Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001199-60.2012.4.03.6000

RELATOR: Gab. 05 - DES. FED. COTRIM GUIMARÃES

APELANTE: WALESKA MENDOZA

Advogado do(a) APELANTE: CLAUDINEI FORTUNATO DO PRADO - MT16020/O

APELADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

Advogado do(a) APELADO: LUIZA CONCI - MS4230

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001199-60.2012.4.03.6000

RELATOR: Gab. 05 - DES. FED. COTRIM GUIMARÃES

APELANTE: WALESKA MENDOZA

Advogado do(a) APELANTE: CLAUDINEI FORTUNATO DO PRADO - MT16020/O

APELADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

Advogado do(a) APELADO: LUIZA CONCI - MS4230

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

R E L A T Ó R I O

O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator):

Trata-se de ação ordinária ajuizada por WALESKA MENDONZA em face da FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL-FUFMS, em que pleiteia anulação de punição administrativa decorrente de constantes referências a Deus em comunicados oficiais da universidade, bem como indenização por danos morais. Às fls. 453/454, foi indeferido o pedido de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, por estarem ausentes seus pressupostos.

O MM. Juízo a quo julgou improcedentes os pedidos, na medida em que, à luz do julgamento da ADI nº 2.076-5/AC, as referências a Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 não têm força normativa, e as manifestações da autora violam a laicidade do Estado brasileiro.

A apelante aduz, em apertada síntese, que: (i) preliminarmente, requer a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça; (ii) no mérito, a sentença viola a liberdade de consciência e crença, conforme o artigo 5º, VI, da Constituição Federal de 1988; (iii) o direito à livre manifestação do pensamento é garantia essencial ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade da pessoa humana; (iv) a sentença também viola os preceitos de proporcionalidade e razoabilidade; (v) os danos morais constituem, no presente caso, modalidade in re ipsa, que dispensa demonstração; (vi) o provimento à apelação deve ser conjugado com a concessão de tutela antecipada.

Com contrarrazões.

É o relatório.

 

 


                                                                   VOTO-VISTA

 
 

O Excelentíssimo Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO: Voto em decorrência do pedido de vista por mim apresentado na sessão eletrônica do dia 02/07/2019 (fl. 950).

 
 

Conforme relatório do Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES, eminente Relator deste processo, e compulsando os autos, trata-se na origem de ação ajuizada aos 07.02.2012 por WALESKA MENDONZA, servidora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS, objetivando, em essência, tutela jurisdicional que venha a anular e obstar punições administrativas impostas e em vias de serem impostas em processos administrativos instaurados contra a autora - por fatos relacionados à conduta da servidora em fazer referências a Deus ou versículos da Bíblia em comunicados oficiais da Universidade ou mesmo ter afixado um quadro com o mesmo teor (contendo os "10 Mandamentos") em seu local de trabalho, ou ainda, por haver feito denúncia à imprensa e órgãos públicos como MPF e OAB-MS acerca de perseguição religiosa que estaria sofrendo na Universidade -, bem como, postulando a ação também a condenação da ré UFMS em indenização por danos morais decorrentes da perseguição religiosa sofrida em seu local de trabalho por sua fé cristã (a autora se declara cristã evangélica integrante da Igreja Adventista do Sétimo Dia - Movimento de Reforma). A inicial veio acompanhada de documentos (fls. 17-311 e 317-318).

 
 

A ré UFMS apresentou contestação (fls. 325-335, com documentos a fls. 336-426) e, também, reconvenção (fls. 427-433, com documentos a fls. 434-452) postulando a condenação da autora a indenizar a Universidade por danos morais à sua honra objetiva.

 
 

A autora apresentou contestação à reconvenção (fls. 464/486).

 
 

A tutela antecipatória pleiteada para obstar o prosseguimento de processo administrativo então em trâmite foi indeferida pelo juízo a quo (fls. 453-454), em decisão que restou mantida em decisum monocrático nesta Corte (fls. 505-506; 540-541).

 
 

A autora juntou documentos comprovando a punição administrativa de suspensão de 30 dias, aplicada contra si nos autos de um dos processos administrativos (fls. 514-516), reiterando pedido de tutela antecipatória que, não obstante, foi indeferido a fls. 517.

 
 

As partes especificaram as provas que desejavam produzir, tendo o juízo a quo deferido no despacho saneador (fls. 523-524) apenas oitiva de testemunhas, indeferindo pedidos da autora de depoimento pessoal do representante da ré (Reitor da UFMS) e perícia psicológica (que visava realização sobre si mesma para demonstração dos danos morais sofridos). Audiências realizadas por precatória: (i) conforme termo a fls. 563 e mídia audiovisual juntada a fls. 566, com depoimento pessoal da autora, que fez juntar também documentos sobre fatos alegados em seu depoimento (fls. 568-572) e oitiva de uma testemunha arrolada pela autora; e (ii) conforme termo a fls. 583-587, com oitiva de uma testemunha arrolada pela autora e duas pela ré.

 
 

A sentença de primeira instância (Volume 3, fls. 614-619), proferida aos 08/09/2016, julgou a ação improcedente entendendo que as referências a Deus nas manifestações da autora violam a laicidade do Estado brasileiro, o princípio da isonomia e a supremacia do interesse público, assim não podendo o particular expressar seu posicionamento religioso, por isso podendo a UFMS impedir qualquer manifestação nesse sentido e, consequentemente, já que julgou a ação improcedente, poderia a UFMS também aplicar as penalidades administrativas contra a servidora, embora não tenha a sentença exposto qualquer fundamentação a respeito desta última temática. Julgou improcedente também a reconvenção proposta pela UFMS. Condenou a autora e a ré reconvinte, cada qual, em honorários advocatícios arbitrados em 10% do valor atualizado da causa.

 
 

Interposta apelação pela autora (Volume 3, fls. 696-773), com contrarrazões apresentadas.

 
 

Nesta segunda instância, a autora reiterou o pedido de tutela antecipatória para suspensão do PAD nº 23104.001993/2011-35 (Volume 4, fls. 789-862 e fls. 821-862), tendo o e. Relator indeferido o pleito (fls. 863). Desta decisão a autora interpôs agravo interno (fls. 865-889). A fls. 892-899, a autora juntou novos documentos e requereu o reconhecimento de prescrição do PAD nº 23104.001993/2011-35. Na sequência, a autora noticiou decisão administrativa do arquivamento do PAD nº 23104.001993/2011-35, manifestando a desistência do agravo interno (fls. 925-940), homologada a fls. 943. A ré se manifestou sobre os documentos a fls. 946-947.

 
 

Em seu r. Voto, o eminente Relator indeferiu o pedido de justiça gratuita formulado pela autora em sede de apelação e, no mais, negou provimento aos recursos, mantendo integralmente a sentença, tecendo considerações sobre a laicidade do Estado e sobre vedação do Judiciário de examinar o mérito do ato administrativo (fls. 951-955).

 
 

Pedi vista dos autos para melhor conhecimento da controvérsia e, nesta oportunidade, após tomar conhecimento das alegações das partes, dos fatos e das provas dos autos, convenço-me em sentido contrário ao exposto pelo eminente Relator, pelo que nesta oportunidade apresento o processo para prosseguimento do julgamento por esta C. 2ª Turma, apresentando meu voto divergente pelos fundamentos adiante expostos, mediante os quais, pela ordem, passarei a analisar as seguintes questões controvertidas nestes autos:

 
 

Item I - Do pedido de justiça gratuita feito pela autora - deferimento;

 
 

Item II - Do mérito

 
 

Item II.A - Do controle de constitucionalidade dos atos administrativos pelo Poder Judiciário - princípios da razoabilidade e proporcionalidade;

 
 

Item II.B.1 - Definição do objeto da ação - os valores fundamentais em confronto;

 
 

Item II.B.2 - Da harmonização dos valores fundamentais controvertidos - hermenêutica constitucional - critérios e princípios interpretativos;

 
 

Item II.B.3 - Da harmonização dos valores fundamentais controvertidos - no caso concreto;

 
 

Item II.B.3.1 - Do exame do caso concreto - A compatibilização dos valores constitucionais em confronto, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade;

 
 

II.C - Do pedido de danos morais.



 
 
 

I - Do pedido de justiça gratuita da parte autora - deferimento

 
 

Peço licença para discordar do eminente Relator quanto ao critério utilizado por Sua Excelência na valoração do limite para concessão ou não do pedido de justiça gratuita formulado pela parte autora.

 
 

Concordo com o eminente Relator no ponto em que assenta que basta ao interessado afirmar que não dispõe de recursos suficientes para arcar com os custos do processo para que lhe seja garantido o direito de acesso à Justiça com os benefícios da assistência judiciária gratuita, bem como, na consideração de que o Juiz do processo pode, fundamentadamente, indeferir o benefício quando constata nos autos elementos concretos no sentido de que a parte requerente tem condições de arcar com os custos do processo sem prejuízo da manutenção própria e da família.

 
 

Divirjo, porém, por constatar que a renda mensal líquida da autora, aferida no próprio voto do eminente Relator, seria de apenas R$ 1.619,40 em março/2016, ou seja, menor que 2 (dois) salários mínimos vigentes à época (que era de R$ 880,00/mês, conforme Decreto nº 8.618/2015), por isso mesmo não havendo elementos para se infirmar, com segurança e razoabilidade, a declaração de pobreza firmada pela parte autora.

 
 

É de se registrar que a Defensoria Pública da União adota o limite de R$ 2.000,00 (dois mil reais) mensais como limite para presunção da miserabilidade adequada à concessão da assistência judiciária (Res. nº 134/2016), estando a renda líquida da autora aquém deste limite.

 
 

Além disso, entendo que o valor de R$ 3.000,00 (três mil reais) de renda mensal é um limite razoável para aferição da vulnerabilidade econômica hábil à concessão do benefício de assistência judiciária gratuita, especialmente quando demonstradas despesas de elevada monta para manutenção própria e da família, como no caso dos autos.

 
 

Portanto, por meu voto, respeitosamente divergindo do e. Relator neste ponto, deve-se deferir à autora o benefício de assistência judiciária gratuita.


 
 
 

II - DO MÉRITO

 
 

II.A - Do controle de constitucionalidade dos atos administrativos pelo Poder Judiciário - princípios da razoabilidade e proporcionalidade

 
 

No nosso regime constitucional, nenhuma conduta (ação ou omissão) pública pode estar livre do exame de conformação com os valores fundamentais proclamados na Lei Suprema da Nação. Este exame é realizado, em um primeiro momento, pelos próprios órgãos e agentes administrativos e, num segundo momento, pelo Poder Judiciário que detém, neste mesmo regime constitucional tripartite, da competência constitucional para proceder ao controle de constitucionalidade dos atos administrativos em geral.

 
 

A jurisprudência constitucional moderna, em estrita observância dos princípios gerais ínsitos à constitucionalidade contemporânea no regime democrático de governo, vigente em nosso país, tem assentado e pacificado o entendimento no sentido da possibilidade - na verdade, um dever-poder - do Poder Judiciário exercer o controle de constitucionalidade dos atos da Administração em geral, controle que não se restringe a aspectos de legalidade stricto senso, mas todos os seus elementos essenciais - inclusive o denominado mérito administrativo (conveniência e oportunidade) - estão sujeitos à confrontação com todo o espectro das normas constitucionais, escrutínio que permite o exame da legitimidade dos atos administrativos sob as luzes dos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade.

 
 

Trata-se de legítimo exercício da competência jurisdicional também no âmbito de atos administrativos de natureza punitiva, quando se evidencia, no exame de casos concretos, a necessidade de coartação de abusos e desvios de poder sob a ótica destes princípios constitucionais, pois nenhuma conduta pública pode estar livre do exame de conformação com os valores fundamentais proclamados na Lei Suprema da Nação, sob pena de se admitir um vasto campo de atuação pública livre à prática de abusos e violações de direito disfarçada como se fora um exercício legítimo de decisão sobre conveniência administrativa, quando, na verdade, conveniência administrativa não existe sem que haja um legítimo interesse público que o fundamente e, esse interesse dito público, somente pode-se compreender legítimo se o ato administrativo for praticado em atenção aos valores máximos da sociedade plasmados na Constituição Federal.

 
 

Conforme Barroso, o "princípio da razoabilidade consiste em um mecanismo para controlar a discricionariedade legislativa e administrativa", tratando-se de um "parâmetro de avaliação dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça".

 
 

Para esse fim desenvolveu-se a doutrina de que as condutas do legislador e do administrador público sujeitam-se a uma relação racional entre os motivos (circunstâncias de fato), os meios e os fins, subdividindo o princípio da razoabilidade (ou proporcionalidade), em três elementos essenciais ou subprincípios:

 
 

1 - a adequação - a medida inserida na norma ou a adotada pelo administrador deve possuir uma relação lógica, racional, idônea para conduzir ao fim pretendido - esse critério expressa a racionalidade;

 
 

2 - a necessidade ou exigibilidade da medida - vedação ao excesso; consiste na inexistência de meios menos gravosos para o alcance dos fins objetivados; um instrumento de maximização dos preceitos constitucionais com a menor limitação possível aos bens juridicamente protegidos;

 
 

3 - a proporcionalidade em sentido estrito - a medida será legítima mediante uma ponderação de razoabilidade, um justo equilíbrio entre o ônus imposto e o benefício pretendido, buscando um equilíbrio entre os interesses primários (dos indivíduos) e os interesses secundários (da sociedade).

 
 

Constatação deste entendimento constitucional aplicado em sede de atos punitivos, por exemplo, temos na eliminação de abusividade de multas punitivas em matéria tributária, hipótese resolvida pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de ser violadora do princípio da vedação do tributo confiscatório (CF/88, artigo 150, IV) aquelas que superem os 100% (cem por cento) do tributo devido, sendo, portanto, legítimas as multas punitivas impostas apenas até este limite. Nesse sentido os seguintes precedentes:

 
 

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. ISSQN. INCIDÊNCIA. INDUSTRIALIZAÇÃO POR ENCOMENDA. SUBITEM 14.5 DA LISTA ANEXA À LEI COMPLEMENTAR Nº 116/2003. MULTA FISCAL MORATÓRIA. LIMITES. VEDAÇÃO AO EFEITO CONFISCATÓRIO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. QUESTÕES RELEVANTES DOS PONTOS DE VISTA ECONÔMICO E JURÍDICO. TRANSCENDÊNCIA DE INTERESSES. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA.

(STF, PLENO, MEIO ELETRÔNICO. RE 882461 RG / MG - MINAS GERAIS. REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator(a):  Min. LUIZ FUX. Julgamento: 21/05/2015. Publicação Processo Eletrônico DJe-112 DIVULG 11-06-2015 PUBLIC 12-06-2015)

 

Tema 816 - a) Incidência do ISSQN em operação de industrialização por encomenda, realizada em materiais fornecidos pelo contratante, quando referida operação configura etapa intermediária do ciclo produtivo de mercadoria. b) Limites para a fixação da multa fiscal moratória, tendo em vista a vedação constitucional ao efeito confiscatório.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. MULTA PUNITIVA DE 120% REDUZIDA AO PATAMAR DE 100% DO VALOR DO TRIBUTO. ADEQUAÇÃO AOS PARÂMETROS DA CORTE. 1. A multa punitiva é aplicada em situações nas quais se verifica o descumprimento voluntário da obrigação tributária prevista na legislação pertinente. É a sanção prevista para coibir a burla à atuação da Administração tributária. Nessas circunstâncias, conferindo especial destaque ao caráter pedagógico da sanção, deve ser reconhecida a possibilidade de aplicação da multa em percentuais mais rigorosos, respeitados os princípios constitucionais relativos à matéria. 2. A Corte tem firmado entendimento no sentido de que o valor da obrigação principal deve funcionar como limitador da norma sancionatória, de modo que a abusividade revela-se nas multas arbitradas acima do montante de 100%. Entendimento que não se aplica às multas moratórias, que devem ficar circunscritas ao valor de 20%. Precedentes. 3. Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista no art. 557, § 2º, do CPC/1973.

(STF, 1ª Turma, unânime. ARE 938538 AgR / ES - ESPÍRITO SANTO . AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. Relator Min. ROBERTO BARROSO. Julgamento:  30/09/2016. Publicação Processo Eletrônico DJe-225 DIVULG 20-10-2016 PUBLIC 21-10-2016)

 
 

No âmbito da aplicação sanções administrativas aos servidores públicos, essa jurisprudência também tem sido aplicada em diversos casos, quando se constata, no exame dos casos individuais, um excesso do poder punitivo estatal à luz dos princípios da razoabilidade/proporcionalidade, como no seguinte exemplo:

 
 

EMENTA:...SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. EXCLUSÃO DA CORPORAÇÃO. ATO ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE...

1. Não viola o princípio da separação dos poderes o controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos administrativos.

2. A Corte de origem, ao analisar o conjunto fático-probatório da causa, concluiu que a punição aplicada foi excessiva, restando violados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

(...) (STF - RE 609184-RS, Relator: Ministro DIAS TOFFOLI, Julgamento: 05/03/2013, 1ª Turma, Publicação: acórdão eletrônico DJe-078, DIVULG 25-04-2013, PUBLIC 26-04-2013)

 
 

Nesse julgado, a Corte Suprema explicitou todos os critérios de aplicação dos princípios da razoabilidade/proporcionalidade no controle do mérito dos atos da administração pública, assentando que:

 
 

(i) é função do Judiciário, sem ofensa à separação dos Poderes, exercer o controle de legalidade dos atos da Administração, analisando sua legitimidade mediante os princípios da razoabilidade/proporcionalidade;

 
 

(ii) a proporcionalidade é princípio implícito da Constituição, atuando como critério obrigatório de interpretação e aplicação das normas pelo administrador;

 
 

(iii) exige-se que a medida adotada, além de adequada e necessária à finalidade apontada pelo agente, observe uma proporcionalidade entre o bem protegido pela conduta estatal e aquele que por ela é atingido ou sacrificado; se houver manifesta impropriedade da conduta, a Administração terá exorbitado os limites da discricionariedade, cabendo sua correção pelo Judiciário;

 
 

(iv) o controle jurisdicional dos atos da Administração incide sobre seu mérito, sob as luzes dos critérios da proporcionalidade/razoabilidade, nesse âmbito sindicando os motivos do ato (pressupostos de fato - no caso, a conduta do servidor considerada reprovável - e pressupostos de direito - a norma legal definidora da infração funcional), pelo que o Judiciário examina não apenas a proporção entre meios e fins do ato, mas também a proporção entre o ato e seus motivos;

 
 

(v) se os motivos declarados para a prática do ato não o justificam com razoabilidade (ou não há motivação ou os motivos são falsos), há vício passível de anulação/correção pelo Judiciário;

 
 

(vi) o limite jurisdicional está no exame dos critérios de legalidade do ato administrativo, à luz dos princípios que regem a Administração, não podendo substituir a conveniência e oportunidade reservada à Administração;

 
 

(vii) nas circunstâncias do caso, foi excessiva a punição de exclusão dos quadros públicos - ofensa aos princípios da razoabilidade/proporcionalidade -, anulando-se o ato punitivo;

 
 

(viii) deve o próprio Judiciário preservar a legítima competência discricionária da Administração, que, no caso, consistia em escolher a medida punitiva adequada, dentre as previstas na lei, assim determinando-se ao administrador que outra penalidade fosse aplicada observando a proporcionalidade/razoabilidade, excluída aquela afastada pelo tribunal.

 
 

Nada impede, pois, que a atuação da Administração Pública seja examinada pelo Poder Judiciário à luz dos princípios constitucionais, mas sim, o nosso regime constitucional sufraga e impõe esse controle constitucional de atos administrativos, no exame de cada caso específico, conforme as situações evidenciadas e as provas produzidas nos autos do processo.


 
 
 

II.B.1 - Definição do objeto da ação - os valores fundamentais em confronto nos autos

 
 

A controvérsia objeto destes autos é significativamente profunda e sensível, pois, traz a debate um conflito entre, de um lado, alguns dos valores fundamentais de que todas as pessoas em nosso país são titulares - as garantias constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de consciência e de crença (Constituição Federal/1988, artigo 5º, incisos IV e VI) -, e, de outro lado, os princípios do interesse público e impessoalidade que devem reger todos os atos da Administração Pública na atuação de seus agentes / órgãos e o princípio da laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inciso I).

