APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001199-60.2012.4.03.6000
RELATOR: Gab. 05 - DES. FED. COTRIM GUIMARÃES
APELANTE: WALESKA MENDOZA
Advogado do(a) APELANTE: CLAUDINEI FORTUNATO DO PRADO - MT16020/O
APELADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
Advogado do(a) APELADO: LUIZA CONCI - MS4230
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001199-60.2012.4.03.6000 RELATOR: Gab. 05 - DES. FED. COTRIM GUIMARÃES APELANTE: WALESKA MENDOZA Advogado do(a) APELANTE: CLAUDINEI FORTUNATO DO PRADO - MT16020/O APELADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL Advogado do(a) APELADO: LUIZA CONCI - MS4230 OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator): Trata-se de ação ordinária ajuizada por WALESKA MENDONZA em face da FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL-FUFMS, em que pleiteia anulação de punição administrativa decorrente de constantes referências a Deus em comunicados oficiais da universidade, bem como indenização por danos morais. Às fls. 453/454, foi indeferido o pedido de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, por estarem ausentes seus pressupostos. O MM. Juízo a quo julgou improcedentes os pedidos, na medida em que, à luz do julgamento da ADI nº 2.076-5/AC, as referências a Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 não têm força normativa, e as manifestações da autora violam a laicidade do Estado brasileiro. A apelante aduz, em apertada síntese, que: (i) preliminarmente, requer a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça; (ii) no mérito, a sentença viola a liberdade de consciência e crença, conforme o artigo 5º, VI, da Constituição Federal de 1988; (iii) o direito à livre manifestação do pensamento é garantia essencial ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade da pessoa humana; (iv) a sentença também viola os preceitos de proporcionalidade e razoabilidade; (v) os danos morais constituem, no presente caso, modalidade in re ipsa, que dispensa demonstração; (vi) o provimento à apelação deve ser conjugado com a concessão de tutela antecipada. Com contrarrazões. É o relatório.
DECLARAÇÃO DE VOTO
DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ZAUHY:
O tema trazido no julgamento do presente feito toca com um dos pilares mais sensíveis dos direitos e garantias constitucionais, a liberdade de manifestação religiosa, dentro de um contexto que toca também com os chamados princípios da administração pública e, por fim, do sentido que se deva emprestar à noção de laicidade estatal.
Diante da dimensão do tema, caros colegas não poderia deixar de também expressar, em voto declarado, o posicionamento que assumo no caso concreto.
Como se verifica dos autos, a servidora lotada no Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS - Waleska Mendonza, viu-se punida, no âmbito administrativo, por fazer ela referência, em comunicados emitidos pela universidade, de versículos da Bíblia e, ainda, ter afixado em seu local de trabalho um quadro com o teor dos "10 mandamentos", somando-se a isso o fato de a servidora ter feito denúncias à imprensa, ao MPF e a OAB-MS acerca de perseguição religiosa, como que postulou em instância primeira o afastamento de punições impostas e de garantia de seu direito de manifestação religiosa, vindo o pleito, naquela mesma instância, sido negado ao fundamento de que as referências a Deus nas manifestações da autora violam a laicidade do Estado brasileiro, o princípio da isonomia e a supremacia do interesse público, dado que não poderia o particular expressar seu posicionamento religioso, concluindo pela possibilidade de a UFMS impedir qualquer manifestação nesse sentido.
Em grau de recurso a sentença restou integralmente mantida pelo Eminente Desembargador Relator COTRIM GUIMARÃES, acompanhado pelo Eminente Desembargador Federal PEIXOTO JÚNIOR.
Desse entendimento dissentiu o Eminente Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO, que agregou aos autos seu voto-vista, em que concedia à autora o benefício da assistência judiciária gratuita e dava provimento à apelação para o fim de julgar a ação procedente, anulando as sanções disciplinares aplicadas nos processos administrativos objeto da presente ação, bem como condenando a ré UFMS ao pagamento de indenização por danos morais no valor R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais); diante da votação não-unânime, o feito foi submetido à sistemática de julgamento do artigo 942, do CPC/2015.
Diante da importância do tema trazido a julgamento formulo a presente declaração de voto para, com a devida vênia aos Eminentes Desembargadores COTRIM GUIMARÃES e PEIXOTO JÚNIOR, aderir ao entendimento do Eminente Desembargador SOUZA RIBEIRO.
Sobre a garantia de liberdade de consciência e de crença e de sua expressão, a Constituição Federal estabelece nos incisos VI, VII e VIII, do artigo 5º, de seu texto, os seguintes enunciados:
Bem se vê que o Constituinte, já na fixação dos Princípios Fundamentais da Constituição Federal, preocupou-se com a garantia da liberdade e de expressão de crença, situando-os na estrutura fundante dos direitos e garantias individuais.
Acerca da laicidade do Estado brasileiro, há de se registrar um viés interpretativo por vezes desfocado, juridicamente, do verdadeio sentido desse termo na ordem constitucional brasileira.
Registro, para efeito de análise, o que contém o Preâmbulo da Carta Política e o artigo 19, inciso I, da Constituição Federal.
O Preâmbulo da Constituição Federal traz, em seu texto, a expressão "sob a proteção de Deus", como corolário à promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil:
É certo que a doutrina se divide acerca do valor e eficácia dos "preâmbulos", como anota JOSÉ AFONSO DA SILVA:
Prossegue JOSÉ AFONSO DA SILVA:
Entendo, de igual sorte, que o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil tem força normativa, quer por fixar os primados da instituição do Estado Democrático, quer por estabelecer as pautas e e objetivos dessa nova ordem jurídica, quer, por fim, por expressar a proteção de quem a antecede, os "representantes do provo brasileiro" (terrenos), "sob a proteção de Deus" (invocação divina).
