Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 25/07/2012
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0005640-07.2004.4.03.6181/SP
2004.61.81.005640-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANTONIO CEDENHO
APELANTE : FRANCISCO LUIZ DO NASCIMENTO
ADVOGADO : ERICO LIMA DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
: ANNE ELISABETH NUNES DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
APELADO : Justica Publica

EMENTA

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. PECULATO-FURTO. ART. 312, § 1º, CP. DOIS CARTUCHOS DE TINTA PARA IMPRESSORA. VALOR TOTAL DE R$ 60,00 (SESSENTA REAIS). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. RECURSO DO RÉU PROVIDO.
1. O réu, na qualidade de funcionário de empresa terceirizada contratada para prestar serviços de limpeza para a Justiça Federal da Subseção de São Paulo/SP, é equiparado a funcionário público, nos termos do artigo 327, § 1º, do Código Penal.
2. Ainda que a porta do almoxarifado, localizado no 1º subsolo do prédio, tenha sido arrombada pelo acusado com uma chave de fenda, o acesso a tal local somente se deu em razão da facilidade proporcionada pela função por ele exercida, já que o subsolo do prédio do Fórum Criminal da Justiça Federal da Subseção de São Paulo/SP não é de acesso ao público em geral, configurando, assim, o crime de peculato-furto, previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal. Diferentemente do delito de peculato-apropriação (art. 312, "caput", CP), o crime de peculato-furto não exige que o funcionário já tenha a posse do bem, bastando que se aproveite, para a sua subtração, da facilidade proporcionada pelo trânsito que mantém naquele órgão público.
3. O princípio da insignificância estabelece que o Direito Penal, pela adequação típica do fato à norma incriminadora, somente intervenha nos casos de lesão de certa gravidade, atestando a atipicidade penal nas hipóteses de delitos de lesão mínima, que ensejam resultado insignificante.
4. Tendo em vista que a acusação sequer indicou o valor de compra dos bens pela Justiça Federal da Subseção de São Paulo/SP e que tampouco foram avaliados durante a instrução probatória, já que vendidos logo em seguida a terceiro, é razoável o valor declarado pelo acusado à época dos fatos (sessenta reais), tendo em vista a quantidade e a sua natureza (dois cartuchos de tinta para impressora).
5. Nos termos da Lei nº 10.888/04, o valor do salário mínimo, na época dos fatos, era de R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais) e, portanto, os bens subtraídos equivaliam a quase 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
6. Observando os aspectos objetivos que devem ser considerados, ou seja, a inexpressividade dos bens subtraídos (sessenta reais), é aplicável o princípio da insignificância, dando-se ênfase ao caráter fragmentário do Direito Penal, para absolver o acusado da prática do delito previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.
7. Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação para absolver o acusado da prática do delito previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 16 de julho de 2012.
Antonio Cedenho
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): ANTONIO CARLOS CEDENHO:10061
Nº de Série do Certificado: 07ED7848D1F21816
Data e Hora: 20/07/2012 18:51:36



APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0005640-07.2004.4.03.6181/SP
2004.61.81.005640-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANTONIO CEDENHO
APELANTE : FRANCISCO LUIZ DO NASCIMENTO
ADVOGADO : ERICO LIMA DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
: ANNE ELISABETH NUNES DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
: DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
APELADO : Justica Publica

VOTO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL ANTONIO CEDENHO:

Narra a denúncia que, no dia 04 de agosto de 2004, Francisco Luiz do Nascimento, funcionário contratado da empresa terceirizada Multiprof Cooperativa, subtraiu dois cartuchos de tinta para impressora que estavam guardados no almoxarifado do Fórum Criminal Federal da Subseção de São Paulo/SP.

Inicialmente, observo que os fatos narrados na denúncia caracterizam o crime descrito no artigo 312, § 1º, do Código Penal, conforme decidiu o Juízo a quo.