 
 

Apenas para bem identificar a lide, faço a seguinte sucinta descrição do objeto da controvérsia desta ação.

 
 

Esta demanda foi movida aos 07.02.2012 por servidora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS objetivando tutela jurisdicional que a proteja contra conduta de seus superiores que qualifica como perseguição religiosa, postulando-se, em essência, tutela anulatória e impeditiva de que venha a ser punida administrativamente em razão do exercício de sua crença. Relatou-se a instauração de 3 (três) processos administrativos contra a autora, em síntese, instaurados para apurar a sua responsabilidade por supostas infrações funcionais que teriam decorrido da prática de atos consistentes em deixar de acatar a orientação de seus superiores no sentido de que deveria deixar de fazer referência a citações da Bíblia em documentos oficiais da Universidade, bem como, deixar de afixar um quadro com os dizeres dos 10 Mandamentos em seu ambiente de trabalho, e ainda, a prática de outros atos pela servidora, fora do ambiente de trabalho mas relativos a essa controvérsia interna da Universidade, nos quais a servidora teria denunciado ao Ministério Público, à OAB e à mídia acerca da alegada prática de perseguição religiosa sofrida naquela entidade educacional, atos que, no entender da administração daquela Universidade, foram imputados como ofensivos aos superiores e até à honra objetiva daquela UFMS. Destes processos administrativos resultaram aplicações de sanções à servidora por consideradas infrações administrativas (advertência e suspensão de 20 dias, esta anulada e depois reaplicada com o prazo de 30 dias), sendo que um dos processos ainda estava em tramitação (este que, recentemente, noticiou-se nos autos ter sido arquivado por inexistência de infrações a serem punidas, embora a decisão final do Reitor, embora arquivando o PAD, mais uma vez, determinou à autora que se abstivesse de lançar referências bíblicas em suas manifestações internas da UFMS).

 
 

A UFMS, de seu turno, sustentou, em síntese, que o Estado é laico e deve prevalecer o princípio da supremacia do interesse público e o princípio da impessoalidade da administração e, por isso, deve ser excluída a possibilidade de que haja qualquer citação bíblica em qualquer manifestação dos servidores em atos oficiais, pois tais referências teriam cunho pessoal não compatível com o interesse público/impessoalidade que deve reger a conduta do Estado. E, confirmando mesmo o que se extrai dos documentos juntados aos autos a respeito do fundamento de instauração dos processos administrativos contra a servidora, a UFMS pede, em reconvenção nesta ação judicial, que a servidora/autora seja condenada por danos morais à honra objetiva da Universidade, porque sua conduta não consistiria numa "perseguição religiosa", mas legítima atuação para preservar os interesses da Instituição quanto à laicidade do Estado e viu-se ofendida pelas denúncias feitas pela autora-reconvinda.

 
 

Após esta breve síntese da lide, passo a examinar a controvérsia fundamental em debate, desde já pedindo respeitosa licença ao eminente Relator para dele discordar de sua fundamentação in totum, deixando desde já consignado meu entendimento pela integral procedência da ação.


 
 
 

Item II.B.2 - Da harmonização dos valores fundamentais controvertidos - hermenêutica constitucional - critérios e princípios interpretativos

 
 

O caso dos autos exige a definição do modo pelo qual se deve proceder à aplicação dos valores expressos nas normas constitucionais em confronto, acima mencionadas, para esse fim impondo-se buscar os recursos da hermenêutica constitucional, que tem por objeto a identificação dos enunciados normativos decorrentes nas normas (regras e princípios) constitucionais, num processo de concretização construtiva que passa pela análise das normas em sua interação com os fatos sobre os quais deve incidir, no contexto da realidade social em que se insere e sob o influxo dos valores e fins desta mesma sociedade.

 
 

Nesse processo concretizador-construtivo da norma, buscam-se os seus sentidos, o seu conteúdo, através dos critérios interpretativos que visam identificar sua essência, dando-se prevalência especial aos critérios:

 
 

teleológico - em que se busca identificar os propósitos, os fins que a norma objetiva alcançar mas, além disso, também se procura estabelecer esta finalidade normativa conforme sua conexão com o contexto social vigente;

 
 

lógico - em que "se investiga a vontade do legislador, mas sujeitando a norma, em si, e na sua inserção sistemática no ordenamento jurídico, a juízos lógicos (presunção, indução e dedução) capazes de conferir legitimidade e validade a todo o processo de construção e reconstrução do preceito, segundo as premissas em que assentado o Direito"; e

 
 

sistemático - em que se "aprofunda o vínculo, não apenas pelo ângulo lógico-formal, mas axiológico e teleológico (valor e fim) da norma com o ordenamento jurídico, de modo a fixar uma identidade da parte com o todo, numa construção recíproca do sentido de unidade, que forneça, ao final, uma coesão formal e substancial do Direito, enquanto sistema coordenado e hierarquizado, em que cada norma busca refletir a essência do conjunto e vice-versa".

 
 

Além disso, a própria interpretação das normas constitucionais rege-se por princípios, dentre os quais se destacam, para a solução do conflito aqui em análise, os seguintes:

 
 

o da supremacia da Constituição - pelo qual a Constituição consubstancia a norma matriz, o fundamento sobre a qual são criadas todas as demais normas infraconstitucionais; somente nela se deve encontrar o sentido de unidade essencial para a interpretação de seu conteúdo e valor normativo, que é o parâmetro subordinante da legislação infraconstitucional. É na supremacia constitucional que, na doutrina neoconstitucionalista, se assenta a formação e a manutenção do Estado de Direito com a garantia dos direitos fundamentais, num regime democrático assentado na dignidade da pessoa humana e na justiça social. A Constituição constitui o parâmetro objetivo de validade para a recepção de normas preexistentes ou para criação de outras, bem como da atividade comissiva ou omissiva dos poderes constituídos;

 
 

o da força normativa da Constituição - segundo o qual, a Constituição, expressando-se como lei fundamental que organiza todo o Estado e a Sociedade e que regula a convivência social segundo determinados valores e princípios, não se constitui em meros enunciados declaratórios desprovidos de efeitos vinculantes, mas sim constitui-se num instrumento normativo destinado a produzir efeitos jurídicos, notadamente para orientar a edição de um ordenamento jurídico conformado ao seu conteúdo normativo. O intérprete deve formular juízos que extraiam do texto constitucional os elementos valorativos que atribuam a sua eficácia para cumprir essa função na ordenação social. Esta normatividade, porém, é extraída do confronto/interação das possibilidades jurídicas do texto com a realidade social, mas sempre delimitada pela estrutura normativa da própria Constituição;

 
 

o da máxima efetividade da Constituição - pelo qual o intérprete deve buscar a interpretação do texto constitucional que confira a máxima e imediata efetividade da norma, sem invadir o campo de deliberação política do legislador. Conforme Barroso: "Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. ... O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.";

 
 

o da unidade da Constituição - sendo a Constituição expressão da unidade política estatal, deve ela expressar uma unidade normativa que, embora seja resultado de uma pluralidade de valores e sentidos das diversas forças políticas sociais, deve apresentar-se como um sistema coerente e lógico para a organização e disciplina da vida política e social. Assim, não se concebe possibilidade de normas constitucionais contrárias à própria Constituição (salvo indevida revisão ou reforma no Texto), devendo o intérprete conciliar as diversas normas nesta noção de unidade harmônica, superando conflitos aparentes de normas mediante emprego de métodos e critérios que definam os conteúdos e limites de cada norma a fim de encontrar a norma aplicável ao caso concreto;

 
 

o da eficácia integradora da Constituição -expressando a Constituição o pacto da unidade política estatal, deverá ser interpretada sempre de forma a fortalecer os vínculos da integração política, adotando-se a alternativa interpretativa que confira maior eficácia aos fundamentos (valores, princípios) da unidade política e ao modo de ser da sociedade a que se refere. Na concepção estatal democrática, as soluções adotadas devem pressupor e contemplar o pluralismo dos valores políticos e sociais, sempre objetivando alcançar a unidade dentro da diversidade, afastando interpretações que importem em situações de exceção (como centralismo, autoritarismo etc.);

 
 

o da concordância prática - considerando a unidade normativa da Constituição e que todas as suas normas (regras e princípios) têm normatividade (conteúdo e sentido com eficácia para dirigir o agir político e social no seu campo de incidência), se ocorrerem situações de antinomias ou contraposições entre elas, deve-se encontrar solução que harmonize seus conteúdos normativos, de forma que uma não elimine a eficácia de outra, procedendo a um balanceamento, uma análise ponderada e razoável dos respectivos limites normativos, resultando numa mútua contenção ou cedência para viabilizar a eficácia de todas. Assim, as normas constitucionais têm normatividade não absoluta, sendo limitados pela eficácia concorrente e paralela das outras, visando conferir unidade e harmonia à Constituição.


 
 
 

Item II.B.3 - Da harmonização dos valores fundamentais controvertidos - no caso concreto

 
 

Aplicando tais critérios e princípios interpretativos à lide ora em julgamento, conclui-se que:

 
 

o princípio da laicidade do Estado, assim como os princípios que regem a atividade da administração pública (interesse público, impessoalidade, isonomia, publicidade, moralidade, legalidade etc.), devem ser harmonizados com os princípios expressos nas garantias fundamentais da liberdade de crença e da liberdade de expressão;

 
 

tais princípios, como toda e qualquer norma constitucional ou infraconstitucional em nosso ordenamento jurídico, nenhum deles tem caráter absoluto, como se um excluísse a aplicação dos demais no caso concreto, mas sim, todos devem ter sua incidência de modo concomitante, porém, conciliados, harmonizados de modo a conferir a maior eficácia possível aos respectivos conteúdos normativos;

 
 

esta harmonização deve realizar-se de modo a observar e dar eficácia aos valores e fins expressos nos referidos princípios, atentando-se para o contexto fático e os valores emanados da sociedade;

 
 

para esta harmonização dar-se de modo prático e efetivo, é importante anotar que, se dentre os valores fundamentais envolvidos na lide algum deles está se sobrepondo de modo a excluir um ou alguns dos demais valores em conflito, deve o intérprete buscar uma solução que garanta a coexistência de todos, de modo que se assegure a eficácia também destes últimos, balanceando e conciliando a eficácia e os campos de incidência de cada qual no caso concreto;

 
 

esta harmonização deve realizar-se, ainda, sob a regência dos princípios ínsitos ao regime democrático que comandam nossa ordem constitucional, regime que se assenta nos valores fundamentais da dignidade da pessoa humana e do objetivo maior da justiça social que, por sua vez, exigem do intérprete a consideração de que a sociedade é integrada por uma pluralidade de valores políticos e sociais, os quais devem ser pressupostos, identificados, sopesados e respeitados, de modo a se reconhecer eficácia dos valores prevalecentes no meio social subjacente, mas também harmonizando e garantindo a eficácia dos direitos fundamentais de todos, mesmo de grupos sociais minoritários, assim alcançando uma solução interpretativa que assegure uma unidade dentro da diversidade, afastando interpretações que importem em situações de exceção ou de exclusão social (centralismo, autoritarismo, privilégios a determinadas categorias ou grupos sociais etc.);

 
 

neste processo de concretização e construção da norma aplicável ao caso concreto, deve-se garantir, nos limites que as normas e as condições fáticas permitam, a coexistência e eficácia dos valores constitucionais em consideração, fazendo prevalecer, porém, aqueles valores que têm maior realce na estrutura e fundamentação do estado democrático de direito, ou seja, o intérprete deverá sempre buscar garantir que as garantias fundamentais da pessoa humana sejam dotadas da maior efetividade possível, até o limite das garantias dos demais membros da coletividade;

 
 

e, por fim, um outro importante critério que é chave para o julgamento da presente demanda, tem-se assentado que, uma vez que se estabeleça uma situação de aparente conflito entre valores fundamentais da pessoa humana e outros valores do próprio Estado, o intérprete deve sempre buscar uma solução de modo a dar prevalência àqueles primeiros, posto que o Estado é, fundamentalmente, instituído com o fim de proporcionar as condições para manutenção e desenvolvimento da sociedade que o instituiu, mas não é um fim em si mesmo, pois em essência sua própria criação traz o objetivo primordial da garantia dos direitos fundamentais da toda pessoa humana que integra o meio social. Por esta razão, dá-se sempre prevalência aos valores de ordem substancial - no caso, os direitos fundamentais dos cidadãos - em face dos valores de ordem instrumental do Estado, sem que, obviamente, estes tenham sua eficácia eliminada, mas sim compatibilizados com o exercício daquelas garantias constitucionais.

 
 

Assentadas estas premissas interpretativas, aplicando-as no exame do caso ora em julgamento, tenho assentado firmemente o entendimento no sentido de que o princípio da laicidade do Estado e também os princípios constitucionais que regem a administração pública, devem ceder prevalência ante as garantias fundamentais da liberdade de crença e da liberdade de expressão, pois estes são, in casu, os valores constitucionais que devem merecer a proteção jurisdicional para que possam ter assegurada sua eficácia na situação fática subjacente.

 
 

Façamos aqui um exame mais detido.

 
 

Examinando-se os valores em cogitação, preliminarmente, é necessário registrar que a crença-fé-religião integra e forma a própria personalidade humana, sendo seu direito inalienável e irrenunciável, integrando o rol da Declaração Universal dos Direitos do Homem - DUDH, proclamada aos 10.12.1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, especificamente em seus artigos 18 e 19, personalidade cujo pleno exercício é garantido em todo e qualquer lugar (artigo 6º) e em condições isonômicas (artigo 7º), verbis:

 
 

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

 

PREÂMBULO

 

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do Homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do Homem;

Considerando que é essencial a proteção dos direitos do Homem através de um regime de direito, para que o Homem não seja compelido, em supremo recurso, à revolta contra a tirania e a opressão;

Considerando que é essencial encorajar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações;

Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla;

Considerando que os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com a Organização das Nações Unidas, o respeito universal e efectivo dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais;

Considerando que uma concepção comum destes direitos e liberdades é da mais alta importância para dar plena satisfação a tal compromisso:

A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os orgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efectivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.

 

Artigo 1°

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 2°

Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

(...)

Artigo 6°

Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica.

Artigo 7°

Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

(...)

Artigo 18°

Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19°

Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

 
 

Se é reconhecido no plano universal como um direito inalienável da personalidade, ou seja, que integra a própria essência da pessoa humana, pode e deve ele ser exercido pela pessoa em qualquer lugar em que esteja, seja qual for a natureza dos ambientes em que esteja ou dos atos que pratique, porque constitui expressão da sua personalidade.

 
 

Assentamos aqui um pressuposto de direito universal, do qual o Brasil é signatário, portanto, integra o nosso ordenamento jurídico, é norma jurídica dotada de plena eficácia em nosso país.

 
 

A seguir, podemos pontuar, em primeiro lugar, que a liberdade de religião consignada como garantia fundamental no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, é exercida sob 3 (três) formas: (i) a liberdade de ter alguma crença, ou de passar a adotar outra fé, ou de deixar de ter qualquer religião, ou de descrer de tudo, ou de ser ateu ou agnóstico; (ii) a liberdade de culto; e (iii) a liberdade de associação religiosa; bem como, expressa-se sob 2 (duas) dimensões: (i) na vida privada; e (ii) na vida pública, correlacionando-se aqui com a liberdade de manifestação do pensamento (CF/88, art. 5º, inciso IV).

 
 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

TÍTULO II - DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

CAPÍTULO I - DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

 
 

Quanto à liberdade da manifestação do pensamento, é também consagrado pela Constituição Federal, no art. 5º, inciso IV. O inciso IX do mesmo dispositivo também ensina que é livre a expressão da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença. O art. 220, caput, da Carta Magna diz: "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição." E o §2º do mesmo dispositivo, por sua vez: "É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística."

 
 

Na ADPF 187, o STF consagrou a liberdade de expressão "como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas", aduzindo que se trata de "núcleo de que se irradiam os direitos de crítica, de protesto, de discordância e de livre circulação de ideias".

 
 

Estes são os valores fundamentais em apoio da pretensão esposada pela parte autora.

 
 

No sentido contraposto nos autos, registre-se que a laicidade estatal (CF/88, artigo 19, inciso I) impõe que o Estado não se imiscua com qualquer organização religiosa - não assuma qualquer feição confessional - e também se abstenha de favorecer ou desfavorecer qualquer tipo de crença em detrimento de outras, garantindo nas suas ações uma neutralidade e isonomia de tratamento a todas, respeitando a multiplicidade de valores no seio da sociedade democrática.

 
 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

TÍTULO III - DA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO

CAPÍTULO I - DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA

 

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

(...)

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

 
 

Todavia, a laicidade estatal de modo algum expressa o significado que a UFMS pretende atribuir ao citado princípio, qual seja, no sentido de que o Estado estivesse proibido de, no exercício de suas atividades, fazer qualquer referência a crenças. Tal posicionamento contraria os próprios princípios e fins da instituição estatal.

 
 

Com efeito, na verdade o próprio interesse público, uma vez instruído com os influxos do princípio isonômico e considerando situações fáticas particulares constatadas na realidade social, poderá legitimar determinadas ações públicas voltadas a determinados grupos sociais designados justamente por sua religiosidade e crença. E isso evidencia que ao Estado não apenas não está vedado incursionar nesta área, como, bem ao contrário, os próprios fundamentos estatais impõem que o Estado pressuponha a existência de interesses e valores de grupos sociais ligados à questão da fé/religiosidade, assim identificando eventuais necessidades de intervenção e desenvolvendo políticas públicas que a elas sejam relacionadas e direcionadas.

 
 

Ainda sob um outro prisma, é certo que o Estado é instituído pelo povo de um país e destina-se a assegurar os valores fundamentais prevalecentes dessa mesma coletividade, dentre os quais têm destaque também os valores de fé, de crença, de religião, ou mesmo os casos minoritários dos que não professam alguma religião ou que adotam outras orientações espiritualistas (como o ateísmo que, em essência, também já implica filosoficamente numa espécie de "crença" direcionada à negação de Deus; ou, semelhantemente, o agnosticismo, ou o humanismo; ou o espiritismo kardecista, ou o budismo etc.), tanto que nossa Constituição insere este valor dentre as garantias fundamentais dos cidadãos em nosso país (CF/88, art. 5º, inciso VI).

 
 

Sob esse enfoque se demonstra que não está o Estado de modo algum alheio às questões de consciência e crença que emanam da pluralidade existente no meio social. Antes, conhece-as e objetiva a proteção do exercício de quaisquer delas por aqueles que escolhem segui-las como balizas valorativas de suas vidas.

 
 

Assim, o exercício dessa garantia constitucional deve ser oportunizado em nossa nação da forma mais ampla possível, seja em manifestações no âmbito privado, seja também no âmbito público, eis que não há qualquer óbice normativo de natureza constitucional que legitime restrição desta espécie.

 
 

Ora, sendo o Estado integrado e exercido por servidores selecionados dentre as pessoas dessa mesma coletividade, não há qualquer preceito fundamental que impeça tais pessoas de, no regular exercício de suas funções públicas, exercerem de forma concomitante e harmônica também a sua garantia fundamental de crença.

 
 

Na verdade, o Estado age por meio destes agentes selecionados no âmbito da sociedade, e são estes mesmos agentes públicos que vão dar vida à organização estatal, inclusive no sentido de trazer para o âmbito das decisões estatais as necessidades da sociedade em que vivemos e também o desenvolvimento das ações públicas voltadas à solução de cada qual delas, mas sempre o farão, como não poderia deixar de ser, sob o influxo e instrução dos próprios valores prevalescentes na sociedade em que vivem, ou seja, as soluções públicas serão motivadas pela moralidade, pela cultura, pelos costumes, pelos ideais de vida, enfim, pela multiplicidade de valores que instruem e nutrem a coletividade social.

 
 

Decorre disso que não podem ser excluídos, também das manifestações no âmbito público (estatal), os valores de crença que majoritariamente informam a sociedade brasileira, apenas devendo ser delimitado tal agir pelo dever de respeito e tolerância com a garantia de crença de todos os grupos sociais, inclusive os minoritários.

 
 

Deve-se concluir, portanto, que as manifestações de religiosidade da sociedade brasileira no âmbito público são perfeitamente legítimas.

