crime contra a Administração Pública, perpetrado por funcionário público, sendo certo que a primeira parte do caput do artigo 312 do Código Penal prevê a conduta típica do peculato-apropriação, hipótese em que, o agente assenhora-se, apossa-se, torna como sua a coisa, invertendo o ânimo da posse, atuando como se dono fosse.

Pressuposto do crime é a posse legítima, considerada esta em um sentido amplo, abarcando a detenção e a posse indireta (disponibilidade jurídica do bem, sem apreensão material), devendo o funcionário público ter a posse da coisa em virtude do cargo que desempenha, sendo certo que a posse do bem, valor ou dinheiro deverá ser anterior à apropriação.

Na segunda hipótese (peculato-desvio), a conduta desviar compreende o fato de o agente da Administração Pública alterar o destino do objeto de que tenha posse para um fim diverso, em proveito próprio ou de terceiro, sendo certo que o proveito poderá ser patrimonial ou moral, havendo a necessidade de que a posse seja lícita, para que ulteriormente o bem possa ser desviado.

Tanto no peculato-apropriação quanto no peculato-desvio, a posse do bem, valor ou dinheiro deverá ser anterior à apropriação ou ao desvio. Ausente a posse, ainda que indireta ou jurídica, não há que se falar em peculato.

Em tais casos, é prescindível a natureza pública do bem para a configuração do crime de peculato, importando apenas que o objeto material tenha sido confiado ao funcionário público em razão de sua qualidade, podendo tratar de bens particulares.

Por outro lado, o parágrafo primeiro do artigo 312 do Estatuto Penal Repressivo descreve a conduta do peculato-furto. Nesta hipótese, há dois comportamentos tipificados. O primeiro evidencia a conduta do funcionário público que subtrai e o segundo o de concorrer para que seja subtraído, não se exigindo, como ocorre no caput, que o funcionário público tenha a posse da coisa. Trata-se aqui do peculato impróprio.

Nesse sentido, o Pretório Excelso já decidiu que para a configuração do peculato-furto o agente não detém a posse da coisa (valor, dinheiro ou outro bem móvel) em razão do cargo que ocupa, mas sua qualidade de funcionário público propicia facilidade para a ocorrência da subtração devido ao trânsito que mantém no órgão público em que atua ou desempenha suas funções (HC n.º 86717, Rel. Ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 22.08.2008).

O funcionário público vale-se de sua condição para assim atuar, quer seja para subtrair, quer seja concorrendo dolosamente para que outro subtraia. Basta que se beneficie das facilidades que dispõe em virtude de seu cargo.

Não aplicação do Princípio da Insignificância.

A defesa da ré pretende o acolhimento da tese de atipicidade delitiva mediante a aplicação do princípio da insignificância, sustentando que o valor apropriado de R$ 3.510,49 (três mil, quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos) não teria o condão de resvalar no bem jurídico tutelado pela norma.

É cediço que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, de modo que sua atuação se torne necessária em casos de relevante violação dos bens jurídicos tutelados pelo Estado.

Assim, o princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, no sentido de excluir ou afastar a própria tipicidade penal nos delitos de violação mínima e assegurar que a intervenção penal somente ocorra nos casos de lesão de certa gravidade.

Dentro desse contexto, a insignificância tem o condão de afastar a tipicidade da conduta sob o aspecto material ao reconhecer que ela possui um reduzido grau de reprovabilidade e que houve pequena ofensa ao bem jurídico tutelado, remanescendo apenas a tipicidade formal, ou seja, adequação entre fato e lei penal incriminadora.

A jurisprudência do Pretório Excelso tem exigido para a aplicação do referido princípio o preenchimento concomitante dos seguintes requisitos: 1) mínima ofensividade da conduta do agente; 2) ausência de periculosidade social da ação; 3) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e 4) relativa inexpressividade da lesão jurídica. Logo, a jurisprudência de nossa Corte maior determina a aplicação do princípio de forma criteriosa e realizada caso a caso, de forma que para se conduzir à atipicidade da conduta seria necessário ir além da irrelevância penal prevista em lei. Seria indispensável averiguar o significado social da ação, a adequação da conduta, a fim de que a finalidade da lei fosse alcançada.

Com efeito, no caso ora sob análise, ainda que se possa, em princípio, considerar de pequena expressão o valor supramencionado (R$ 3.510,49 - três mil, quinhentos e dez reais e quarenta e nove centavos), não há que se falar na aplicação do aludido instituto.

Em que pese guardar certa semelhança com os delitos praticados contra o patrimônio, o crime de peculato é crime contra a Administração Pública, perpetrado por funcionário público.