Em que pese a existência de entendimento doutrinário (Damásio de Jesus, in Código Penal Anotado, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 1008; e Fernando Capez, in Curso de Direito Penal: Parte Especial, v.3, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, págs. 388/389) no sentido de que o funcionário de empresa contratada para atividades destinadas a atender a demanda da própria Administração Pública não se equipara a funcionário público, entendo que o réu, na qualidade de funcionário de empresa terceirizada contratada para prestar serviços de limpeza para a Justiça Federal da Subseção de São Paulo/SP, é equiparado a funcionário público, nos termos do artigo 327, § 1º, do Código Penal, conforme julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:

"DIREITO PENAL. DESCLASSIFICAÇÃO. ESTELIONATO-FURTO PARA PECULATO. AGENTE LIGADO A EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS À CEF. ALEGAÇÃO DE NÃO EXERCER ATIVIDADE DA ADMINISTRAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REGRA DE EQUIPARAÇÃO, ART. 327, PARÁGRAFO 1º. USO DE ARDIL. ESTELIONATO. IMPOSSIBILIDADE. VALEU-SE O AGENTE DA FACILIDADE DAS FUNÇÕES EXERCIDAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

I - É de reconhecer a atuação do agente que subtraiu os valores referentes a CPMF"s como funcionário público, assim equiparado por parâmetros meramente de Direito Penal e não de Direito Administrativo. Registre-se que a Lei n.º 9.983/00 veio para reforçar o mesmo entendimento.

II - A conduta do acusado encontra-se subsumida ao tipo descrito no art. 312, PARÁGRAFO 1º do CP (peculato-furto), posto que não se utilizou de qualquer ardil para a obtenção da senha. Aproveitou-se, justamente, da facilidade que detinha como funcionário público (pela regra de equiparação), tendo acesso à senha do supervisor por uma falha do sistema de informática, e, em razão disto, procedeu aos vários depósitos em sua conta dos valores das CPMF"s, subtraindo tais valores, primeiramente em centavos e, em seguida, em quantias maiores.

III - Impossível a desclassificação do crime de peculato-furto para o de estelionato, ante a equiparação à condição de funcionário público de agente empregado de empresa prestadora de serviços e, também, à falta da utilização de ardil, valendo-se o acusado das facilidades inerentes aos serviços prestados à CEF como digitador.

IV - Apelação improvida."

(ACR 200381000074132, relatora Desembargadora Federal Margarida Cantarelli, 4ª Turma, DJ 21/06/2007)


Também ressalto o entendimento doutrinário no sentido de que a ausência de acesso do funcionário à sala da qual foi subtraído o bem, que se encontrava trancada, configura o crime de furto qualificado mediante destruição ou rompimento de obstáculo, já que não se valeu da facilidade proporcionada pela condição de agente público para a subtração da coisa (Damásio de Jesus, in Código Penal Anotado, 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 964; Luiz Regis Prado, in Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Especial, v.4, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, págs. 320/321; e Fernando Capez, in Curso de Direito Penal: Parte Especial, v.3, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 401).

Contudo, entendo que, ainda que a porta do almoxarifado, localizado no 1º subsolo do prédio (fl. 08), tenha sido arrombada pelo acusado com uma chave de fenda, o acesso a tal local somente se deu em razão da facilidade proporcionada pela função por ele exercida, já que o subsolo do prédio do Fórum Criminal da Justiça Federal da Subseção de São Paulo/SP não é de acesso ao público em geral, configurando, assim, o crime de peculato-furto, previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal.

Diferentemente do delito de peculato-apropriação (art. 312, caput, CP), o crime de peculato-furto não exige que o funcionário já tenha a posse do bem, bastando que se aproveite, para a sua subtração, da facilidade proporcionada pelo trânsito que mantém naquele órgão público.