Muito embora tenha havido objeções no momento da promulgação da Carta de 1.988 acerca da referência divina, o certo é que a referência aí feita permeia a ordem jurídica brasileira, na medida que torna claro que a expressão religiosa e as referências a ela feitas, ou em seu nome divulgadas, não podem ferir a ordem pública ou, em escala mais estreita, os princípios da Administração Pública.
Signficativo, nesse ponto, o registro feito por JOSÉ AFONSO DA SILVA acerca dos debates congressuais antecedentes à promulgação da Constituição.
Registra o Jurista:
Essa referência constitucional desautoriza, a priori, que se considere qualquer referência religiosa, mesmo em documentos oficiais, como contrário à laicidade estatal, até porque a Carta Política consagra, igualmente, referência expressa a Deus em seu Preâmbulo, sem que com isso se esteja a ferir os demais comandos constantes da Constituição que asseguram tanto a liberdade de consciência, como a liberdade de crença e a liberdade de expressão.
A questão posta no caso concreto, que toca com punição por manifestação, em documentos e em ambiente oficial (administrativamente falando), de signos e frases religiosas, não é nova nos Tribunais, sendo sempre oportuno trazer à lembrança o leading case submetido ao Supremo Tribunal Federal, sob a vigência da Constituição de 1.946, em que a Corte foi chamada a se pronunciar sobre os limites da intervenção do Estado na prática de cultos religiosos.
Nesse precedente histórico (MS 1.114/DF, Relator Ministro LAFAYETTE DE ANDRADA), cuidava-se da seguinte situação, assim identificada pelo Relator:
O que se extrai do relatório do caso concreto levado à Suprema Corte da época é que o Estado, por provacação da Igreja Católica Apostólica Romana, questionara, no âmbito do Ministério da Justiça, a atuação de Dom Carlos Duarte Costa, ex-bispo de Maura, na prátrica de culto de sua Igreja, então denominada Igreja Católica Apostólica Brasileira que, negando a autoridade papal romana, passou a realizar cultos públicos, valendo-se de vestes indumentárias, a juízo da Igreja Romana, semelhantes às dela.
Entendeu o poder estatal da época que a prática de culto pela Igreja Brasileira estaria a ferir a ordem pública, por praticar cultos e rituais semelhantes aos praticados pela Igreja Romana.
Significativo nesse debate, que envolveu expoentes juristas da época, a exemplo de PONTES DE MIRANDA, HAROLDO VALADÃO e sobretudo, dois dos Ministros no referido Mandado de Segurança, o Relator LAFAYETTE DE ANDRADA e o Ministro dissidente (único voto vencido) HAHNEMANN GUIMARÃES.
O Ministro Relator, não obstante tenha, ao fim, denegado o mandado de segurança, por entender não ser o meio próprio para o fim pretendido, avança no mérito do ato estatal, retratando, a meu juízo, sob a luz da atual ordem constitucional, visão essencialmente restritiva ao direito de liberdade de culto.
Já o voto dissidente traz luzes significativas ao que hoje se entende - e se consagrou no atual texto constitucional - acerca dos limites da atuação estatal nos cuidados com a prática de manifestação religiosa e de culto.
O entendimento da questão reclama que se transcrevam ambos os votos, para que se faça uma avaliação técnico-jurídica do quanto o tema é passível de desvios, à luz do real entendimento do que signifique liberdade de expressão e liberdade religiosa.
O voto do Ministro Relator LAFAYETTE DE ANDRADA foi assim expressado:
Chamam a atenção nesse precedente da Corte, afirmações como as que pontuam que "se o Poder Público, apreciando fatos, entender indispensável sua ação de polícia para impedir o excesso de liberdade, pode empregá-la em detrimento dos que usando dessas liberdades forem de encontro a tranquilidade, a ordem pública, perturbando os direitos de terceiros."
Bem se vê, do voto condutor do Relator LAFAYETTE, que ele dá agasalho a um segmeto religioso constituído em detrimento de outro segmento igualmente religioso e igualmente constituído, quebrando, a meu entender, a laicidade estatal.
O tema ganhou contornos mais claros de efetivo ingresso (indevido) do Estado na seara da livre manifestação de crença e culto no voto do Ministro HAHNEMANN GUIMARÃES:
Na quadra atual do nosso direito positivo, sobretudo da Constituição da República, de 1.988, não resta dúvida de que o voto vencido lançado à época é o que corresponde à vontade constitucional hodierna, não sendo de se imaginar a intervenção do poder estatal (secular) a coibir culto religioso, sob pretexto de violação da ordem pública ou em nome de um excesso de liberdade.
Interessante de nota os comentários feitos por PONTES DE MIRANDA acerca do leading case referido, verbis:
Guardadas as devidas proporções, o caso trazido no corpo do presente processo retrata a intervenção da Administração (UFMS), por sua direção e reitoria, na manifestação de crença de servidora a ela vinculada, chegando a abrir expediente administrativo voltado a punir a servidora por externar, por meio de citações de versículos bíblicos em documentos oficiais, sua fé.
Os processos administrativos instaurados contra a autora foram bem analisados pelo Eminente Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO, que identificou em suas conduções tanto a ausência de fundamentação nas portarias expedidas, como também que o real fundamento de suas instaurações foram as citações levadas a cabo pela autora em documentos que firmara, concluindo o voto dissidente que "se extrai que todos os fatos imputados nestes processos administrativos à autora são decorrentes exclusivamente da persistência da autora em exercer sua garantia fundamental de livre manifestação da sua crença - através daquela simples prática de transcrever um versículo bíblico quando expedida algum comunicado interno daquele UFMS - , deixando de acatar as ordens de sua chefia quanto a essa questão religiosa; tudo o mais é mero reflexo desse conflito interno, consistente nas ações da autora na busca de auxílio externo na sua luta contra a perseguição religiosa a que estava exposta, como as notícias à imprensa e representações a órgãos públicos como o Ministério Público e a OAB-MS."