 
 

Note-se, nesse sentido, que os próprios constituintes que elaboraram e promulgaram a Constituição Federal de 1988, fizeram constar expressamente em seu Preâmbulo que assim o faziam "sob a proteção de Deus", o que, a despeito de ter ou não tal preâmbulo alguma força normativa (discussão sobre a qual, aliás, falece interesse para a resolução da lide aqui tratada), claramente expressa uma declaração pública, oficial, emanada dos constituintes que foram responsáveis por fundar a própria ordem constitucional em que vivemos, declaração pública que representava, e continua a representar, a crença da esmagadora maioria da população acerca da existência de Deus, e não só isso, da existência de um Ente Espiritual Superior - seja qual for a denominação que determinada crença lhes dê, mas que no Brasil, sabemos todos, se trata majoritariamente da fé relativa ao Deus do Cristianismo, baseada na ação redentora do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, fé esta fundamentada nos escritos da Bíblia Sagrada -, enfim, um Deus capaz de abençoar e proteger aqueles que assentam suas vidas nos valores do amor e do bem por Ele ensinados e que nEle buscam proteção e redenção eterna e gloriosa para suas vidas.

 
 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

 

PREÂMBULO

 

        Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (negrito não original)

 
 

Afora esta declaração preambular de essência constitucional, que vem em acréscimo à própria garantia fundamental da liberdade de consciência e crença inserida na declaração do compromisso Estatal permanente para com as garantias fundamentais dos cidadãos, há também a determinação constitucional no sentido de que o "ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental" (CF/88, art. 210, § 1º), norma que também expressa o reconhecimento da importância cultural da(s) religião(ões), a ser ofertada inclusive no âmbito do ensino público.

 
 

TÍTULO VIII - DA ORDEM SOCIAL

 

CAPÍTULO III - DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO

 

SEÇÃO I - DA EDUCAÇÃO

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

 
 

Também há outros pontos de contato entre o Estado e as religiões em previsões da Lei Maior que importam no reconhecimento da relevância da questão de fé na organização político-social brasileira: art. 5º, VII (garantia de assistência religiosa em entidades civis e militares de internação coletiva); art. 5º, VIII (vedação de privação de direitos por motivo de crença religiosa), art. 143, § 1º (exclusão da obrigação de serviço militar devido a imperativo de consciência por motivo de crença religiosa).

 
 

Há também muitos outros exemplos de manifestações públicas da fé do povo brasileiro, veiculadas através de normas infraconstitucionais, como por exemplo:

 
 

(i) a adoção do calendário cristão em atos públicos registrais e para quaisquer fins de calendário no nosso país;

 
 

(ii) o emprego da expressão "Deus seja louvado" nas cédulas de papel moeda brasileiro;

 
 

(iii) a existência de inúmeros feriados federais, estaduais ou municipais ligados à fé cristã, inclusive o descanso semanal aos domingos, especialmente em sua vertente católica.

 
 

Todos estes são exemplos de expressões da fé no âmbito público, dentre outros análogos que poderiam ser aqui citados, em relação aos quais, contudo, não se cogita de que tais expressões públicas de fé cristã, expressivas de valores históricos e culturais, sejam ou devessem ser consideradas inconstitucionais ou de qualquer forma ilegítimas ou violadoras da liberdade de fé de quaisquer pessoas.

 
 

Certamente não se extrai de nenhuma destas expressões públicas de crença qualquer tipo de afronta ou constrangimento aos cidadãos que abraçam fés diferentes, aos quais, contudo, sempre deve ser assegurada a garantia de não terem de sujeitar sua própria consciência à fé em si mesma considerada nas referidas manifestações.

 
 

Da mesma forma não se pode conceber a ocorrência de uma tão grave violação constitucional que fosse decorrente de uma mera manifestação da crença individual de qualquer servidor público, mesmo que exercida no âmbito do espaço público de suas atividades, quando respeitados certos limites, limites estes que se possam extrair exclusivamente dos demais comandos constitucionais, por serem de mesma natureza e grau hierárquico na estrutura normativa da nossa ordem jurídico-constitucional.

 
 

Exatamente seguindo esse mesmo norte interpretativo veio a posicionar-se o Colendo Supremo Tribunal Federal em vários julgamentos ligados ao tema da religiosidade. Exemplifiquemos com alguns deles:

 
 

Na ADIn nº 2566-DF, julgada aos 16/05/2018, tratando do tema da liberdade religiosa no âmbito de radiodifusão (bem de titularidade estatal, mas exercida por particulares mediante concessão pública), assentou-se que a garantia fundamental deve ser exercida mesmo no âmbito dos espaços públicos e que nela se insere toda a gama de manifestação do pensamento e crença, inclusive a possibilidade de proselitismo que lhe é inerente;

 
 

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. LEI N. 9.612/98. RÁDIODIFUSÃO COMUNITÁRIA. PROBIÇÃO DO PROSELITISMO. INCONSTITUCIONALIDADE. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA. 1. A liberdade de expressão representa tanto o direito de não ser arbitrariamente privado ou impedido de manifestar seu próprio pensamento quanto o direito coletivo de receber informações e de conhecer a expressão do pensamento alheio. 2. Por ser um instrumento para a garantia de outros direitos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a primazia da liberdade de expressão. 3. A liberdade religiosa não é exercível apenas em privado, mas também no espaço público, e inclui o direito de tentar convencer os outros, por meio do ensinamento, a mudar de religião. O discurso proselitista é, pois, inerente à liberdade de expressão religiosa. Precedentes. 4. A liberdade política pressupõe a livre manifestação do pensamento e a formulação de discurso persuasivo e o uso do argumentos críticos. Consenso e debate público informado pressupõem a livre troca de ideias e não apenas a divulgação de informações. 5. O artigo 220 da Constituição Federal expressamente consagra a liberdade de expressão sob qualquer forma, processo ou veículo, hipótese que inclui o serviço de radiodifusão comunitária. 6. Viola a Constituição Federal a proibição de veiculação de discurso proselitista em serviço de radiodifusão comunitária. 7. Ação direta julgada procedente.

Decisão: O Tribunal, por maioria, vencidos os Ministros Alexandre de Moraes (Relator) e Luiz Fux, julgou procedente a ação, para declarar a inconstitucionalidade do § 1º do art. 4º da Lei 9.612/1998. Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin. Ausente, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli (...). Impedido o Ministro Gilmar Mendes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 16.5.2018

(STF. Pleno. ADI 2566 / DF. Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES. Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EDSON FACHINJulgamento:  16/05/2018. Publicação DJe-225 DIVULG 22-10-2018 PUBLIC 23-10-2018)


 
 
 

Na ADIn nº 4439-DF, julgada em  27/09/2017, tratou-se do tema da laicidade do Estado em face da liberdade religiosa nas escolas públicas, assentando-se a interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto, matéria que alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões na nossa sociedade democrática;

 
 

Ementa: ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS. CONTEÚDO CONFESSIONAL E MATRÍCULA FACULTATIVA. RESPEITO AO BINÔMIO LAICIDADE DO ESTADO/LIBERDADE RELIGIOSA. IGUALDADE DE ACESSO E TRATAMENTO A TODAS AS CONFISSÕES RELIGIOSAS. CONFORMIDADE COM ART. 210, §1°, DO TEXTO CONSTITUCIONAL. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 33, CAPUT E §§ 1º E 2º, DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL PROMULGADO PELO DECRETO 7.107/2010. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. A relação entre o Estado e as religiões, histórica, jurídica e culturalmente, é um dos mais importantes temas estruturais do Estado. A interpretação da Carta Magna brasileira, que, mantendo a nossa tradição republicana de ampla liberdade religiosa, consagrou a inviolabilidade de crença e cultos religiosos, deve ser realizada em sua dupla acepção: (a) proteger o indivíduo e as diversas confissões religiosas de quaisquer intervenções ou mandamentos estatais; (b) assegurar a laicidade do Estado, prevendo total liberdade de atuação estatal em relação aos dogmas e princípios religiosos. 2. A interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto são premissas básicas para a interpretação do ensino religioso de matrícula facultativa previsto na Constituição Federal, pois a matéria alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões. 3. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de ideias e pensamentos políticos, filosóficos, religiosos e da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo. 4. A singularidade da previsão constitucional de ensino religioso, de matrícula facultativa, observado o binômio Laicidade do Estado (CF, art. 19, I)/Consagração da Liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), implica regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo 210, §1º, autorizando à rede pública o oferecimento, em igualdade de condições (CF, art. 5º, caput), de ensino confessional das diversas crenças. 5. A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como história, filosofia ou ciência das religiões. 6. O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais. 7. Ação direta julgada improcedente, declarando-se a constitucionalidade dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11, § 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando-se a constitucionalidade do ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

 

Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, vencidos os Ministros Roberto Barroso (Relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello. Ausente, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli, que proferiu voto em assentada anterior. Redator para o acórdão o Ministro Alexandre de Moraes. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 27.9.2017.

(STF. Pleno. ADI 4439 / DF. Relator:  Min. ROBERTO BARROSO. Relator p/ Acórdão:  Min. ALEXANDRE DE MORAES. Julgamento:  27/09/2017. Publicação DJe-123 DIVULG 20-06-2018 PUBLIC 21-06-2018)


 
 
 

Estes são paradigmáticos julgados do Eg. STF a respeito dos contornos da liberdade de expressão e da liberdade de consciência e culto, ambos proferidos em sede de controle concentrado de constitucionalidade, com eficácia vinculante e erga omnes, portanto, cujos fundamentos conceituais, teóricos e interpretativos devem ser transpostos, portanto, na análise de questões análogas por todos os tribunais do país, como no caso dos autos.

 
 

Seguindo tais parâmetros, aliás, esta Colenda Corte Regional Federal já examinou especificamente situação análoga à que se examina nestes autos - que trata de expressão de religiosidade no âmbito dos espaços públicos - ao julgar improcedente uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal com o fim de que fossem todos os símbolos religiosos eliminados (crucifixos, imagens, símbolos da fé cristã, etc.) dos prédios públicos da União Federal situados nesta unidade da Federação sob alegação de que isso violaria a laicidade do Estado. Assentou esta Corte, então, exatamente o entendimento que acima se expôs e que é sufragado pela Suprema Corte, no sentido de que a conduta de tais servidores é totalmente legítima, fundada que é nas liberdades de expressão e de crença e também expressando-se como uma manifestação histórica e cultural do povo deste país, daí não se extraindo qualquer incompatibilidade com o princípio da laicidade estatal.

 
 

Esta posição, aliás, também foi proclamada pelo Conselho Nacional de Justiça no julgamento de quatro pedidos de providência (1344, 1345, 1346 e 1362), em 06/06/2007, quando se entendeu que a manutenção de crucifixos em salas de audiências judiciais não tem efeito coator contra quaisquer pessoas que não ostentem a mesma crença de tais símbolos, não transformando o Estado laico em clerical e nem ofendendo interesse público, sendo legítimas manifestações de crença e de cultura do país.

 
 

Igualmente esta Corte julgou improcedente outra ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal com o fim de que fosse excluída a expressão "Deus seja louvado" das cédulas de papel-moeda brasileira.

 
 

Eis os citados precedentes desta Corte Federal:

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONVIVÊNCIA DO ESTADO LAICO COM SÍMBOLOS RELIGIOSOS. POSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 1. Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal objetivando a retirada de todos os símbolos religiosos (crucifixos, imagens, etc.) ostentados nos locais proeminentes, de ampla visibilidade e de atendimento ao público nos prédios públicos da União Federal, no Estado de São Paulo. 2. A presença de símbolos religiosos em prédios públicos não colide com a laicidade do Estado brasileiro. Trata-se de reafirmação da liberdade religiosa e do respeito a aspectos culturais da sociedade brasileira. 3. Apelação desprovida.

(TRF3, QUARTA TURMA, unânime. Acórdão Número 0017604-70.2009.4.03.6100. APELAÇÃO CÍVEL 1868675 (ApCiv). Relator DESEMBARGADOR FEDERAL MARCELO SARAIVA. Data: 07/02/2018; Fonte da publicação. e-DJF3 Judicial 1 DATA:03/04/2018)

 
 

IMPRESSÃO DA FRASE DEUS SEJA LOUVADO NO PAPEL MOEDA BRASILEIRO: ação civil pública interposta pelo Ministério Público Federal objetivando a retirada dessa expressão da cédula do Real, à alegação de ofensa contra a liberdade religiosa e de violação dos princípios da laicidade estatal, da liberdade de crença, da isonomia e da legalidade; ação julgada improcedente. (...)

 

DEFINIÇÃO DOS TERMOS DEUS E RELIGIÃO: subentende-se, pela simples análise das definições dos termos DEUS e RELIGIÃO, que a expressão Deus seja louvado não privilegia uma ou outra vertente religiosa, considerando que qualquer uma delas - em seu cerne - cultiva a ideia ou a intuição da existência de uma divindade (monoteístas), ou de várias (politeístas).

 

A LIBERDADE RELIGIOSA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL: a Constituição Federal - promulgada "sob a proteção de Deus", como ocorreu com outras Cartas à exceção das de 1891 e 1937 - garante a liberdade religiosa, expressada na liberdade de crença, na liberdade de culto e na liberdade de organização religiosa. Ensina José Afonso da Silva que a liberdade de crença inclui a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade/direito de mudar de religião, a liberdade de não aderir à religião alguma, a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo. Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 35ª edição, São Paulo, Malheiros Editores, 2012, p. 249). Sob essa ótica, não se pode concordar que a expressão Deus seja louvado enquanto posta na cédula do Real ofenda o ateu, que - como todo cidadão de um Estado democrático de direito - deve tolerar e respeitar a crença alheia e a exposição pública às manifestações e aos simbolismos religiosos.

 

PRECEDENTE ACERCA DO USO DE CRUCIFIXOS NAS DEPENDÊNCIAS DE ÓRGÃOS DO PODER JUDICIÁRIOS: o Conselho Nacional de Justiça, por maioria, no julgamento de quatro pedidos de providência (1344, 1345, 1346 e 1362), em 6/6/2007, entendeu que a manutenção de um crucifixo numa sala de audiência não torna o Estado clerical e nem ofende interesse público. A MOEDA: sempre foi fonte notável de informações históricas porque a sua confecção - iniciada com a cunhagem em cobre, prata e ouro - permitiu às pessoas de seu tempo e à posteridade o conhecimento de aspectos políticos, econômicos e culturais, assim como permitiu, em favor das gerações ulteriores, conhecer alguns procedimentos tecnológicos do passado; os lançamentos e inscrições postos na moeda refletem um povo, sua história, seus costumes. Assim, a moeda acaba por expressar fatos relevantes para esse povo, sem exclusividade. O CONSTITUINTE DE 1988: diante da vocação religiosa da população brasileira, foi o próprio Constituinte que resolveu invocar - mais uma vez - a proteção de Deus no preâmbulo da Constituição atual, assim refundando o Estado brasileiro pós-ditadura militar sob os auspícios divinos, ainda que tenha sido mantido o Estado laico no art. 19, inciso I, da Constituição Federal.

 

INDEFERIMENTO DO PLEITO MINISTERIAL: referência à divindade - seja no preâmbulo da Constituição, seja nas cédulas monetárias - tem raízes na História brasileira e nos costumes de nosso povo; não é uma afronta a qualquer culto ou religião em particular; menos ainda é um acinte contra os brasileiros que se declaram ateus. Essa prática de referir-se ou dirigir-se a uma divindade - genericamente tratada como Deus - alcançava 73,6% dos brasileiros em 2016. E está longe de trazer ofensa aos cerca de 8,00% que se dizem sem religião.

 

SENTENÇA DE IMPROCEDENCIA MANTIDA. REEXAME NECESSÁRIO DESPROVIDO.

(TRF3, SEXTA TURMA, unânime. Acórdão Número 0019890-16.2012.4.03.6100. ApelRemNec 1891300. Relator DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO. Data: 14/12/2017; Fonte da publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:21/12/2017)


 
 
 

Podemos concluir, então, diante destas ponderações e dos precedentes do C. STF, do CNJ e desta Corte Regional Federal, que a própria ordem constitucional emanada diretamente Lei Maior pode nos fornecer, de uma maneira geral, os seguintes limites para a manifestação individual de consciência e de crença no âmbito do espaço público, conjuntamente considerados:

 
 

devem ser preservados os interesses do serviço público, evitando-se, assim, que de qualquer modo venham a ser afetados de maneira prejudicial;

 
 

deve haver respeito aos direitos dos demais servidores e usuários do serviço público em geral, que não podem ser coagidos ou constrangidos a aquiescerem com a fé manifestada, sendo ressalvada a possibilidade de que, uma vez resguardado este pressuposto de conduta ética respeitosa e tolerante, os servidores visem o proselitismo, pois na verdade é da própria essência das crenças em geral tal prática de pregar os fundamentos de sua fé para conduzir outras pessoas a seguirem o mesmo caminho de fé que consideram o melhor para suas vidas; e

 
 

deve ser observado o princípio constitucional da razoabilidade, para coibir eventuais atitudes abusivas, constrangedoras, que de alguma forma resultem em desvirtuamento dos fins do espaço público ou que resultem em induzimento forçado das pessoas a se submeterem a determinada crença.

 
 

Desde que observados tais aspectos limitadores de ordem geral, não se entremostra qualquer impedimento de ordem constitucional que impeça a coexistência harmônica dos citados valores fundamentais.

 
 

E qualquer norma inferior, legal ou infralegal, ou qualquer conduta neste país (estatal ou particular), que disponha em sentido contrário importa em afronta à garantia constitucional, patenteando-se como ilegítima e devendo ser coartada pelos próprios poderes estatais, a quem incumbe, ultima ratio, a defesa destas mesmas garantias fundamentais dos cidadãos.

 
 

Fixadas estas premissas, veremos nos itens a seguir que o caso dos autos evidencia situação que reclama uma intervenção do Judiciário para equilibrar os princípios constitucionais postos em conflito.


 
 
 

II.B.3.1 - Do exame do caso concreto - A compatibilização dos valores constitucionais em confronto, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade

 
 

Registro que, em meu entender, a questão controvertida nesta ação - sobre a possibilidade ou não, diante do princípio da laicidade do Estado, de algum servidor público exercer sua fé mediante atos exteriores, mesmo durante o exercício de suas funções e no espaço público em que trabalha - traz em si uma profunda relevância jurídica e social, por envolver um tema das garantias constitucionais carregado de grande importância para uma porção absolutamente majoritária de nosso país que abraça alguma religião (especialmente, no caso, a fé cristã), podendo em seus reflexos afetar toda a população do país de uma maneira ou outra, além de ter o potencial de refletir-se em múltiplos casos análogos, trazendo em si a força de um julgamento paradigmático que lance as luzes sobre esta específica temática e que pode até servir como orientação para reflexão sobre regras de conduta de servidores em órgãos públicos ou mesmo servir como uma base sobre a qual outras decisões do Judiciário podem se haurir para debater e firmar suas conclusões, embora neste julgamento se trate apenas do caso envolvendo a autora e a UFMS, com suas peculiaridades fáticas, conforme relatado.

 
 

Passo ao exame dos fatos.

 
 

E nesse ponto, aplicando os supra expostos fundamentos conceituais e interpretativos à lide aqui julgada, o exame atento dos autos mostra que, a despeito da previsão constitucional da liberdade de crença e de manifestação, bem como, a despeito da inexistência de qualquer expressa norma constitucional, e nem legal (ou mesmo infralegal), que traga linhas de regulamentação da conduta de servidores no serviço público à luz do debate constitucional mencionado, repito, a despeito da absoluta ausência de qualquer explícita regulamentação desse tema relativo à garantia fundamental, instaurou-se na UFMS, Câmpus de Corumbá, uma substancial e indevida restrição à liberdade de crença da servidora autora.

 
 

E na verdade, por uma notória incapacidade de harmonização dos interesses contrapostos, de uma, de outra ou de ambas as partes, a situação foi progressivamente ganhando relevância e agravamento, gerando grande pressão dos superiores sobre a servidora de modo a tentar induzi-la a deixar de expressar sua crença em seus comunicados internos da Universidade, o que era feito sob a simples forma de neles fazer inserir a transcrição de um único versículo bíblico em cada comunicado ou, mesmo, por ter afixado em seu ambiente de trabalho um quadro com a transcrição dos "10 Mandamentos", conteúdo amplamente conhecido de todos por fazer referência à Lei de Deus nos escritos da Bíblia.

