Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 30/09/2020
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0010442-20.2016.4.03.6119/SP
2016.61.19.010442-6/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAME CHEIKH FAYE
ADVOGADO : SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00104422020164036119 4 Vr GUARULHOS/SP

EMENTA

PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA RECEBIDA. ILICITUDE DA PROVA. NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. PROVA OBTIDA POR FONTE IDEPENDENTE.
1. Denúncia rejeitada sob o fundamento de ilicitude da prova colhida na fase policial. Tem razão o juízo de origem quanto à ilicitude das provas obtidas por meio das declarações do recorrido, tendo em vista que ele não foi advertido de seu direito ao silêncio e à não autoincriminação, tampouco foi assistido por advogado.
2. Ainda que o recorrido não tivesse prestado as declarações ou tivesse permanecido em silêncio perante a autoridade policial, a informação a respeito da divergência dos passaportes estava disponível no sistema da Polícia Federal e seria obtida por esse meio. Trata-se da hipótese de prova produzida a partir de fonte independente, totalmente desvinculada daquela considerada ilícita (CPP, art. 157, § 1º e 2º).
3. A concessão de permanência junto ao Conselho Nacional de Imigração não é condição prejudicial de atipicidade da conduta, seja por ausência de previsão legal, seja porque o uso de documento falso para entrada no País ainda subsiste como delito de entrada irregular em território nacional e não se encontra superado pela concessão de permanência.
4. Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, DAR PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito para receber a denúncia e determinar ao juízo a quo que dê prosseguimento ao feito, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado, vencido o Desembargador Federal José Lunardelli que negava provimento ao recurso em sentido estrito.


São Paulo, 27 de agosto de 2020.
NINO TOLDO
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): NINO OLIVEIRA TOLDO:10068
Nº de Série do Certificado: 11DE2005286DE313
Data e Hora: 20/09/2020 14:45:13



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0010442-20.2016.4.03.6119/SP
2016.61.19.010442-6/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAME CHEIKH FAYE
ADVOGADO : SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00104422020164036119 4 Vr GUARULHOS/SP

VOTO-VISTA

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI.

Registro, de início, que o relatório pertinente ao feito em exame consta das fls. 139 e verso, e a ele me reporto para fins descritivos.

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) em face da decisão da 4ª Vara Federal de Guarulhos/SP que, com fundamento no art. 395, III, do Código de Processo Penal, rejeitou a denúncia que imputa ao acusado MAME CHEIKH FAYE a prática do crime tipificado no art. 304, c.c. o art. 297, ambos do Código Penal.

Narra a denúncia (fls. 70/71):

No dia 04/04/2015, nas dependências do Aeroporto Internacional de Guarulhos, MAME CHEIKH FAYE fez uso, perante as autoridade migratórias brasileiras, de documento público falsificado, qual seja, o passaporte de serviço de Guiné-Bissau nº AAIS041143 em nome de Mame Cheikh Faye.Posteriormente, em 20/04/2015 denunciado requereu refúgio na Delegacia de Polícia Federal em Caxias do Sul/Ser, questionado, confirmou a falsidade do passaporte e informou haver ingressado no Brasil com o mencionado documento falso no aeroporto internacional de Guarulhos. Além disso afirmou ser cidadão senegalês e obteve o mencionado passaporte falso mediante o pagamento de aproximadamente R$ 12.500,00 (doze mil quinhentos reais). Alegou que fez uso do passaporte falso uma vez que os cidadãos da República de Guiné-Bissau são isentos de visto de ingresso no Brasil (fl. 05)

O juízo de origem rejeitou a denúncia (fls. 82/83v), sob dois fundamentos autônomos, quais sejam:

i) um de índole eminentemente processual (ilicitude da prova);

ii) outro de caráter material (violação ao caráter fragmentário do Direito Penal, diante da concessão de permanência ao recorrido pelo Conselho Nacional de Imigração).

Pedi vista dos autos para melhor analisar a ausência de justa causa para o início da ação penal, com fundamento no caráter fragmentário, subsidiário do Direito Penal.

