D.E. Publicado em 20/05/2014 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar parcial provimento ao recurso de apelação do Ministério Público Federal e negar provimento ao recurso de apelação da defesa, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
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Data e Hora: | 14/05/2014 14:37:24 |
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VOTO-VISTA
Trata-se de ação penal em cujo bojo foi imputado ao réu EDISON ALVARES DE LIMA o crime de lavagem de dinheiro, com fundamento no artigo 1º, inciso VII, c.c o § 1º, inciso I, da Lei nº 9.613/98, por ter ele adquirido bens no Brasil com o produto do crime de roubo perpetrado no Paraguai, por organização criminosa da qual, segundo a denúncia e a r. sentença "a quo", ele faria parte.
O MMº Juízo de primeiro grau condenou o acusado Edison Álvares de Lima a 5 (cinco) anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, e a pagar 200 (duzentos) dias-multa, no valor unitário de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais), pela prática do delito do art. 1º, inciso VII, c. c. o § 1º, I, da Lei n. 9.613/98 (fls. 615/636).
A eminente Relatora, MMª Juíza Federal Convocada Louise Filgueiras, deu parcial provimento à apelação do "Parquet" Federal para fixar o regime inicial fechado, bem como negou provimento à apelação interposta pela defesa, no que foi acompanhada pela eminente Juíza Federal Convocada Eliana Marcelo.
Apesar do brilhante voto proferido pela eminente Relatora, pedi vista destes autos para melhor reflexão sobre as teses arguidas pela defesa, e, com a devida vênia de sua Excelência, entendo que o caso é de provimento à apelação defensiva, a fim de ser o réu absolvido da imputação que lhe foi feita na denúncia, restando, com isso, prejudicado o apelo ministerial.
Senão vejamos.
Consta da denúncia que o acusado EDISON ALVARES DE LIMA, após o roubo ocorrido no ano 2000, na cidade de Luque/Paraguai, do qual teria participado, angariou patrimônio significativo no Brasil, composto de alguns bens móveis e imóveis, muitos deles registrados em seu nome e adquiridos em época bastante próxima à prática daquele delito.
Segundo a acusação o apelante adquiriu no Brasil os seguintes bens:
a) Terras pastais e lavradias situadas na "Fazenda Rincão das Lagoas", registradas no 1º Tabelião Oficial do Registro de Imóveis de Ponta Porã/MS, com matrícula nº 8300, no valor declarado de R$ 545.434,99, pagos à vista, datado de 12 de dezembro de 2000 (f. 12, Apenso I);
b) Imóvel residencial de 600 m², registrado perante Tabelionato da Comarca de Dourados/MS, com a matrícula nº 22.547, no valor declarado de R$ 80.000,00, pagos à vista, adquirido em 21/12/2001 (f. 13, Apenso I);
c) Veículo GM, modelo Vectra GLS, ano de fabricação 1999, modelo 2000, cor prata, registrado no DETRAN/MS, placas HSF 2009, RENAVAM nº 722859970, chassi nº 9BGJK19H0YB103632, adquirido em 6/11/2001;
d) Motocicleta Yamaha, modelo XT 600 E, ano de fabricação 2000, modelo 2000, cor azul, registrado no DETRAN/MS, placas CTF 8060, RENAVAM nº 740064665, chassi 9C64MW00Y0012273, adquirida em 10/07/2003;
e) Veículo Ford, modelo F-250 XL L , ano de fabricação 2003, modelo 2004, cor prata, registrado no DETRAN/MS, placas HRY 9545, RENAVAM nº 814382843, chassi nº 9BFFF25L74B093526, adquirido em 3/6/2005.
Pois bem, brevemente sintetizados os fatos passo à análise das questões que entendo relevantes ao deslinde do caso.
DA TIPICIDADE POR ADEQUAÇÃO DA CONDUTA DO RÉU AOS VERBOS "OCULTAR" E "DISSIMULAR"
Questão que primeiramente merece ser refletida é se a conduta do acusado se amolda à figura típica da lavagem de dinheiro.
O artigo 1º da Lei nº 9.613/98, antes da redação da Lei nº 12.683/2012, estabelecia como lavagem a conduta de:
"Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: [...]"
Por ocultar entende-se a "ação de esconder ou de encobrir alguma coisa aos olhos ou conhecimento de outrem... A ocultação implica, em regra, na intenção de esconder a verdade sobre os fatos ou a realidade das coisas, a fim de que se atente contra princípio jurídico instituído ou se consigam resultados, que não se teriam, se conhecida a verdade ou aquilo que se ocultou." (Vocabulário Jurídico - De Plácido e Silva, 23ª edição, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2003 - pg. 975).
No entanto, "existem ocultações e ocultações. Fosse qualquer encobrimento apto a ensejar a lavagem de dinheiro, poucos crimes patrimoniais escapariam tal caracterização. Imagine-se um roubo, furto ou estelionato. Evidente que o agente tentará esconder o produto do crime de diversas formas. Esta ocultação somente caracteriza lavagem de dinheiro se for o passo inicial para uma posterior reinserção dos valores na economia formal, com aparência de licitude." (Em: http://www.conjur.com.br/2013-jul-23/direito-defesa-lavagem-dinheiro-corrupção-passiva-ap-470 - Consulta em: 10/02/2014) - grifei.
Dessa forma, no tipo objetivo do art. 1º da Lei nº 9.613/98, "caput", "a punição apenas se legitima ao se verificar modo peculiar e eficiente de dificultar a punição do Estado. Exige-se uma conduta (ação ou omissão) voltada especificamente à 'lavagem'. Haverá, assim, tão-só a prática do crime precedente quando a conduta de lavagem for considerada uma utilização ou um aproveitamento normal das vantagens ilicitamente obtidas. Do contrário, haveria verdadeiro bis in idem e punição inadequada do autor do fato antecedente por delito de lavagem de dinheiro" (Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática / Fausto Martins de Sanctis - Campinas, SP: Millennium Editora, 2008 - pg. 41)
Diante do evidenciado, infere-se que diversas condutas podem se amoldar ao tipo penal em questão. Assim sendo, a tipificação do crime de lavagem exige primeiro que o agente tenha ciência da proveniência ilícita dos bens, direitos ou valores provenientes do crime antecedente; segundo, que a conversão em ativo lícito seja feita com o objetivo de ocultar ou dissimular a utilização do produto do crime antecedente, que se busque conferir uma aparência lícita a toda operação, não se configurando, pois, a lavagem o mero uso do dinheiro ou do produto ilícito proveniente do crime antecedente, já que fase natural de qualquer delito em que se objetiva a obtenção de vantagem indevida.
Fazendo, assim, um aprofundamento maior na estrutura do delito, é usual "a referência às fases ou às etapas do crime. Seriam elas a colocação (placement), a dissimulação ou circulação (layering) e a integração (integration). Na primeira etapa, o produto do crime é desvinculado de sua origem material; na segunda, o numerário é movimentado por meio de diversas transações de modo a impedir ou dificultar o rastreamento, e pela terceira é reintegrado em negócios ou propriedades, com a simulação de investimentos lícitos." (Crime de lavagem de dinheiro / Sergio Fernando Moro. - São Paulo: Saraiva, 2010 - pg. 32)
Nessa segunda fase, existem inúmeros métodos a serem empregados. A simulação de rendimentos lícitos é um deles. "Nessa tipologia, o produto do crime não é ocultado em nome de pessoas interpostas ou identidades falsas. O criminoso não oculta a titularidade dos bens, direitos e valores provenientes do crime, mas dissimula a origem criminosa destes mediante a falsificação de fontes de rendimentos lícitas, como heranças, ganhos em jogos, doações, financiamentos, empréstimos etc." (Crime de lavagem de dinheiro / Sergio Fernando Moro. - São Paulo: Saraiva, 2010 - pg. 49).
Há também a "movimentação dos valores obtidos pela prática criminosa em fragmentos, em pequenas quantias que não chamem a atenção das autoridades (structuring ou smurfing), a conversão dos bens ilícitos em moeda estrangeira, seu depósito em contas de terceiros (laranjas)..." (Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012 / Pierpaolo Cruz Bottini, Gustavo Henrique Badaró - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012 - pg. 24).
Quanto ao bem jurídico protegido pela norma, tem-se a administração da Justiça. "A lavagem aqui é entendida como um processo de mascareamento que não lesiona o bem originalmente violado, mas coloca em risco a operacionalidade e a credibilidade do sistema de Justiça, por utilizar complexas transações a fim de afastar o produto de sua origem ilícita e com isso obstruir seu rastreamento pelas autoridades públicas. Macula-se o desenvolvimento satisfatório da atividade de potestade judicial." (Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012 / Pierpaolo Cruz Bottini, Gustavo Henrique Badaró - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012 - pg.53).
Feitas essas ponderações, e, atentando-se agora exclusivamente ao quanto narrado e efetivamente comprovado nestes autos, entendo que os fatos envolvendo Edison Álvares de Lima amoldam-se perfeitamente às condutas de "ocultar" e "dissimular", previstas no artigo 1º da Lei nº 9.613/98. Senão vejamos.
Consta que o apelante adentrou em território brasileiro no dia 29/11/2000 portando R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais) em espécie, conforme declaração de porte de dinheiro de fl. 194 dos autos nº 000039842.2006.403.6005, referente ao pedido de cooperação internacional.
Pode-se verificar nos autos que o roubo em território paraguaio do qual o apelante foi condenado aconteceu poucos meses antes dessa entrada em território brasileiro, em 04/08/2000.