 
 

Esta ilegítima restrição à liberdade de manifestação da fé da servidora se deu ao entendimento da direção e da reitoria daquela instituição federal de educação no sentido de que tal conduta da servidora ofenderia o princípio da laicidade do Estado, de forma que o princípio geral da impessoalidade da Administração Pública exigiria a ausência de qualquer manifestação considerada como pessoal dos servidores, de natureza religiosa, filosófica, etc., e assim, a conduta da servidora estaria violando o interesse público e estaria sujeita a punição administrativa.

 
 

E este posicionamento da direção da UFMS foi ao extremismo, a ponto de tentar impor seu "pessoal" posicionamento à servidora, ao que se conclui dos fatos tendo ela sido eleita como um perigoso foco de insurgência à sua autoridade naquela instituição, passando a se adotar mais rígidas ações internas como forma de compelir a autora a obedecê-la, tentando induzi-la a conformar-se com aquela determinação de "deixar de inserir as citações bíblicas em suas comunicações internas da UFMS".

 
 

Repise-se aqui que este posicionamento estava fundado apenas no "pessoal" entendimento daquela direção da UFMS, posto que, conforme já assentado nos itens precedentes deste Voto, não havia, como até hoje, passados cerca de 9 anos, continua a não haver, qualquer norma legal que lhe desse amparo e legitimidade e, ainda mais, tal posição calcava-se na sua "pessoal" interpretação a respeito do conceito de laicidade estatal em conflito com a liberdade de crença, posição que, como demonstrado acima, destoa por completo das previsões do direito universal, das garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988 e daquilo que foi assentado nos julgamentos do Colendo Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação constitucional adequada acerca deste binômio Laicidade Estatal x Liberdade de Religião-Crença-Fé.

 
 

A posição da direção da UFMS, portanto, era totalmente ilegítima em termos conceituais teóricos e, ainda mais, gravemente ilegítima pela forma como se tentou forçar a autora, uma servidora que lhe estava subordinada, a renunciar ou abster-se de um direito fundamental de sua personalidade, através de graves pressões internas em razão de ameaça de punições administrativas que, afinal, se confirmaram várias vezes e, inclusive, em processos administrativos marcados por vícios procedimentais e ofensivos às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, como algumas vezes a própria administração da UFMS foi obrigada a reconhecer.

 
 

A servidora, sentindo-se afrontada em seu direito fundamental de liberdade de crença e de manifestação do pensamento, resistiu àquelas que considerou inconstitucionais determinações da sua chefia e da direção da Universidade, em todo tempo firmando-se na garantia constitucional protetiva da sua personalidade e na inexistência de norma que pudesse restringi-la da forma pretendida.

 
 

E esta resistência foi legítima, hábil e adequada, pela única forma que uma servidora, de grau hierárquico inferior, sozinha em sua disputa com a direção superior da UFMS, poderia efetivar para tentar fazer valer sua garantia fundamental de fé, quando se viu incapaz de superar a oposição no âmbito interno da UFMS:

 
 

(i) levou a conhecimento público a situação do confronto de religião a que estava exposta em seu local de trabalho, através de notícias e reportagens na mídia eletrônica e em jornais impressos da localidade; bem como,

 
 

(ii) após a primeira punição administrativa, fez representações perante o Ministério Público Federal - MPF e Ministério Público do Trabalho - MPT sobre questões de irregularidades internas da UFMS, bem como, pediu apoio da OAB-MS em defesa de seu direito fundamental, tendo a Ordem dos Advogados, inclusive, emitido Parecer em apoio à servidora, em razão da indevida restrição à sua liberdade religiosa (fls. 809-811);

 
 

(iii) após ser punida nos dois primeiros processos administrativos instaurados, denunciou vícios procedimentais e pediu nova intervenção à OAB-MS para tentar corrigir os desmandos denunciados, obtendo inclusive uma manifestação da OAB confirmando tais vícios e solicitando informações à Reitoria da UFMS e ao MPF (fls. 482-486).

 
 

Os superiores da autora, então, ante a sua resistência em cumprir suas determinações apesar de todas as pressões no âmbito interno e sentindo-se ainda mais afrontados em sua autoridade pelos questionamentos externos àquela situação, acabaram por levar ao extremo sua exigência ao instaurar contra ela, em menos de 5 meses, nada menos do que três processos administrativos disciplinares.

 
 

Esse relato dos aspectos essenciais dos fatos aqui controvertidos pode ser muito bem conferido do seguinte breve resumo destes processos administrativos movidos contra a autora.

 
 

Com efeito, conforme a documentação juntada aos autos (vide relato de fls. 869 e ss.), foram instaurados 3 (três) processos administrativos disciplinares contra a servidora:

 
 

PAD nº 23104.006441/2010-32 (fls. 135 - 225) - instaurado pela Portaria nº 513, de 30.08.2010, da Reitoria da UFMS, por supostas infrações ao artigo 116, incisos II, III, IV e VIII, da Lei nº 8.112/1990, sem indicação dos fatos a serem apurados (fl. 160), mas instaurado como decorrência de requerimento apresentado pelo Diretor do Campus do Pantanal para apurar a suposta responsabilidade da servidora por ofensa à imagem e à honra objetiva da UFMS, que seria decorrente da exposição midiática de denúncias a meios de comunicação local sobre a intolerância religiosa a que estaria exposta em seu local de trabalho e requerimento junto ao MPT- Ministério Púlico do Trabalho acerca dos malefícios pelo uso de copos plásticos descartáveis (fls. 135 - 159), que resultou em aplicação de pena de advertência aos 26.10.2010; Em sua decisão final (fls. 217-221), a Reitora da UFMS concluiu que a servidora teria abusado de sua liberdade de manifestação ao expor à imprensa escrita ou eletrônica a sua versão dos fatos "...para tentar impor um ponto de vista e um padrão de comportamento (citações bíblicas em documentos oficiais)", o que teria ocorrido em detrimento da imagem e honra da UFMS, assentando que "inexiste, pois, discriminação religiosa no presente caso concreto", e sim "uma tentativa da servidora aplicar a vitimologia, invertendo a situação...", sendo pois, essa conduta passível de punição disciplinar;

 
 

PAD nº 23104.008582/2010-90 (fls. 27-134) - instaurado pela Portaria nº 701, de 05.11.2010, da Reitoria da UFMS, por supostas infrações ao artigo 116, incisos II, III, IV e VIII, e artigo 117, da Lei nº 8.112/1990, sem indicação dos fatos a serem apurados (fls. 35), mas provocado por requerimento de sua instauração apresentado pelo Diretor do Campus do Pantanal que se entendeu como vítima de denunciação caluniosa praticada pela servidora ao fazer "denúncias caluniosas, infundadas e sensacionalistas junto à mídia" eletrônica e impressa ali indicadas, nas quais a servidora relatava ser vítima de intolerância religiosa naquela instituição (fls. 27-34); houve tramitação inicial com relatório da comissão processante sugerindo a aplicação de penalidade de suspensão (fls. 351-355, 368 e 371), que foi acolhida pela decisão final, aplicando pena de suspensão de 20 dias. Ao que se infere dos autos, após reclamação de vícios procedimentais junto à OAB-MS, a punição foi anulada e o processo restaurado, mas afinal foi aplicada uma penalidade de suspensão ainda maior, pelo prazo de 30 (trinta) dias, conforme documento juntado a fls. 516, de 24.08.2012;

 
 

PAD nº 23104.001993/2011-35 (há cópias dispersas, não integrais, juntadas em algumas partes do processo: fls. 226-310, fls. 799-862; e fls. 929-940) - Esse PAD estava em tramitação quando do ajuizamento desta ação aos 07.02.2012. Pelos docs. juntados, pode-se inferir de fl. 301 que a instauração se deu por provocação através de uma Comunicação Interna (CI nº 366, de 21.12.2010, a fl. 808), requerimento apresentado também pelo Diretor do Campus do Pantanal, a qual foi enviada ao Reitor da UFMS, originando a instauração do PAD através da Portaria nº 265, de 11.04.2011, da Reitoria da UFMS (peça não localizada nos autos), pelos seguintes fatos descritos no Relatório final (fl. 929): 1 - "que denuncia o Diretor do Câmpus do Pantanal à OAB-MS"; 2 - "que não respeita e não acata a orientação da Chefia imediata"; 3 - que continua usando citações bíblicas em documentos oficiais"; 4 - "que acusa o Diretor do Câmpus de apossar de patrimônio (murais) para coloca-los no corredor da recepção, usados para divulgar informações da Secretaria Acadêmica do CPAN, e finalmente que causa desarmonia e instabilidade junto aos colegas no seu local de trabalho". Houve tramitação inicial com decisão de aplicação de pena de suspensão de 20 dias, 5 dias para cada uma das 4 infrações consideradas, punição ocorrida em 12.09.2011 (decisão a fls. 301-305 e 812-816); Posteriormente, infere-se dos autos que foi reconhecida nulidade procedimental, constituída nova comissão processante, a qual, após seus trabalhos, concluiu pela inexistência de infrações a serem sancionadas, considerando que a servidora agiu sob a regra constitucional da liberdade de expressão, não havendo proibição explícita à inserção de citações de cunho religioso ou menções de textos bíblicos, também expondo que a atitude da servidora não gerou despesas para a União, que as testemunhas consideram que a servidora desempenha suas funções adequadamente e tampouco se sentem ofendidas pelas citações bíblicas referidas nos autos (fls. 831-832);Pareceres jurídicos da Procuradoria Federal da AGU junto àquela UFMS, em abril de 2017, sugeriu que o processo retornasse à comissão processante para nova manifestação, à vista de que na apuração teria havido nulidade por falta de notificação da servidora para acompanhar os depoimentos de testemunhas e que, na ocasião, a sentença de primeira instância proferida neste processo judicial havia considerado que a conduta violava princípios constitucionais, além de que a servidora continuava, até então, com sua conduta de fazer citações bíblicas em suas C.I.s (fls. 836-841 e 849-850);Sem decisão a respeito, o Reitor expediu nova Portaria para constituir a mesma comissão processante para conclusão dos trabalhos (fls. 851); os membros indicados declararam-se suspeitos em razão da situação exposta (fl. 852), mas a Reitoria recusou a alegação e os manteve na Comissão (fl. 853); os membros designados novamente manifestaram sua suspeição por motivo de foro íntimo, à vista de que já haviam concluído pela inexistência de fatos ilícitos da servidora que pudessem ser punidos, pedindo a designação de novos membros para a determinada conclusão dos trabalhos (fls. 854-855), o que foi indeferido ao entendimento de que se trataria apenas de complemento dos trabalhos iniciais que teriam sido incompletos por apurar apenas o fato de citações bíblicas nas CIs da servidora e que não teria sido feito o indiciamento da servidora (fls. 856);Diante disso, a Comissão Processante, após novas diligências, realizou o determinado indiciamento da servidora pelos 4 fatos, consignando, porém, que considerava inocorrente qualquer infração pelos fatos apurados (fls. 896-899) e apresentou novo relatório final confirmando a sugestão de arquivamento do PAD por não ter apurado qualquer infração (fls. 929-931); A autoridade julgadora (o Magnífico Reitor da UFMS), então, proferiu decisão no seguinte sentido: (i) acolher a sugestão de arquivamento do PAD, emitindo Portaria de arquivamento respetiva; (ii) quanto às citações bíblicas, ponderou a existência da sentença judicial considerando irregular a conduta e determinou "encaminhar-se cópia da sentença à Secretaria Especial de Órgãos Colegiados - SEORC, para análise quanto à pertinência de fazer constar no Manual de Correspondência da UFMS, proibindo as citações de cunho religioso, filosófico, poético, etc., nos documentos institucionais."; e, por fim, (iii) também com fundamento na citada sentença, determinou que a servidora "não faça as citações bíblicas em documentos públicos da UFMS" (fls. 932-940).

 
 

Daí se extrai que todos os fatos imputados nestes processos administrativos à autora são decorrentes exclusivamente da persistência da autora em exercer sua garantia fundamental de livre manifestação da sua crença - através daquela simples prática de transcrever um versículo bíblico quando expedia algum comunicado interno daquela UFMS -, deixando de acatar as ordens de sua chefia quanto a essa questão religiosa; todo o mais é mero reflexo desse conflito interno, consistente nas ações da autora na busca de auxilio externo na sua luta contra a perseguição religiosa a que estava exposta, como as notícias à imprensa e representações a órgãos públicos como o Ministério Público e a OAB-MS.

 
 

Da leitura de todas as instaurações dos procedimentos disciplinares, das diligências de instrução, depoimentos, relatórios das comissões, pareceres jurídicos e decisões dos procedimentos punitivos se extrai claramente que o tema central de todas as apurações de infrações administrativas foi um único e principal: a prática de fazer citações bíblicas em comunicados internos da UFMS, que causou tanto incômodo à alta direção daquela instituição.

 
 

A partir daí, a autora foi punida administrativamente, nos dois primeiros PAD's, pelas citações bíblicas mencionadas, por descumprir as ordens de seus superiores para deixar de fazê-lo e, por fim, por buscar o auxílio externo da imprensa e de órgãos públicos (MPF e OAB-MS) em defesa de sua liberdade religiosa, atos que foram considerados afrontosos à honra de seus superiores, à imagem e honra objetiva da UFMS e atentadora de supostos interesses públicos em que as questões somente deveriam ser tratadas internamente, com discrição, sem exposição questionadora daquela instituição federal de ensino público.

 
 

Ora, a simples leitura dos documentos e destas circunstâncias procedimentais e meritórias conduz qualquer leitor ou profissional da área jurídica que esteja minimamente interessado em averiguar de forma isenta a regularidade formal de todos estes procedimentos, a questionar seriamente a legitimidade dos processos disciplinares após a constatação de várias violações das regras procedimentais que garantiriam o constitucional e substancial devido processo legal, que acarretaram várias anulações de procedimentos, repetições de diligências e fases procedimentais etc.

 
 

Contudo, o que causa ainda maior estranheza e repúdio é encontrar punições administrativas de uma servidora pública pelo fato de haver inserido um versículo bíblico num comunicado interno sem a existência de qualquer norma legal proibitiva nesse sentido, ou mesmo, a punição da servidora por suposta ofensa à imagem e honra da instituição e de seus superiores pelo fato de ter noticiado toda aquela situação à imprensa ou aos órgãos públicos capacitados constitucionalmente para a defesa de direitos fundamentais (o MPF e a OAB).

 
 

No regime de Estado de Direito em que vivemos, em que a Constituição Federal assegura liberdade religiosa a todas as pessoas e em que a administração pública deve pautar-se por princípios gerais de legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade, etc. (CF/88, art. 37, caput), é estarrecedor, foge de qualquer senso de bom senso e razoabilidade, encontrar uma Universidade, instituição pública federal de ensino que deveria zelar pela tolerância e busca mesmo da diversidade de pensamentos para chegar ao conhecimento mais amplo e profundo em qualquer área de estudos, mas que acaba concentrando seus esforços acadêmicos num sentido diametralmente oposto, aplicando sanções administrativas disciplinares a uma servidora porque legitimamente estava buscando a defesa daqueles que considerava como seus direitos inalienáveis ou que levava a órgãos públicos legalmente competentes notícias de possíveis ilicitudes que mereceriam apuração.

 
 

A própria moralidade pública é seriamente violada por estes fatos violadores dos direitos da servidora, pela gravidade das ilícitas determinações recebidas de seus superiores, pelo constrangimento a que foi exposta, pela violação das regras legais procedimentais do processo administrativo disciplinar, pelo desvirtuamento do interesse público e dos princípios constitucionais que regem a própria administração pública.

 
 

E, registre-se também, que a prática tão perseguida pela alta direção da UFMS - inserir um versículo bíblico em correspondências internas da instituição de ensino - na verdade caracteriza uma clara manifestação histórica e cultural da sociedade brasileira, que nunca pode qualificar-se como violadora da laicidade estatal.

 
 

Com efeito, é notório que muitos juristas, filósofos e profissionais ligados a muitas áreas do ensino, das artes, das letras, da história, das ciências e muitas outras, ou outras pessoas que simplesmente estimam e buscam o conhecimento, o pensamento em geral, cultivam a prática de colecionar e compartilhar frases que sintetizam algum aspecto de conhecimento em especial, citando seus respectivos autores.

 
 

Elaboram-se citações de certos pensamentos para ampla gama de finalidades; são frases que condensam excertos de sabedoria, crítica social, sensibilidade, humanidade, estímulos os mais diversos, enfim, citações que servem para ilustrar as situações e iluminar as mentes daqueles que recebem suas mensagens, um estímulo dos receptores da mensagem à reflexão sobre uma questão qualquer.

 
 

Assim, transcrições de versículos da Bíblia Sagrada carregam em si o mesmo significado cultural que citações de frases de outros grandes pensadores, juristas, filósofos, políticos, cientistas ou líderes espirituais de outras religiões e crenças como budismo, kardecismo etc.

 
 

Nesta condição de expressões essencialmente culturais, as transcrições bíblicas da servidora autora desta ação, assim como qualquer outra desta natureza, não podem qualificar-se como violadoras do princípio da laicidade estatal, pois não trazem em si qualquer conotação ou efeito de objetivamente constranger qualquer pessoa em sua liberdade religiosa.

 
 

E registre-se ainda, por fim, que os fatos que foram objeto dos três processos administrativos movidos contra a autora, dois dos quais que resultaram em aplicação de penalidades, de nenhuma maneira podem configurar, objetivamente, violações a quaisquer dos preceitos legais indicados nas instaurações e nas decisões sancionatórias acima descritas. Esta objetiva atipicidade, por si só, impõe a anulação de todas as penas aplicadas à servidora.

 
 

É de se ressaltar que os fatos que geraram as punições disciplinares nos dois primeiros PAD's foram os mesmos que constituíram o objeto do terceiro PAD's instaurado contra a autora (este último ampliado pela consideração de supostas infrações funcionais por haver a servidora feito denúncia do Diretor do Câmpus a autoridades competentes ou que ela estivesse causando desarmonia no ambiente de trabalho) e, após decorridos quase 9 (nove) anos de tramitação, este último PAD conclui, após exaustivas diligências, anulações e repetições de atos de instrução, pela absoluta ausência de quaisquer das supostas infrações consideradas, ressaltando a comissão processante que a servidora sempre agiu legitimamente na defesa de sua liberdade de fé, sempre desempenhando adequadamente suas funções, nunca causando prejuízo para o interesse público, tendo sempre bom ambiente e relacionamento com os demais servidores, estes últimos, aliás, ouvidos como testemunhas de todos estes fatos, consignaram nunca terem se sentido de qualquer modo incomodados com a prática da autora de fazer citações bíblicas em comunicados, ou seja, nunca foram de qualquer modo coagidos ou constrangidos pela conduta da autora, que sempre agiu nos limites da sua liberdade fundamental de crença.

 
 

E esse terceiro PAD foi arquivado, acolhendo as conclusões da comissão processante, sem aplicação de qualquer sanção disciplinar.

 
 

E isso evidencia, ainda mais, a absoluta falta de fundamento para as punições impostas nos dois primeiros processos administrativos.

 
 

O que se conclui após esta análise é que a direção da UFMS lamentavelmente se excedeu em muito nas suas prerrogativas funcionais, ofendendo os princípios da impessoalidade e da legalidade ao tentar impor suas próprias convicções a respeito de laicidade estatal e liberdade de religião sem que estivesse amparada por qualquer norma legal, a partir daí conduzindo a situação com a servidora de modo absolutamente insensato, desarrazoado e desproporcional aos fatos em cogitação, pautando-se com uma clara inabilidade no trato com a servidora e inobservância do dever de tolerância para com a liberdade religiosa assegurada nesse país a todas as pessoas, sem exceções.

 
 

Não estou exagerando na minha análise, que faço após profunda e cautelosa reflexão dos fatos que exsurgem destes autos e nos valores envolvidos no conflito aqui tratado. Note-se que o abuso foi tão evidente que a autoridade julgadora, ao mesmo tempo em que determinou o arquivamento do PAD por falta de infrações puníveis, não se fez de rogada e, é de se indignar, consignou, ao final de sua decisão, mais uma ordem para que a autora deixasse de inserir textos bíblicos nos seus comunicados internos, ou seja, prosseguiu na mesma exigência ilegítima em face da servidora, embora o resultado de arquivamento do PAD importe em reconhecer que a conduta da servidora era perfeitamente legítima e que não havia qualquer norma jurídica que pudesse amparar aquela ordem (tanto que determinou envio de recomendação de estudos sobre a conveniência ou não de se incluir em um Manual de Correspondências da própria UFMS alguma restrição naquele sentido), evidenciando assim a contradição em sua própria manifestação e abuso na sua postura oficial no comando daquela instituição de ensino.