Nesse sentido, colaciono os seguintes julgados:

"DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ATIPICIDADE DA CONDUTA. PECULATO-FURTO. PROCEDIMENTO EXPROPRIATÓRIO. ESCRITURA PÚBLICA DE DESAPROPRIAÇÃO AMIGÁVEL. ART. 312, § 1º, CP. DENEGAÇÃO.

(...)

7. Para a configuração do peculato-furto o agente não detém a posse da coisa (valor, dinheiro ou outro bem móvel) em razão do cargo que ocupa, mas sua qualidade de funcionário público propicia facilidade para a ocorrência da subtração devido ao trânsito que mantém no órgão público em que atua ou desempenha suas funções.

(...)"

(STF, HC 86717, relª. Minª. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJe 22/08/2008)

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÕES CRIMINAIS. CRIME DE PECULATO-FURTO, PRATICADO EM CONTINUIDADE DELITIVA (ART. 312 DO CP). CONFISSÃO. COMUNICABILIDADE DA ESPECIAL CONDIÇÃO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO AO CO-AUTOR.

1. Em relação ao primeiro apelante, encontra-se comprovada nos autos a prática do delito de Peculato-Furto, fato este incontroverso, não havendo o que se discutir quanto a este aspecto. Na qualidade de vigilante de prédio (depósito) da Delegacia da Receita Federal em Sergipe, Aracaju, praticou, de forma continuada, condutas delituosas, subtraindo e se apropriando de mercadorias sob a custódia daquele órgão, fato este confessado e provado nos autos.

2. O segundo apelante requer em seu recurso que essa E. Corte reforme a decisão para desclassificar o delito de peculato para o de receptação, não podendo ser acolhida tal pretensão recursal. O apelante teria participado diretamente da conduta típica prevista no art. 312, em conjunto com o primeiro apelante, tendo aberto o cadeado que dava acesso ao depósito de mercadorias apreendidas e subtraído as mesmas. Outrossim, a circunstância elementar contida no tipo peculato, ou seja, a qualidade de funcionário público do primeiro apelante, comunica-se ao segundo apelante, nos termos do art. 30, segunda parte, do Código Penal.

3. De acordo com a legislação repressiva em vigor, o magistrado a quo aplicou a pena à espécie de forma correta, motivo pelo qual não deverá, no caso concreto, ser reformado o vergastado decisum.

4. Apelos Criminais interpostos pela Defesa conhecidos mas improvidos. Sentença a quo mantida incólume." (grifo nosso)

(TRF 5ª Região - ACR 200405000313812, rel. Desembargador Federal Ubaldo Ataíde Cavalcante, 1ª Turma, DJ 29/08/2005)

Transcrevo, ainda, trecho do voto proferido pelo E. Ministro Jorge Mussi, nos autos do Habeas Corpus nº 145.275, da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, publicado no DJE em 02/08/2012:

"Na impetração, sustenta-se que o ato descrito na denúncia não se amoldaria ao tipo do artigo 312, § 1º, do Código Penal, já que o recebimento de dinheiro não estaria dentro das atribuições do paciente, que trabalhava como vigia noturno. No ponto, alega-se que para a configuração do delito de peculato se exige que o funcionário público se aproprie daquilo que recebe em razão do seu mister, e não do que tem acesso em decorrência das atividades que desempenha. Afirma-se que em momento algum o paciente teve a função de guardar os talonários de cheque, que ficavam em uma sala que deveria ficar trancada.

(...)

Diversamente do que sustentado na impetração, o tipo do artigo 312, § 1º, do Código Penal não exige que o funcionário público se aproprie daquilo que recebe em razão do seu mister, requisito necessário para a caracterização do crime de peculato-apropriação, previsto no caput do referido dispositivo legal.

Para a configuração do delito atribuído ao paciente, que é o de peculato-furto (artigo 312, § 1º, do Código Penal), requer-se que o funcionário subtraia dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel do qual não tenha posse, aproveitando-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário público.