Pois bem, após entrar no País, Edison adquiriu do casal Salim Derzi e Edy Marques Derzi, em 01/12/2000, a Fazenda "Rincão das Lagoas", situada no Distrito de "Lagunita", Município de Ponta Porã, Estado de Mato Grosso do Sul, com 683 (seiscentos e oitenta e três) hectares, o equivalente a aproximadamente 683 campos de futebol, tendo pago à vista o valor de R$ 545.434,99 (quinhentos e quarenta e cinco mil quatrocentos e trinta e quatro reais e noventa e nove centavos), conforme informações constantes da Escritura Pública de Compra e Venda do imóvel de fls. 163/164, registrada em seu nome.
No entanto, conforme destacado pelo MMº Juízo "a quo", o valor real pago pela fazenda giraria em torno de pouco mais de dois milhões de reais. Segundo alegado pelo acusado, ele teria pago R$ 797,00 (setecentos e noventa e sete reais) por hectare em 2000, mas afirmou posteriormente, quando interrogado em 15/09/2011, que o hectare naquela região giraria em torno, em 2011, de R$ 8.000,00. Ou seja, uma valorização de pouco mais de 900% (novecentos por cento) em pouco mais de dez anos.
Essa exacerbada e irreal valorização, o apelante justificou pela realização de benfeitorias, definidas por ele como algumas cercas e um barracão, e a transformação de pastagens em áreas de agricultura. Se assim fosse, conforme destacado pelo i. magistrado de primeira instância, "Mato Grosso do Sul, Estado fortíssimo em pecuária, e o resto do Brasil, mudariam o manejo para agricultura. Assim, dentro de 10 anos, os proprietários de terras teriam um ganho de mais ou menos 1.000%" (fl. 631)
Ainda como bem destacado na sentença, "Deflacionando os R$ 5.464.000,00, que são o valor (em setembro/2011) da propriedade, mediante a aplicação do índice inflacionário do período de 01.12.2000 a 30.08.2011, haverá o valor de R$ 2.292.453,00, que é, no mínimo, o que deve ter custado, para o réu, a Fazenda Rincão das Lagoas em 01.12.2000.
Na verdade, o hectare, na região, Distrito de Laguna Caarapã (ou Lagunita), região eminentemente agrícola e pecuária, deve valer, hoje, entre 10 e 15 mil reais. Este juízo tem sequestrados, naquela parte do Estado, vários imóveis rurais. A área do réu é muito bem localizada.
A única explicação está no ingresso de uma importância muito maior do que os R$ 550.000,00 objeto da declaração de fls. 256." (fl. 631)
Portanto, diante de tal contexto, percebe-se que após afastar-se do cenário do roubo, o apelante, ao entrar no Brasil, cindiu o dinheiro, trazendo uma parte declarada às autoridades fiscais, para não levantar suspeitas acerca da origem ilícita do numerário, e a outra, a parte mais significativa, ocultamente, sem declaração, prática essa que se caracteriza como uma das formas de lavagem de dinheiro (structuring ou smurfing), já que perpetrada com vistas a dificultar a apuração pelas autoridades acerca da origem do dinheiro sujo.
Edison trouxe, pois, o capital de forma física e parcelada, buscando ao máximo não chamar a atenção das autoridades brasileiras, delas omitindo, pois, a sua origem. E, depois de conferir ao capital essa aparência lícita - ao declará-lo parcialmente às autoridades, inclusive, em declaração à Receita Federal (fl. 255) -, o apelante investiu o numerário no mercado imobiliário, fazendo transação com valores simulados, certamente pagando pelas propriedades que adquiriu quantia escriturada a menor, pagando "por fora" o quantum faltante combinado com os vendedores, de modo a conseguir justificar a origem do capital fornecido para a compra e dificultar a identificação da ilicitude do dinheiro.
Deve-se ressaltar que "a lesividade do crime não desaparece em razão do acatamento às normas tributárias. Aquele que emite duplicata sem lastro e obtém vantagem ilícita em face de terceiro de boa-fé até pode pagar os impostos inerentes ao negócio jurídico simulado, entretanto, ninguém vai dizer que a ofensa ao bem jurídico, 'patrimônio', desapareceu com o adimplemento da obrigação com o fisco" (Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente / Antônio Sérgio A. de Moraes Pitombo. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003 - pg. 92), ou seja, pouco importa ter o réu feito declaração formal às autoridades, já que somente o fez como estratagema voltado a justificar a origem ilícita do numerário.
Portanto, vê-se claramente que Edison Álvares agiu de modo a mascarar o capital procedente da infração penal que cometeu no Paraguai, não meramente usufruindo do dinheiro. Ele buscou, sabendo da ilicitude dos valores que portava, imprimir a todos os seus atos, após entrada em território brasileiro, uma aparência lícita, de modo a dissimular sua origem, lesionando o bem jurídico protegido, incorrendo, portanto, nas condutas de "ocultar" e "dissimular", previstas no tipo penal em questão.
A corroborar essa conclusão, foi apurada a existência, entre os anos de 2002 e 2006, de diversos registros de movimentações de depósitos bancários pelo acusado, no Brasil, de mais de dois milhões de reais (fl. 627), dinheiro esse que ele não justificou e que, evidentemente, foi sendo movimentado ao longo dos anos, e aos poucos, em suas contas bancárias a fim de não despertar a atenção das autoridades, fato que, por óbvio, caracteriza-se como etapa final do procedimento da lavagem.
Ademais, no tocante à residência adquirida pelo réu no ano de 2003, em Dourados/MS, num terreno de 600 m2, consta da escritura que ele teria pago R$ 80.000,00 (oitenta mil reais), enquanto na verdade foi avaliado pela Justiça Federal nos autos do sequestro nº 0005171-72.2011.403.6000 em quase R$ 700.000,00 (setecentos mil reais), circunstância que também demonstra a dissimulação em que incorreu o acusado.
Ainda, a r. sentença também discorre acerca de declarações de imposto de renda pessoa física apresentadas pelo acusado, declarando altíssimas quantias por ele recebidas à título de doações, heranças, etc, nada, porém, efetivamente por ele comprovado, técnicas conhecidas para a lavagem de dinheiro por meio também de simulação, tendo ele, como dito, movimentado em sua conta-corrente no Brasil mais de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), sem a necessária comprovação da origem desse numerário.
Como bem exposto por sua Excelência, esse dinheiro todo não pode ter vindo de produção agrícola nas terras por ele adquiridas, pois não fez prova de ser pecuarista, tampouco de venda de cereais ou de gado, enfim, não comprovou possuir lastro financeiro para o patrimônio que apresentou.
Por todas essas razões, demonstradas as condutas de "ocultar" e "dissimular" a origem do dinheiro utilizado pelo apelante para as aquisições que realizou no Brasil, utilizando-se de forma clara de simulações com vistas a garantir a vantagem patrimonial por ele auferida como produto do roubo do qual participou no Paraguai, entendo plenamente caracterizado, sob o aspecto formal, o crime de lavagem de dinheiro, nos exatos termos da r. sentença "a quo".
DO ESVAZIAMENTO DA TIPICIDADE DA CONDUTA POR INEXISTÊNCIA, À ÉPOCA DO FATO, DO CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA
Como já visto, por ter o acusado adquirido, por meio de procedimentos escusos e fraudulentos (ocultação e simulação), os bens imóveis e móveis supracitados, com o dinheiro do roubo do qual participou no Paraguai, o "Parquet" Federal imputou ao acusado o crime de lavagem de dinheiro, exclusivamente, com base no inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98 (crime praticado por organização criminosa), elemento objetivo do tipo ao qual se vincula também o § 1º, inciso I, daquele mesmo artigo.
Como é cediço, questão há muito debatida tanto na doutrina quanto na jurisprudência pátrias é se há no Brasil o conceito de "organização criminosa", e se seria tal instituto equiparado à quadrilha ou bando do Código Penal (art. 288) ou à associação criminosa, prevista no artigo 35 da Lei Antidrogas (Lei 11.343/2006).
Debateu-se, ademais, se o conceito de "organização criminosa" foi estabelecido pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional - Convenção de Palermo -, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004.
Pois bem, em discussão recente sobre tais temas perante o Supremo Tribunal Federal, a Primeira Turma daquela Colenda Corte, em julgamento realizado em 12/06/2012, nos autos do habeas corpus nº 96007/SP, decidiu, por unanimidade de votos, determinar o trancamento da ação penal originária, em cujo bojo se imputava aos réus o crime de lavagem de ativos com a mesma base jurídica destes autos (art. 1º, inciso VII, da Lei 9.613/98), sob o fundamento de o crime de quadrilha ou bando não se confundir com organização criminosa, e que este instituto não possui ainda definição no Brasil, ao menos até a data daquele julgamento, realizado antes da entrada em vigor da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, que finalmente externou o conceito de organização criminosa em seu artigo 1º, § 1º, verbis:
"Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional".
Em seu voto, o eminente Relator, Ministro Marco Aurélio, consignou que até então inexistia no Brasil conceituação expressa e clara do que se pudesse compreender por organização criminosa, assim também que a Convenção de Palermo, por não se tratar de lei em sentido estrito, mas de Convenção Internacional, inserida no ordenamento pátrio por meio de Decreto Presidencial, não pode definir crime, ainda que ingresse em nosso ordenamento jurídico com força de lei ordinária, sob pena de ferimento a cláusulas pétreas da Carta da República, tais como o princípio da reserva legal, previsto no artigo 1º do Código Penal e no artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, verbis:
"XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". (grifo nosso).