Não tenho dúvidas em acompanhar o Eminente Desembargador quanto a essas averiguações extraídas dos fatos retratados nos autos.
Destarte, não tenho dúvida também em acompanhar o Eminente Desembargador Federal quanto às consequências dessas condutas administrativas no tocante à identificação de dano moral.
Com efeito, não se há de se avizinhar na situação retratada no presente feito mero dissabor, simples aborrecimento ou singela contrariedade de posições filosóficas. Em verdade a situação posta a julgamento demonstra que o fato extrapolou os umbrais da Universidade, chegando a conhecimento público (imprensa) e oficial (Ministério Público) e, ainda, em órgão de classe dos advogados (OAB-MS), tudo a demonstrar que o fato ultrapassou os limites do cotidiano, do rasteiro, do usual ou do previsível.
Nesse sentido, comungo do entendimento do Eminente Desembargador no sentido de que o entendimento de que mero aborrecimento não gera dano moral não se aplica ao caso concreto, pois, como bem pontuado no voto divergente "esse paradigma, no entanto, vem sendo progressivamente superado. Evidência disso são as hipóteses, que têm sido admitidas, dos danos morais sofridos pelas pessoas naturais impassíveis de detrimento anímico (como nascituros, etc), pelas pessoas jurídicas e demais entes ou grupos despersonalizados da coletividade. Em verdade, até mesmo para as pessoas naturais que sofrem e padecem de dor, tais elementos já vêm sendo deixados ao largo, sendo que o esquadrinhar dos danos morais tem tomado como parâmetro, na doutrina mais moderna, a violação aos direitos da personalidade. Nesse contexto, há de se examinar a existência de lesão relevante, ou ainda, a violação injusta e intolerável da conduta apontada no caso concreto."
Diante de tais fundamentos, não tenho dúvida em reconhecer à autora o direito à reparação de dano moral, pela reconhecida lesão a sua esfera de direitos e das consequências daí advindas.
Assim, à luz de tudo quanto fundamentado, pedindo vênia ao e. Relator, pelo meu voto dou provimento à apelação para o efeito de julgar procedente o pedido para afastar as sanções disciplinares aplicadas nos processos administrativos objeto da presente ação, bem como para condenar a ré ao pagamento de indenização por danos morais no valor R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
Invertidos os ônus da sucumbência.
É como voto
DECLARAÇÃO DE VOTO
O Desembargador Federal Hélio Nogueira: A questão me parece sensível e complexa e, assim, fiz breve anotações sobre o tema, ao proferir o presente voto.
Inicialmente, peço vênia ao i. Relator, diante de todo o contexto que se apresenta nos autos, para deferir os benefícios da Justiça Gratuita à autora, tendo em vista o quadro financeiro ofertado, que lhe permite a benesse pretendida (renda menor que dois salários mínimos).
Quanto ao mérito, avaliando o que consta dos autos, não me parece, diante do princípio da unidade da Constituição, no sentido de que essa deve ser interpretada diante de sua globalidade, evitando antinomias, que seja possível observar, no caso, proselitismo religioso, vulneração ao estado laico brasileiro (art. 19, I da CF) e impessoalidade, pelo fato da parte autora usar expressões religiosas em documentos por ela elaborados, ainda que oficiais, da Universidade, já que as expressões bíblicas utilizadas eram breves e não comprometiam nem a compreensão nem a rapidez da leitura do texto, inserindo-se na liberdade de expressão não exagerada, não causando prejuízo de tal monta que pudesse dar azo à abertura de procedimento administrativo a seu desfavor.
Não há dúvida da laicidade do Estado brasileiro, mas não é possível olvidar que a CF, em diversas passagens faz menção à religiosidade, não importando, claro, qual a matriz da crença religiosa (cristã, budista, muçulmana etc.), pelo que devem os conceitos ser harmonizados. Assim, temos garantida na Carta a liberdade religiosa (art. 5º, VI da CF), a proibição de privação de direitos por motivo de crença religiosa (art. 5º, VIII da CF), a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (art. 5º, VII da 1º da CF), o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental (art. 210, §1º da CF), entre outros.
Desta feita, a aplicação de pena administrativa em funcionária pública, por expressar sua religião, afigura-se, ao meu ver, desproporcional, não sendo razoável à direção da Universidade fazê-lo por essa razão, sendo, nesse caso, segundo a doutrina mais moderna, o mérito do ato administrativo sindicável pelo Poder Judiciário, controlando, nessa senda, os atos administrativos não razoáveis ou inconstitucionais, como bem constou no voto divergente.
Não parece assim razoável a abertura de procedimento administrativo e aplicação de penalidade pelos fatos narrados, ainda mais num ambiente universitário, em que a tolerância e ausência de preconceito deveria prevalecer. Teria a Administração da Universidade a mesma conduta se a autora citasse, por exemplo, frases nos documentos, oriundas de Bob Marley ou de Che Guevara, por exemplo?
Somente não comungo, com a devida venia, da utilização do preâmbulo da CF, para fundamentar a licitude da conduta da autora, por entender não possuir esse preâmbulo valor normativo, definindo-se como mera intenção do constituinte e não imperativo à sociedade, tanto que o STF (ADI 2076, por seu Pleno, Rel. Min. Carlos Veloso), destacou que o preâmbulo aludido não constitui norma central nem que a menção a "Deus" detém força normativa.
