DIÁRIO ELETRÔNICO DA JUSTIÇA FEDERAL DA 3ª REGIÃO
Edição nº 71/2013 - São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2013
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃOPUBLICAÇÕES JUDICIAIS I – TRF
Secretaria da Presidência
Expediente Processual 21778/2013 SUSPENSÃO DE LIMINAR OU ANTECIPAÇÃO DE TUTELA Nº 0008493-87.2013.4.03.0000/MS
DECISÃO Trata-se de pedido de suspensão de liminar apresentado pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI e pela Comunidade Indígena TEY'IKUE contra a decisão proferida pela MMª. Juíza Federal da 1ª Vara de Dourados/MS que, nos autos da ação de reintegração de posse nº 0000646-70.2013.4.03.6002, determinou, em favor de Orlandino Carneiro Gonçalves e de Neuza de Souza Gonçalves a retirada, em 10 (dez) dias, dos indígenas presentes na "Fazenda Santa Helena", bem como a "exumação e traslado do corpo do jovem indígena sepultado na fazenda" (fls. 219), sob pena de aplicação de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais) à FUNAI e de R$ 10.000,00 (dez mil reais) à Comunidade Indígena Tey'ikue, em caso de descumprimento, além da aplicação de multa e responsabilização do servidor que desrespeitar a determinação. Sustentam que Orlandino Carneiro Gonçalves e Neuza de Souza Gonçalves ajuizaram ação de reintegração de posse, "ao argumento de que são legítimos possuidores dos imóveis rurais matriculados sob os números 2.522 e 12.531 do Cartório de Registro de Imóveis de Caarapó-MS" (fls. 3) e que, segundo estes relataram, "na noite do dia 17.2.2013 ocorreu um incidente na propriedade envolvendo um indígena que veio a óbito e, diante destes fatos, os indígenas invadiram a propriedade mencionada" (fls. 3). Aduzem que "o imóvel cuja reintegração de posse é vindicada nos autos está inserido no GT Dourados-Amambaípegua" (fls. 4), e que "a gravidade da situação impõe o manejo deste pedido de suspensão de liminar" (fls. 6), uma vez que "a reintegração atinge área objeto de demarcação" (fls. 6). Explicam que o episódio que resultou na morte do adolescente indígena com disparos de arma de fogo "causou revolta entre os índios e a resolução de retomada das terras para a Comunidade Indígena" (fls. 9). Asseveram que o acontecimento em questão "não invalida a retomada empreendida pelos indígenas, pois se é certo que foi deflagrada por este triste acontecimento, também é verdade que as terras em questão pertencem aos Índios desde muito antes de sua aquisição pelos requerentes" (fls. 10), aduzindo que as terras indígenas são "imprescritíveis e inalienáveis e, exatamente por isso, seus eventuais registros ou matrículas não podem gerar efeitos válidos" (fls. 10). Entendem que "a retirada de todos os índios da área, além da exumação e remoção do corpo do índio morto e enterrado naquelas terras, ofenderá seriamente o sentimento de respeito aos mortos dos índios, açulando ainda mais a comunidade indígena, já revoltada com o assassinato de um dos seus e agora seriamente indignada com o sentimento de injustiça que salta da sensação de impunidade" (fls. 12). No tocante aos requisitos para a concessão da suspensão, entendem haver grave risco ao interesse público, à ordem e à segurança pública. Sustentam que "o sentimento de revolta, respeito à vida, justiça e indignação dos índios pelo homicídio praticado pelo autor dos fatos contra um jovem índio daquela comunidade não pode ser interpretado pelo Poder Judiciário como uma simples manifestação de autotutela" (fls. 14). Alegam que "Após a comunicação da decisão liminar à comunidade indígena, eles se mobilizaram e na data de hoje há mais de DOIS MIL ÍNDIOS GUARANIS-KAIOWÁS GUERREIROS, prontos para resistir até a morte à desocupação das terras e à concretização da exumação do corpo do jovem" (fls. 14), sendo que mais índios ainda estariam sendo mobilizados. Aduzem, ainda, haver impossibilidade técnica de exumação do corpo do jovem, tendo em vista que "não há sequer um servidor habilitado nos quadros da FUNAI para o cumprimento desta decisão, pois este serviço foge inteiramente às atribuições da Fundação" (fls. 17). Ressaltam que a realização da exumação pela FUNAI significaria "contrariar sua finalidade institucional e inviabilizar totalmente a sua interlocução com os índios no estado de Mato Grosso do Sul, colocando em risco sua atuação." (fls. 18). É o breve relatório. Preliminarmente, entendo que a Comunidade Indígena TEY'IKUE não pode integrar o pólo ativo da presente medida. Embora seja parte na ação originária, referida entidade não se encontra entre os legitimados do art. 4º da Lei nº 8.437/92, não dispondo de poderes para inaugurar incidente de suspensão de decisão judicial. Por esta razão, apenas a Fundação Nacional do Índio - FUNAI deverá prosseguir no pólo ativo deste incidente. Quanto ao pedido de suspensão ora formulado, passo ao