Não só o aspecto patrimonial estatal resta violado no peculato, mas também os interesses da Administração, cuidando-se de crime pluriofensivo.

O bem jurídico tutelado é a Administração Pública, considerada sob o aspecto patrimonial (proteção do próprio Erário Público) e aspecto moral (dever de todo o agente de ser probo), tutelando-se, portanto, além do patrimônio público, o funcionamento regular da atividade estatal, a sua moralidade, probidade e eficácia.

Diante deste cenário, não deve ser admitida a aplicação do princípio da insignificância aos crimes perpetrados contra a Administração Pública, já que, como visto, a norma penal objetiva não só o resguardo do patrimônio público, mas também da moral administrativa, insuscetível de valoração econômica.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido refratária à sua incidência, ainda que o valor seja irrisório. Nesse sentido:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PECULATO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. DELITO CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PUBLICA. ART. 20 DA LEI N. 10.522/2002. INAPLICABILIDADE.
1. Segundo a jurisprudência desta Corte, não se aplica o princípio da insignificância aos crimes cometidos contra a administração pública, ainda que o valor seja irrisório, porquanto a norma penal busca tutelar não somente o patrimônio, mas também a moral administrativa.
2. Não se aplica ao crime de peculato o disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, com a alteração dada pelas Portarias n. 75 e n.130/2012, por não se tratar de supressão de tributo.
3. De qualquer forma, mostra-se irrelevante a discussão acerca do valor indevidamente apropriado, ante a reprovabilidade da conduta perpetrada pelo agravante, que se utilizou do cargo de gerente e tesoureiro da agência dos Correios para se apropriar da quantia de R$ 5.680,78.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp 487.715/CE, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 18/08/2015, DJe 01/09/2015) (grifei).
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. PECULATO. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. NÃO CABIMENTO.
1. Não se aplica o princípio da insignificância aos crimes contra a Administração Pública, uma vez que a norma visa resguardar não apenas a dimensão material, mas, principalmente, a moral administrativa, insuscetível de valoração econômica.
PERDA DO CARGO PÚBLICO. EFEITO EXTRAPENAL. ART. 92, I, A DO CÓDIGO PENAL. MOTIVAÇÃO SUFICIENTE.
1. Não há que se cogitar de ausência de fundamentação válida na decisão que decretou a perda do cargo público do apenado, pois evidenciou, a partir de elementos concretos, a violação de dever para com a Administração Pública.
2. Agravo regimental a que se nega provimento
(AgRg no REsp 1382289/PR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/06/2014, DJe 11/06/2014) (grifei).

O Supremo Tribunal Federal também já reconheceu a inadmissibilidade da aplicação do princípio em caso de crime contra a Administração Pública, ao argumento de que a norma penal objetiva não só o resguardo do patrimônio público, mas também da moral administrativa, senão vejamos:

HABEAS CORPUS - JUSTA CAUSA. A concessão de ordem baseada em conclusão sobre a ausência de justa causa surge no âmbito da excepcionalidade maior, somente cabendo se os fatos narrados não consubstanciarem crime. CRIME - REGÊNCIA - DECRETO-LEI. Aprecia-se o aspecto formal referente a previsão de crime a partir do quadro constitucional existente. Valia do Decreto-Lei nº 201/67 ante a Carta da República à época vigente. CRIME - INSIGNIFICÂNCIA MATERIAL - DECRETO-LEI Nº 201/67. O Decreto-Lei nº 201/67 está voltado não apenas à proteção do patrimônio público como também da moral administrativa, pelo que não há como agasalhar a óptica do crime de bagatela.
(HC 85184, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 15/03/2005, DJ 08-04-2005 PP-00026 EMENT VOL-02186-02 PP-00315).

Nessa toada, inviável o acolhimento da atipicidade material quanto ao crime de peculato, porquanto a norma visa resguardar além da questão patrimonial, o funcionamento regular da atividade estatal, a moralidade, probidade e eficácia.

Rechaçada, portanto, a tese defensiva.

De outra senda, não houve insurgência quanto à autoria e materialidade delitivas, tampouco quanto à existência do elemento subjetivo. A defesa igualmente não apelou quanto à dosimetria da pena, de modo que, ante a ausência de irregularidades a serem sanadas, a sentença deve ser mantida em sua totalidade.

Pelo exposto, nego provimento à Apelação da defesa, nos termos da fundamentação.

É o voto.

MONICA BONAVINA
Juíza Federal Convocada


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Data e Hora: 31/03/2020 16:43:00