No caso dos autos, o paciente trabalhava como vigia noturno da Prefeitura Municipal e, utilizando-se dessa condição, teria adentrado uma das salas e apoderado-se das folhas de cheque pertencentes ao Município. A conduta supostamente praticada adequa-se, desse modo, ao tipo previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal." (grifo nosso).

Desta forma, os fatos narrados na denúncia encontram correspondência na figura típica prevista no artigo 312, § 1º, do Código Penal, nos termos da sentença.

Porém, o recurso merece provimento.

De acordo com as declarações prestadas pelo acusado perante a autoridade policial (fl.08), os dois cartuchos de tinta para impressora foram vendidos a um camelô, pelo valor total de R$ 60,00 (sessenta reais).

O princípio da insignificância estabelece que o Direito Penal, pela adequação típica do fato à norma incriminadora, somente intervenha nos casos de lesão de certa gravidade, atestando a atipicidade penal nas hipóteses de delitos de lesão mínima, que ensejam resultado insignificante.

Vale sempre observar que o direito penal permanece, em nosso sistema jurídico, tanto no âmbito dos crimes contra a Administração Pública, como em relação aos demais delitos, como a ultima ratio, devendo ser aplicado somente nas hipóteses em que a sanção cominada pelos demais ramos do Direito não se mostra suficiente para reparar a lesão causada ao bem juridicamente protegido.

Analisando-se isoladamente o fato apurado nos presentes autos, conclui-se que deve ser aplicado o princípio da insignificância, pois não se deve considerar apenas o valor do prejuízo, mas também a relevância para o proprietário da coisa. Assim, a apropriação de dois cartuchos de tinta, vendidos por R$ 60,00 (sessenta reais), não é suficiente para ferir significativamente o erário nacional.

Em que pese o respeito aos princípios da probidade e da fidelidade do funcionário para com a res publica, a eles também se aplica o princípio anteriormente citado, de maneira a excluir a tipicidade penal in casu, nada impedindo, entretanto, eventual sanção no âmbito administrativo. Aliás, nesse sentido, doutrina o saudoso ministro Francisco de Assis Toledo:

"Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai até onde seja necessário para proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas. Assim, no sistema penal brasileiro, por exemplo, o dano do art. 163 do Código Penal não deve ser qualquer lesão à coisa alheia, mas sim aquela que possa representar prejuízo de alguma significação para o proprietário da coisa; o descaminho do art. 334, §1º, d, não será certamente a posse pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, mas sim de mercadoria cuja quantidade ou cujo valor indique lesão tributária, de certa expressão, para o Fisco; o peculato do art. 312 não pode estar dirigido para ninharias como a que vimos em um volumoso processo no qual se acusava antigo servidor público de ter cometido peculato consistente no desvio de algumas poucas amostras de amêndoas; a injúria, a difamação e a calúnia dos arts. 140, 139 e 138, devem igualmente restringir-se a fatos que realmente possam afetar significativamente a dignidade, a reputação, a honra, o que excluir ofensas tartamudeadas e sem conseqüências palpáveis; e assim por diante."

(...)

Note-se que a gradação qualitativa e quantitativa do injusto, (...), permite que o fato penalmente insignificante seja excluído da tipicidade penal, mas possa receber tratamento adequado - se necessário - como ilícito civil, administrativo etc., quando assim o exigirem preceitos legais ou regulamentares extrapenais. Aqui, mais uma vez, se ressalta a maior amplitude e a anterioridade da ilicitude em relação ao tipo legal de crime." - in Princípios Básicos do Direito Penal, São Paulo: Saraiva, 5ª ed., 2001, pág. 133/134.

Em outras palavras, ao tempo que se verificam patentes a necessidade e a utilidade do princípio da insignificância, é imprescindível que sua aplicação se dê de maneira criteriosa, contribuindo, sempre tendo em conta a realidade brasileira, para evitar que a atuação estatal vá além dos limites do razoável na proteção do interesse público.