exame. Conforme os elementos trazidos aos autos e segundo amplamente noticiado pela imprensa - destaco, a título de exemplo, as matérias Índios invadem fazenda após morte de adolescente em MS, Folha de S. Paulo, 21/02/2013; Índios se mobilizam para resistir a despejo em Mato Grosso do Sul, O Globo, 13/04/13 (fls. 228/230); PF investiga denúncias contra fazendeiro acusado de matar jovem indígena em Caarapó, MS Record, 03/04/13; Adolescente indígena é morto Mato Grosso do Sul, Exame.com, 19/02/13 -, o incidente ocorrido na área que resultou na morte de um adolescente indígena causou grande comoção na comunidade indígena da região. Após o fato, seguiu-se a ocupação da Fazenda, e o deslocamento de uma expressiva quantidade de índios para o local. Ainda que seja difícil precisar o número exato, o certo é que as diferentes fontes apontam ter havido uma grande mobilização de indígenas na área, imbuídos de fortes sentimentos de revolta, tanto pela situação social precária a que foram expostos, como em razão dos acontecimentos recentes. Da mesma forma, não há como olvidar que a exumação do corpo do jovem índio falecido provavelmente causaria grande indignação na comunidade, possivelmente acirrando ainda mais a tensão existente, tendo em vista que o ato poderia ser visto como um desrespeito aos hábitos culturais dos indígenas e a seus rituais religiosos. Outrossim, nos termos da Portaria nº 267 (fls. 185), da Presidência da FUNAI (DOU de 20/03/13), retificada de acordo com o publicado no DOU de 01/04/13 (fls. 187), observa-se que foi constituído Grupo Técnico para fins de demarcação de área na qual se situa a Fazenda ocupada, no Município de Caarapó, existindo a previsão de que as conclusões decorrentes do estudo serão entregues com brevidade (fls. 183/187), o que recomenda não se adotem medidas de remoção dos indígenas até que seja ultimado o processo administrativo de demarcação da área. Vale lembrar, ainda, que o art. 19, §2º, da Lei nº 6.001/73 veda a concessão de interdito possessório em terras objeto de demarcação. Anoto que o fato de a ocupação da Fazenda ter sido desencadeada diante de um cenário de revolta com o incidente que retirou a vida de um indígena não significa que não tenha existido ocupação tradicional indígena em momento anterior. Isto porque não são raros os casos nos quais o indígena é contrário à ocupação de seu território, mas ainda assim deixa de reclamá-lo apenas para evitar uma situação de conflito com os não índios. A respeito: "A estratégia dos índios era, inicialmente, procurar as aldeias mais próximas para aí se alojar. Mas 'quando o fazendeiro aperta então procura a onde, pra pode fixa, acha lugar melhor' (21:9), Neste caso, a solução possível, acaba sendo o engajamento como mão-de-obra nas fazendas da região. (...) Quero destacar, em todo esse processo de esparramo e atropelo das aldeias, a reação dos Kaiowá/Guarani. Confirma-se, ao que parece, sua 'índole dócil e pacífica' frente à violência dos novos colonizadores. Apesar dos registros em contrário, que devem ser atribuídos muito mais à violência inerente ao próprio processo de disputa da terra pelo colonizador, os Kaiowá/Guarani têm evitado a violência física e os confrontos armados. A violência física não fazia parte da sua estratégia frente ao avanço dos 'nossos contrários'." (BRAND, Antônio O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra. 1997. 382f. Tese (Doutorado em História) - PUC/RS, Porto Alegre, grifos meus). Necessário, assim, mais uma vez, que seja identificado pelo grupo técnico o que ocorreu historicamente na região. Dessa forma, é palmar o preeenchimento dos requisitos do art. 4º da Lei nº 8.437/92. Há inequívoco e grave risco à segurança pública e à ordem - entendida como o risco de distúrbio à organização normal da sociedade civil, bem como à paz pública -, tendo em vista que o comando de desocupação poderá resultar em séria situação de hostilidade aos indígenas - estes em grande número e com decidido espírito de resistência - com chances de colocar em risco a vida e a incolumidade física dos envolvidos. Além disso, é inegável o interesse social relevante que permeia as questões indígenas, com antigas raízes históricas, e cuja magnitude fez até mesmo com que o constituinte originário dedicasse capítulo específico na Constituição Federal à sua regulação. Ante o exposto, determino que seja excluída do pólo ativo do presente incidente a Comunidade Indígena Tey Ikue, e defiro o pedido de suspensão da liminar concedida pela MMª. Juíza Federal da 1ª Vara de Dourados/MS nos autos da ação de reintegração de posse nº 0000646-70.2013.4.03.6002. Decorrido in albis o prazo recursal, promova-se a respectiva baixa. Comunique-se com urgência. Int. Anote-se. Certifique-se. Dê-se ciência ao MPF.
São Paulo, 17 de abril de 2013.
Newton De Lucca
Presidente |