De qualquer sorte, a não consideração do preâmbulo da Carta Maior não retira as conclusões desse voto, no sentido de, novamente pedindo todas as vênias ao e. Relator, acompanhar a divergência e julgar procedente a presente ação.
Quanto aos danos morais, entendo-os devidos, porém em valor inferior, considerando os parâmetros utilizados pela Turma de que participo para fixa-lo, evitando enriquecimento ilícito da vítima, e também porque um dos PAD´s a que respondeu a autora já se encerrou, pelo que entendo justo fixa-los em 20.000,00 (vinte mil reais).
Desta feita, acompanho a divergência para conceder os benefícios da gratuidade de Justiça, julgar procedente a ação, com redução de fundamento, e manter devidos os danos morais, reduzindo, porém, seu valor, nos termos supra.
É como voto.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001199-60.2012.4.03.6000
RELATOR: Gab. 05 - DES. FED. COTRIM GUIMARÃES
APELANTE: WALESKA MENDOZA
Advogado do(a) APELANTE: CLAUDINEI FORTUNATO DO PRADO - MT16020/O
APELADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
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V O T O
O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator):
Inicialmente, cabe esclarecer que o benefício da justiça gratuita pode ser requerido a qualquer momento. Trata-se de entendimento consolidado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça antes mesmo do advento do atual Código de Processo Civil, in verbis:
"AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. REQUERIMENTO DE GRATUIDADE DE JUSTIÇA CONCOMITANTE À INTERPOSIÇÃO DO RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. 1. É possível o requerimento da assistência judiciária gratuita a qualquer tempo no curso do processo. 2. O deferimento da gratuidade de justiça requerida concomitantemente à interposição do recurso especial não tem efeitos retroativos, motivo pela qual a parte recorrente não está dispensada de comprovar o preparo no momento da apresentação do apelo. 3. Agravo regimental desprovido. ..EMEN: (AGARESP 201502494134, JOÃO OTÁVIO DE NORONHA - TERCEIRA TURMA, DJE DATA:23/11/2015 ..DTPB:.)".
Além disso, o artigo 99, caput, do Código de Processo Civil de 2015 permite que se requeira o benefício da gratuidade de justiça em sede recursal. Ainda, está satisfeita a condição do respectivo §1º, na medida em que se trata da primeira manifestação nesta instância recursal, o que dispensa petição simples à parte.
A mera declaração de pobreza é, a princípio, suficiente para o deferimento do benefício pleiteado, a menos que conste nos autos algum elemento que demonstre possuir a parte condições de arcar com os custos do processo, sem privações para si e sua família, circunstância em que será necessário ao pretenso beneficiário comprovar o quanto alega.
Conforme o documento de fls. 739/740 (contracheque), o vencimento básico bruto da apelante é de R$ 3.458,74, para o mês de agosto de 2016.
Quanto aos gastos, cabe considerar, de antemão, que há muitos comprovantes relativos aos anos de 2016 e 2017, todavia, é difícil encontrar aqueles de um mesmo mês que englobem a totalidade dos gastos correntes. O único mês que permite fazê-lo é o de março/2016. Assim, é ele que balizará a análise da concessão do benefício em comento.
Em março/2016 foram estes os gastos correntes comprovados: (i) R$ 423,00 em aluguel (fl. 743); (ii) R$ 55,74 em luz elétrica (fl. 747); (iii) R$ 71,56 em serviço de água encanada (fl. 749); (iv) R$ 44,99 em telefonia celular (fl. 755); (v) R$ 130,31 em cartão de crédito (fl. 759); (vi) R$ 275,00 em serviço de condicionamento físico (fl. 770); (vii) R$ 300,00 em marmita mensal vegetariana. Somados, esses gastos totalizaram R$ 1.300,60.
Considerando que, segundo a própria apelante, a média de sua remuneração líquida é de R$ 2.920,00, sobraram, para o mês de março/2016, R$ 1.619,40, quase o dobro do salário mínimo no aludido ano, R$ 880,00.
Por conseguinte, indefiro o benefício de gratuidade de justiça, por estarem ausentes seus pressupostos.
No mérito, a sentença não merece reparos.