Na questão em foco, cumpre trazer à reflexão o argumento de Claus Roxin - teórico responsável pela sistematização jurídica do funcionalismo e pela ruptura da clássica definição de crime e da incumbência do direito penal -, segundo o qual é missão deste ramo do Direito a proteção de bens jurídicos relevantes, de forma subsidiária e fragmentária.

Ou seja, o direito penal só se presta à tutela dos bens jurídicos mais relevantes para a coexistência humana quando os demais ramos do Direito se mostram incapazes de tutelar eficazmente esses bens.

Visto assim, pode-se consignar que o direito penal é a ultima ratio do mecanismo de controle social das condutas humanas, que interferem na esfera jurídica estatal ou de particulares.

Nessa linha, Claus Roxin assevera que é desiderato do direito penal o arrimo subsidiário de bens jurídicos. Para o jurista alemão, este fato tem como consectário lógico a exclusão de imoralidades e das contravenções penais da esfera jurídica de proteção penal, o que reflete a fragmentariedade desse ramo do Direito.

O bem jurídico alvo de tutela pelo direito penal, dessa forma, é a "expressão de um interesse da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e, por isso, juridicamente reconhecido como valioso", consoante Jorge de Figueiredo Dias.

Não podemos nos afastar, por outro lado, da análise constitucional da proteção penal aos bens jurídicos relevantes, concluindo que devem ser estes vistos sempre em face à pacificação de conflitos e à autopreservação da coletividade e do Estado.

Visto está, portanto, que existem limites à consideração de um bem jurídico como capaz de receber a proteção do direito penal. Para que haja uma correta compreensão do bem jurídico no âmbito de um sistema, necessário é verificar se a este são conferidos "contornos mais públicos", aptos a se enquadrarem no "padrão crítico irrenunciável pelo qual se deve aferir a observância da função e, consequentemente, a legitimação do direito penal em cada caso concreto", de acordo com Ana Elisa Bechara.

Essa simples constatação, de validade bastante crível e pouco questionável, é o que justifica a (re)leitura da (de)limitação da área de tutela penal à luz do Direito Constitucional como fonte negativa à autoridade punitiva do Estado, mas, ao mesmo tempo, autoriza maior proteção do Estado, para garantir a preservação do próprio Estado Democrático de Direito; e em outros termos, é a preservação dos valores mais caros à comunidade humana que reclama a ampliação do sistema penal como expressão da proteção desses direitos, conforme aduz Eduardo Viana Portela Neves (em artigo denominado "A Atualidade" de EDWIN H. SUTHERLAND, publicado no compêndio chamado de "INOVAÇÕES NO DIREITO PENAL ECONÔMICO - Contribuições Criminológicas, Político-Criminais e Dogmáticas", tendo como organizador Artur de Brito Gueiros Souza e editado pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), Brasília-DF, 2011, pág. 61).

Objetiva-se, com isso, um direito penal mínimo que atenda às indigências concretas da atuação do Estado.

Assim, a aplicação do castigo ao infrator é importante, mas só se justifica, de acordo com a leitura correta da teoria durkheiminiana, quando assentada no fato de que o comportamento possa realmente ser considerado criminoso caso debilite o valor universal das normas que regem o convívio social (ÉMILE DURKHEIM, "Da divisão do trabalho social", tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura et. al., São Paulo: Abril Cultural, 1978, apud Eduardo Viana Portela Neves, op. cit., pág. 49).

Em função, portanto, da fragmentariedade e da subsidiariedade presentes no direito penal que, inclusive, subsidiam a interpretação restritiva do tipo penal, a liberdade do acusado deve ser resguardada, porquanto a bem ver, não se verificaram motivos plausíveis, proporcionais e razoáveis a ensejarem a privação desse bem jurídico, mediante o exercício do jus puniendi estatal (muitas das referências bibliográficas havidas nesta digressão a respeito da fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal encontram-se presentes no artigo de Tátilla Gomes Versiani, em "O Princípio da Insignificância como Expressão da Ética no Processo Penal", publicado na Revista Jurídica CONSULEX, ano XV - nº 347, 1º.07.2011, págs. 64/65).