A esse respeito, assim fundamentou o Juízo a quo, in verbis (fls. 59):

"Outrossim, deve ser dito que o Direito Penal é subsidiário, fragmentário, somente devendo atuar quando outros ramos do Direito não resolvam a questão de forma satisfatória. No caso concreto, de acordo com informações prestadas pelo CONARE, o pedido de refúgio formulado pelo Sr. Mame Cheikh Faye foi indeferido, eis que não restou demonstrada a existência de fundado temor de perseguição compatível com os critérios elegibilidade prevista no artigo 1º da Lei n. 9.474/1997 (pp. 64-65).
Por outro lado, conforme informado pela autoridade policial da DELEMIG/DREX/SR/PF/SP, o denunciado encontra-se classificado como residente no território nacional, tendo sido concedido visto ou permanência definitiva pelo Conselho (pp. 76-80).
Dessa maneira, do ponto de vista da política criminal e humanitário, não há o menor sentido lógico (pré-jurídico) e jurídico no fato de órgão do Estado brasileiro permitir a permanência de estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e autorizar-se, em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso. Portanto, se o Estado brasileiro autorizou a permanência no Brasil de estrangeiro que inequivocamente ingressou no país de forma irregular, valendo-se de documento falso, não há justa causa para o início de uma ação penal em desfavor do alienígena, pelo ingresso irregular no país, com uso de documento falso. Ademais, o Ministério da Justiça ciente do ingresso irregular no país do denunciado, poderia ter dado início a um processo de deportação. Tendo ao contrário, autorizado a permanência do estrangeiro no país, o denunciado não pode ser passível de persecução penal pelo ingresso irregular no Brasil com uso de documento falso, a menos que se entenda que, efetivamente, o Estado brasileiro não sabe o que faz.
Por ser oportuno, segue matéria jornalística sobre senegaleses em Caxias do Sul, RS, obtida na rede mundial de computadores. Em face do expendido, REJEITO A DENÚNCIA oferecida pelo Ministério Público Federal, tendo em conta que a prova foi obtida de forma ilícita pela Polícia Judiciária, caracterizando-se a ausência de justa causa, de acordo com o inciso III do artigo 395 do Código de Processo Penal."

Compulsando os autos, verifica-se que o Ministério Público Federal, requereu judicialmente o arquivamento do inquérito policial em questão (fls. 58/60), deferido pelo Juízo a quo (fls. 62).

Após o arquivamento, houve informação do CONARE (fls. 64), no sentido de que "o pedido de reconhecimento da condição de refugiado do senhor MAME CHEIKH FAYE foi indeferido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), na 130ª Reunião Plenária Ordinária realizada em 29 de junho de 2018, eis que não restou demonstrada a existência de fundado temor de perseguição compatível com os critérios elegibilidade prevista no art. 1º, da Lei 9.474, de 22 de julho de 1997". Em seguida, o Ministério Público Federal requereu vista dos autos e, após, ofereceu denúncia (fls. 63/67).

Entretanto, conforme informado pela autoridade policial da DELEMIG/DREX/SR/PF/SP, o denunciado encontra-se classificado como residente no território nacional, tendo sido concedido visto ou permanência definitiva pelo Conselho (fls. 76/80).

Diante de tais fatos, faz-se necessário analisar a legislação que regula o ingresso do estrangeiro no território nacional e o pedido de refúgio, prevista na Lei n.º 9.474/1997, por oportuno ao caso dos autos:

Do Ingresso no Território Nacional e do Pedido de Refúgio
Art. 7º O estrangeiro que chegar ao território nacional poderá expressar sua vontade de solicitar reconhecimento como refugiado a qualquer autoridade migratória que se encontre na fronteira, a qual lhe proporcionará as informações necessárias quanto ao procedimento cabível.
§ 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política.
§ 2º O benefício previsto neste artigo não poderá ser invocado por refugiado considerado perigoso para a segurança do Brasil.
Art. 8º O ingresso irregular no território nacional não constitui impedimento para o estrangeiro solicitar refúgio às autoridades competentes.
Art. 9º A autoridade a quem for apresentada a solicitação deverá ouvir o interessado e preparar termo de declaração, que deverá conter as circunstâncias relativas à entrada no Brasil e às razões que o fizeram deixar o país de origem.
Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.
§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento.
§ 2º Para efeito do disposto no parágrafo anterior, a solicitação de refúgio e a decisão sobre a mesma deverão ser comunicadas à Polícia Federal, que as transmitirá ao órgão onde tramitar o procedimento administrativo ou criminal.