Inicialmente, convém ressaltar que o controle jurisdicional dos processos administrativos disciplinares se restringe aos princípios do contraditório, ampla defesa e do devido processo legal. Assim, é defeso a este Poder Judiciário adentrar o mérito administrativo das punições disciplinares, sob pena de ofensa ao artigo 2º da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, é entendimento pacífico da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"ADMINISTRATIVO. POLICIAL MILITAR. EXCLUSÃO A BEM DA DISCIPLINA. PRETENSÃO DO REVOLVIMENTO DO CONJUNTO PROBATÓRIO DOS AUTOS. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. 1. O Recorrente, nas razões de seu recurso, pugna, em síntese, pela anulação do Conselho de Disciplina 078/2013, repisando o argumento de que não lhe foi oportunizada a reprodução simulada dos fatos, tal como requerido nos autos administrativos de origem, circunstância que culminou em violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. 2. Sobre a questão o Tribunal de origem consignou que "resta claro que a prova técnica demonstrou que o disparo fatal foi um 'tiro encostado', o que, de fato, descaracteriza a legítima defesa, tornando inócua a reconstrução pretendida" (fl. 192, e-STJ). 3. "É firme o entendimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal e desse Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o mandado de segurança não é a via adequada para o exame da suficiência do conjunto fático-probatório constante do Processo Administrativo Disciplinar - PAD, a fim de verificar se o impetrante praticou ou não os atos que foram a ele imputados e que serviram de base para a imposição de penalidade administrativa, porquanto exige prova pré-constituída e inequívoca do direito líquido e certo invocado. O controle jurisdicional do PAD restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e a legalidade do ato, à luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo-lhe defesa qualquer incursão no mérito administrativo, a impedir a análise e valoração das provas constantes no processo disciplinar" (MS 16.121/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 25/02/2016, DJe 06/04/2016). 4. Recurso Ordinário não provido. ..EMEN:Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça: ""A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Og Fernandes, Mauro Campbell Marques, Assusete Magalhães e Francisco Falcão (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator." (ROMS - RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA - 56023 2017.03.17021-8, HERMAN BENJAMIN, STJ - SEGUNDA TURMA, DJE DATA:14/11/2018 ..DTPB:.)". (Grifo nosso)
"ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. APLICAÇÃO DA PENA DE INIDONEIDADE PARA CONTRATAR COM A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL. ATO DA CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DO MINISTRO DE ESTADO CHEFE DA CONTROLADORIA-GERAL. ALEGAÇÕES DE NULIDADES NO PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE CULMINOU NA APLICAÇÃO DA PENALIDADE AFASTADA. PROCEDIMENTO REGULAR. 1. Hipótese em que se pretende a concessão da segurança para que se reconheça a ocorrência de nulidades no processo administrativo disciplinar que culminou na aplicação da pena de inidoneidade para contratar com a Administração Pública Federal. 2. O Ministro de Estado do Controle e da Transparência é autoridade responsável para determinar a instauração do feito disciplinar em epígrafe, em razão do disposto no art. 84, inciso VI, alínea "a", da Constituição da República combinado com os artigos 18, § 4º, da Lei n. 10.683/2003 e 2º, inciso I, e 4º, § 3º, do Decreto n. 5.480/2005. 3. A regularidade do processo administrativo disciplinar deve ser apreciada pelo Poder Judiciário sob o enfoque dos princípios da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório, sendo-lhe vedado incursionar no chamado mérito administrativo. 4. Nesse contexto, denota-se que o procedimento administrativo disciplinar não padece de vicissitude, pois, embora não exatamente da forma como desejava a impetrante, foi-lhe assegurado o direito ao exercício da ampla defesa e do contraditório, bem como observado o devido processo legal, sendo que a a aplicação da pena foi tomada com fundamento em uma série de provas levadas aos autos, inclusive nas defesas apresentadas pelas partes, as quais, no entender da autoridade administrativa, demonstraram suficientemente que a empresa impetrante utilizou-se de artifícios ilícitos no curso do Pregão Eletrônico n. 18, de 2006, do Ministério dos Transportes, tendo mantido tratativas com a empresa Brasília Soluções Inteligentes Ltda. com o objetivo de fraudar a licitude do certame. 5. Pelo confronto das provas trazidas aos autos, não se constata a inobservância dos aspectos relacionados à regularidade formal do processo disciplinar, que atendeu aos ditames legais. 6. Segurança denegada. ..EMEN:Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, denegar a segurança, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. A Sra. Ministra Assusete Magalhães e os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria, Napoleão Nunes Maia Filho e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Herman Benjamin. (MS - MANDADO DE SEGURANÇA - 20814 2014.00.32601-4, BENEDITO GONÇALVES, STJ - PRIMEIRA SEÇÃO, DJE DATA:20/03/2018 ..DTPB:.)". (Grifo nosso)
Além disso, principalmente as alegações de cerceamento de defesa e, portanto, de nulidade do PAD devem ser acompanhadas de efetiva demonstração de prejuízo, à luz do princípio pas de nullité sans grief, o qual orienta a sistemática da legislação processual brasileira, tanto cível quanto penal. Nesse sentido, é igualmente jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça:
"PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADMISSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE CURADOR AO SEMI-IMPUTÁVEL. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo do recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado. 2. A jurisprudência desta Corte Superior é firme no sentido de que o reconhecimento de nulidade exige a demonstração do prejuízo, à luz do art. 563 do Código de Processo Penal, segundo o princípio pas de nullité sans grief. 3.Na hipótese, com a renúncia do defensor e curador, foi constituído novo advogado pelo paciente, responsável pela interposição de mais de um recurso de apelação, embargos de declaração e recurso especial. Prejuízo à defesa não demonstrado. 4. Habeas corpus não conhecido. ..EMEN: (HC 201101705286, RIBEIRO DANTAS, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:14/06/2016 ..DTPB:.)".
"RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. LITISCONSÓRCIO. DEPOIMENTO PESSOAL. PARTE CONTRÁRIA. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 343 DO CPC/1973. ATUAL ART. 385 DO NCPC/2015. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NULIDADE AFASTADA. PAS DE NULLITÈ SANS GRIEF. PRINCÍPIO DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS. 1. Nos termos do art. 343 do CPC/1973 (atual artigo 385 do NCPC/2015), o depoimento pessoal é um direito conferido ao adversário, seja autor ou réu. 2. Não cabe à parte requerer seu próprio depoimento, bem assim dos seus litisconsortes, que desfrutam de idêntica situação na relação processual. 3. O sistema das nulidades processuais é informado pela máxima "pas de nullité sans grief", segundo a qual não se decreta nulidade sem prejuízo 4. Recurso especial não provido. ..EMEN: (RESP 201102644743, RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, STJ - TERCEIRA TURMA, DJE DATA:07/06/2016 ..DTPB:.)".
Ocorre que toda a argumentação da autora, desde a petição inicial, sequer faz referência a eventuais ilegalidades cometidas nos Processos Administrativos Disciplinares nº 23104.006441-2010-32, 23104.008582-2010-90 e 23104.001993/2011-35. Na verdade, ela simplesmente os relaciona à narrativa de perseguição em tese empreendida por seu superior hierárquico.
Assim, ela não se desincumbiu do ônus probatório previsto no artigo 373, I, do Código de Processo Civil de 2015.