Para melhor ilustrar meu pensamento, transcrevo o voto de sua Excelência na parte que interessa:
"[...] Conforme decorre da Lei nº 9.613/98, o crime de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes direta ou indiretamente de crimes depende do enquadramento, quanto a estes, em um dos previstos nos diversos incisos do artigo 1º. É certo que o evocado na denúncia - VII - versa crime cometido por organização criminosa.
Então, a partir da óptica de haver a definição desse crime mediante o acatamento à citada Convenção das Nações Unidas, diz-se compreendida a espécie na autorização normativa.
A visão mostra-se discrepante da premissa de não existir crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal - inciso XXXIX do artigo 5º da Carta Federal. Vale dizer que a concepção de crime, segundo o ordenamento jurídico constitucional brasileiro, pressupõe não só encontrar-se a tipologia prevista em norma legal, como também ter-se, em relação a ela, pena a alcançar aquele que o cometa.
Conjugam-se os dois períodos do inciso XXXIX em comento para dizer-se que, sem a definição da conduta e a apenação, não há prática criminosa glosada penalmente.
Por isso, a melhor doutrina sustenta que, no Brasil, ainda não compõe a ordem jurídica previsão normativa suficiente a concluir-se pela existência do crime de organização criminosa. Vale frisar que, no rol exaustivo do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, não consta sequer menção ao de quadrilha, muito menos ao de estelionato, cuja base é a fraude.
Em síntese, potencializa-se, a mais não poder, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado para pretender-se a persecução criminal no tocante à lavagem ou ocultação de bens sem ter-se o crime antecedente passível de vir a ser empolgado para tal fim. Indago: qual o crime, como determina o inciso XXXIX do artigo 5º da Carta da República, cometido pelos acusados se, quanto à organização criminosa, a norma faz-se incompleta, não surtindo efeitos jurídicos sob o ângulo do que requer a cabeça do artigo 1º da mencionada lei, ou seja, o cometimento de um crime para chegar-se à formulação de denúncia considerada prática, esta sim, no que completa, com os elementos próprios a tê-la como criminosa, em termos de elementos de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores?
Nota-se, em última análise, que, não cabendo a propositura da ação sob o aspecto da Lei nº 9.613/98, presente o crime de estelionato, evocou-se como algo concreto, efetivo, o que hoje, no cenário nacional, por falta de previsão quanto à pena - fosse insuficiente inexistir lei no sentido formal e material -, não se entende como ato glosado penalmente ? a organização criminosa do modo como definida na Convenção das Nações Unidas.
Não é demasia salientar que, mesmo versasse a Convenção as balizas referentes à pena, não se poderia, repito, sem lei em sentido formal e material como exigido pela Constituição Federal, cogitar-se de tipologia a ser observada no Brasil. A introdução da Convenção ocorreu por meio de simples decreto!
A não se entender dessa forma, o que previsto no inciso em comento passa a ser figura totalmente aberta, esvaziando o caráter exaustivo do rol das práticas que, fazendo surgir em patrimônio um dos bens mencionados, conduzem, estas sim, porque glosadas no campo penal, à configuração da lavagem definida.
Toda e qualquer prática poderá ser tomada como a configurar crime, bastando que se tenha o que definido na Convenção como organização criminosa e que se aproxima de quadrilha nela não prevista.
Concedo a ordem para trancar a ação penal. Estendo-a aos demais réus, a saber: Leonardo Abbud, Antonio Carlos Ayres Abbud e Ricardo Abbud.
É como voto na espécie". - grifo nosso.
O julgado em questão foi assim ementado, verbis:
"TIPO PENAL - NORMATIZAÇÃO.
A existência de tipo penal pressupõe lei em sentido formal e material.
LAVAGEM DE DINHEIRO - LEI Nº 9.613/98 - CRIME ANTECEDENTE.
A teor do disposto na Lei nº 9.613/98, há a necessidade de o valor em pecúnia envolvido na lavagem de dinheiro ter decorrido de uma das práticas delituosas nela referidas de modo exaustivo.
LAVAGEM DE DINHEIRO - ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E QUADRILHA.
O crime de quadrilha não se confunde com o de organização criminosa, até hoje sem definição na legislação pátria". - grifo nosso.
Ademais, de extrema importância ressaltar que nesse mesmo e exato sentido foi como mais recentemente decidiu a Primeira Turma daquela Colenda Corte no julgamento do habeas corpus nº 108.715, julgado em 24/09/2013, portanto, após já concluído o julgamento da Ação Penal nº 470 - "Caso Mensalão" -, conforme noticiado no sítio daquele Tribunal em 27/09/2013, verbis:
"A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão realizada na terça-feira (24), decidiu arquivar ação penal relativa ao crime de lavagem de dinheiro, instaurada a partir de fatos apurados pela Polícia Federal na Operação Negócio da China, em 2008. A decisão se deu no julgamento de Habeas Corpus (HC 108715) impetrado pela defesa de R.D., uma das denunciadas. A Turma, à unanimidade, extinguiu o Habeas Corpus por entender inadequada a sua impetração para solucionar a questão, mas, por maioria, concedeu a ordem de ofício para arquivar ação penal quanto à imputação de lavagem de dinheiro, que tinha como antecedente organização criminosa, e estendeu a decisão a todos os demais acusados.
Na sessão de terça-feira (24), o ministro Dias Toffoli apresentou voto-vista no sentido de acompanhar o relator, ministro Marco Aurélio. Ele lembrou que a questão também foi debatida no julgamento da Ação Penal (AP) 470, quando o Plenário entendeu ser necessária a existência de um tipo penal próprio para o crime de organização criminosa.
No início do julgamento, em agosto de 2012, o ministro Marco Aurélio votou pela inadequação do habeas, mas pela concessão da ordem de ofício. À época, ele citou como precedente o HC 96007, apresentado pela defesa dos líderes da Igreja Renascer (o casal Estevan e Sonia Hernandez). Nele, a Primeira Turma arquivou a ação penal tendo em vista que a denúncia imputava, como delito antecedente à lavagem, crime praticado por organização criminosa, conforme previsto no inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98, com a redação anterior à edição da Lei 12.683, de 2012. A Turma assentou que não havia ainda, na ordem jurídica, um tipo penal referente à organização criminosa.
"Penso que se impõe a concessão de ofício", afirmou. Para o relator, a organização criminosa é inconfundível com o crime de quadrilha, previsto no artigo 288 do Código Penal. "O legislador da Lei 9.613, ao disciplinar a lavagem, poderia ter cogitado desse crime antecedente, que seria o de quadrilha, mas não o fez", avaliou.
Após o voto do relator, o julgamento foi adiado por um pedido de vista do ministro Luiz Fux, que, em maio de 2013, acompanhou o relator apenas quanto à inadequação do HC como substitutivo de recurso ordinário, mas não concedeu a ordem de ofício. Já a ministra Rosa Weber seguiu o voto do relator na integralidade. Em seguida, o ministro Dias Toffoli pediu vista os autos e apresentou seu voto na terça-feira (24), concluindo o julgamento". - grifo nosso.
Esclareço que deixo de transcrever o inteiro teor da ementa de referido julgado tendo em vista não estar disponibilizada no sítio da Suprema Corte.
Por outro lado, destaco que mesmo no conhecido caso "Mensalão" - Ação Penal nº 470 -, a questão em debate apresentou-se bastante controvertida, tendo diversos réus sido condenados por lavagem de dinheiro, porém, pelo que consta expressamente da ementa, com fundamento somente nos incisos V e VI do artigo 1º da Lei 9.613/98, ou seja, tendo como antecedentes crimes contra a administração pública e contra o sistema financeiro nacional, e não pela incidência do inciso VII daquela Lei (vide nesse sentido fls. 51622, 51623, 51625, 51630/51634, 51639/51655 - a numeração das folhas citadas refere-se à ementa da Ação Penal nº 470 - "Caso Mensalão").
Ressalto que o Excelentíssimo Relator, Ministro Joaquim Barbosa, votou pela aplicabilidade do inciso VII do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, sob o argumento de que não se trata de um crime antecedente, mas sim da forma como o crime é cometido. E concluiu: Daí por que não se faz necessária a existência de um tipo específico de organização criminosa, para a aplicação do inciso VII do art. 1º da Lei 9.613/1998.
Sua Excelência asseverou, por fim, que a positivação das organizações criminosas não é uma inovação no cenário jurídico brasileiro. Com efeito, a Lei 9.034/1995, alterada pela Lei nº 10.217/2001, dispõe justamente 'sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas' (original sem destaque)', concluindo, ao final, pela condenação de diversos réus com fundamento na norma em questão.
De outro lado, em sentido diverso, transcrevo, na parte que interessa, o voto divergente da Exma Ministra Rosa Weber (fls. 52820/52828 e 52874/52875 da AP 470) - a numeração das folhas citadas refere-se à Ação Penal nº 470 - "Caso Mensalão":
"[...] A afirmação do Ministério Público Federal, acima transcrita, de que os dirigentes do Banco Rural sabiam ter o dinheiro origem nas atividades de uma organização criminosa propõe, à luz da lei de regência à época dos fatos, questão teórica de relevo: nessa hipótese incidiria o inciso VII do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, na redação anterior à Lei 12.683/2012?
Todo e qualquer crime seria antecedente para a lavagem se praticado por organização criminosa?
Surge, então, a pergunta: o que é organização criminosa?
Sustenta o parquet em suas razões finais que a norma penal em branco seria preenchida pelo conceito constante da Convenção de Palermo, incorporada ao direito pátrio pelo Decreto 5015, de 12 de março de 2004:
"Art. 1oA Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, adotada em Nova York, em 15 de novembro de 2000, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém."