Outrossim, de igual modo, entende o jusfilósofo russo E. B. Pasukanis que não se pode restringir o Direito à norma:

"O Direito, enquanto fenômeno social objetivo, não pode esgotar-se na norma, seja ela escrita ou não. A norma, como tal, isto é, o seu conteúdo lógico, ou é deduzida diretamente de relações preexistentes, ou, então, representa, quando promulgada como lei estatal, um sistema que permite prever, com certa verossimilhança, o futuro nascimento de relações correspondentes. Para afirmar a existência objetiva do direito, não é suficiente conhecer o seu conteúdo normativo, mas é necessário saber se este conteúdo normativo é realizado na vida pelas relações sociais."

É preciso consequentemente "levar em consideração realidades de fato. Se certas relações constituíram-se em concreto, isso significa que um direito correspondente nasceu; mas se uma lei ou decreto foram editados sem que nenhuma relação correspondente tenha aparecido, na prática, isto significa que foi feito um ensaio de criação de direito, mas sem nenhum sucesso." ("Teoria Geral do Direito e o Marxismo". Tradução Paulo Bessa, Rio de Janeiro: Renovar, 1989, págs. 57/58).

Esse, aliás, é o pensamento do Supremo Tribunal Federal, prevalecente no sentido que, em sendo irrisória a infração penal que tenha o condão de descaracterizar materialmente o tipo, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa, inclusive em casos de crimes contra a Administração Pública:

"1.Habeas Corpus. 2. Ex-prefeito condenado pela prática do crime previsto no art. 1º, II, do Decreto-Lei 201/1967, por ter utilizado máquinas e caminhões de propriedade da Prefeitura para efetuar terraplanagem no terreno de sua residência. 3. Aplicação do princípio da insignificância. Possibilidade. 4. Ordem concedida."

(HC 104286, rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 20/05/2011)

"HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PACIENTE PROCESSADO PELA INFRAÇÃO DO ART. 334, § 1º, ALÍNEA "D", C/C § 2º, DO CÓDIGO PENAL (DESCAMINHO). ALEGAÇÃO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO PARA DETERMINAR O TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL.

1. O descaminho praticado pelo Paciente não resultou em dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou colocar em perigo o bem jurídico reclamado pelo princípio da ofensividade. Tal fato não tem importância relevante na seara penal, pois, apesar de haver lesão a bem juridicamente tutelado pela norma penal, incide, na espécie, o princípio da insignificância, que reduz o âmbito de proibição aparente da tipicidade legal e, por consequência, torna atípico o fato denunciado.

2. É manifesta a ausência de justa causa para a propositura da ação penal contra o ora Paciente. Não há se subestimar a natureza subsidiária, fragmentária do Direito Penal, que só deve ser acionado quando os outros ramos do direito não sejam suficientes para a proteção dos bens jurídicos envolvidos.

3. Ordem concedida."

(HC 96661, relª. Minª. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe 25/05/2011)


"HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL MILITAR. PACIENTE DENUNCIADO PELA INFRAÇÃO DO ART. 303, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL MILITAR (PECULATO). ALEGAÇÃO DE INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FAVORÁVEL À TESE DA IMPETRAÇÃO: APLICAÇÃO À ESPÉCIE VERTENTE. HABEAS CORPUS DEFERIDO."

(HC 92634, Relª. Minª. Cármen Lúcia, 1ª Turma, DJe 15/02/2008)

"HABEAS CORPUS. PECULATO PRATICADO POR MILITAR. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDIDADE. CONSEQUÊNCIA DA AÇÃO PENAL. DESPROPORCIONALIDADE.