No mais, quanto às questões efetivamente discutidas nestes autos, cabe esclarecer os seguintes pontos.
É indiscutível que, desde a proclamação da república, no 15/11/1889, o Estado brasileiro passou a ser laico. Isto é, deixou de professar, em caráter oficial, determinada fé - em nosso caso, o catolicismo apostólico romano -, de maneira a garantir a liberdade religiosa individual de cada cidadão. Assim, por exemplo, a administração dos cemitérios e os registros da vida civil - nascimento, casamento e morte - passaram do âmbito da Igreja Católica para o Estado. Segundo julgamento do Supremo Tribunal Federal da ADI 4439/DF, relativa ao ensino religioso nas escolas públicas, a inviolabilidade de crença e a liberdade de culto pressupõem dupla atuação:
"ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS. CONTEÚDO CONFESSIONAL E MATRÍCULA FACULTATIVA. RESPEITO AO BINÔMIO LAICIDADE DO ESTADO/LIBERDADE RELIGIOSA. IGUALDADE DE ACESSO E TRATAMENTO A TODAS AS CONFISSÕES RELIGIOSAS. CONFORMIDADE COM ART. 210, §1°, DO TEXTO CONSTITUCIONAL. CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 33, CAPUT E §§ 1º E 2º, DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL E DO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL PROMULGADO PELO DECRETO 7.107/2010. AÇÃO DIRETA JULGADA IMPROCEDENTE. 1. A relação entre o Estado e as religiões, histórica, jurídica e culturalmente, é um dos mais importantes temas estruturais do Estado. A interpretação da Carta Magna brasileira, que, mantendo a nossa tradição republicana de ampla liberdade religiosa, consagrou a inviolabilidade de crença e cultos religiosos, deve ser realizada em sua dupla acepção: (a) proteger o indivíduo e as diversas confissões religiosas de quaisquer intervenções ou mandamentos estatais; (b) assegurar a laicidade do Estado, prevendo total liberdade de atuação estatal em relação aos dogmas e princípios religiosos. 2. A interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto são premissas básicas para a interpretação do ensino religioso de matrícula facultativa previsto na Constituição Federal, pois a matéria alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões. 3. A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também as que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a Democracia somente existe baseada na consagração do pluralismo de ideias e pensamentos políticos, filosóficos, religiosos e da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo. (...) 7. Ação direta julgada improcedente, declarando-se a constitucionalidade dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11, § 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando-se a constitucionalidade do ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. (ADI 4439, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 27/09/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-123 DIVULG 20-06-2018 PUBLIC 21-06-2018)". (Grifo nosso)
Além disso, o Conselho Nacional de Justiça, ao apreciar decisão administrativa do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - Procedimento de Controle Administrativo nº 000141880.2012.2.00.0000 e Pedido de Providências nº 000105848.2012.2.00.0000 -, decidiu que a presença de crucifixos nos recintos das cortes nacionais não atenta contra a liberdade religiosa, muito menos à laicidade do Estado brasileiro.
No entanto, o caso concreto em nada se assemelha aos precedentes acima referidos. A apelante fez referências expressas a Deus e à Bíblia Sagrada em documentos públicos oficiais da universidade, o que inevitavelmente ultrapassa o campo da simbologia e da liberdade de crença. A apelante acabou por inserir frases religiosas no contexto de produção de atos administrativos da pessoa jurídica de direito público em testilha, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Segundo definição de Celso Antônio Bandeira de Mello ("Curso de Direito Administrativo", 20ª edição, Editora Malheiros, 2005, página 358), define-se o ato administrativo como, in verbis:
"declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes - como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional".
Ora, se a produção de atos administrativos significa, no plano do Direito, a emissão de declarações do Estado, entendidos tanto a Administração Pública direta e indireta quanto os particulares em colaboração, e se o Estado é laico, é inadmissível que, no conteúdo desses mesmos atos, haja referências a tal ou qual crença religiosa, ainda que seja aquela hegemônica na sociedade brasileira.
Por conseguinte, agiu com o devido acerto o magistrado sentenciante, ao constatar que o que a apelante pretende, sob a escusa de liberdade religiosa, é valer-se de sua posição junto à burocracia estatal para explanar, fora do contexto da Administração Pública, explanar seu posicionamento religioso.
Ante o exposto, voto por negar provimento à apelação.
À luz do artigo 85, § 11, do Código de Processo Civil de 2015, majoro os honorários advocatícios para 11% (onze por cento), conforme as seguintes razões: (i) pouca complexidade jurídica; (ii) jurisprudências consolidadas.
É o voto.
COTRIM GUIMARÃES
Desembargador Federal
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VOTO COMPLEMENTAR
O Exmo. Sr. Desembargador Federal COTRIM GUIMARÃES (Relator): Anoto, de início, que pedi vista para reanalisar os autos após as divergências lançadas, que formaram maioria em sentido contrário ao entendimento adotado no voto que eu apresentei na sessão do dia 02 de julho de 2019.
Feita a observação, com a devida vênia à douta maioria, ratifico integralmente o meu voto, no sentido de negar provimento ao recurso.
É como voto.