Lê-se no artigo 1, letras a e b, da referida convenção:
"Para efeitos da presente Convenção, entende-se por: a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;
b) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;"
Dita convenção já havia sido aprovada por decreto legislativo (Dec.
Leg. nº 231 de 29.5.2003):
"DECRETO LEGISLATIVO
Nº 231, DE 2003(*)
Submete à consideração do Congresso Nacional o texto da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e seus dois Protocolos, relativos ao Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea e à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, celebrados em Palermo, em 15 de dezembro de 2000.
O Congresso Nacional decreta:
"Art. 1º Fica aprovado o texto da "Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional" e seus dois Protocolos, relativos ao "Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea" e à "Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças", celebrados em Palermo, em 15 de dezembro de 2000.
Parágrafo único. Ficam sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em revisão da referida Convenção e Protocolos Adicionais, bem como quaisquer ajustes complementares que, nos termos do inciso I do art. 49 da Constituição Federal, acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.
Art. 2º Este Decreto Legislativo entra em vigor na data de sua publicação.
Senado Federal, em 29 de maio de 2003"
Diz o acusador:
"528. A questão da tipificação do crime de lavagem praticado por organização criminosa é questão que tem suscitado discussões doutrinárias e jurisprudenciais, inclusive nessa Corte.
529. Contudo entende Ministério Público que o conceito positivado na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) deve ser aplicado ao presente caso."
O decreto legislativo implica o reconhecimento pelo Brasil da validade do tratado internacional. Todavia, sua eficácia depende do decreto presidencial. O decreto presidencial, no caso em questão, é datado de 12 de março de 2004 e entrou em vigor na data de sua publicação (art. 3º), 15.3.2004 (DOU). Portanto, já de início haver-se-ia de objetar à tese de acusação que a regra definidora de organização criminosa da Convenção de Palermo no mínimo não seria aplicável a todas as ações desenvolvidas antes de março de 2004, que foram muitas neste processo.
Esta Suprema Corte não tem referendado a tese do órgão acusador, à compreensão de que a incidência do tipo previsto no artigo 1º inciso VII da Lei n 9.613/98, na redação anterior à Lei 12.683/2012, tinha como pressuposto a aprovação de uma lei que definisse a expressão organização criminosa.
[...]
Tal viés na interpretação dessa questão jurídica, a meu juízo, merece ser prestigiado, com a devida vênia dos que entendem em contrário.
Destaco, por oportuno, que a Lei 12.683, de 2012, também não conceitua o que seja organização criminosa. Revogado o inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613, de 1998, no que fixava, como crime antecedente da lavagem, o delito praticado por organização criminosa - até porque consagrada em seus ditames, como se viu, a infração penal como antecedente da lavagem -, o cometimento dos crimes "por intermédio de organização criminosa" passou a ser previsto como causa de aumento da pena (parágrafo quarto do mesmo artigo primeiro. Apenas a recente Lei 12.694, de 24 de julho de 2012, com vacatio legis de noventa dias, veio a definir em nosso ordenamento jurídico positivo, em seu art. 2º, a organização criminosa, nos seguintes termos:
"Art. 2o Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional."
Retornando ao exame da tese defendida pelo parquet, digo que a Convenção de Palermo, a meu juízo, pretendeu o combate às organizações criminosas no âmbito da macrocriminalidade, especialmente no que diz com o tráfico internacional de entorpecentes, de armas, de órgãos humanos etc. O conceito bastante abrangente nela adotado busca obstar o trânsito da criminalidade internacional, não me parecendo oportuna a imposição de igual tratamento internamente no sistema normativo do Brasil, até pela possibilidade de situações draconianas.
A regra do inciso VII do artigo 1º da Lei n 9.613/98, tal como redigida antes da Lei 12.683/2012, constituía, repito, uma norma penal em branco.
Ensina Claus Roxin, quanto aos elementos normativos contidos nas regras penais, exemplificando com dispositivos do Código Penal alemão:
"En los elementos normativos se pueden hacer ulteriores distinciones, sobre todo entre elementos con valoración juridica ("ajeno", par. 242, " funcionario en el exercicio de su cargo, par. 331 ss., " documento público", par. 348) y elementos con valoración cultural (acciones sexuales de cierta relevancia, par. 184 c)." (Derecho Penal, parte general, tomo I, ed. Civitas, Madri, 1997, p. 306)
Sem dúvida, entre os elementos normativos do tipo existem conceitos com base no senso comum (no exemplo, o termo "obsceno"), mas outros são dependentes de outras regras contidas no próprio Direito Penal ou em outros ramos do direito. Estas costuma-se chamar de normas penais em branco. As normas que realizam esses elementos no tipo regulam fatos ou conceitos jurídicos. A primeira hipótese pode ser exemplificada com o crime de tráfico de entorpecentes. A análise científica especializada da droga faz com que a autoridade administrativa coloque a proibição de circulação da mesma em uma portaria. Exemplo da segunda espécie é o conceito de alheio contido em regra que regula a propriedade no Direito Civil.
Certos conceitos ganham tamanho relevo no Direito Penal que exigem regramento próprio. É o caso do conceito de funcionário público, muito mais amplo do que no Direito Administrativo, como se vê do artigo 327 do Código Penal.
Exatamente a mesma coisa acontece com a conceituação de organização criminosa. É a disciplina de um fato, isto é, o que caracteriza essa realidade. Daí o entendimento de que apenas uma lei penal poderia definir a organização criminosa para o efeito de incidência do inciso VII do artigo 1º da Lei nº 9.613/98 na redação pretérita, tanto que em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 6.578, de 2009, com tal desiderato.
Nesses termos, sem viabilidade jurídica, data venia, a imputação aos acusados da formação de organização criminosa, para os efeitos do hoje revogado inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98". - grifo nosso.
No mesmo sentido do voto da Ministra Rosa Weber, foi como decidiram os Ministros Marco Aurélio (fls. 54030/54075), Ricardo Lewandowski (fls. 55358 e 57478/57480), Celso de Mello (fls. 54062/54064) e Gilmar Mendes (fls. 55020/55021 e 54126/54127) - a numeração das folhas citadas é da Ação Penal nº 470 - "Caso Mensalão".
Em sentido contrário, votaram expressamente pela possibilidade de incidência da norma do inciso VII do art. 1º da Lei nº 9.613/98 os Ministros Joaquim Barbosa (Relator), Carmem Lúcia (fls. 53685/53694), Luiz Fux (fls. 53124/53133) e Dias Toffoli (fls. 54883/54888) - a numeração das folhas citadas é da Ação Penal nº 470 - "Caso Mensalão".
Quanto ao voto dos demais Ministros, a fundamentação restou lastreada exclusivamente nos incisos V e VI do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, ou ainda pela absolvição de alguns réus, ao considerar que a lavagem retratada configurou mero exaurimento do crime antecedente, ou seja, utilização natural do proveito do ilícito perpetrado, sem ocultação fraudulenta ou dissimulação, considerando-a um post factum impunível, com aplicação do princípio da consunção.
Importante ainda, mais uma vez, ressaltar que mesmo depois do julgamento da Ação Penal nº 470, a Primeira Turma do E. Supremo Tribunal Federal, ao julgar o habeas corpus nº 108.715, em 24/09/2013, determinou, por maioria de votos, o trancamento da ação penal em que se imputava o crime de lavagem de dinheiro, que tinha como antecedente o inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98.
Interessante notar que o Ministro Dias Toffoli, que no caso do "Mensalão" votou pela aplicabilidade daquela norma, apresentou voto-vista naquele writ no sentido de acompanhar o relator, Ministro Marco Aurélio, e, inclusive, lembrou que a questão também foi debatida no julgamento da Ação Penal (AP) 470, quando o Plenário entendeu ser necessária a existência de um tipo penal próprio para o crime de organização criminosa. (cf. notícia veiculada no sítio do Supremo Tribunal Federal de 27/09/2013).
Portanto, como visto, verifica-se que a jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal (ao menos seis ministros) vem se inclinando no sentido de não reconhecer a aplicação da norma do inciso VII do artigo 1º da Lei nº 9.613/98, por considerar inexistir no ordenamento jurídico brasileiro conceito legal do que seja organização criminosa, ao menos até a entrada em vigor da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, ferindo-se, assim, os princípios da estrita legalidade ou reserva legal e da taxatividade da lei penal.
No caso específico destes autos, como já esclarecido, as aquisições de bens móveis e imóveis, bem como as movimentações financeiras do apelante, perpetradas de maneira escusa e fraudulenta, ocorreram em períodos quando ainda inexistia no Brasil definição jurídica e legal de organização criminosa (lei em sentido estrito), o que somente veio à lume quando da entrada em vigência da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013.
No tocante ao argumento de que a Convenção de Palermo, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004, teria trazido o conceito de organização criminosa, o que vem, inclusive, sendo acolhido pelo C. Superior Tribunal de Justiça, tenho que referido posicionamento, com a devida vênia, não se coaduna com a melhor interpretação, à luz da Constituição Federal.
É que, como é cediço, os Tratados e as Convenções Internacionais, apesar de ingressarem no Brasil com status de lei ordinária, ou, em alguns casos, até mesmo como normas de amplitude supralegal ou constitucional - tratados de direitos humanos aprovados, respectivamente, pelo rito ordinário ou com quorum de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, da CF/88) -, traduzem-se apenas como diretrizes a serem evidentemente seguidas pelas nações que a eles aderiram, mas jamais podem criar leis de caráter criminal, atribuição constitucional afeta tão somente ao Poder Legislativo de cada País.