1. A circunstância de tratar-se de lesão patrimonial de pequena monta, que se convencionou chamar de crime de bagatela, autoriza a aplicação do princípio da insignificância, ainda que se trate de crime militar.

2. Hipótese em que o paciente não devolveu à unidade Militar um fogão avaliado em R$ 455,00 (quatrocentos e cinqüenta e cinco) reais. Relevante, ademais, a particularidade de ter sido aconselhado, pelo seu Comandante, a ficar com o fogão como de ressarcimento de benfeitorias que fizera no imóvel funcional. Desta forma, é significativo o fato de o valor correspondente ao bem ter sido recolhido ao erário.

3. A manutenção da ação penal gerará graves conseqüências ao paciente, entre elas a impossibilidade de ser promovido, traduzindo, no particular, desproporcionalidade entre a pretensão executória e os gravames dela decorrentes. Ordem concedida."

(HC 87.478, rel. Min. Eros Grau, 1ª Turma, DJe 23.02.2007)

Tendo em vista que a acusação sequer indicou o valor de compra dos bens pela Justiça Federal da Subseção de São Paulo/SP e que tampouco foram avaliados durante a instrução probatória, já que vendidos logo em seguida a terceiro, considero razoável o valor declarado pelo acusado à época dos fatos (sessenta reais), tendo em vista a quantidade e a sua natureza (dois cartuchos de tinta para impressora).

Acerca da possibilidade de aplicação do princípio da insignificância, mesmo quando ausente laudo de avaliação, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

"HABEAS CORPUS. TENTATIVA DE FURTO QUALIFICADO. AUSÊNCIA DA TIPICIDADE MATERIAL. INEXPRESSIVA LESÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA.

1. A intervenção do Direito Penal apenas se justifica quando o bem jurídico tutelado tenha sido exposto a um dano com relevante lesividade. Inocorrência de tipicidade material, mas apenas a formal, quando a conduta não possui relevância jurídica, afastando-se, por consequência, a ingerência da tutela penal, em face do postulado da intervenção mínima. É o chamado princípio da insignificância.

2. Reconhece-se a aplicação do referido princípio quando verificadas "(a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada" (HC 84.412/SP, Ministro Celso de Mello, Supremo Tribunal Federal, DJ de 19/11/04).

3. No caso, em que pese a ausência de laudo de avaliação da res furtiva, não há como deixar de reconhecer a mínima ofensividade do comportamento da paciente, que tentou subtrair 23 (vinte e três) capas para uso em aparelhos de telefone celular, bens estes integralmente restituídos à vítima.

4. Segundo a jurisprudência consolidada nesta Corte e também no Supremo Tribunal Federal, a existência de condições pessoais desfavoráveis, tais como maus antecedentes, reincidência ou ações penais em curso, não impedem a aplicação do princípio da insignificância.

5. Ordem concedida, com extensão dos efeitos à corré." (grifo nosso).

(HC 201001212752, rel. Ministro Og Fernandes, 6ª Turma, DJE 17/12/2010)

Por fim, frise-se que, nos termos da Lei nº 10.888/04, o valor do salário mínimo, na época dos fatos, era de R$ 260,00 (duzentos e sessenta reais) e, portanto, os bens subtraídos equivaliam a quase 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

Assim, observando os aspectos objetivos que devem ser considerados, ou seja, a inexpressividade dos bens subtraídos (sessenta reais), é aplicável o princípio da insignificância, dando-se ênfase ao caráter fragmentário do Direito Penal, para absolver o acusado da prática do delito previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Ante o exposto, DOU PROVIMENTO à apelação, para absolver o acusado da prática do delito previsto no artigo 312, § 1º, do Código Penal, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

É o voto.


Antonio Cedenho
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): ANTONIO CARLOS CEDENHO:10061
Nº de Série do Certificado: 07ED7848D1F21816
Data e Hora: 20/07/2012 18:51:33