A Lei n.º 9.474/97 confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado (art. 1º desta lei), ou seja, que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conferindo-lhe direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º desta lei).

Por determinação do art. 8º da mencionada Lei n.º 9.474/97, o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não impede que ele faça o requerimento de refúgio às autoridades competentes, o que demonstra que, salvo raras exceções (arts. 7º, § 2º c.c art. 3º, III, desta mesma lei), sua entrada irregular (ilegal ou ilícita), em território nacional, não obsta que alcance a qualidade jurídica de refugiado.

Nestes termos, se a pessoa qualificada como "refugiado" pratica algum ato ilícito para conseguir efetivar sua entrada em território nacional, e tal ato ilícito se correlacionar diretamente a esta empreitada, o procedimento (cível, administrativo ou criminal) deve ser arquivado, com fundamento no § 1º, do art. 10 da lei em estudo, acima descrito.

Isso se dá porque, pela interpretação sistemática e teleológica da legislação, verifica-se que a vontade do legislador foi de conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado, conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso país, depois de ter um passado sofrido em sua terra natal.

No caso específico dos autos, apesar de o pedido de reconhecimento da condição de refugiado do senhor MAME CHEIKH FAYE ter sido indeferido pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), por não ter sido demonstrada a existência de fundado temor de perseguição compatível com os critérios elegibilidade prevista no art. 1º, da Lei 9.474, de 22 de julho de 1997, o recorrido encontra-se classificado como residente no território nacional, bem como lhe fora concedido visto ou permanência definitiva pelo Conselho (fls. 76/80).

Por tais razões, entendo deva ser mantida a decisão recorrida, que rejeitou a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, por ausência de justa causa, considerando-se o caráter fragmentário do direito penal, haja vista não haver "sentido lógico (pré-jurídico) e jurídico no fato de órgão do Estado brasileiro permitir a permanência de estrangeiro que notoriamente ingressou de forma irregular no país e autorizar-se, em contrapartida e sucessivamente, uma persecução penal em seu desfavor, em decorrência do ingresso irregular com uso de documento falso".

Em caso similar, ou seja, no Recurso Em Sentido Estrito n.º 0006745-88.2016.4.03.6119/SP ( número antigo 2016.61.19.006745-4/SP) , autos que se encontram com Recurso de Embargos Infringentes pendente de julgamento (com a diferença de que, naqueles autos, o próprio recorrido pedira o arquivamento do pedido de refúgio, por já ter conseguido o visto ou permanência definitiva para permanecer no país) apresentei voto vista no mesmo sentido.

Aliás, cumpre descrever o parecer da Procuradoria Regional da República (naqueles autos, ou seja, 2016.61.19.006745-4/SP), por ser pertinente, in verbis:

(...)