Pensar o contrário seria o mesmo que possibilitar que o simples ato de ratificação de um tratado, automaticamente, fizesse surgir normais penais incriminadoras, ou mesmo explicativas, no ordenamento jurídico interno, sem a amplitude de debate pelo órgão legislativo competente, imprescindível à sua concretização, com ferimento ao princípio da reserva legal.
Com efeito, como é cediço, a norma prevista no art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal -, é cláusula pétrea, somente podendo ser alterada mediante manifestação do Poder Constituinte Originário, e não Derivado, sendo certo que os tratados e convenções internacionais que ingressam no Brasil com status de norma constitucional - únicos que poderiam, pois, alterar a Constituição -, restringem-se àqueles que prevêem em seu bojo normas de direitos humanos (art. 5º, § 3º, da CF/88), o que não é o caso de normas penais incriminadoras.
Dessa forma, conclui-se que mesmo ingressando no ordenamento jurídico brasileiro com status de norma constitucional, inexiste qualquer possibilidade de um tratado ou convenção internacional modificar a norma de higidez prevista no artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Federal, porquanto cláusula pétrea, tampouco de criar crimes ou de definir normas explicativas criminalizadoras, sendo necessário para tal mister de lei penal em sentido estrito.
No caso em questão, a Convenção de Palermo, como visto, foi introduzida no ordenamento brasileiro com status de lei ordinária, não podendo, assim, afrontar uma cláusula pétrea constitucional - art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal -, a ponto de definir crime, de maneira que a conclusão mais acertada, a meu ver, é a de que referida norma internacional não tem o condão de conceituar organização criminosa, o que somente pode se dar mediante lei em sentido estrito, por se tratar tal conceito de elementar normativa do tipo do art. 1º, inciso VII, da Lei nº 9.613/98.
Por fim, ainda que se argumente que referido conceito poderia ser veiculado por outras espécies normativas, tal como os tratados internacionais, já que o art. 1º, inciso VII, da Lei nº 9.613/98, é norma penal em branco, tenho por equivocada essa conclusão, pois o ordenamento brasileiro vem buscando combater as organizações e associações criminosas desde a edição da revogada Lei nº 9.034/95, cujo artigo 1º deixava claro haver distinção entre quadrilha ou bando, associações criminosas e organizações criminosas, verbis:
"Art. 1º. Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações criminosas ou associações criminosas de qualquer tipo".
Dessa forma, considerando que os crimes de quadrilha ou bando e de associação criminosa estão expressamente previstos, respectivamente, nos artigos 288 do Código Penal e 35 da Lei nº 11.343/2006 (leis ordinárias), resta evidente que tanto o crime de organização criminosa quanto o próprio conceito desse instituto somente podem ser fornecidos por lei ordinária em sentido estrito, tal como se dá para os dois delitos citados.
Há de ser refletido, ainda, o fato de que a Convenção de Palermo prevê definição de organização criminosa divergente à da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, a demonstrar a relevância do debate legislativo na criação de normas internas criminais, à luz da norma internacional.
Senão vejamos.
Dispõe o artigo 2º da Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional:
"Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;
b) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior".
Já o § 1º do art. 1º da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, assim dispõe:
"§ 1o Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional".
Como se verifica, além do número mínimo de agentes ser diferente entre os dois conceitos (mínimo de três pela Convenção e mínimo de quatro pela Lei), a vantagem indevida na Convenção de Palermo deve ser de natureza econômica ou material, enquanto pela Lei nº 12.850/2013 pode ela ser de qualquer natureza.
Tais circunstâncias, por si sós, revelam a necessidade de a Convenção e do Tratado Internacional somente serem veiculados no ordenamento jurídico pátrio por meio do Poder Legislativo Federal, observado o quorum previsto na Constituição Federal, principalmente, quando se tratar de criação de normas de natureza penal.
Outrossim, observados esses aspectos, adoto o entendimento emanado da posição majoritária da Colenda Suprema Corte, no sentido de que a citada Convenção de Palermo não tem o condão de trazer à lume o conceito jurídico de organização criminosa, sob pena de ofensa ao princípio da reserva legal - art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal, verbis:
"XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". (grifo nosso).
CONCLUSÃO
Dessa forma, à luz dos importantes precedentes citados, do C. Supremo Tribunal Federal, entendo que o caso é de absolvição do acusado, por atipicidade de sua conduta ao tempo do fato, com fundamento no artigo 386, inciso III, do CPP.
Ante todo o exposto, divirjo da eminente Relatora, e, pelo meu voto, dou provimento à apelação defensiva para absolver o apelante Edson Álvares de Lima, com fundamento no artigo 386, inciso III, do CPP (atipicidade da conduta), e, com isso, julgo prejudicada a apelação ministerial.
É como voto.
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RELATÓRIO
Trata-se de apelações criminais interpostas pelo Ministério Público Federal e pela defesa de Edison Álvares de Lima contra a sentença que o condenou a 5 (cinco) anos de reclusão, regime inicial semiaberto, e 200 (duzentos) dias-multa, no valor unitário de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais), pela prática do delito do art. 1º, VII, c. c. o § 1º, I, da Lei n. 9.613/98 (fls. 615/636).
O Ministério Público Federal apela, em síntese, com os seguintes argumentos:
A defesa apresentou contrarrazões (fls. 651/662).
A seu turno, a defesa de Edison Álvares de Lima apela, em síntese, com os seguintes argumentos:
Foi elaborado parecer pelo Advogado Criminalista Roberto Delmanto Junior (fls. 719/759).
O Ministério Público Federal apresentou contrarrazões (fls. 764/780).
O Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Pedro Barbosa Pereira Neto, manifestou-se pelo desprovimento do recurso da defesa e pelo provimento parcial do recurso do Ministério Público Federal, apenas para fixar o regime inicial fechado (fls. 782/788).
Foi juntado aos autos acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus n. 105.905/MS que afastou ato de constrição implementado pelo Juízo Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul (MS), que deferiu pedido de sequestro de bens formulado pelo Governo paraguaio, nos autos do Processo n. 2006.60.05.000398-8 (fls. 789/796).
Os autos foram encaminhados à revisão, nos termos regimentais.
É o relatório.
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VOTO
Imputação. Edison Álvares de Lima foi denunciado pela prática do delito do art. 1º, VII e § 1º, I, da Lei n. 9.613/98, pelos seguintes fatos:
Denúncia. Inépcia. Para não ser considerada inepta, a denúncia deve descrever de forma clara e suficiente a conduta delituosa, apontando as circunstâncias necessárias à configuração do delito, a materialidade delitiva e os indícios de autoria, viabilizando ao acusado o exercício da ampla defesa, propiciando-lhe o conhecimento da acusação que sobre ele recai, bem como, qual a medida de sua participação na prática criminosa, atendendo ao disposto no art. 41, do Código de Processo Penal:
Lavagem de dinheiro. Crimes antecedentes. Indícios de materialidade. Suficiência. Para a configuração do delito de lavagem de dinheiro, basta a existência de indícios de materialidade dos delitos antecedentes:
Do caso dos autos. A defesa sustenta que a denúncia é manifestamente inepta, tendo em vista que a acusação quanto ao delito de lavagem de dinheiro fundou-se apenas em que " 'Edson Alvares... adentrou em território brasileiro portando R$ 550.000,00 em espécie no dia 29/11/2000, três meses após o roubo no aeroporto de Luque (04/08/2000)'" (destaques originais, fl. 676). Argumenta que o Parquet não afirmou na denúncia que o acusado foi condenado definitivamente pela Justiça Paraguaia, tampouco descreveu o nexo entre o delito de roubo praticado no Paraguai e o acusado. Aduz que a imputação pelo delito de lavagem de capitais encontra-se fundada apenas no Pedido de Cooperação Judiciária Internacional da República Paraguaia.
Não procedem tais alegações.
A denúncia preenche os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. Narra os fatos e as circunstâncias dos crimes antecedente e de lavagem de capitais, possibilitando ao acusado o amplo exercício do contraditório e da ampla defesa. Expõe satisfatoriamente a prova da materialidade e os indícios de autoria delitiva.
O processo e o julgamento do acusado pelo delito de lavagem de capitais prescinde de sua condenação definitiva perante a Justiça Paraguaia pelo crime antecedente, a teor do que dispõe o art. 2º, II, § 1º, da Lei n. 9.613/98:
Não obstante seja suficiente que a denúncia pelo delito de lavagem de capitais consigne apenas indícios da prática do crime antecedente, há nos autos prova cabal de sua existência, conforme decisão da Justiça Paraguaia na Causa "EDISON ALVARES DE LIMA, OSCAR CELESTINO OJEDA, ROBERTO BACHILLET GONZÁLEZ, JUAN PABLO ORTIGOZA SAMUDIO, ANDRES QUINTIN MEDINA, CARLOS MORINIGO PAREDES, ADRIANA ACOSTA ALEGRE, WILFRIDA BEAUFORT Vda. De OJEDA, JUSTINA ROMAN Vda. De ACEVEDO, S/ ROUBO AGRAVADO, LAVAGEM DE DINHEIRO E ASSOCIAÇAO CRIMINAL. LUQUE A.I. Nº 12" (fl. 57) e extrato de movimentação processual do feito n. 0041239-64.2006.8.12.0001, que tramita perante o MM. Juízo Estadual da 2ª Vara Criminal de Campo Grande (MS), em que o acusado foi denunciado pela prática do roubo em Luque (Paraguai), o qual aponta o alcance da fase da defesa preliminar (16.08.10) (fls. 57/69 e 295/300).