COTRIM GUIMARÃES
Desembargador Federal
Relator
E M E N T A
DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA – AÇÃO ANULATÓRIA/CONDENATÓRIA – SERVIDOR PÚBLICO – LAICIDADE DO ESTADO X LIBERDADE RELIGIOSA – HERMENÊUTICA – HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – AMPLITUDE DO DIREITO DE EXPRESSÃO DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA – GARANTIA FUNDAMENTAL EXERCITAVEL NOS ÂMBITOS PRIVADO E PÚBLICO – PUNIÇÃO DISCIPLINAR POR CITAÇÃO DE VERSÍCULO BIBLICO EM COMUNICADOS INTERNOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL – AUSÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA QUE ADMITA TAL RESTRIÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DE CRENÇA – EXPRESSÃO QUE CONSTITUI DIREITO DA PERSONALIDADE E MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RAZOABILIDADE DO EXERCÍCIO E AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO INTERESSE PÚBLICO – AUSÊNCIA TAMBÉM DE PREVISÃO NORMATIVA PARA AS PUNIÇÕES – ANULAÇÃO DAS PUNIÇÕES DISCIPLINARES – DANOS MORAIS CABÍVEIS, NA SITUAÇÃO DE ABUSIVA, GRAVE E DURADOURA RESTRIÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL – APELAÇÃO PROVIDA.
I – Deferimento à autora dos benefícios da assistência judiciária gratuita, não havendo elementos para se infirmar, com segurança e razoabilidade, a declaração de pobreza firmada pela parte autora.
II – Ação objetivando reconhecimento da possibilidade da autora, servidora pública federal da UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, realizar citações de versículos bíblicos em correspondências internas da instituição, obstando punições disciplinares que lhe foram impostas e protegendo-a contra conduta de seus superiores qualificada como perseguição religiosa, bem como, postulando condenação da ré em indenização por danos morais. Reconvenção da UFMS postulando, a seu favor, indenização por danos morais à sua honra objetiva.
III – Caso em que a servidora foi proibida pelos superiores da UFMS para deixar de fazer citações de versículos bíblicos em suas correspondências internas da instituição, por considerada violação dos princípios da laicidade estatal, interesse público e impessoalidade da administração. Ante a resistência da servidora, fundada na sua garantia constitucional de liberdade de crença, foram instaurados 3 (três) processos administrativos disciplinares, com punições nos dois primeiros, estando o terceiro em tramitação quando do ajuizamento da ação.
IV – No nosso regime constitucional, nenhuma conduta (ação ou omissão) pública pode estar livre do exame de conformação com os valores fundamentais proclamados na Lei Suprema da Nação. O Poder Judiciário detém competência constitucional para proceder ao controle de constitucionalidade dos atos administrativos em geral.
V – A controvérsia objeto dos autos é significativamente profunda e sensível, pois, traz a debate um conflito entre, de um lado, alguns dos valores fundamentais de que todas as pessoas em nosso país são titulares - as garantias constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de consciência e de crença (Constituição Federal/1988, artigo 5º, incisos IV e VI) -, e, de outro lado, os princípios do interesse público e impessoalidade que devem reger todos os atos da Administração Pública na atuação de seus agentes / órgãos e o princípio da laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inciso I).
VI – A definição do modo pelo qual se deve proceder à aplicação dos valores expressos nas normas constitucionais em confronto impõe os recursos da hermenêutica constitucional, que tem por objeto a identificação dos enunciados normativos decorrentes nas normas (regras e princípios) constitucionais, num processo de concretização construtiva que passa pela análise das normas em sua interação com os fatos sobre os quais deve incidir, no contexto da realidade social em que se insere e sob o influxo dos valores e fins desta mesma sociedade.
VII – O princípio da laicidade do Estado e também os princípios constitucionais que regem a administração pública, devem ceder prevalência ante as garantias fundamentais da liberdade de crença e da liberdade de expressão, sendo estes são os valores constitucionais fundamentais que devem merecer a proteção jurisdicional na situação fática subjacente.
VIII – Examinando-se os valores em cogitação, é necessário registrar que a crença-fé-religião integra e forma a própria personalidade humana, sendo seu direito inalienável e irrenunciável, integrando o rol da Declaração Universal dos Direitos do Homem - DUDH, proclamada aos 10.12.1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, especificamente em seus artigos 18 e 19, personalidade cujo pleno exercício é garantido em todo e qualquer lugar (artigo 6º) e em condições isonômicas (artigo 7º). Sendo reconhecido no plano universal como um direito que integra a própria essência da pessoa humana, pode e deve ele ser exercido pela pessoa em qualquer lugar em que esteja, seja qual for a natureza dos ambientes em que esteja ou dos atos que pratique, porque constitui expressão da sua personalidade.
VIII-A – A liberdade de religião consignada como garantia fundamental no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, é exercida sob 3 (três) formas: (i) a liberdade de ter alguma crença, ou de passar a adotar outra fé, ou de deixar de ter qualquer religião, ou de descrer de tudo, ou de ser ateu ou agnóstico; (ii) a liberdade de culto; e (iii) a liberdade de associação religiosa; bem como, expressa-se sob 2 (duas) dimensões: (i) na vida privada; e (ii) na vida pública, correlacionando-se aqui com a liberdade de manifestação do pensamento (CF/88, art. 5º, inciso IV).
VIII-B – A liberdade da manifestação do pensamento é também consagrada pela Constituição Federal, no art. 5º, inciso IV. Informam esta garantia fundamental também o inciso IX do mesmo dispositivo (liberdade de expressão da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença) e o art. 220, caput e § 2º (liberdade de manifestação do pensamento livre de qualquer censura ou restrição).
IX – No sentido contraposto nos autos, registre-se que a laicidade estatal (CF/88, artigo 19, inciso I) impõe que o Estado não se imiscua com qualquer organização religiosa - não assuma qualquer feição confessional - e também se abstenha de favorecer ou desfavorecer qualquer tipo de crença em detrimento de outras, garantindo nas suas ações uma neutralidade e isonomia de tratamento a todas, respeitando a multiplicidade de valores no seio da sociedade democrática.
IX-A – A laicidade estatal de modo algum expressa o significado que a UFMS pretende atribuir ao citado princípio, qual seja, no sentido de que o Estado estivesse proibido de, no exercício de suas atividades, fazer qualquer referência a crenças. Tal posicionamento contraria os próprios princípios e fins da instituição estatal.