 
 

Enfim, todas as punições aplicadas à servidora são absolutamente desprovidas de amparo legal e flagrantemente violadoras de muitos princípios constitucionais: legalidade, publicidade, moralidade, impessoalidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, liberdade fundamental de crença, direito de qualquer pessoa denunciar possíveis irregularidades a órgãos públicos, razoabilidade e proporcionalidade.

 
 

Em conclusão, todas as punições aplicadas à autora nestes PAD's devem ser anuladas e extirpadas de seus registros funcionais, por serem absolutamente desprovidas de fundamentação legítima.

 
 

II.C - Do pedido de danos morais

 
 

Definida a questão sobre a efetiva ocorrência de conduta ilegítima da UFMS contra a liberdade religiosa da servidora autora, cumpre examinar o pedido de indenização da autora por danos morais.

 
 

A Constituição Federal assegura a indenização por danos materiais e/ou morais decorrentes de violação à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (CF/1988, art. 5º, inciso X).

 
 

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

 
 

Como se sabe das clássicas lições da civilística, a configuração da responsabilidade civil (seja patrimonial, seja extrapatrimonial), demanda a presença concomitante de (1) conduta (ação ou omissão), (2) dano a direito de alguém, (3) nexo de causalidade entre um e outro e (4) culpa (lato sensu, englobando o dolo e a culpa stricto sensu, esta decorrente de negligência, imprudência ou imperícia), no caso da responsabilidade subjetiva, que é a regra.

 
 

A responsabilidade é excluída pela ausência de nexo de causalidade, como nas situações de força maior ou culpa exclusiva de terceiro ou da vítima. E é atenuada nos casos de culpa concorrente da vítima.

 
 

Os danos materiais referem-se aos aspectos de natureza patrimonial decorrentes da lesão sofrida.

 
 

Quanto aos danos morais, como é sabido, tradicionalmente está associado à dor e ao sofrimento da vítima; nesse sentido, é necessário que fique comprovado sofrimento emocional ou social, capaz de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Meros aborrecimentos ou dissabores estão fora de referido conceito, por expressarem fatos comuns do relacionamento social.

 
 

Nesse sentido, trago à colação os seguintes julgados:

 
"Só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que fugindo da normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições. angústias e desequilíbrio em seu bem estar. Mero, dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo". (STJ - Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO - RESP 200600946957 - 4ª TURMA)
 
 
 
 
 
"DIREITO PRIVADO. INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS. ALEGAÇÃO DE SAQUE INDEVIDO. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE FRAUDE. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO.
 
I - Relevantes elementos que dão suporte à tese da CEF quanto a terem os saques no caso sido realizados com o cartão magnético e respectiva senha do autor e sem que pudesse este ter sido vítima de qualquer ilicitude de responsabilidade imputável à instituição bancária.
 
II - Dano moral não configurado.
 
III - Recurso desprovido". (TRF3 - AC 2010.61.04.003867-7/SP - 2ª Turma, Relator Des. Fed. Peixoto Júnior, v.u., j. em 27.11.12, DJU 07.12.12).
 
 
 
 
 
"AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. SAQUE INDEVIDO EM POUPANÇA.
 
1. Reconhecida a existência de falha na prestação do serviço bancário, decorrente de indevidos saques na conta poupança da autora, porém não houve pedido para ressarcimento de danos materiais sofridos, por certo diante da recomposição efetuada na conta pela própria requerida, certo que o pedido deve ser interpretado restritivamente.
 
2. Dano moral afastado tendo em vista que o dissabor não é suficiente para sua caracterização.
 
3. Apelação da autora improvida". (TRF 3ª Região, Segunda Turma, AC 1402056, Rel. Juiz Roberto Jeuken, DJF3 03.09.2009, p. 55, unânime)"
 
 
 
 
 
"CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. SAQUE INDEVIDO EM CONTA POUPANÇA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. DANOS MORAIS NÃO COMPROVADOS.
 
1. A questão posta diz respeito à possibilidade de se imputar responsabilidade à CEF, em virtude de saques efetuados na conta poupança da Autora, que, segundo alega, não foram realizados por ela, muito embora, como ressalta a instituição financeira, foram feitos mediante utilização de cartão magnético, em caixa eletrônico, e com emprego de senha pessoal.
 
2. A CEF, apesar de pugnar pelo não provimento da apelação, não refuta a narrativa fática contida na inicial, respaldada nos documentos juntados aos autos, de que, no dia e hora em que efetuado o saque indevido, a Autora encontrava-se trabalhando em cidade diversa de onde sucedeu a operação bancária.
 
3. Tornando-se incontroverso o fato de que o saque ocorreu em cidade diversa de onde a Autora se encontrava quando da operação, deverá a instituição financeira responder pelo dano material decorrente.
 
4. De outra banda, o simples saque indevido (R$ 1.000,00) não é suficiente para ensejar a indenização por danos morais, pois não caracterizado constrangimento ou humilhação em decorrência do fato, por maior que tenha sido o incômodo causado ao poupador.
 
5. Dá-se parcial provimento à apelação, para condenar a CEF a devolver o valor indevidamente sacado da conta da Autora/Apelante (R$ 1.000,00), devidamente atualizado desde o evento danoso, passando a sucumbência a ser recíproca". (TRF - PRIMEIRA REGIÃO - AC 200633100047740 - Rel. DES. FEDERAL DAVID WILSON DE ABREU PARDO - e-DJF1 DATA:12/01/2009 PAGINA:51)
 
 

Esse paradigma, no entanto, vem sendo progressivamente superado. Evidência disso são as hipóteses, que têm sido admitidas, dos danos morais sofridos pelas pessoas naturais impassíveis de detrimento anímico (como nascituros, etc.), pelas pessoas jurídicas e demais entes ou grupos despersonalizados da coletividade.

 
 

Em verdade, até mesmo para as pessoas naturais que sofrem e padecem de dor, tais elementos já vêm sendo deixados ao largo, sendo que o esquadrinhar dos danos morais tem tomado como parâmetro, na doutrina mais moderna, a violação aos direitos da personalidade.

 
 

Nesse contexto, há de se examinar a existência de lesão relevante, ou ainda a violação injusta e intolerável da conduta apontada no caso concreto.

 
 

O valor da indenização por danos morais deve ser arbitrado pelo juiz, no exame das circunstâncias do caso concreto, à vista da natureza, gravidade e extensão dos danos causados aos direitos da vítima, em atenção aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, objetivando uma adequada reparação (compensação) dos valores morais violados e evitando enriquecimento ilícito por parte da vítima.

 
 

Nesse sentido:

 
 
"A indenização por dano moral deve ser fixada em termos razoáveis, não se justificando que a reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, devendo o arbitramento operar-se com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao porte empresarial das partes, às suas atividades comerciais e, ainda, ao valor o negócio. Há de orientar-se, o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela jurisprudência com razoabilidade, valendo-se de suas experiências e do bom sendo, atento à realidade da vida, notadamente à situação econômica atual e às perculiaridades de cada caso (STJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in RT 776/195)".
 
 
 
 
 
PROCESSO CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA. INCLUSÃO INDEVIDA EM REGISTRO DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. CONSTRANGIMENTO PREVISÍVEL DÉBITO QUITADO. INDENIZAÇÃO. VALOR EXCESSIVO. REDUÇÃO. (...) 2. Consoante jurisprudência firmada nesta Corte, o dano moral decorre do próprio ato lesivo de inscrição indevida nos cadastros de restrição ao crédito, "independentemente da prova objetiva do abalo à honra e à reputação sofrido pelo autor, que se permite, na hipótese, facilmente presumir, gerando direito a ressarcimento
 
(Resp. 110.091/MG, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR, DJ 28.08.00; REsp. 196.824, Rel. Min. CÉSAR ASFOR ROCHA, DJ 02.08.99; REsp. 323.356/SC, Rel. Min. ANTONIO PÁDUA RIBEIRO, DJ. 11.06.2002). 3.(...)."
(STJ, RESP 724304, 4ª TURMA, Rel. Jorge Scartezzini, DJ 12/09/2005, p. 343)
 
 

Colocados estes pressupostos de análise do dano moral, temos que todas as considerações supra expostas na análise do caso concreto caracterizam, inegavelmente, a efetiva violação da liberdade religiosa da servidora, autora desta ação.

 
 

E há de se reconhecer que a lesão dos direitos da vítima foi grave e de grande monta, pois as provas dos autos, especialmente as cópias dos 3 (três) processos administrativos instaurados contra a servidora, revelam as circunstâncias nas quais ela sofreu enorme pressão contrária ao seu livre exercício dos direitos fundamentais de crença e manifestação do pensamento em seu local de trabalho diário, pressão esta advinda não apenas de sua chefia imediata, como também da alta direção - reitoria - daquela instituição.

 
 

A conduta ilícita foi tão grave que a servidora, sentindo-se violada em suas garantias constitucionais de crença e livre expressão do pensamento, não teve outra alternativa senão tentar obter apoio em instituições externas, como a imprensa, a OAB-MS e o MPF-MS, na tentativa de fazer cessar o ilícito constrangimento a que estava sendo exposta.

 
 

E foram tão graves os ataques aos seus direitos fundamentais que foi vítima da instauração de três processos administrativos disciplinares que objetivavam única e exclusivamente forçar a autora a abdicar de seu direito fundamental, sem qualquer amparo em normas legais e que chegaram à impensada e abusiva punição disciplinar pelo fato da servidora haver buscado apoio aos seus direitos nas mencionadas instituições externas.

 
 

A grande extensão dos danos se extrai também pela constatação de que os processos administrativos foram sendo instaurados, um após o outro, em apenas alguns meses, e cada vez buscando agravar as supostas condutas infracionais da servidora com vistas, logicamente, a conduzir até à imposição de pena de demissão do serviço público. Chegou-se à pena de suspensão por 30 (trinta) dias com prejuízo total de seus vencimentos e, reforce-se, todos tendo como objeto central a questão do direito da autora em exercer sua liberdade religiosa e buscar apoio em instituições públicas legitimamente constituídas pela Constituição Federal para a tutela da efetivação de direitos fundamentais.

 
 

E não é só. A gravidade e extensão dos danos também pode ser extraída do grande período de tempo a que ficou exposta a servidora aos ilícitos constrangimentos de seus direitos fundamentais, pois o terceiro processo administrativo somente veio a ser julgado aos 30.07.2018, quando, nada menos do que quase 8 (oito) anos após a sua instauração, apesar de a decisão haver determinado o arquivamento ao acolher o parecer da comissão processante (o qual, inclusive, foi diversas vezes reiterado naquele procedimento, no sentido de que não havia qualquer ilícito funcional na conduta da servidora, que não havia qualquer norma legal a impor conduta diversa dos servidores, que apenas havia razoavelmente exercido sua crença, sempre desempenhou bem o serviço público que lhe era incumbido e nunca gerou qualquer tipo de constrangimento para com os demais servidores ou terceiros), contrariamente ainda reiterou a autoridade julgadora a ordem ilícita de que a servidora deveria se abster de proceder a qualquer citação bíblica em seus comunicados internos, daí se antevendo que a ilicitude da conduta da UFMS não foi obstada, mas reiterada e reforçada apesar do arquivamento do processo administrativo disciplinar.

 
 

Também é de se ponderar o fato de que, no início dos conflitos internos, a servidora ocupava uma função de confiança, sendo que, certamente premida pelas circunstâncias geradas pela chefia na exigência de se abster de proceder a quaisquer citações bíblicas em seus comunicados internos, se viu a autora na contingência de colocar à disposição da chefia sua função de confiança como forma para não gerar ainda maiores conflitos, perdendo, então, os respectivos reflexos remuneratórios e perspectiva de ascensão profissional na instituição.

 
 

E, certamente, esta situação funcional da autora deve ter-se refletido, também, no seu isolamento do restante do corpo de servidores, como sói ocorrer em situações da espécie.

 
 

Por fim, a gravidade dos danos sofridos pela servidora são tão mais graves em consideração à origem das intransigências sofridas em seus direitos constitucionais, pois os ataques provieram da direção de uma instituição pública federal de ensino, uma instituição que por natureza devia zelar pela liberdade intelectual e pela busca e tolerância da diversidade de conhecimentos, pensamentos e orientações sociais, acarretando sua conduta a quebra de seus próprios fins institucionais.

 
 

Todas estas circunstâncias fáticas, portanto, exprimem o grande sofrimento à personalidade, à honra e à imagem da autora, vendo-se violentada em seus direitos fundamentais, com a angústia gerada já há cerca de 9 (nove) anos, não só pelo ataque à sua personalidade, mas, também, pela frustração remuneratória e de suas justas perspectivas de um sadio ambiente de trabalho e de ascensão profissional.

 
 

Demonstrado o dano moral sofrido pela parte autora, bem como o nexo causal entre a conduta ilícita da chefia e alta direção da UFMS e o prejuízo suportado, mostra-se devida a condenação da UFMS no montante pleiteado pela autora, qual seja, R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), na data dos fatos (considerando aqui o dia de instauração do primeiro processo administrativo disciplinar contra a autora), valor este que considero razoável, proporcional e adequado para a reparação dos profundos e extensos danos morais constatados. Incidem correção monetária e juros moratórios desde a data do dano, conforme Súmulas 54 e 362 do STJ, aplicados conforme critérios do Manual de Cálculos da Justiça Federal vigente à época da liquidação.

 
 

Por fim, anoto que eventuais outros argumentos trazidos nos autos ficam superados e não são suficientes para modificar a conclusão baseada nos fundamentos ora expostos.

 

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

 

Procedente a ação, condeno a ré UFMS ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em 20% (vinte por cento) do valor da condenação, com fundamento no artigo 20, §§ 3º e 4º, do CPC/1973 (atual artigo 85, § 3º, I, do Código de Processo Civil de 2015), considerando a natureza especial e complexidade da causa relacionada com direitos fundamentais da pessoa humana, o grande tempo despendido e o bom trabalho desenvolvido na defesa da autora, valor que considero razoável e adequado à digna remuneração do trabalho do causídico.

 

CONCLUSÃO

 

Ante o exposto, voto de no sentido de se CONCEDER à autora os benefícios da assistência judiciária gratuita, bem como, DAR PROVIMENTO À APELAÇÃO da autora, para o fim de julgar a ação procedente, anulando as sanções disciplinares aplicadas nos processos administrativos objeto da presente ação, bem como, condenando a ré UFMS ao pagamento de indenização por danos morais no valor acima fixado, além dos honorários advocatícios de sucumbência acima arbitrados, nos termos da fundamentação supra exposta.

 

É COMO VOTO


DECLARAÇÃO DE VOTO

DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ZAUHY:

 

O tema trazido no julgamento do presente feito toca com um dos pilares mais sensíveis dos direitos e garantias constitucionais, a liberdade de manifestação religiosa, dentro de um contexto que toca também com os chamados princípios da administração pública e, por fim, do sentido que se deva emprestar à noção de laicidade estatal.

 
 

Diante da dimensão do tema, caros colegas não poderia deixar de também expressar, em voto declarado, o posicionamento que assumo no caso concreto.

 
 

Como se verifica dos autos, a servidora lotada no Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS - Waleska Mendonza, viu-se punida, no âmbito administrativo, por fazer ela referência, em comunicados emitidos pela universidade, de versículos da Bíblia e, ainda, ter afixado em seu local de trabalho um quadro com o teor dos "10 mandamentos", somando-se a isso o fato de a servidora ter feito denúncias à imprensa, ao MPF e a OAB-MS acerca de perseguição religiosa, como que postulou em instância primeira o afastamento de punições impostas e de garantia de seu direito de manifestação religiosa, vindo o pleito, naquela mesma instância, sido negado ao fundamento de que as referências a Deus nas manifestações da autora violam a laicidade do Estado brasileiro, o princípio da isonomia e a supremacia do interesse público, dado que não poderia o particular expressar seu posicionamento religioso, concluindo pela possibilidade de a UFMS impedir qualquer manifestação nesse sentido.

 
 

Em grau de recurso a sentença restou integralmente mantida pelo Eminente Desembargador Relator COTRIM GUIMARÃES, acompanhado pelo Eminente Desembargador Federal PEIXOTO JÚNIOR.

 
 

Desse entendimento dissentiu o Eminente Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO, que agregou aos autos seu voto-vista, em que concedia à autora o benefício da assistência judiciária gratuita e dava provimento à apelação para o fim de julgar a ação procedente, anulando as sanções disciplinares aplicadas nos processos administrativos objeto da presente ação, bem como condenando a ré UFMS ao pagamento de indenização por danos morais no valor R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais); diante da votação não-unânime, o feito foi submetido à sistemática de julgamento do artigo 942, do CPC/2015.

 
 

Diante da importância do tema trazido a julgamento formulo a presente declaração de voto para, com a devida vênia aos Eminentes Desembargadores COTRIM GUIMARÃES e PEIXOTO JÚNIOR, aderir ao entendimento do Eminente Desembargador SOUZA RIBEIRO.

 
 

Sobre a garantia de liberdade de consciência e de crença e de sua expressão, a Constituição Federal estabelece nos incisos VI, VII e VIII, do artigo 5º, de seu texto, os seguintes enunciados:

 
 
"VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;"
 
 
"VII - é asegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidadades civis e militares de internação coletiva."
 
 
"VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;"
 
 

Bem se vê que o Constituinte, já na fixação dos Princípios Fundamentais da Constituição Federal, preocupou-se com a garantia da liberdade e de expressão de crença, situando-os na estrutura fundante dos direitos e garantias individuais.

 
 

Acerca da laicidade do Estado brasileiro, há de se registrar um viés interpretativo por vezes desfocado, juridicamente, do verdadeio sentido desse termo na ordem constitucional brasileira.

 
 

Registro, para efeito de análise, o que contém o Preâmbulo da Carta Política e o artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.

 
 

O Preâmbulo da Constituição Federal traz, em seu texto, a expressão "sob a proteção de Deus", como corolário à promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil:

 
 
"Nós, representantes do provo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a a protenção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
 
 

É certo que a doutrina se divide acerca do valor e eficácia dos "preâmbulos", como anota JOSÉ AFONSO DA SILVA:

 
 
"Controverte-se em doutrina quanto ao valor do Preâmbulo das Constituições. A generalidade dos autores recusa-lhe natureza normativa no sentido técnico-jurídico, reconhecendo nele simples diretivas básicas (políticas, morais e filosóficas) do regime constitucional. É essa a opinição de Hans Kelsen, para quem o Preâmbulo 'expressa as ideias políticas, morais e religiosas que a Consituição tende a promover. Geralmente, o Preâmbulo não estipula normas definidas em relação com a conduta humana e, por conseguinte, carece de um conteúdo jurídicamente importante. Tem um caráter antes ideológico que jurídico'. Karl Friedrch, no entanto, reconhece nele particular importância, porque reflete a opinião pública à qual cada Constituição deve sua força. George Bourdeau entende que o Preâm bulo, qualquer que seja, fixa a atitude do regime diante dos grandes problemas sociais, políticos e internacionais. Carl Schimitt sustentou que as Constituições da Alemanha de 1871 e 1919 continham Preâmbulos em que a decisão política se encontrava formulada de maneira singularmente clara e penetrante, rebatendo a teoria que os tratava quase sempre como 'simples declarações', ou 'notícias históricas', ou declarações de valor meramente enunciativo, não dispositivo. Manuel Garcia-Pelayo, após expor o pensamento de Schimitt, não titubeia em considerar as declarações contidas no Preâmbulo como parte integrante e essencial da ordem jurídica constitucional, posto que dão sentido às normas jurídicas."
 