Decorre da independência entre os processos a dispensabilidade da homologação de eventual sentença condenatória estrangeira pelo crime antecedente para viabilização do julgamento pelo crime de lavagem de capitais.
Nesse sentido, manifestou-se o Ilustre Procurador Regional da República:
Preliminar que se rejeita.
Competência. Justiça Federal. Conexão instrumental ou probatória. A competência será determinada pela conexão probatória ou instrumental quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração (CPP, art. 76, III).
A conexão instrumental ocorre quando dois ou mais fatos apresentam uma relação de interdependência, motivada por uma profunda ligação de coisas ou situações que lhes sejam comuns:
Do caso dos autos. A defesa sustenta que a Justiça Federal é incompetente para processar e julgar o presente feito, tendo em vista que o bem jurídico atingido com a lavagem de capitais não se encontra expresso no art. 2º, III, a, da Lei n. 9.613/98 e o crime antecedente está sendo processado perante o MM. Juízo Estadual da 2ª Vara Criminal de Campo Grande (MS).
Não lhe assiste razão.
O crime antecedente do delito de lavagem de dinheiro restou esclarecido como sendo aquele que o art. 1º, VII, da Lei n. 9.613/98, na redação anterior à Lei n. 12.683/12, indicava:
No presente caso, a prática pela organização criminosa, integrada pelo acusado, do delito de roubo na cidade de Luque (Paraguai) tem evidente conexão com a ocultação dos valores provenientes do crime no Brasil.
O art. 2.º, III, a e b, da Lei n. 9.613/98 dispõe sobre a competência da Justiça Federal nos crimes de lavagem de capitais:
A lavagem transnacional de capitais relatada nestes autos é matéria afeta aos interesses da União, sendo, portanto, da competência da Justiça Federal, conforme estabelece o art. 109, IV e V, da Constituição da República de 1988:
O interesse da União, nesse caso, é ainda revelado por diversos atos internacionais firmados pelo Brasil para repressão da lavagem de capitais, conforme ressaltou o MM. Magistrado a quo:
Nesse sentido, manifestou-se o Ilustre Procurador Regional da República:
Preliminar que se rejeita.
Materialidade. A materialidade do delito encontra-se devidamente demonstrada pelos seguintes documentos:
Nos autos de Medidas Assecuratórias n. 2006.60.05.000398-8, a União requereu o sequestro dos bens do acusado encontrados em território brasileiro, a fim de atender à solicitação da Justiça paraguaia, com fundamento no Protocolo de Assistência Jurídica Mútua em Assuntos Penais, assinado pelo Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai (fls. 2/16). Nesse requerimento, foi informado o seguinte:
Consta, ainda, de decisão proferida pela Justiça paraguaia:
O MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS) ordenou o sequestro de todos os bens movéis e imóveis, veículos e semoventes, encontrados no Brasil, em nome do acusado (fl. 97).
O acusado propôs reclamação no Superior Tribunal de Justiça, à qual foi negado seguimento. Insurgiu-se contra essa decisão, sustentando a necessidade de concessão de exequatur e a impossibilidade de dar cumprimento à diligência ou à prática de atos requeridos por Estado estrangeiro com base apenas em Acordo de Cooperação Mútua Internacional, decorrendo daí a usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça (Constituição da República, art. 105, I, i). Foi deferida medida liminar para obstaculizar atos expropriatórios relativos aos bens do acusado (fls. 331/334).
A despeito do pedido de sequestro formulado pela Justiça Paraguaia, voltado à garantia dos prejuízos lá ocasionados pela prática do crime de roubo, entre outros (Medidas Assecuratórias n. 2006.60.05.000398-8), nestes autos, o Ministério Público Federal formulou pedido de sequestro de determinados bens do acusado, em decorrência da prática de lavagem de dinheiro em território brasileiro, com fulcro no art. 4º da Lei n. 9.613/98, sendo deferida a medida pelo MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS) (fls. 475/477).
Foi juntado aos autos acórdão proferido no Habeas Corpus n. 105.905/MS, em que o Supremo Tribunal Federal afastou ato de constrição implementado pelo MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS) (fls. 789/796).
Posteriormente, foi instaurado o IPL n. 310/06-SR/DPF/MS, perante o MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS), com o fim de apurar a prática do crime de lavagem de dinheiro pelo acusado, em relação ao qual foi distribuído por dependência o Pedido de Quebra de Sigilo de Dados n. 2006.60.00.006207-9, em que foi decretada quebra do sigilo bancário e fiscal do acusado, acolhida representação da Autoridade Policial (fls. 110/115).
Foi juntado aos autos do IPL n. 310/06-SR/DPF/MS termo de declarações do acusado perante o 2º Distrito Policial de Ponta Porã (MS), datada de 04.08.00, relacionadas ao testemunho de ocorrência de trânsito, na mesma cidade, com data de 29.06.00, envolvendo atropelamento de ciclista. Consta que o acusado não atendeu à primeira intimação para comparecimento na Polícia (fl. 261).
No Relatório do IPL n. 310/06-SR/DPF/MS, a Autoridade Policial assinalou os acontecimentos apurados cronologicamente:
A Secretaria da Receita Federal do Brasil informou não constar registro em sistema da Declaração de Porte de Valores referente à entrada de R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais) em nome do acusado (fl. 530).
A Seção de Administração Aduaneira - SAANA da Receita Federal do Brasil em Ponta Porã (MS) informou que "não consta Declaração de Porte de Valores no ano de 2009 para o Sr. EDISON ALVAREZ DE LIMA" (fl. 560).
A Delegacia da Receita Federal do Brasil em Campo Grande (MS) informou que "a Delegacia da Receita Federal do Brasil de Campo Grande não possui registros em papel de DPV (Declaração de Porte de Valores) da época requerida (29/11/1998 a 29/11/2002) e que o sistema informatizado de DPV teve início em 2008, portanto, não abrange o período citado" (fl. 566).
Autoria. A autoria delitiva está satisfatoriamente demonstrada.
Ouvido perante a Autoridade Policial, em 06.03.09, o acusado Edison Álvares de Lima declarou que adquiriu a fazenda Rincão das Lagoas, em Ponta Porã (MS), no ano de 1998 e desde então se dedica à agricultura no local. Afirmou que comprou referido imóvel pelo valor de R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais) de Salim Derzi. Aduziu que antes da transação, residia no Paraguai, onde se dedicava ao ramo de secos e molhados, além de comprar e vender gado. Aduziu que, nos últimos 10 (dez) anos, recebeu em média R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) anuais líquidos, a depender da lavoura, qualidade da safra e preços praticados. Informou que sua receita anual bruta é de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Relatou que a fazenda Rincão das Lagoas foi adquirida com valores originários da venda de seu comércio no Paraguai e com valores pertencentes a sua esposa Justina Roman, de nacionalidade paraguaia. Alegou que não recebeu nenhuma quantia proveniente de doação ou herança a que corresponda a declaração de R$ 700.000,00 (setecentos mil reais) no seu imposto de renda pessoa física de 2000. Referiu que possui documento representativo da entrada de R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais) no Brasil, emitido pela Receita Federal. Confirmou que, em 06.02.03, adquiriu casa no loteamento Jardim Itaipu em Dourados (MS), onde atualmente reside, pelo valor de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais), mediante o pagamento de R$ 100.000,00 (cem mil reais), com recursos próprios, e o restante em cabeças de gado. Afirmou que é proprietário da Fazenda Rincão e da casa localizada no loteamento Jardim Itaipu, bem como da caminhonete Ford F-250, ano 2003, do veículo GM Vectra, ano 2000 e da motocicleta Yamaha XT600. Negou envolvimento em roubo no aeroporto de Luque (Paraguai), no dia 04.08.00. Disse que foi ele próprio quem elaborou a declaração de ajuste anual referida (fls. 219/220).
Reinterrogado na fase inquisitorial, em 15.07.10, o acusado declarou que adquiriu fazenda em Ponta Porã (MS), em dezembro de 2000. Disse que aludido imóvel foi objeto de sequestro em razão de roubo praticado no Paraguai, em 04.08.00. Reiterou que não teve qualquer participação naqueles fatos, sendo envolvido por corrupção da polícia paraguaia. Relatou que sua esposa possuía caminhonete Mitsubishi, que foi roubada e, posteriormente, localizada na posse de Autoridade Policial e que tentou recuperar o veículo, quando passou a ser ameaçado pela polícia, ao que reputa tenha sido incriminado pelo crime de roubo. Alegou que reportou as ameaças sofridas à embaixada e a órgão de direitos humanos no Paraguai, o que desencadeou a intensificação das perseguições e motivou a alteração de sua residência para o Brasil. Informou que ele, sua esposa e filho juntaram suas economias e mudaram-se para o Brasil, com R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais), cujo porte foi declarado à Receita Federal em 29.11.00. Disse que utilizou mencionada quantia para a compra da fazenda Rincão das Lagoas. Afirmou que seu patrimônio é fruto dos rendimentos de 20 (vinte) anos de trabalho em Assunção (Paraguai). Narrou que em abril de 2000 dirigiu-se a Ponta Porã (MS) e alugou casa, antes de seu estabelecimento definitivo no Brasil. Disse que, atualmente, se dedica à agricultura (fls. 252/253). Anexou aos autos Declaração de Porte de Valores (fl. 255).