IX-B – O Estado é instituído pelo povo de um país e destina-se a assegurar os valores fundamentais prevalecentes dessa mesma coletividade, dentre os quais também os valores de fé, de crença, de religião, tanto que este valor se insere dentre as garantias fundamentais dos cidadãos em nosso país (CF/88, art. 5º, inciso VI). Não está o Estado de modo algum alheio às questões de consciência e crença que emanam da pluralidade existente no meio social; antes, conhece-as e objetiva a proteção do exercício de quaisquer delas por aqueles que escolhem segui-las como balizas valorativas de suas vidas.
IX-C – Sendo o Estado integrado e exercido por servidores selecionados dentre as pessoas dessa mesma coletividade, não há qualquer preceito fundamental que impeça tais pessoas de, no regular exercício de suas funções públicas, exercerem de forma concomitante e harmônica também a sua garantia fundamental de crença, do que decorre que não podem ser excluídos, das manifestações no âmbito público (estatal), os valores de crença que majoritariamente informam a sociedade brasileira, apenas devendo ser delimitado tal agir pelo dever de respeito e tolerância com a garantia de crença de todos os grupos sociais, inclusive os minoritários.
X – Do exposto, não se pode conceber a ocorrência de uma tão grave violação constitucional que fosse decorrente de uma mera manifestação da crença individual de qualquer servidor público, mesmo que exercida no âmbito do espaço público de suas atividades, quando respeitados certos limites, limites estes que se possam extrair exclusivamente dos demais comandos constitucionais, por serem de mesma natureza e grau hierárquico na estrutura normativa da nossa ordem jurídico-constitucional.
X-A – Diante destas ponderações e dos precedentes do C. STF, do CNJ e desta Corte Regional Federal, que a própria ordem constitucional emanada diretamente da Lei Maior pode nos fornecer, de uma maneira geral, os seguintes limites para a manifestação individual de consciência e de crença no âmbito do espaço público, conjuntamente considerados: (i) devem ser preservados os interesses do serviço público, evitando-se, assim, que de qualquer modo venham a ser afetados de maneira prejudicial; (ii) deve haver respeito aos direitos dos demais servidores e usuários do serviço público em geral, que não podem ser coagidos ou constrangidos a aquiescerem com a fé manifestada, sendo ressalvada a possibilidade de que, uma vez resguardado este pressuposto de conduta ética respeitosa e tolerante, os servidores visem o proselitismo, pois na verdade é da própria essência das crenças em geral tal prática de pregar os fundamentos de sua fé para conduzir outras pessoas a seguirem o mesmo caminho de fé que consideram o melhor para suas vidas; e (iii) deve ser observado o princípio constitucional da razoabilidade, para coibir eventuais atitudes abusivas, constrangedoras, que de alguma forma resultem em desvirtuamento dos fins do espaço público ou que resultem em induzimento forçado das pessoas a se submeterem a determinada crença.
XI – Desde que observados tais aspectos limitadores de ordem geral, não se entremostra qualquer impedimento de ordem constitucional que impeça a coexistência harmônica dos citados valores fundamentais. E, qualquer norma inferior, legal ou infralegal, ou qualquer conduta neste país (estatal ou particular), que disponha em sentido contrário importa em afronta à garantia constitucional, patenteando-se como ilegítima e devendo ser coartada pelos próprios poderes estatais, a quem incumbe, ultima ratio, a defesa destas mesmas garantias fundamentais dos cidadãos.
XII – Aplicando estes fundamentos à lide ora julgada, o exame atento dos autos mostra que, a despeito da previsão constitucional da liberdade de crença e de manifestação, bem como, a despeito da inexistência de qualquer expressa norma constitucional, e nem legal (ou mesmo infralegal), que traga linhas de regulamentação da conduta de servidores no serviço público à luz do debate constitucional mencionado, ou seja, a despeito da absoluta ausência de qualquer explícita regulamentação desse tema relativo à garantia fundamental, instaurou-se na UFMS, Câmpus de Corumbá, uma substancial e indevida restrição à liberdade de crença da servidora autora.
XIII – Registre-se também, que a prática tão perseguida pela alta direção da UFMS - inserir um versículo bíblico em correspondências internas da instituição de ensino - na verdade caracteriza uma clara manifestação histórica e cultural da sociedade brasileira, que nunca pode qualificar-se como violadora da laicidade estatal. Nesta condição de expressões essencialmente culturais, as citações bíblicas da servidora autora desta ação não podem qualificar-se como violadoras do princípio da laicidade estatal, pois não trazem em si qualquer conotação ou efeito de objetivamente constranger qualquer pessoa em sua liberdade religiosa. Foi exercida de maneira razoável, sem qualquer prejuízo ao serviço público e nem aos demais servidores, portanto, sem excesso dos limites gerais de conduta emanados da Lei Maior.
XIV – Anuladas todas as punições aplicadas nestes PAD’s à servidora, por absoluta falta de amparo legal e flagrantemente violadoras dos princípios constitucionais. Ordem para que sejam extirpadas de seus registros funcionais.
XV – Demonstrado o dano moral sofrido pela parte autora, decorrente da conduta ilícita da chefia e alta direção da UFMS, mostra-se devida a condenação da UFMS no montante pleiteado pela autora, valor este razoável, proporcional e adequado para a reparação dos profundos e extensos danos morais constatados. Incidem correção monetária e juros moratórios desde a data do dano, conforme Súmulas 54 e 362 do STJ, aplicados conforme critérios do Manual de Cálculos da Justiça Federal vigente à época da liquidação.
XVI – APELAÇÃO PROVIDA.