"Dessarte, como já relatado, a questão recursal também deslinda com o aspecto material da conduta imputada, qual seja, de que não deve ser recebida a denúncia diante do caráter fragmentário do Direito Penal, pois a concessão de permanência ao Recorrido via administrativa evidencia o desinteresse do Estado em punir sua conduta pela entrada ilegal no País, conforme específicos trechos de fls. 59.
(...)
Em apertada síntese, o CNIg defere a concessão de permanência definitiva ao estrangeiro refugiado ou asilado que comprove possuir condições de trabalho no Brasil, atendendo às demandas nacionais, numa clara materialização normativa do princípio fundamental da República Federativa do Brasil como o valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da CRFB/88), e a prevalência dos Direitos Humanos enquanto princípio fundamental a ser seguido nas suas relações internacionais (art. 4º, inciso II, da Magna Carta).
Pouco tempo depois, veio a lume a Lei nº 9.474/97, a qual confere especial atenção ao indivíduo qualificado como refugiado - em apertadíssima síntese, àquele que sofre perseguição grave de qualquer tipo no seu País de origem, conforme dicção do art. 1º desta Lei - sendo que a especial condição benéfica de refugiado concede ao Requerente o direito à expedição de cédula de identidade probatória desta especial condição, bem como carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º da Lei n.º 9.474/97).
Por força normativa clara (art. 8º da Lei nº 9.474/97), o ingresso irregular do estrangeiro no território nacional não é impeditivo à solicitação do refúgio às autoridades competentes, o que evidencia que, salvo raras exceções (pessoa considerada perigosa para a segurança do Brasil ou envolvida em gravíssimos crimes, tais como contra a paz, humanidade, hediondo ou tráfico de drogas - arts.7º, § 2º c/c art. 3º, III, ambos da lei nº.9.474/97, a entrada irregular, ilegal ou ilícita em território nacional não é impeditivo à obtenção do status jurídico de refugiado.
Materializando esta orientação normativa, o art. 10 da Lei nº. 9.474/97 é taxativo ao dispor que, realizado o pedido de refúgio ao CONARE, será suspenso o procedimento administrativo (inquérito policial, por exemplo) ou o judicial (ação penal) referente ao fato da entrada irregular no Brasil pelo solicitante do refúgio.
O § 1º do art. 10 da Lei nº. 9.474/97 é ainda mais contundente em asseverar que, caso o refúgio seja concedido pela Autoridade Competente, o procedimento criminal então sobrestado será arquivado, desde que, in verbis: "demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento".
Portanto, se houve a prática de algum ilícito (civil, penal ou administrativo) pela entrada ilegal, ilícita ou irregular do estrangeiro em território nacional, e àquele se correlacionar diretamente a esta, deve haver, ex vi legis, o arquivamento do procedimento (cível, administrativo ou criminal) então sobrestado, justamente, porquê a Lei quis conferir um tratamento jurídico especial ao refugiado, mormente diante do seu passado sofrido, o qual busca no Brasil uma luz no fim do túnel na tentativa de reconstruir uma vida digna.
Destaque-se que o mero protocolo do pedido de refúgio pelo peticionário já lhe garante sua estada regular provisória no País até a definição do processo, sendo que o Ministério do Trabalho expedirá a competente carteira de trabalho provisória para garantir o reinício da vida laboral pelo Requerente (art. 21 da Lei nº. 9.474/97).
Gize-se que o status de refugiado impede a extradição do território nacional se houve coincidência dos fatos motivadores (art. 33 da Lei n.º 9.474/97), ao passo que, a priori, impede a expulsão, salvo daquele caso considerado perigoso para a sociedade ou ordem pública nacional (art. 37 da Lei nº. 9.474/97).
Em observação sistêmica da Legislação, nota-se que a vontade do legislador é conferir, de fato, um caráter especial ao refugiado, conferindo-lhe benesses para que possa reiniciar sua vida de modo digno em nosso País, depois de ter um passado sofrido no seu local de origem.
Tal intelecção resta ainda mais reforçada pela edição e vigência da novel Lei nº 13.445/2017, a qual, na mão da prevalência dos Direitos Humanos como princípio fundamental da República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais (art. 4º, II, da CRFB/88), fora ainda mais benéfica aos imigrantes que buscam acolhida em território nacional.