Reinterrogado na Polícia, em 08.10.10, confirmou o teor das declarações anteriormente prestadas. Informou as testemunhas que poderiam comprovar que se encontrava no Brasil em 04.08.00. Disse que não foi condenado perante a Justiça paraguaia, tampouco perante a Justiça Estadual de Campo Grande (MS), quanto ao crime de roubo. Relatou que há processo por falsidade ideológica, que não gerou sua prisão, referente a compras efetuadas no interior de São Paulo (SP) com o uso de seu nome (fls. 267/270).
Interrogado em Juízo, o acusado declarou que morou em Assunção (Paraguai), cidade adjacente a Luque (Paraguai), de 1978 a 1999, exercendo atividades profissionais em mercado local. Disse que tais atividades eram, em parte, contabilizadas. Referiu que é companheiro de Justina, acusada da prática do roubo no aeroporto de Luque (Paraguai). Alegou que não participou desse roubo, tampouco conhece qualquer dos envolvidos. Afirmou que é proprietário da fazenda Rincão das Lagoas, que adquiriu pelo valor de R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais), em 2 (duas) prestações, 1 (uma) entrada e o restante no ato da escritura. Relatou que esse montante era proveniente de seu trabalho no Paraguai, sendo, em parte, pertencente também a sua companheira Justina e filhos dela. Informou que trouxe esse valor em espécie, aos poucos, para o Brasil, utilizando-se também de transferências bancárias realizadas pelo Banco do Paraná, onde sua companheira mantinha conta. Declarou que a propriedade Rincão das Lagoas tem 4 (quatro) matrículas, cujas terras encontram-se avaliadas em R$ 8.000,00 (oito mil reais) por hectare e totalizam 683,5ha (seiscentos e oitenta e três e meio hectares). Confirmou que comprou 1 (um) imóvel urbano em Dourados (MS). Esclareceu que os valores movimentados em conta bancária entre 2002 e 2006, que superaram R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), provinham do plantio e de empréstimos bancários. Disse que atualmente deve R$ 700.000,00 (setecentos mil reais) para o banco, em razão de oscilações nas safras, com vencimento em 2015. Relatou que construiu apenas cercado e barracão na mencionada fazenda. Aduziu que possui 1 (um) Ford, 1 (um) Vectra e 1 (uma) motocicleta Yamaha. Declarou que responde a 3 (três) processos criminais: lavagem de dinheiro (estes autos), roubo e falsidade. Disse que não foi processado ou condenado no Paraguai. Alegou que trabalhava com açougues no Brasil, antes de mudar-se para o Paraguai. Relatou que possui documentação comprobatória da atividade econômica exercida no Paraguai. Narrou que negociou a fazenda Rincão das Lagoas diretamente com seu antigo proprietário, Salim Derzi. Confirmou que declarou à Receita Federal os valores que portava ao regressar ao País, equivalentes aos R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais) utilizados na compra da fazenda, conforme orientação recebida de contador. Disse que o faturamento decorrente da exploração da Rincão das Lagoas alcançou R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) e que o rendimento foi aplicado em cabeças de gado, veículos e imóvel urbano já referido. Negou exercício atual de qualquer atividade profissional no Paraguai. Afirmou que se mudou para o Brasil porque sofria constantes ameaças da Polícia paraguaia, em razão de ter localizado carro roubado pertencente a sua companheira na posse de policiais. Alegou que procurou a embaixada brasileira e a central de direitos humanos para prestar declarações sobre tais ameaças e obter documento que o salvaguardasse. Aduziu que se dirigiu à Receita Federal para obter versão legível da declaração de porte de valores juntada aos autos. Declarou que, no dia 04.08.00, dia do roubo na cidade de Luque (Paraguai), encontrava-se na Delegacia de Polícia, onde prestava declarações como testemunha de ocorrência de trânsito. Declarou que, no dia da referida ocorrência, houve comunicação verbal para comparecer à Delegacia de Polícia e que se esqueceu de atender à ordem, comparecendo apenas em 04.08.00, em cumprimento a intimação (fl. 508 e mídia à fl. 509).
Na fase policial, Maria Teixeira de Oliveira Soto, signatária da escritura de venda da fazenda Rincão das Lagoas, como testemunha, disse que não teve contato com o comprador do imóvel, não se recordando do valor pago na transação ou a forma de pagamento. Declarou que sabia tratar-se de pessoa de fora do Estado, talvez de São Paulo (fls. 197/198).
Na fase policial, Sandra Brandão Derzi Resende, signatária da escritura de venda da fazenda Rincão das Lagoas, como testemunha, disse que o imóvel pertencia aos seus tios Edy Marques Derzi e Salim Derzi e localizava-se em Ponta Porã (MS). Declarou que a transação se deu no ano de 2000. Afirmou que não conheceu o comprador, tampouco soube o valor da transação e a forma de pagamento (fl. 201).
Em Juízo, a testemunha Edivaldo Bezerra de Oliveira declarou que trabalhou nas investigações do crime antecedente de lavagem de capitais, afirmando que o acusado foi condenado pela prática de roubo no Paraguai. Disse que o acusado justificou que realizava atividade lícita, na condição de agricultor, não sendo efetuadas diligências in loco para verificação. Aduziu que foi constatada a aquisição de bens pelo acusado, no Brasil, em data posterior ao aludido roubo. Relatou que o acusado procurou justificar a origem lícita da propriedade de terras rurais mediante documentos de veracidade controvertida. Referiu que não houve diligências para confirmação da existência do imóvel rural. Narrou que o acusado disse que os valores introduzidos no Brasil decorriam de seu trabalho no Paraguai e, em parte, de herança recebida pela sua companheira, sem adicionar elementos que corroborassem tais alegações. Relatou que há pedido de cooperação jurídica do Paraguai e que acredita que exista nos autos sentença condenatória da Justiça paraguaia, com trânsito em julgado, em desfavor do acusado. Declarou que o crime de roubo foi praticado por organização criminosa. Informou que a declaração de porte de valores é preenchida pela pessoa interessada, não sendo conferidos os dados declarados pela Receita Federal (fl. 501 e mídia à fl. 502).
Em Juízo, a testemunha Jean Clayton Peixoto de Albuquerque declarou que o acusado estava no Brasil no ano de 2000 e prestou declarações como testemunha em Ponta Porã (MS), nada esclarecendo sobre o acidente de trânsito relacionado. Negou conhecimento sobre participação do acusado em roubo na cidade de Luque (Paraguai), no ano de 2000. Disse que o acusado possui a fazenda Rincão das Lagoas em Ponta Porã (MS), onde presta serviços técnicos na lavoura. Disse que não acompanhou a aquisição dessa fazenda. Relatou que trabalha na fazenda do acusado desde 2003 ou 2004 (fl. 545 e mídia à fl. 569).
Em Juízo, a testemunha Ilzo da Silva Martins declarou que conhece o acusado desde 1987. Afirmou que encontrou com o acusado no ano de 2000, no açougue Moura Filho. Disse que o acusado comentou que foi testemunha em acidente de trânsito. Negou conhecimento sobre a participação do acusado em roubo na cidade de Luque (Paraguai), no ano de 2000. Disse que o acusado possui fazenda na cidade de Ponta Porã (MS) e é cliente do seu comércio desde 2000 ou 2001. Relatou que, em 1987, o acusado trabalhava em açougue, na cidade de Ponta Porã (MS). Aduziu que não acompanhou a compra da fazenda pelo acusado, desconhecendo outros bens a ele pertencentes. Disse que desconhece as atividades profissionais exercidas pelo acusado enquanto morou no Paraguai (fl. 545 e mídia à fl. 569).
As versões apresentadas pelo acusado são controvertidas: inquirido perante a Autoridade Policial, em 06.03.09, disse que adquiriu a fazenda Rincão das Lagoas em 1998 e, em 15.07.10, disse que a adquiriu em dezembro de 2000 e que alugou casa no Brasil em abril de 2000.
Considerando tenha adquirido a fazenda apenas em dezembro de 2000 (cfr. escritura pública de compra e venda, fls. 163/164), extrai-se de suas declarações estivesse em constante tráfego entre Assunção (Paraguai) e Ponta Porã (MS) naquele ano, não sendo suficiente a juntada de termo de declarações do acusado perante o 2º Distrito Policial de Ponta Porã (MS), com data de 04.08.00, relacionadas ao testemunho de ocorrência de trânsito de 29.06.00, para que se conclua não estivesse envolvido no roubo no aeroporto de Luque (Paraguai). Causa estranheza não tenha comparecido à Polícia para relatar o acidente de trânsito em questão por ocasião da primeira intimação, com data de 24.07.00 (fl. 256), mas apenas em 04.08.00, data do roubo.
Decorre do relato do acusado que era dono de comércio em Assunção (Paraguai) e que os valores empregados na compra da fazenda Rincão das Lagoas, provenientes dos rendimentos desse trabalho e de recursos pertencentes a sua convivente e aos filhos dela, foram transportados em espécie e por intermédio de transferência bancária. Como introduziu em território nacional o montante de R$ 550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais), em espécie, em 29.11.00 (cfr. Declaração de porte de valores, fl. 255), originário das economias de seu negócio e de seu grupo familiar, infere-se que, até a véspera, tenha residido no Paraguai, o que é corroborado pelo fato de ter declarado seu endereço no País vizinho no ato da lavratura da matrícula da aludida propriedade rural, em 12.12.00 (Matrículas ns. 8262, 7595, 32.917, 8300, às fls. 19, 22, 23v. e 26v.).