 

Prossegue JOSÉ AFONSO DA SILVA:

 
 
"Do exposto, já é possível fixar uma tese geral sobre o valor jurídico e a eficácia dos Preâmbulos das Constituições. Na mais das vezes eles fazem referência explícita ou implícita a uma situação passada indesejável, e postulam a construção de uma ordem constitucional com outra direção, ou uma situação de luta na perseguição de propósitos de justiça e liberdade; outras vezes exprimem um princípio básico, político, social e fillsófico, do regime instaurado pela Constituição. Há casos em que tudo isso vem misturado a declarações de direitos e garantias constitucionais.
 
 
Em qualquer dessas hipóteses, os Preâmbulos valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa ..."
 
 

Entendo, de igual sorte, que o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil tem força normativa, quer por fixar os primados da instituição do Estado Democrático, quer por estabelecer as pautas e e objetivos dessa nova ordem jurídica, quer, por fim, por expressar a proteção de quem a antecede, os "representantes do provo brasileiro" (terrenos), "sob a proteção de Deus" (invocação divina).

 
 

Muito embora tenha havido objeções no momento da promulgação da Carta de 1.988 acerca da referência divina, o certo é que a referência aí feita permeia a ordem jurídica brasileira, na medida que torna claro que a expressão religiosa e as referências a ela feitas, ou em seu nome divulgadas, não podem ferir a ordem pública ou, em escala mais estreita, os princípios da Administração Pública.

 
 

Signficativo, nesse ponto, o registro feito por JOSÉ AFONSO DA SILVA acerca dos debates congressuais antecedentes à promulgação da Constituição.

 
 

Registra o Jurista:

 
 
"O símbolo de religiosidade consta de todas as nossas Constituições. Na do Império, D. Pedro I invocara a graça de Deus e a unânime aclamação dos povos. A esse tempo a religião católica era estatal. A de 1891 não invocara Deus, pois a República nascia sob o signo da separação entre Estado e Igreja. Firmava-se a idéia do Estado leigo, e, por isso, sua Constituição não deveria invocar a divindade. A de 1934 firmara-se na confiança em Deus. A ditatorial de 1937 não o mencionara. As subseqüentes de 1946, 1967 e 1969 apelaram pela proteção de Deus.
 
 
O deputado José Genoíno propôs extirpar a expressão, que já constava do Substitutivo do Relator da Comissão de Sistematização. Fez bonita sustentação filosófica no sentido de que a divindade permeia toda a vida e não se compadece com a simples banalização de uma invocação formal. Só teve um voto a seu favor, que não foi o seu, porque não votava naquele momento. O voto favorável foi o do representante do Partido Comunista do Brasil. O representante do Partido Comunista Brasileiro votou pela manutenção da invocação. Disse que outrora (em 1946) seu Partido pronunciara contra a inclusão da cláusula, mas, em nome da modernização das idéias partidárias, e em respeito ao sentimento religioso do povo brasileiro, apoiava sua manutenção no Preâmbulo. Embora deslocada, a invocação permaneceu no texto aprovado pelo Plenário.
 
 
De fato, um Estado leigo não deveria invocar Deus em sua Constituição. Mas a verdade também é que o sentimento religioso do povo brasileiro, se não impõe tal invocação, a justifica. Por outro lado, para os religiosos ela é importante. Para os ateus, há de ser indiferente. Logo, não há por que condená-la. Razão forte a justifica: o sentimento popular, de quem provém o poder constituinte."
 
 
(COMENTÁRIO CONTEXTUAL À CONSTITUIÇÃO, 6ª. Edição, Malheiros, 5ª. Ed., 2009).
 
 

Essa referência constitucional desautoriza, a priori, que se considere qualquer referência religiosa, mesmo em documentos oficiais, como contrário à laicidade estatal, até porque a Carta Política consagra, igualmente, referência expressa a Deus em seu Preâmbulo, sem que com isso se esteja a ferir os demais comandos constantes da Constituição que asseguram tanto a liberdade de consciência, como a liberdade de crença e a liberdade de expressão.

 
 

A questão posta no caso concreto, que toca com punição por manifestação, em documentos e em ambiente oficial (administrativamente falando), de signos e frases religiosas, não é nova nos Tribunais, sendo sempre oportuno trazer à lembrança o leading case submetido ao Supremo Tribunal Federal, sob a vigência da Constituição de 1.946, em que a Corte foi chamada a se pronunciar sobre os limites da intervenção do Estado na prática de cultos religiosos.

 
 

Nesse precedente histórico (MS 1.114/DF, Relator Ministro LAFAYETTE DE ANDRADA), cuidava-se da seguinte situação, assim identificada pelo Relator:

 
 
"RELATÓRIO:
 
 
O SENHOR MINISTRO LAFAYETTE DE ANDRADA:
 
 
DOM CARLOS DUARTE COSTA declarando-se, ex-Bispo de Maura, da Igreja Católica Apostólica Romana e atual Bispo do Rio de Janeiro, da Igreja Católica Apostólica Brasileira, impetra mandado de segurança a fim de lhe ser garantido e aos Ministros de sua Igreja o dreito líquido, certo e incontestável ao livre exercício do culto religioso da mesma Igreja, bem como para serem reabertos ao público os templos da referida Igreja, e, ainda, para ser entregue à frequência dos seus alunos a Escola N. S. Menina, mantida pela Associação N. S. Menina, tudo nos têrmos da Constituição da República, artigos 31, II, 141, §§ 7º, 8º e 24, e do Código de Processo Civil - arts. 319 e seguintes (fls. 26).
 
 
Alega o impetrante que por ato ilegal e violento da polícia ficou impedido de realisar cultos em sua Igreja, impedidos os fieis de a ela comparecerem, e os alunos privados das aulas na escola de que o impetrante é representante.
 
 
Examina o impetrante o parecer do Consultor Geral da República, faz explanações sôbre o direito líquido e certo que o ampara, procura mostrar que houve evidente violação da liberdade de consciência e de crenças, além de atentado ao livre exercício dos cultos religiosos na forma admitida no artigo 141 § 7.
 
 
Salienta o impetrante que não existe confusão entre sua Igreja e a Igreja Católica Apostólica Romana, porque esta se pretende universal e a Igreja Brasileira, Igreja nacional exclúi desde logo a noção de universal.
 
 
Esclarece: "As vestes sacerdotais, em todas as religiões que se separam de outra, a princípio são as mesmas; só com o correr dos tempos as religiões separadas adotam vestes sacerdotais características" (fls. 6).
 
 
Afirma que os Estatutos da Igreja Brasileira estão regularmente registrados, podendo praticar todos os atos não proibidos pela constituição inclusive culto externo, porque não são contrários aos bons costumes.
 
 
O mandado de segurança foi dirigido ao Tribunal Federal de Recursos que, por decisão de 4 de março de 1949, deu-se por incompetente por considerar que o ato de que se queixa o impetrante partiu do Presidente da República (fls. 249).
 
 
A inicial está acompanhada de numerosos documentos, notícias de jornais, entrevistas do impetrante, desenhos das vestes a serem usadas pelos ministros da Igreja Brasileira e das informações referidas.
 
 
Foram prestadas as informações seguintes pelo Presidente da República: ler fls. 258.
 
 
É o relatório."
 
 

O que se extrai do relatório do caso concreto levado à Suprema Corte da época é que o Estado, por provacação da Igreja Católica Apostólica Romana, questionara, no âmbito do Ministério da Justiça, a atuação de Dom Carlos Duarte Costa, ex-bispo de Maura, na prátrica de culto de sua Igreja, então denominada Igreja Católica Apostólica Brasileira que, negando a autoridade papal romana, passou a realizar cultos públicos, valendo-se de vestes indumentárias, a juízo da Igreja Romana, semelhantes às dela.

 
 

Entendeu o poder estatal da época que a prática de culto pela Igreja Brasileira estaria a ferir a ordem pública, por praticar cultos e rituais semelhantes aos praticados pela Igreja Romana.

 
 

Significativo nesse debate, que envolveu expoentes juristas da época, a exemplo de PONTES DE MIRANDA, HAROLDO VALADÃO e sobretudo, dois dos Ministros no referido Mandado de Segurança, o Relator LAFAYETTE DE ANDRADA e o Ministro dissidente (único voto vencido) HAHNEMANN GUIMARÃES.

 
 

O Ministro Relator, não obstante tenha, ao fim, denegado o mandado de segurança, por entender não ser o meio próprio para o fim pretendido, avança no mérito do ato estatal, retratando, a meu juízo, sob a luz da atual ordem constitucional, visão essencialmente restritiva ao direito de liberdade de culto.

 
 

Já o voto dissidente traz luzes significativas ao que hoje se entende - e se consagrou no atual texto constitucional - acerca dos limites da atuação estatal nos cuidados com a prática de manifestação religiosa e de culto.

 
 

O entendimento da questão reclama que se transcrevam ambos os votos, para que se faça uma avaliação técnico-jurídica do quanto o tema é passível de desvios, à luz do real entendimento do que signifique liberdade de expressão e liberdade religiosa.

 
 

O voto do Ministro Relator LAFAYETTE DE ANDRADA foi assim expressado:

 
 
"Visa o presente mandado a reabertura dos templos da Igreja Católica Apostólica Brasileira, o livre exercício público dêsse culto e o funcionamento da Escola mantida pela Associação de N. Senhora Menina.
 
 
A Constituição Federal garante a liberdade de consciência e de religião, a liberdade de culto que não contraria a ordem pública ou aos bons costumes.
 
 
Não foi tomada qualquer providência contra o funcionamento da Escola. Ela continua aberta aos alunos, ao ensino que vem ministrando. As informações oficiais são positivas a respeito.
 
 
Também o Governo não criou impedimento a existência da Igreja de que o impetrante é chefe: proibiu, sim, o culto público, em lugares públicos, por entender que nessa prática havia manifesta confusão com os costumes, com as solenidades externas da Igreja Católica Apostólica Romana. Os ministros de Igreja Brasileira, suas vestes, suas manifestações em atos públicos eram perfeitamente iguais aos de outra Igreja.
 
 
Salientou o Ministro da Justiça: "... devo ressaltar a V. Excia. que não é intenção do Governo submeter os Chefes ou fieis, daquela Igreja a qualquer constrangimento em sua liberdade de crença, mas, apenas, como salientou o Consultor Geral da República, em seu parecer, assegurar à Igreja Católica Apostólica Romana o livre exercício do seu culto, e, em conseqüência, "impedir o desrespeito ou a perturbação do mesmo culto, atravez de manifestações externas, quais procissões, missas campais, cerimonias em edifícios abertos ao público etc. quando praticadas pela Igreja Católica Apostólica Brasileira e com as mesmas insignias, as mesmas vestes, enfim o mesmo rito daquela" (fls. 122).
 
 
O livre exercício dos cultos religiosos não pode ter amplitude sem contrôle, sem limites. É uma liberdade sujeita a ordem pública, aos princípios que a mantêm, ao respeito dos direitos de outrem.
 
 
Já Barbalho afirmara: "do poder público é dever assegurar aos membros da comunhão política que êle preside, a livre prática do culto de cada um e impedir quaisquer embaraços que o dificultem ou impeçam, procedendo nisso de modo igual para com todas as crenças e confissões religiosas" (fls. 285).
 
 
E, Araujo Castro, acentuou: "É bem de ver, todavia, que o Estado tem sempre o poder e o dever de adotar certas restrições à liberdade de cada um, mas somente na medida que se torna necessária para proteger a liberdade de todos" (fls. 285).
 
 
Ainda o ensinamento de Leon Duguit deixa claro: "Para que ela exista (referindo-se a liberdade religiosa) é necessário que nas suas leis o Estado respeite as crenças de cada um, que não entrave de qualquer modo o livre exercício do culto público, que não ponha nenhum limite à formação, ao funcionamento das seitas e das Igrejas, segundo suas próprias leis. Não é supérfluo acrescentar, entretanto, que o Estado tem sempre o poder e o dever de fazer certas restrições à liberdade de cada um, mas somente na medida em que isto fôr necessário para proteger a liberdade de todos" ("Pour qu'elle existe, il faut que dans les lois l'Etat respecte les croyances de chacun, qu'i1 n'apporte aucune entrave au libre exercice du culte public et qu'il ne mette aucune limitation à la formation, au fonctionemen, suivant leurs lois propres, des sectes et des églises. Il va sans dire, toutefois, que l'État a toujours le pouvoir et le devoir d'apporter certaines restrictions à la liberte de chacun, mais seulement dans la mesure ou celà est nècessaire pour protéger la libertè de tous (fls. 286).
 
 
Portanto, se o Poder Público, apreciando fatos, entender indispensável sua ação de polícia para impedir o excesso de liberdade, pode empregá-la em detrimento dos que usando dessa liberdade forem de encontro a tranquilidade, a ordem pública, perturbando os direitos de terceiros.
 
 
A liberdade de culto exigida pelo impetrante só lhe é negada naquilo que prejudica a liberdade do Culto da Igreja Católica Apostólica Romana, naquilo que fôr igual ao desta Igreja, causando confusão, prejudicando sua missão, trazendo perturbação às suas práticas seculares e notórias. Porque nesse ponto, realmente, vai de encontro a ordem pública e às normas de direito que garantem a cada Instituição, a cada religião o uso de seus ritos, o uso de suas insignias, de suas características.
 
 
Notou o dr. Consultor Geral da República em seu parecer: "Em verdade desde o nome adotado - Igreja Católica Apostólica Brasileira - até o culto e ritos tudo é feito com o objetivo de mistificar e confundir. Assim o próprio apóstata se apresenta como bispo do culto românico", usam - êle e seus ministros - as mesmas vestes - insígnias do clero e bispo romanos, praticam os mesmos atos religiosos da Igreja de Roma, como sejam: batismo, crismas, casamentos, procissões, missas campais, bênçãos e lançamentos de pedras fundamentais, e em todos êsses atos adotou os mesmos paramentos, e o mesmo cerimonial do nosso culto externo" (fls. 317).
 
 
O impetrante não visa neste mandado garantir a instituição da Igreja Brasileira, a manutenção de seus estatutos, de sua finalidade, a captação de fieis, e sim garantir para si a manifestação pública, o culto público, as práticas, os atos públicos, que pertencem a outra Igreja.
 
 
Procura contrariar as acusações de imitação dos atos da Igreja Romana, procura mostrar a nenhuma confusão entre as duas Igrejas, nas manifestações exteriores do culto das mesmas, procura esclarecer a diferença dos paramentos, das vestes de seus representantes, das práticas adotadas.
 
 
São portanto fatos, que exigem exame, ampla apreciação de provas. O mandado de segurança não dá ensejo a controvérsias: verifica de plano a ilegalidade, a ofensa à liquidez e certeza de um direito. Ora, se o que se discute nestes autos não permite se conclua desde logo pela ilegalidade, se os fatos pedem minuciosa apreciação e se o dispositivo constitucional sôbre o livre exercício do culto que não seja contrário a ordem pública, autoriza a interpretação adotada pelo Governo, está-se a ver que não há direito líquido e certo para ser amparado pela segurança.
 
 
Assim, senhor Presidente, indefiro o mandado se segurança, por não ser o meio próprio para o fim pretendido."
 
 

Chamam a atenção nesse precedente da Corte, afirmações como as que pontuam que "se o Poder Público, apreciando fatos, entender indispensável sua ação de polícia para impedir o excesso de liberdade, pode empregá-la em detrimento dos que usando dessas liberdades forem de encontro a tranquilidade, a ordem pública, perturbando os direitos de terceiros."

 
 

Bem se vê, do voto condutor do Relator LAFAYETTE, que ele dá agasalho a um segmeto religioso constituído em detrimento de outro segmento igualmente religioso e igualmente constituído, quebrando, a meu entender, a laicidade estatal.

 
 

O tema ganhou contornos mais claros de efetivo ingresso (indevido) do Estado na seara da livre manifestação de crença e culto no voto do Ministro HAHNEMANN GUIMARÃES:

 
 
"O SR. MINISTRO HAHNEMANN GUIMARÃES:
 
 
Sr. Presidente, resume o eminente sr. dr. Proc. Geral da Republica o propósito do impetrante em insurgir-se ele contra o ato do Exmo. Sr. Presidente da Republica que, aprovando parecer emitido pelo sr. Consultor Geral da Republica sobre a maneira de assegurar o livre exercício do culta da Igreja Católica Apostólica Romana, o encaminhou ao sr. Ministro da Justiça e Negocios Interiores, para que lhe desse cumprimento.
 
 
O parecer do Consultor Geral da Republica nasceu de uma representação, dirigida ao poder temporal, por S. Eminencia d. Jaime de Barros Carama, Arcebispo do Rio de Janeiro, representação redigida nos seguintes termos, transcrita no parecer já citado, do eminente dr. Proc. Geral da Republica:
 
 
"Em verdade, desde o nome adotado - Igreja Católica Apostólica Brasileira - até o culto o ritos, tudo é feito com o objetivo de mistificar e confundir. Assim, o próprio apóstata se apresenta como 'bispo do culto romano", usam - êle e seus ministros - as mesmas vestes e insignias do clero e bispo romanos, praticam os mesmos atos religiosos da Igreja de Roma, como sejam: batismos, crismas e casamentos, procissões, missas campais, bênçãos e lançamentos de pedras fundamentais, e em todos esses atos adotou os mesmos paramentos, e o mesmo cerimonial do nosso culto externo."
 
 
Daí resultou a providencia sugerida pelo Sr. Consultor Geral da Republica, o ilustre Prof. Haroldo Valladão, nos seguintes termos;
 
 
"Cabe, portanto, à autoridade civil, no exercicio do seu poder de policia, atendendo ao pedido que fôr feito pela autoridade competente da Igreja Catolica Apostolica Romana, e assegurando-lhe o livre exercicio do seu culto, impedir o desrespeito ou a perturbação do mesmo culto, através de manifestações externas, quais procissões, missas campais, cerimonias em edificios abertos ao publico, etc .... quando praticadas pela Igreja Catolica Apostolica Brasileira com as mesmas insignias, as mesmas vestes, enfim, o mesmo rito daquela."
 
 
Adotando a providencia sugerida neste parecer, sr. Presidente, parece-me que o poder civil, o poder temporal, infringiu, frontalmente, o principio basico de toda a política republicana, que é a liberdade de crença, da qual decorreu, como consequencia lógica e necessaria, a separação da Igreja e do Estado.
 
 
Reclamada essa separação pela liberdade de crença, dela resultou, necessariamente, a liberdade do exercicio de culto.
 
 
Devemos estes grandes principios à obra benemerita de Demétrio Ribeiro, de cujo projeto surgiu, em 7 de Janeiro de 1890, o sempre memoravel ato que separou, no Brasil, a Igreja do Estado.
 
 
É de se salientar, aliás, que a situação da Igreja Católica Apostólica Romana, separada do Estado, se tornou muito melhor. Cresceu ela, ganhou prestigio, graças à emancipação do regalismo que a subjugava durante o Império. Foi durante o Império que se proibiu a entrada de noviços nas ordens religiosas; foi durante o Imperio que se verificou a luta entre mações e católicos, de que resultou a deplorável prisão dos Bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira e D. Macedo Costa, bispos de Olinda e do Fará; foi durante o Império que prevaleceu a legislação de mão morta.
 
 
Com a Republica, o prestigio da Igreja Católica cresceu, como todos reconhecemos.
 
 
Deve-se, aliás, Sr. Presidente, atribuir, como glória da Igreja Católica Apostólica Romana, o ter-se ela batido pela separação da Igreja do Estado. O principio civil da separação da Igreja do Estado foi o principio que a Igreja Catolica defendeu nos seus começos, talvez contrariado na teocracia catolico-feudal da Idade Média. Mas não ha dúvida em que a separação da Igreja e do Estado, pela qual se bateu a propria Igreja Católica, e que é a base da politica republicana, só concorreu para que ela crescesse de prestigio.
 
 
O dec. de 7 do Janeiro de 1890, sr. Presidente, foi incorporado à Constituição, que sempre devemos lembrar com reverencia, de l891, no seu art. 72, § 3°, a que se deve ligar a disposição do. art. 11, n. 2°.
 
 
Estas disposições vieram da Constituição de 1891, através da reforma de 1926, das Constituições de 1934 e 1937, até a Constituição vigente que, no art. 31, II, estabelece:
 
 
"À União, aos Estados, ao Dist. Federal e aos Municipios é vedado:
 
 
.................................................................
 
 
II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraçar-1hes o exercicio."
 