Além deste novíssimo regime de migração - apesar da Lei referir-se que não prejudica a aplicação de normas internas e internacionais acerca de refugiados (art. 2º) - nota-se que dispõe sobre a autorização de residência,em território nacional, ao imigrante que, dentre outros, seja por finalidade de acolhida humanitária (art. 30, Ii, "e"), ao passo que a referida Lei dispõe que o solicitante faz jus à residência provisória até a definição de seu pedido (art. 31, § 4º), sendo que a concessão de residência pode ser conferida independentemente da situação migratória, na forma do art. 31, § 5º, da Lei n.º 13.445/2017.
Portanto, a conjectura normativa envolvendo a análise conglobante da Constituição Federal de 1988, das Leis, Decretos e Resoluções Pertinentes, permite afirmar que a vontade do Legislador é conferir um tratamento mais benéfico à pessoa estrangeira solicitante de refúgio, diante do seu reconhecido passado sofrido, visando uma melhora de vida em nosso território nacional.
Nesta senda, cumpre analisar que o arquivamento do pedido de refúgio feito pelo Recorrido OUSMANE SANKHE no CONARE não se deu porque não fora reconhecida sua condição de refugiado nos moldes legais - não adimplemento dos requisitos legais delineados nos arts. 38 e 39 da lei n.º 9.474/97 - mas sim por sua desistência manifestada em virtude de ter obtido permanência definitiva pelo CNIg.
Noutras palavras, adaptando as letras do ofício do CONARE de fls. 49 ao jargão judicial, houve a extinção sem resolução do mérito do pedido de refúgio pela perda superveniente de objeto, com aplicação analógica da ratio legis do art. 485, incisos VI e VII, do Novo CPC (Lei nº. 13.105/2015), possibilitada pela norma de extensão prevista no art. 15 do mesmo Codex (diálogo das fontes).
Ou seja, o pedido de refúgio de OUSMANE fora arquivado porque obteve, por uma via mais expedita, o reconhecimento de que pode permanecer, em território nacional, de modo permanente, para exercer seu trabalho digno, atendendo às demandas laborais nacionais, e não porque não ostenta o caráter legal de refugiado.
Tal ótica é reforçada pela certidão da Oficiala de Justiça do dia 25/04/2018, a qual intimou o Recorrido OUSMANE no seu ambiente de trabalho no dia 24/04/2018 em Londrina/PR (fls. 88), razão pela qual afigura-se que o Recorrido está empenhado em continuar trabalhando em território nacional, reconstruindo sua vida de modo mais digno, sendo que as condições desumanas de vários Países Africanos são fatos notórios, noticiados há muitos anos pelas imprensas nacional e internacional, dentre os quais o País de origem do Recorrido - Senegal (https://pt.wikipedia.org/wiki/Senegal).
Por fim, nota-se que o MPF não cuidou de juntar aos autos certidões de antecedentes criminais da Justiça Federal da 3ª e 4ª Regiões, bem como das Justiças Estaduais de São Paulo ou Paraná, as quais poderiam indicar antecedentes desabonadores do Recorrido o seu envolvimento noutras infrações penais, a indicar que fosse uma pessoa perigosa aos interesses nacionais.
Na ausência de tal prova, a qual era facilmente produzível pelo MPF ou pelo Juízo a seu pedido - não consta nos autos qualquer requerimento neste sentido - deve-se presumir a primariedade e bons antecedentes do Recorrido OUSMANE, o qual, saliente-se, fora intimado no seu local de trabalho.
Assim, antes de se socorrer da principiologia - o que é deveras correto e acertado - mostra-se que, ao contrário do quanto propalado nas razões recursais ministeriais, a interpretação sistêmica e teleológica da nossa Legislação (Constituição Federal de 1988, Lei nº. 6.815/80, Lei nº. 8.490/92, Lei nº. 9.474/97, Lei n.º 13.445/2017 e do Decreto Presidencial nº. 840/1993, da Portaria nº. 634/1996 do Ministério do Trabalho e das Resoluções Normativas nº. 06/1197 e 91/2010 do CNIg), infere-se que a concessão de permanência definitiva ao Recorrido OUSMANE importa a anistia legal prevista no art. 10, § 1º, da Lei n.º 9.474/97, a implicar, pois, a inexistência de justa causa para a ação penal, na exata medida em que o uso de passaporte falso tem correlação com sua entrada irregular no Brasil, conforme já supra exposto.
Portanto, opina-se pelo desprovimento do recurso, mantendo-se a rejeição da denúncia, diante da inexistência de justa causa para a deflagração da ação penal." (negritei).

Nestes termos, se o recorrido se encontra residente no país, com a concessão de permanência definitiva pelo Conselho, entendo que a mens legis é a mesma, devendo ser mantida a rejeição da denúncia, diante da inexistência de justa causa para a deflagração da ação penal.

Diante do exposto, NEGO provimento ao Recurso em Sentido Estrito, interposto pelo Ministério Público Federal.

É o voto.

JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): JOSE MARCOS LUNARDELLI:10064
Nº de Série do Certificado: 11DE1812176AF96B
Data e Hora: 28/08/2020 20:02:05



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0010442-20.2016.4.03.6119/SP
2016.61.19.010442-6/SP
RELATOR : Desembargador Federal NINO TOLDO
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAME CHEIKH FAYE
ADVOGADO : SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00104422020164036119 4 Vr GUARULHOS/SP

RELATÓRIO

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) em face da decisão da 4ª Vara Federal de Guarulhos/SP que, com fundamento no art. 395, III, do Código de Processo Penal, rejeitou a denúncia que imputa ao acusado MAME CHEIKH FAYE a prática do crime tipificado no art. 304, c.c. o art. 297, ambos do Código Penal.


Narra a denúncia (fls. 70/71):


No dia 04/04/2015, nas dependências do Aeroporto Internacional de Guarulhos, MAME CHEIKH FAYE fez uso, perante as autoridade migratórias brasileiras, de documento público falsificado, qual seja, o passaporte de serviço de Guiné-Bissau nº AAIS041143 em nome de Mame Cheikh Faye.Posteriormente, em 20/04/2015 denunciado requereu refúgio na Delegacia de Polícia Federal em Caxias do Sul/Ser, questionado, confirmou a falsidade do passaporte e informou haver ingressado no Brasil com o mencionado documento falso no aeroporto internacional de Guarulhos. Além disso afirmou ser cidadão senegalês e obteve o mencionado passaporte falso mediante o pagamento de aproximadamente R$ 12.500,00 (doze mil quinhentos reais). Alegou que fez uso do passaporte falso uma vez que os cidadãos da República de Guiné-Bissau são isentos de visto de ingresso no Brasil (fl. 05)

O juízo rejeitou a denúncia (fls. 82/83v), sob o fundamento de que a prova fora obtida de forma ilícita, pois MAME CHEIKH FAYE não foi advertido pelos policiais federais sobre o direito ao silêncio e de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Ademais, foi concedida permanência no Brasil pelo Conselho Nacional de Imigração.


A decisão foi publicada em 17.07.2019 (fls. 86).


Em suas razões recursais (fls. 89/93), o MPF sustenta que o procedimento para requerimento de refúgio requer a apresentação de documentos e que o recorrido entregou espontaneamente o passaporte contrafeito. Alega, também, que o recorrido não estava na condição de investigado, logo, não se aplicam as garantias previstas no art. 5º, LXIII, da Constituição Federal. Por fim, sustenta que o recorrido desistiu da solicitação de refúgio e que a concessão de visto de permanência no País não tem o condão de extinguir a punibilidade no caso.


Contrarrazões da DPU pela manutenção da decisão (fls. 123/126).


A decisão recorrida foi mantida por seus próprios fundamentos (fls. 127).


A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do recurso (fls. 132/133v).


É o relatório. Dispensada a revisão.


VOTO

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): Ao compulsar os autos, verifico que MAME CHEIKH FAYE compareceu à sede da Polícia Federal de Caxias do Sul/RS, em 20.04.2015, para formular pedido de refúgio, apresentando um passaporte de Guiné Bissau (fls. 05).


Quando questionado a respeito da ausência de carimbo de entrada no Brasil no passaporte de Guiné Bissau, MAME CHEIKH espontaneamente informou que entrara no território nacional com outro passaporte, emitido pela República da Guiné Bissau, pelo qual pagara aproximadamente R$ 12.500,00 (doze mil quinhentos reais).


Tem razão o juízo de origem quanto à ilicitude das provas obtidas por meio das declarações do recorrido, tendo em vista que ele não foi advertido de seu direito ao silêncio e à não autoincriminação, tampouco foi assistido por advogado. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF), por sua Segunda Turma, no HC nº 136.331, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, que "seja na condição de investigado ou de testemunha, o paciente tem direito ao silêncio, de comunicar-se com seu advogado e não produzir prova contra si mesmo, conforme lhe assegura o art. 5º, LXIII, da carta da República".


A despeito disso, observo que a Polícia Federal inevitavelmente realizaria a pesquisa no sistema de tráfego internacional para averiguar a razão da ausência de carimbo de entrada no passaporte emitido pelo Senegal, o que apontaria imediatamente o ingresso no Brasil com a utilização de passaporte de Guiné-Bissau.


Em outras palavras, ainda que MAME CHEIKH não tivesse prestado as declarações ou tivesse permanecido em silêncio perante a autoridade policial, a informação da divergência dos passaportes estava disponível no sistema da Polícia Federal e seria obtida por esse meio.