 
Proibe, por conseguinte, a Constituição que o poder temporal embarace o exercicio de qualquer culto religioso. A este principio está ligado, por uma solidariedade necessaria e evidente, o preceito constante do art. 141, § 7°.'
 
 
Estes dois principios foram profundamente violados, data vênia o afirmo. No § 7° do art. 141 se dispõe:
 
 
"É inviolavel a liberdade de consciencia e de crença e assegurado o livre exercicio dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem publica ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade juridica na forma da lei civil".
 
 
Sustenta-se, sr. Presidente, que o culto religioso, exercido pelo requerente do mandado de segurança é - como admito que seja - rigorosamente igual ao culto professado pela Igreja Católica Apostólica Romana.
 
 
Que é o culto?
 
 
Nós diríamos, segundo nessa orientação positivista:
 
 
- O culto é o conjunto de praticas religiosas destinadas ao aperfeiçoamento dos sentimentos humanos.
 
 
Dirão os teologos e eu os sigo, neste momento:
 
 
- O culto é o complexo de ritos com que se honra Deus e se santificam os homens.
 
 
0 rito, esta parte da liturgia, com que os homens veneram Deus e os santos, é absolutamente livre no regime republicano. Não ha como o Estado intervir na determinação dos cultos, quaisquer que sejam eles, desde que não ofendam os bons costumes.
 
 
Não há como se falar, aqui, em ofensa dos bons costumes, porque o culto professado pela Igreja dissidente é o mesmo culto da Igreja Católica Apostolica_Romana. '
 
 
Pergunta-se: é lícito a uma igreja cismatica exercer o culto da Igreja Catolica Apostolica Romana?
 
 
A esta pergunta sómente poderão dar resposta os teologos, os canonistas.
 
 
Classificam eles os delitos contra a fé em tres especies: a apostasia, a heresia e o cisma.
 
 
No caso, trata-se precisamente de um cisma. Trata-se de um bispo que não quer aceitar o primado do pontifice romano.
 
 
O primado do pontifice romano baseia-se, de acordo com a doutrina da Igreja dominante, naquela própria monarquia estabelecida no Colegio dos Apostolos com o primado de S. Pedro. Este primado é o proprio primado do pontifice romano.
 
 
Mas, sr. Presidente, desde a fundação da Igreja Catolica Apostolica Romana existem os cismas, existem as dissidencias. Desde então começou a surgir este movimento em favor das igrejas nacionais que, no Século XVII, nos seus fins, mais crescia, dando lugar àquelas celebres liberdades galicanas, elaboradas, redigidas e preparadas pelo incomparavel Bossuet.
 
 
Desde os principios da Igreja o chamado galicanismo eclesiastico é conhecido. É sabida a tendência em que os graus inferiores da hierarquia catolica procuraram evitar a supremacia do pontifice romano.
 
 
Já no Século III surgiu a série de dissidencias com a rebelião de Novaciano, em 251.
 
 
Dissidencia celebre foi, no Seculo IX, o cisma de Focio, que deu lugar à separação da Igreja oriental da Igreja ocidental.
 
 
Mas não nos esqueçamos do proprio cisma, provocado, no Seculo XIV, pelos cardiais rebeldes, em que se elegeu o anti-Papa Clemente VII.
 
 
Assim, a Historia da Igreja está repleta dêsses cismas, está repleta desses delitos contra a fé. Trata-se, pois, de delito contra a fé, como o classificam os canonistas. No caso particular, trata-se de delito definido no cânone 1.325, § 2°, onde se define o cismático como aquele "qui subesse renuit Romano Pontifici aut cum membris Eclesiae ei subiectis communicare recusat.
 
 
É o que se dá, no presente momento. O ex-bispo de Maura, Dom Carlos Duarte Costa, não quer reconhecer o primado do Pontífice Romano, quer constituir uma Igreja Nacional, uma Igreja Católica Apostólica Brasileira com o mesmo culto católico. É-lhe lícito exercer esse culto, no exercicio da liberdade outorgada pela Constituição, no art. 141, § 7°, liberdade cuja perturbação é, de modo preciso, proibida pela Constituição, no art. 31, inciso II.
 
 
Trata-se, pois, de delito espiritual, podemos admitir. Como resolver um delito espiritual, um conflito espiritual, com a intervenção do poder temporal, do poder civil, que está separado da Igreja? Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das proprias Igrejas; não é licito que essas Igrejas recorram ao prestigio do poder temporal para resolver seus cismas, para dominar suas dissidências.
 
 
É êste principio fundamental da politica republicana, este principio da liberdade de crenças, que reclama a separação da Igreja do Estado e que importa, necessariamente na liberdade de exercicio do culto; é este principio que me parece, profundamente, atingido pela aprovação do parecer do eminente e meu ilustre colega de Faculdade, Prof. Haroldo Valladão.
 
 
Assim sendo, sr. Presidente, concedo o mandado."
 
 

Na quadra atual do nosso direito positivo, sobretudo da Constituição da República, de 1.988, não resta dúvida de que o voto vencido lançado à época é o que corresponde à vontade constitucional hodierna, não sendo de se imaginar a intervenção do poder estatal (secular) a coibir culto religioso, sob pretexto de violação da ordem pública ou em nome de um excesso de liberdade.

 
 

Interessante de nota os comentários feitos por PONTES DE MIRANDA acerca do leading case referido, verbis:

 
 
"Pontes de Miranda, apreciando a questão, revelou não ter compreendido a extensão e os limites da liberdade de culto, no caso mencionado. Assim, considerou "medievais os votos proferidos. Lutero, se ressuscitasse e pedisse mandado de segurança, não o teria obtido" (Comentários à Constituição de 1946, vol IV, 1953, p. 171). Referindo-se ao único voto divergente, do Ministro HAHNEMANN GUIMARÃES, citado, escreveu o mesmo comentarista: "Ainda há consciências livres e brasileiras, no país, para aplaudirem o voto, estritamente jurídico, do ilustre Ministro" (Comentários, vol IV, 1953, p. 173).
 
 

Guardadas as devidas proporções, o caso trazido no corpo do presente processo retrata a intervenção da Administração (UFMS), por sua direção e reitoria, na manifestação de crença de servidora a ela vinculada, chegando a abrir expediente administrativo voltado a punir a servidora por externar, por meio de citações de versículos bíblicos em documentos oficiais, sua fé.

 
 

Os processos administrativos instaurados contra a autora foram bem analisados pelo Eminente Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO, que identificou em suas conduções tanto a ausência de fundamentação nas portarias expedidas, como também que o real fundamento de suas instaurações foram as citações levadas a cabo pela autora em documentos que firmara, concluindo o voto dissidente que "se extrai que todos os fatos imputados nestes processos administrativos à autora são decorrentes exclusivamente da persistência da autora em exercer sua garantia fundamental de livre manifestação da sua crença - através daquela simples prática de transcrever um versículo bíblico quando expedida algum comunicado interno daquele UFMS - , deixando de acatar as ordens de sua chefia quanto a essa questão religiosa; tudo o mais é mero reflexo desse conflito interno, consistente nas ações da autora na busca de auxílio externo na sua luta contra a perseguição religiosa a que estava exposta, como as notícias à imprensa e representações a órgãos públicos como o Ministério Público e a OAB-MS."

 
 

Não tenho dúvidas em acompanhar o Eminente Desembargador quanto a essas averiguações extraídas dos fatos retratados nos autos.

 
 

Destarte, não tenho dúvida também em acompanhar o Eminente Desembargador Federal quanto às consequências dessas condutas administrativas no tocante à identificação de dano moral.

 
 

Com efeito, não se há de se avizinhar na situação retratada no presente feito mero dissabor, simples aborrecimento ou singela contrariedade de posições filosóficas. Em verdade a situação posta a julgamento demonstra que o fato extrapolou os umbrais da Universidade, chegando a conhecimento público (imprensa) e oficial (Ministério Público) e, ainda, em órgão de classe dos advogados (OAB-MS), tudo a demonstrar que o fato ultrapassou os limites do cotidiano, do rasteiro, do usual ou do previsível.

 
 

Nesse sentido, comungo do entendimento do Eminente Desembargador no sentido de que o entendimento de que mero aborrecimento não gera dano moral não se aplica ao caso concreto, pois, como bem pontuado no voto divergente "esse paradigma, no entanto, vem sendo progressivamente superado. Evidência disso são as hipóteses, que têm sido admitidas, dos danos morais sofridos pelas pessoas naturais impassíveis de detrimento anímico (como nascituros, etc), pelas pessoas jurídicas e demais entes ou grupos despersonalizados da coletividade. Em verdade, até mesmo para as pessoas naturais que sofrem e padecem de dor, tais elementos já vêm sendo deixados ao largo, sendo que o esquadrinhar dos danos morais tem tomado como parâmetro, na doutrina mais moderna, a violação aos direitos da personalidade. Nesse contexto, há de se examinar a existência de lesão relevante, ou ainda, a violação injusta e intolerável da conduta apontada no caso concreto."

 
 

Diante de tais fundamentos, não tenho dúvida em reconhecer à autora o direito à reparação de dano moral, pela reconhecida lesão a sua esfera de direitos e das consequências daí advindas.

 
 

Assim, à luz de tudo quanto fundamentado, pedindo vênia ao e. Relator, pelo meu voto dou provimento à apelação para o efeito de julgar procedente o pedido para afastar as sanções disciplinares aplicadas nos processos administrativos objeto da presente ação, bem como para condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).

 
 

Invertidos os ônus da sucumbência.

 
 

É como voto

DECLARAÇÃO DE VOTO

O Desembargador Federal Hélio Nogueira: A questão me parece sensível e complexa e, assim, fiz breve anotações sobre o tema, ao proferir o presente voto.

Inicialmente, peço vênia ao i. Relator, diante de todo o contexto que se apresenta nos autos, para deferir os benefícios da Justiça Gratuita à autora, tendo em vista o quadro financeiro ofertado, que lhe permite a benesse pretendida (renda menor que dois salários mínimos).

Quanto ao mérito, avaliando o que consta dos autos, não me parece, diante do princípio da unidade da Constituição, no sentido de que essa deve ser interpretada diante de sua globalidade, evitando antinomias, que seja possível observar, no caso, proselitismo religioso, vulneração ao estado laico brasileiro (art. 19, I da CF) e impessoalidade, pelo fato da parte autora usar expressões religiosas em documentos por ela elaborados, ainda que oficiais, da Universidade, já que as expressões bíblicas utilizadas eram breves e não comprometiam nem a compreensão nem a rapidez da leitura do texto, inserindo-se na liberdade de expressão não exagerada, não causando prejuízo de tal monta que pudesse dar azo à abertura de procedimento administrativo a seu desfavor.

Não há dúvida da laicidade do Estado brasileiro, mas não é possível olvidar que a CF, em diversas passagens faz menção à religiosidade, não importando, claro, qual a matriz da crença religiosa (cristã, budista, muçulmana etc.), pelo que devem os conceitos ser harmonizados. Assim, temos garantida na Carta a liberdade religiosa (art. 5º, VI da CF), a proibição de privação de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII da CF), a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII da 1º da CF), o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental (art. 210, §1º da CF), entre outros.

Desta feita, a aplicação de pena administrativa em funcionária pública, por expressar sua religião, afigura-se, ao meu ver, desproporcional, não sendo razoável à direção da Universidade fazê-lo por essa razão, sendo, nesse caso, segundo a doutrina mais moderna, o mérito do ato administrativo sindicável pelo Poder Judiciário, controlando, nessa senda, os atos administrativos não razoáveis ou inconstitucionais, como bem constou no voto divergente.

Não parece assim razoável a abertura de procedimento administrativo e aplicação de penalidade pelos fatos narrados, ainda mais num ambiente universitário, em que a tolerância e ausência de preconceito deveria prevalecer. Teria a Administração da Universidade a mesma conduta se a autora citasse, por exemplo, frases nos documentos, oriundas de Bob Marley ou de Che Guevara, por exemplo?

Somente não comungo, com a devida venia, da utilização do preâmbulo da CF, para fundamentar a licitude da conduta da autora, por entender não possuir esse preâmbulo valor normativo, definindo-se como mera intenção do constituinte e não imperativo à sociedade, tanto que o STF (ADI 2076, por seu Pleno, Rel. Min. Carlos Veloso), destacou que o preâmbulo aludido não constitui norma central nem que a menção a "Deus" detém força normativa.

De qualquer sorte, a não consideração do preâmbulo da Carta Maior não retira as conclusões desse voto, no sentido de, novamente pedindo todas as vênias ao e. Relator, acompanhar a divergência e julgar procedente a presente ação.

Quanto aos danos morais, entendo-os devidos, porém em valor inferior, considerando os parâmetros utilizados pela Turma de que participo para fixa-lo, evitando enriquecimento ilícito da vítima, e também porque um dos PAD´s a que respondeu a autora já se encerrou, pelo que entendo justo fixa-los em 20.000,00 (vinte mil reais).

Desta feita, acompanho a divergência para conceder os benefícios da gratuidade de Justiça, julgar procedente a ação, com redução de fundamento, e manter devidos os danos morais, reduzindo, porém, seu valor, nos termos supra.

É como voto.

 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001199-60.2012.4.03.6000

RELATOR: Gab. 05 - DES. FED. COTRIM GUIMARÃES

APELANTE: WALESKA MENDOZA

Advogado do(a) APELANTE: CLAUDINEI FORTUNATO DO PRADO - MT16020/O

APELADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

Advogado do(a) APELADO: LUIZA CONCI - MS4230

OUTROS PARTICIPANTES:

 

V O T O

O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator):

 

Inicialmente, cabe esclarecer que o benefício da justiça gratuita pode ser requerido a qualquer momento. Trata-se de entendimento consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça antes mesmo do advento do atual Código de Processo Civil, in verbis:

 

"AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. REQUERIMENTO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA CONCOMITANTE À INTERPOSIÇÃO DO RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. 1. É possível o requerimento da assistência judiciária gratuita a qualquer tempo no curso do processo. 2. O deferimento da gratuidade de justiça requerida concomitantemente à interposição do recurso especial não tem efeitos retroativos, motivo pela qual a parte recorrente não está dispensada de comprovar o preparo no momento da apresentação do apelo. 3. Agravo regimental desprovido. ..EMEN: (AGARESP 201502494134, JOÃO OTÁVIO DE NORONHA - TERCEIRA TURMA, DJE DATA:23/11/2015 ..DTPB:.)".

 

Além disso, o artigo 99, caput, do Código de Processo Civil de 2015 permite que se requeira o benefício da gratuidade de justiça em sede recursal. Ainda, está satisfeita a condição do respectivo §1º, na medida em que se trata da primeira manifestação nesta instância recursal, o que dispensa petição simples à parte.

 

A mera declaração de pobreza é, a princípio, suficiente para o deferimento do benefício pleiteado, a menos que conste nos autos algum elemento que demonstre possuir a parte condições de arcar com os custos do processo, sem privações para si e sua família, circunstância em que será necessário ao pretenso beneficiário comprovar o quanto alega.

 

Conforme o documento de fls. 739/740 (contracheque), o vencimento básico bruto da apelante é de R$ 3.458,74, para o mês de agosto de 2016.

 

Quanto aos gastos, cabe considerar, de antemão, que há muitos comprovantes relativos aos anos de 2016 e 2017, todavia, é difícil encontrar aqueles de um mesmo mês que englobem a totalidade dos gastos correntes. O único mês que permite fazê-lo é o de março/2016. Assim, é ele que balizará a análise da concessão do benefício em comento.

 

Em março/2016 foram estes os gastos correntes comprovados: (i) R$ 423,00 em aluguel (fl. 743); (ii) R$ 55,74 em luz elétrica (fl. 747); (iii) R$ 71,56 em serviço de água encanada (fl. 749); (iv) R$ 44,99 em telefonia celular (fl. 755); (v) R$ 130,31 em cartão de crédito (fl. 759); (vi) R$ 275,00 em serviço de condicionamento físico (fl. 770); (vii) R$ 300,00 em marmita mensal vegetariana. Somados, esses gastos totalizaram R$ 1.300,60.

 

Considerando que, segundo a própria apelante, a média de sua remuneração líquida é de R$ 2.920,00, sobraram, para o mês de março/2016, R$ 1.619,40, quase o dobro do salário mínimo no aludido ano, R$ 880,00.

 

Por conseguinte, indefiro o benefício de gratuidade de justiça, por estarem ausentes seus pressupostos.

 

No mérito, a sentença não merece reparos.

 

Inicialmente, convém ressaltar que o controle jurisdicional dos processos administrativos disciplinares se restringe aos princípios do contraditório, ampla defesa e do devido processo legal. Assim, é defeso a este Poder Judiciário adentrar o mérito administrativo das punições disciplinares, sob pena de ofensa ao artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, é entendimento pacífico da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

 

"ADMINISTRATIVO. POLICIAL MILITAR. EXCLUSÃO A BEM DA DISCIPLINA. PRETENSÃO DO REVOLVIMENTO DO CONJUNTO PROBATÓRIO DOS AUTOS. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. 1. O Recorrente, nas razões de seu recurso, pugna, em síntese, pela anulação do Conselho de Disciplina 078/2013, repisando o argumento de que não lhe foi oportunizada a reprodução simulada dos fatos, tal como requerido nos autos administrativos de origem, circunstância que culminou em violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 2. Sobre a questão o Tribunal de origem consignou que "resta claro que a prova técnica demonstrou que o disparo fatal foi um 'tiro encostado', o que, de fato, descaracteriza a legítima defesa, tornando inócua a reconstrução pretendida" (fl. 192, e-STJ). 3. "É firme o entendimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal e desse Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o mandado de segurança não é a via adequada para o exame da suficiência do conjunto fático-probatório constante do Processo Administrativo Disciplinar - PAD, a fim de verificar se o impetrante praticou ou não os atos que foram a ele imputados e que serviram de base para a imposição de penalidade administrativa, porquanto exige prova pré-constituída e inequívoca do direito líquido e certo invocado. O controle jurisdicional do PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e a legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a impedir a análise e valoração das provas constantes no processo disciplinar" (MS 16.121/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 25/02/2016, DJe 06/04/2016). 4. Recurso Ordinário não provido. ..EMEN:Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: ""A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Og Fernandes, Mauro Campbell Marques, Assusete Magalhães e Francisco Falcão (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator." (ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - 56023 2017.03.17021-8, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:14/11/2018 ..DTPB:.)". (Grifo nosso)

 

"ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. APLICAÇÃO DA PENA DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL. ATO DA CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO MINISTRO DE ESTADO CHEFE DA CONTROLADORIA-GERAL. ALEGAÇÕES DE NULIDADES NO PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE CULMINOU NA APLICAÇÃO DA PENALIDADE AFASTADA. PROCEDIMENTO REGULAR. 1. Hipótese em que se pretende a concessão da segurança para que se reconheça a ocorrência de nulidades no processo administrativo disciplinar que culminou na aplicação da pena de inidoneidade para contratar com a Administração Pública Federal. 2. O Ministro de Estado do Controle e da Transparência é autoridade responsável para determinar a instauração do feito disciplinar em epígrafe, em razão do disposto no art. 84, inciso VI, alínea "a", da Constituição da República combinado com os artigos 18, § 4º, da Lei n. 10.683/2003 e 2º, inciso I, e 4º, § 3º, do Decreto n. 5.480/2005. 3. A regularidade do processo administrativo disciplinar deve ser apreciada pelo Poder Judiciário sob o enfoque dos princípios da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório, sendo-lhe vedado incursionar no chamado mérito administrativo. 4. Nesse contexto, denota-se que o procedimento administrativo disciplinar não padece de vicissitude, pois, embora não exatamente da forma como desejava a impetrante, foi-lhe assegurado o direito ao exercício da ampla defesa e do contraditório, bem como observado o devido processo legal, sendo que a a aplicação da pena foi tomada com fundamento em uma série de provas levadas aos autos, inclusive nas defesas apresentadas pelas partes, as quais, no entender da autoridade administrativa, demonstraram suficientemente que a empresa impetrante utilizou-se de artifícios ilícitos no curso do Pregão Eletrônico n. 18, de 2006, do Ministério dos Transportes, tendo mantido tratativas com a empresa Brasília Soluções Inteligentes Ltda. com o objetivo de fraudar a licitude do certame. 5. Pelo confronto das provas trazidas aos autos, não se constata a inobservância dos aspectos relacionados à regularidade formal do processo disciplinar, que atendeu aos ditames legais. 6. Segurança denegada. ..EMEN:Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Assusete Magalhães e os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria, Napoleão Nunes Maia Filho e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Herman Benjamin. (MS - MANDADO DE SEGURANÇA - 20814 2014.00.32601-4, BENEDITO GONÇALVES, STJ - PRIMEIRA SEÇÃO, DJE DATA:20/03/2018 ..DTPB:.)". (Grifo nosso)

 

Além disso, principalmente as alegações de cerceamento de defesa e, portanto, de nulidade do PAD devem ser acompanhadas de efetiva demonstração de prejuízo, à luz do princípio pas de nullité sans grief, o qual orienta a sistemática da legislação processual brasileira, tanto cível quanto penal. Nesse sentido, é igualmente jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça:

 

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADMISSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE CURADOR AO SEMI-IMPUTÁVEL. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que o reconhecimento de nulidade exige a demonstração do prejuízo, à luz do art. 563 do Código de Processo Penal, segundo o princípio pas de nullité sans grief. 3.Na hipótese, com a renúncia do defensor e curador, foi constituído novo advogado pelo paciente, responsável pela interposição de mais de um recurso de apelação, embargos de declaração e recurso especial. Prejuízo à defesa não demonstrado. 4. Habeas corpus não conhecido. ..EMEN: (HC 201101705286, RIBEIRO DANTAS, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:14/06/2016 ..DTPB:.)".

"RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. LITISCONSÓRCIO. DEPOIMENTO PESSOAL. PARTE CONTRÁRIA. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 343 DO CPC/1973. ATUAL ART. 385 DO NCPC/2015. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NULIDADE AFASTADA. PAS DE NULLITÈ SANS GRIEF. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. 1. Nos termos do art. 343 do CPC/1973 (atual artigo 385 do NCPC/2015), o depoimento pessoal é um direito conferido ao adversário, seja autor ou réu. 2. Não cabe à parte requerer seu próprio depoimento, bem assim dos seus litisconsortes, que desfrutam de idêntica situação na relação processual. 3. O sistema das nulidades processuais é informado pela máxima "pas de nullité sans grief", segundo a qual não se decreta nulidade sem prejuízo 4. Recurso especial não provido. ..EMEN: (RESP 201102644743, RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, STJ - TERCEIRA TURMA, DJE DATA:07/06/2016 ..DTPB:.)".

 

Ocorre que toda a argumentação da autora, desde a petição inicial, sequer faz referência a eventuais ilegalidades cometidas nos Processos Administrativos Disciplinares nº 23104.006441-2010-32, 23104.008582-2010-90 e 23104.001993/2011-35. Na verdade, ela simplesmente os relaciona à narrativa de perseguição em tese empreendida por seu superior hierárquico.

 

Assim, ela não se desincumbiu do ônus probatório previsto no artigo 373, I, do Código de Processo Civil de 2015.

 

No mais, quanto às questões efetivamente discutidas nestes autos, cabe esclarecer os seguintes pontos.

 

É indiscutível que, desde a proclamação da república, no 15/11/1889, o Estado brasileiro passou a ser laico. Isto é, deixou de professar, em caráter oficial, determinada fé - em nosso caso, o catolicismo apostólico romano -, de maneira a garantir a liberdade religiosa individual de cada cidadão. Assim, por exemplo, a administração dos cemitérios e os registros da vida civil - nascimento, casamento e morte - passaram do âmbito da Igreja Católica para o Estado. Segundo julgamento do Supremo Tribunal Federal da ADI 4439/DF, relativa ao ensino religioso nas escolas públicas, a inviolabilidade de crença e a liberdade de culto pressupõem dupla atuação:

 

"ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS. CONTEÚDO CONFESSIONAL E MATRÍCULA FACULTATIVA. RESPEITO AO BINÔMIO LAICIDADE DO ESTADO/LIBERDADE RELIGIOSA. IGUALDADE DE ACESSO E TRATAMENTO A TODAS AS CONFISSÕES RELIGIOSAS. CONFORMIDADE COM ART. 210, §1°, DO TEXTO CONSTITUCIONAL. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 33, CAPUT E §§ 1º E 2º, DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL PROMULGADO PELO DECRETO 7.107/2010. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. A relação entre o Estado e as religiões, histórica, jurídica e culturalmente, é um dos mais importantes temas estruturais do Estado. A interpretação da Carta Magna brasileira, que, mantendo a nossa tradição republicana de ampla liberdade religiosa, consagrou a inviolabilidade de crença e cultos religiosos, deve ser realizada em sua dupla acepção: (a) proteger o indivíduo e as diversas confissões religiosas de quaisquer intervenções ou mandamentos estatais; (b) assegurar a laicidade do Estado, prevendo total liberdade de atuação estatal em relação aos dogmas e princípios religiosos. 2. A interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto são premissas básicas para a interpretação do ensino religioso de matrícula facultativa previsto na Constituição Federal, pois a matéria alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões. 3. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de ideias e pensamentos políticos, filosóficos, religiosos e da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo. (...) 7. Ação direta julgada improcedente, declarando-se a constitucionalidade dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11, § 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando-se a constitucionalidade do ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (ADI 4439, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-123 DIVULG 20-06-2018 PUBLIC 21-06-2018)". (Grifo nosso)

 

Além disso, o Conselho Nacional de Justiça, ao apreciar decisão administrativa do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - Procedimento de Controle Administrativo nº 000141880.2012.2.00.0000 e Pedido de Providências nº 000105848.2012.2.00.0000 -, decidiu que a presença de crucifixos nos recintos das cortes nacionais não atenta contra a liberdade religiosa, muito menos à laicidade do Estado brasileiro.

 

No entanto, o caso concreto em nada se assemelha aos precedentes acima referidos. A apelante fez referências expressas a Deus e à Bíblia Sagrada em documentos públicos oficiais da universidade, o que inevitavelmente ultrapassa o campo da simbologia e da liberdade de crença. A apelante acabou por inserir frases religiosas no contexto de produção de atos administrativos da pessoa jurídica de direito público em testilha, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Segundo definição de Celso Antônio Bandeira de Mello ("Curso de Direito Administrativo", 20ª edição, Editora Malheiros, 2005, página 358), define-se o ato administrativo como, in verbis:

 

"declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes - como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional".

 

Ora, se a produção de atos administrativos significa, no plano do Direito, a emissão de declarações do Estado, entendidos tanto a Administração Pública direta e indireta quanto os particulares em colaboração, e se o Estado é laico, é inadmissível que, no conteúdo desses mesmos atos, haja referências a tal ou qual crença religiosa, ainda que seja aquela hegemônica na sociedade brasileira.

 

Por conseguinte, agiu com o devido acerto o magistrado sentenciante, ao constatar que o que a apelante pretende, sob a escusa de liberdade religiosa, é valer-se de sua posição junto à burocracia estatal para explanar, fora do contexto da Administração Pública, explanar seu posicionamento religioso.

 

Ante o exposto, voto por negar provimento à apelação.

 

À luz do artigo 85, § 11, do Código de Processo Civil de 2015, majoro os honorários advocatícios para 11% (onze por cento), conforme as seguintes razões: (i) pouca complexidade jurídica; (ii) jurisprudências consolidadas.

 

É o voto.

 

COTRIM GUIMARÃES

Desembargador Federal

______________________________________________________________________

 

VOTO COMPLEMENTAR

 

O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator): Anoto, de início, que pedi vista para reanalisar os autos após as divergências lançadas, que formaram maioria em sentido contrário ao entendimento adotado no voto que eu apresentei na sessão do dia 02 de julho de 2019.

 

Feita a observação, com a devida vênia à douta maioria, ratifico integralmente o meu voto, no sentido de negar provimento ao recurso.

 

É como voto.

 

COTRIM GUIMARÃES

Desembargador Federal

Relator

 

 


E M E N T A

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA – AÇÃO ANULATÓRIA/CONDENATÓRIA – SERVIDOR PÚBLICO – LAICIDADE DO ESTADO X LIBERDADE RELIGIOSA – HERMENÊUTICA – HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – AMPLITUDE DO DIREITO DE EXPRESSÃO DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA – GARANTIA FUNDAMENTAL EXERCITAVEL NOS ÂMBITOS PRIVADO E PÚBLICO – PUNIÇÃO DISCIPLINAR POR CITAÇÃO DE VERSÍCULO BIBLICO EM COMUNICADOS INTERNOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL – AUSÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA QUE ADMITA TAL RESTRIÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DE CRENÇA – EXPRESSÃO QUE CONSTITUI DIREITO DA PERSONALIDADE E MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RAZOABILIDADE DO EXERCÍCIO E AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO INTERESSE PÚBLICO – AUSÊNCIA TAMBÉM DE PREVISÃO NORMATIVA PARA AS PUNIÇÕES – ANULAÇÃO DAS PUNIÇÕES DISCIPLINARES – DANOS MORAIS CABÍVEIS, NA SITUAÇÃO DE ABUSIVA, GRAVE E DURADOURA RESTRIÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL – APELAÇÃO PROVIDA.

I – Deferimento à autora dos benefícios da assistência judiciária gratuita, não havendo elementos para se infirmar, com segurança e razoabilidade, a declaração de pobreza firmada pela parte autora.

II – Ação objetivando reconhecimento da possibilidade da autora, servidora pública federal da UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, realizar citações de versículos bíblicos em correspondências internas da instituição, obstando punições disciplinares que lhe foram impostas e protegendo-a contra conduta de seus superiores qualificada como perseguição religiosa, bem como, postulando condenação da ré em indenização por danos morais. Reconvenção da UFMS postulando, a seu favor, indenização por danos morais à sua honra objetiva.

III – Caso em que a servidora foi proibida pelos superiores da UFMS para deixar de fazer citações de versículos bíblicos em suas correspondências internas da instituição, por considerada violação dos princípios da laicidade estatal, interesse público e impessoalidade da administração. Ante a resistência da servidora, fundada na sua garantia constitucional de liberdade de crença, foram instaurados 3 (três) processos administrativos disciplinares, com punições nos dois primeiros, estando o terceiro em tramitação quando do ajuizamento da ação.

IV – No nosso regime constitucional, nenhuma conduta (ação ou omissão) pública pode estar livre do exame de conformação com os valores fundamentais proclamados na Lei Suprema da Nação. O Poder Judiciário detém competência constitucional para proceder ao controle de constitucionalidade dos atos administrativos em geral.

V – A controvérsia objeto dos autos é significativamente profunda e sensível, pois, traz a debate um conflito entre, de um lado, alguns dos valores fundamentais de que todas as pessoas em nosso país são titulares - as garantias constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de consciência e de crença (Constituição Federal/1988, artigo 5º, incisos IV e VI) -, e, de outro lado, os princípios do interesse público e impessoalidade que devem reger todos os atos da Administração Pública na atuação de seus agentes / órgãos e o princípio da laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inciso I).

VI – A definição do modo pelo qual se deve proceder à aplicação dos valores expressos nas normas constitucionais em confronto impõe os recursos da hermenêutica constitucional, que tem por objeto a identificação dos enunciados normativos decorrentes nas normas (regras e princípios) constitucionais, num processo de concretização construtiva que passa pela análise das normas em sua interação com os fatos sobre os quais deve incidir, no contexto da realidade social em que se insere e sob o influxo dos valores e fins desta mesma sociedade.

VII – O princípio da laicidade do Estado e também os princípios constitucionais que regem a administração pública, devem ceder prevalência ante as garantias fundamentais da liberdade de crença e da liberdade de expressão, sendo estes são os valores constitucionais fundamentais que devem merecer a proteção jurisdicional na situação fática subjacente.

VIII – Examinando-se os valores em cogitação, é necessário registrar que a crença-fé-religião integra e forma a própria personalidade humana, sendo seu direito inalienável e irrenunciável, integrando o rol da Declaração Universal dos Direitos do Homem - DUDH, proclamada aos 10.12.1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, especificamente em seus artigos 18 e 19, personalidade cujo pleno exercício é garantido em todo e qualquer lugar (artigo 6º) e em condições isonômicas (artigo 7º). Sendo reconhecido no plano universal como um direito que integra a própria essência da pessoa humana, pode e deve ele ser exercido pela pessoa em qualquer lugar em que esteja, seja qual for a natureza dos ambientes em que esteja ou dos atos que pratique, porque constitui expressão da sua personalidade.

VIII-A – A liberdade de religião consignada como garantia fundamental no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, é exercida sob 3 (três) formas: (i) a liberdade de ter alguma crença, ou de passar a adotar outra fé, ou de deixar de ter qualquer religião, ou de descrer de tudo, ou de ser ateu ou agnóstico; (ii) a liberdade de culto; e (iii) a liberdade de associação religiosa; bem como, expressa-se sob 2 (duas) dimensões: (i) na vida privada; e (ii) na vida pública, correlacionando-se aqui com a liberdade de manifestação do pensamento (CF/88, art. 5º, inciso IV).

VIII-B – A liberdade da manifestação do pensamento é também consagrada pela Constituição Federal, no art. 5º, inciso IV. Informam esta garantia fundamental também o inciso IX do mesmo dispositivo (liberdade de expressão da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença) e o art. 220, caput e § 2º (liberdade de manifestação do pensamento livre de qualquer censura ou restrição).

IX – No sentido contraposto nos autos, registre-se que a laicidade estatal (CF/88, artigo 19, inciso I) impõe que o Estado não se imiscua com qualquer organização religiosa - não assuma qualquer feição confessional - e também se abstenha de favorecer ou desfavorecer qualquer tipo de crença em detrimento de outras, garantindo nas suas ações uma neutralidade e isonomia de tratamento a todas, respeitando a multiplicidade de valores no seio da sociedade democrática.

IX-A – A laicidade estatal de modo algum expressa o significado que a UFMS pretende atribuir ao citado princípio, qual seja, no sentido de que o Estado estivesse proibido de, no exercício de suas atividades, fazer qualquer referência a crenças. Tal posicionamento contraria os próprios princípios e fins da instituição estatal.

IX-B – O Estado é instituído pelo povo de um país e destina-se a assegurar os valores fundamentais prevalecentes dessa mesma coletividade, dentre os quais também os valores de fé, de crença, de religião, tanto que este valor se insere dentre as garantias fundamentais dos cidadãos em nosso país (CF/88, art. 5º, inciso VI). Não está o Estado de modo algum alheio às questões de consciência e crença que emanam da pluralidade existente no meio social; antes, conhece-as e objetiva a proteção do exercício de quaisquer delas por aqueles que escolhem segui-las como balizas valorativas de suas vidas.

IX-C – Sendo o Estado integrado e exercido por servidores selecionados dentre as pessoas dessa mesma coletividade, não há qualquer preceito fundamental que impeça tais pessoas de, no regular exercício de suas funções públicas, exercerem de forma concomitante e harmônica também a sua garantia fundamental de crença, do que decorre que não podem ser excluídos, das manifestações no âmbito público (estatal), os valores de crença que majoritariamente informam a sociedade brasileira, apenas devendo ser delimitado tal agir pelo dever de respeito e tolerância com a garantia de crença de todos os grupos sociais, inclusive os minoritários.

X – Do exposto, não se pode conceber a ocorrência de uma tão grave violação constitucional que fosse decorrente de uma mera manifestação da crença individual de qualquer servidor público, mesmo que exercida no âmbito do espaço público de suas atividades, quando respeitados certos limites, limites estes que se possam extrair exclusivamente dos demais comandos constitucionais, por serem de mesma natureza e grau hierárquico na estrutura normativa da nossa ordem jurídico-constitucional.

X-A – Diante destas ponderações e dos precedentes do C. STF, do CNJ e desta Corte Regional Federal, que a própria ordem constitucional emanada diretamente da Lei Maior pode nos fornecer, de uma maneira geral, os seguintes limites para a manifestação individual de consciência e de crença no âmbito do espaço público, conjuntamente considerados: (i) devem ser preservados os interesses do serviço público, evitando-se, assim, que de qualquer modo venham a ser afetados de maneira prejudicial; (ii) deve haver respeito aos direitos dos demais servidores e usuários do serviço público em geral, que não podem ser coagidos ou constrangidos a aquiescerem com a fé manifestada, sendo ressalvada a possibilidade de que, uma vez resguardado este pressuposto de conduta ética respeitosa e tolerante, os servidores visem o proselitismo, pois na verdade é da própria essência das crenças em geral tal prática de pregar os fundamentos de sua fé para conduzir outras pessoas a seguirem o mesmo caminho de fé que consideram o melhor para suas vidas; e (iii) deve ser observado o princípio constitucional da razoabilidade, para coibir eventuais atitudes abusivas, constrangedoras, que de alguma forma resultem em desvirtuamento dos fins do espaço público ou que resultem em induzimento forçado das pessoas a se submeterem a determinada crença.

XI – Desde que observados tais aspectos limitadores de ordem geral, não se entremostra qualquer impedimento de ordem constitucional que impeça a coexistência harmônica dos citados valores fundamentais. E, qualquer norma inferior, legal ou infralegal, ou qualquer conduta neste país (estatal ou particular), que disponha em sentido contrário importa em afronta à garantia constitucional, patenteando-se como ilegítima e devendo ser coartada pelos próprios poderes estatais, a quem incumbe, ultima ratio, a defesa destas mesmas garantias fundamentais dos cidadãos.

XII – Aplicando estes fundamentos à lide ora julgada, o exame atento dos autos mostra que, a despeito da previsão constitucional da liberdade de crença e de manifestação, bem como, a despeito da inexistência de qualquer expressa norma constitucional, e nem legal (ou mesmo infralegal), que traga linhas de regulamentação da conduta de servidores no serviço público à luz do debate constitucional mencionado, ou seja, a despeito da absoluta ausência de qualquer explícita regulamentação desse tema relativo à garantia fundamental, instaurou-se na UFMS, Câmpus de Corumbá, uma substancial e indevida restrição à liberdade de crença da servidora autora.

XIII – Registre-se também, que a prática tão perseguida pela alta direção da UFMS - inserir um versículo bíblico em correspondências internas da instituição de ensino - na verdade caracteriza uma clara manifestação histórica e cultural da sociedade brasileira, que nunca pode qualificar-se como violadora da laicidade estatal. Nesta condição de expressões essencialmente culturais, as citações bíblicas da servidora autora desta ação não podem qualificar-se como violadoras do princípio da laicidade estatal, pois não trazem em si qualquer conotação ou efeito de objetivamente constranger qualquer pessoa em sua liberdade religiosa. Foi exercida de maneira razoável, sem qualquer prejuízo ao serviço público e nem aos demais servidores, portanto, sem excesso dos limites gerais de conduta emanados da Lei Maior.

XIV – Anuladas todas as punições aplicadas nestes PAD’s à servidora, por absoluta falta de amparo legal e flagrantemente violadoras dos princípios constitucionais. Ordem para que sejam extirpadas de seus registros funcionais.

XV – Demonstrado o dano moral sofrido pela parte autora, decorrente da conduta ilícita da chefia e alta direção da UFMS, mostra-se devida a condenação da UFMS no montante pleiteado pela autora, valor este razoável, proporcional e adequado para a reparação dos profundos e extensos danos morais constatados. Incidem correção monetária e juros moratórios desde a data do dano, conforme Súmulas 54 e 362 do STJ, aplicados conforme critérios do Manual de Cálculos da Justiça Federal vigente à época da liquidação.

XVI – APELAÇÃO PROVIDA.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, Prosseguindo no julgamento, nos termos do artigo 942 do Código de Processo Civil, e após a apresentação do voto complementar do senhor Desembargador Federal relator, a Segunda Turma decidiu, por maioria, conceder à autora os benefícios da assistência judiciária, bem como dar provimento à apelação, para o fim de julgar a ação procedente, anulando as sanções disciplinares aplicadas nos processos administrativos, objeto da presente ação, condenando a ré UFMS ao pagamento de indenização por danos morais , no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), na data dos fatos, nos termos do voto do senhor Desembargador Federal Souza Ribeiro, acompanhado pelo voto do senhor Desembargador Federal Wilson Zauhy e pelo voto do senhor Desembargador Federal Hélio Nogueira , este em menor extensão no tocante ao valor arbitrado para a indenização; vencidos o senhor Desembargador Federal relator e o senhor Desembargador Federal Peixoto Junior, que lhe negava provimento. , nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.