Portanto, trata-se da hipótese de prova produzida a partir de fonte independente, totalmente desvinculada daquela considerada ilícita (CPP, art. 157, § 1º e 2º). A propósito, veja-se o seguinte precedente do Superior Tribunal de Justiça:


DIREITO AO SILÊNCIO. PACIENTE OUVIDO NA QUALIDADE DE DECLARANTE QUANDO JÁ HAVIA INDÍCIOS DE QUE ESTARIA ENVOLVIDO NOS CRIMES INVESTIGADOS. INEXISTÊNCIA DE ADVERTÊNCIA QUANTO À SUA REAL CONDIÇÃO NO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO DIREITO AO SILÊNCIO. NULIDADE CARACTERIZADA. 1. Os artigos 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal e 186 do Código de Processo Penal conferem ao acusado o direito ao silêncio ou à não autoincriminação, permitindo que, por ocasião de seu interrogatório, cale acerca dos fatos criminosos que lhe são imputados, ou ainda, e via de consequência do sistema de garantias constitucionais, negue a autoria delitiva, sem que isso dê ensejo à apenação criminal ou mesmo valoração negativa dessas declarações pelo togado singular, que poderá, no máximo, desconsiderá-las quando do cotejo com os demais elementos probatórios colacionados. 2. No caso dos autos, verifica-se que o paciente foi intimado para prestar declarações nos autos do inquérito policial deflagrado com o objetivo de apurar os crimes de quadrilha e corrupção, sendo que após o indiciamento de outros acusados, e ainda no curso das investigações, o Ministério Público apresentou relatório noticiando fatos que revelariam a sua participação nos delitos em apuração, tendo ele sido posteriormente inquirido, por duas vezes, sem que fosse advertido de sua situação de investigado, tampouco informado do seu direito ao silêncio, o que revela o desrespeito à garantia prevista no artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal. ILICITUDE DA PROVA DECORRENTE DOS DEPOIMENTOS PRESTADOS PELO PACIENTE SEM A OBSERVÂNCIA DO SEU DIREITO AO SILÊNCIO. DESENTRANHAMENTO DOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXISTÊNCIA DE OUTROS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO DESVINCULADOS DA PROVA ILÍCITA. 1. Em que pese não ser lícita a prova obtida por meio dos depoimentos prestados pelo paciente com a inobservância do seu direito ao silêncio, não se mostra pertinente pedido de trancamento da ação penal, já que a denúncia lastreou-se em outros elementos probatórios que não possuem qualquer liame ou nexo de causalidade com as declarações nulas, de modo que não é possível considerar-se ausente a falta de justa causa para a persecução criminal em exame. 2. A corroborar a validade das demais provas contidas nos autos e que dão sustentação à peça vestibular, o § 1º do artigo 157 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.690/2008, excepciona, em matéria de provas ilícitas, a adoção da teoria dos frutos da árvore envenenada quando os demais elementos probatórios não estiverem vinculados àquele cuja ilicitude foi reconhecida. 3. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício apenas para determinar o desentranhamento dos autos dos depoimentos prestados pelo paciente perante a autoridade policial no dia 9.5.2012. ..EMEN:(HC 249.330/PR, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 12.02.2015, DJe 25.02.2015)

Do mesmo modo, a causa de arquivamento de processo criminal previsto pelo art. 10, § 1º, da Lei nº 9.474/97 está condicionada à concessão de refúgio ao indivíduo estrangeiro. Diante do indeferimento do pedido de reconhecimento da condição de refugiado, conforme informação do CONARE (Comitê Nacional para Refugiados) a fls. 64, não há que se falar em ausência de justa causa para a ação penal.


O fato de MAME CHEIKH ter assegurado a concessão de permanência junto ao Conselho Nacional de Imigração não é condição prejudicial de atipicidade da conduta, seja por ausência de previsão legal, seja porque o uso de documento falso para entrada no País ainda subsiste como delito de entrada irregular em território nacional e não se encontra superado pela concessão de permanência. O crime do art. 304, c.c. art. 297, ambos do Código Penal, teria se perfectibilizado preteritamente.


Assim, havendo prova da materialidade e indícios suficientes de autoria, preenchendo a denúncia os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal e não sendo o caso de incidência do art. 395 desse mesmo Código, a denúncia deve ser recebida.


Posto isso, DOU PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito para receber a denúncia e determinar ao juízo a quo que dê prosseguimento ao feito.


É o voto.


NINO TOLDO
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): NINO OLIVEIRA TOLDO:10068
Nº de Série do Certificado: 11DE2005286DE313
Data e Hora: 07/08/2020 17:56:04