A aquisição da mencionada fazenda pela quantia declarada de R$ 545.434,99 (quinhentos e quarenta e cinco mil, quatrocentos e trinta e quatro reais e noventa e nove centavos), com pagamento do valor integral à vista, em 01.12.00, dois dias após seu ingresso no Brasil, revela a intenção do acusado de desvincular o dinheiro paraguaio de sua procedência delituosa, conferindo-lhe aparência lícita, no Brasil.
Admite-se tenha o acusado declarado porte de valor diverso daquele que efetivamente introduziu no Brasil, em 29.11.00, bem como tenha realizado outros transportes de valores além deste único noticiado nos autos, tendo em vista sua facilidade de deslocamento entre os dois países, as circunstâncias do patrimônio adquirido no Brasil, além das crescentes e expressivas movimentações financeiras constantes de suas declarações de imposto de renda até o ano de 2006. Pesa dúvida também quanto aos valores declarados dos dois imóveis do acusado, como acertadamente assinalou o MM. Magistrado a quo:
Não houve comprovação nos autos das alegadas ameaças dirigidas contra o acusado pela Polícia paraguaia, que teriam motivado seu retorno ao Brasil. Tampouco foram juntados elementos indicativos do exercício de atividade profissional lícita no Paraguai, no ramo de secos e molhados, ou do exercício de atividade agropecuária lucrativa na fazenda Rincão das Lagoas que pudesse justificar a intensa movimentação financeira realizada pelo acusado até o ano de 2006, o que fora também acentuado pela testemunha Edivaldo Bezerra de Oliveira, que acompanhou as investigações.
Quanto ao regresso definitivo do acusado ao Brasil, no ano de 2000, os depoimentos da testemunha Jean Clayton Peixoto de Albuquerque, que iniciou prestação de serviços na fazenda do acusado apenas em 2003 ou 2004, e da testemunha Ilzo da Silva Martins, que o encontrou certa vez em açougue naquele ano, evidenciam-se isolados nos autos. Consoante mencionado supra, extrai-se do conjunto probatório que o acusado residia no Paraguai ao tempo do roubo ao aeroporto de Luque (Paraguai) até, pelo menos, seu ingresso no Brasil em 29.11.00, quando decidiu constituir patrimônio para ocultar proveito econômico obtido com a prática criminosa no País vizinho.
Os depoimentos das testemunhas Maria Teixeira de Oliveira Soto e Sandra Brandão Derzi Resende, ambas signatárias da escritura de venda da fazenda Rincão das Lagoas, tampouco favorecem o acusado, tendo em vista que não forneceram esclarecimentos sobre a transação desse imóvel.
Controvertido, ainda, o recebimento de R$ 700.000,00 (setecentos mil reais) pelo acusado, a título de doação ou herança, no ano de 2000, constantes de sua declaração de imposto de renda, que ele próprio negou em interrogatório policial.
Acrescente-se que a companheira do acusado, Justina Roman, também foi processada pela Justiça paraguaia, na Causa A.I. n. 12, por envolvimento no roubo ao aeroporto da cidade de Luque (Paraguai), não tendo o acusado negado seu envolvimento com ela.
Restaram satisfatoriamente demonstradas a materialidade, a autoria e o dolo do acusado na prática do delito de lavagem de capitais, sendo de rigor a manutenção da sentença condenatória pela prática do delito do art. 1º, VII e § 1º, I, da Lei n. 9.613/98.
Atipicidade da conduta definida como crime antecedente. Inocorrência. A defesa considera atípica a conduta definida como crime antecedente, tendo em vista que a legislação brasileira não tipificava o crime de organização criminosa, na época dos fatos, de acordo com o entendimento expresso no Habeas Corpus n. 96.007 do Supremo Tribunal Federal.
Refere que o Supremo Tribunal Federal, que vinha entendendo que o Decreto Presidencial n. 5.015/2004 seria suficiente para conceituar organização criminosa para fins de aplicação da Lei n. 9.613/98, posicionou-se contrariamente com o Habeas Corpus n. 96.007.
Alega que o Decreto Presidencial n. 5.015/2004 incide para crimes praticados em data posterior ao início de sua vigência e a denúncia narra que o crime antecedente teria sido praticado no ano de 2000, não podendo retroagir para alcançá-lo.
Assinala que, não obstante a Lei n. 12.683, de 09.07.12 tenha alterado a Lei n. 9.613/98, suprimindo os incisos do art. 1º que previam os crimes antecedentes da lavagem de dinheiro, vigia à época dos fatos a antiga redação, que os enumerava.
Ressalta que a aplicação da Lei n. 12.683/12 ao caso dos autos, em prejuízo do acusado, implicaria em indevida novatio legis incriminadora.
Tais assertivas não prosperam.
O crime antecedente do delito de lavagem de dinheiro restou devidamente esclarecido como sendo aquele indicado no art. 1.º, VII, da Lei n. 9.613/98 (crime praticado por organização criminosa):
A controvérsia sobre a conceituação jurídica de organização não interfere na aplicação do art. 1º, VII, da Lei n. 9.613/98, que aludia ao crime antecedente "praticado por organização criminosa", na redação anterior à Lei n. 12.683/12.
É desnecessária a previsão de crime de organização criminosa no ordenamento jurídico pátrio para que se aperfeiçoe a hipótese descrita art. 1º, VII, da Lei n. 9.613/98, bastando que seja cometido delito por organização criminosa. Nem mesmo a recente Lei n. 12.683/12 inaugurou a tipificação de crime de organização criminosa.
Não obstante o entendimento de que o Decreto Presidencial n. 5.015, de 12.03.04, que promulgou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), definindo em seu art. 2º grupo criminoso organizado como sendo "grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material", seja aplicável apenas para crimes posteriores ao início de sua vigência, ressalto que a Lei n. 9.034, de 03.05.95, já previa mecanismos de investigação e formação de prova voltados à repressão dos delitos praticados por organização criminosa.
Nesse sentido, transcrevo as considerações realizadas pelo Ilustre Procurador Regional da República:
Consta do Informativo STF n. 679, Ação Penal 470 (Caso Mensalão), extraído do sistema informatizado da Suprema Corte:
Tal entendimento coaduna-se com recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça, desta Turma Julgadora e demais Tribunais Regionais Federais:
(STJ, HC n. 77771, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 30.05.08)
10. Ordem de habeas corpus denegada.
Lavagem de capitais. Post factum impunível. Inocorrência. A defesa entende que a ocultação ou dissimulação do produto do crime pelo próprio autor do crime antecedente constitui post factum impunível, não havendo de se imputar àquele que praticou o crime antecedente também o crime de lavagem de capitais.
Sustenta que o crime de lavagem de dinheiro praticado pelo acusado é mero exaurimento do primeiro crime, "a ação típica que ocorra após o delito e unicamente pretenda assegurar, aproveitar ou materializar o ganho obtido pelo primeiro fato, resta consumida quanto não se lesiona nenhum outro bem jurídico e o dano não se amplia quantitativamente para além do ocasionado" (sic, fl. 708).
Adiciona que "o indivíduo quando tipificado na 'Lei de Lavagem de dinheiro ou de Capitais', está direcionado à conversão de valores e bens ilícitos em capitais lícitos (...) não poderia o mesmo agente ser novamente punido pela conduta de 'converter os ativos ilícitos em lícitos', conforme denunciou o Ministério Público, quanto à segunda tipificação no § 1º, inciso I, artigo 1º da Lei supramencionada" (fl. 711), e que "a Lei de lavagem de dinheiro classifica como condutas típicas o ocultar ou transformar (dando ao dinheiro ilícito a aparência de lícito pela dissimulação de sua natureza, origem ou movimentação), a conversão de ativos ilícitos em lícitos não se dá com a mera aquisição de bens com o produto do crime anterior... E mais, a conduta do § 1º, inciso do art. 1º, é simples exaurimento da primeira conduta" (destaques originais, fl. 712).
Não tem razão.
O crime de lavagem de dinheiro tem natureza autônoma em relação aos crimes antecedentes. Não caracteriza bis in idem a condenação por lavagem de capitais de réu já condenado pelo crime antecedente, tendo em vista que a Lei n. 9.613/98 tutela o Sistema Financeiro Nacional, prevenindo-o da ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos e valores provenientes de infração penal, não representando mero exaurimento do delito antecedente, que, no caso dos autos, atinge bem jurídico diverso.
Nesse sentido, confira-se julgado do Supremo Tribunal Federal:
No mesmo sentido, verifiquem-se as ponderações do MM. Magistrado a quo:
Esse é o entendimento do Ilustre Procurador Regional da República (fl. 786/786v.).
Perdimento de bens. A defesa argumenta que o pedido de perdimento de bens formulado pelo Ministério Público Federal não encontra amparo na prova dos autos.
Carece razão ao apelo.
O Ministério Público Federal formulou pedido de sequestro de determinados bens do acusado, em decorrência da prática de lavagem de dinheiro em território brasileiro, com fulcro no art. 4º da Lei n. 9.613/98, sendo deferida a medida pelo MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS) (fls. 475/477). Na sentença, acolhido pleito ministerial (fls. 573/576), foi decretado o perdimento, em favor da União, do "imóvel rural Rincão das Lagoas, objeto das matrículas n.ºs. 8262, 32917, 8300 e 7595, do CRI de Ponta Porã-MS, e do imóvel urbano de matrícula n.º 22547, do CRI de Dourados-MS (lote 9 da quadra 02 do loteamento Jardim Itaipu)" (cfr. fl. 635v.).
A origem lícita dos bens existentes em território nacional, em nome do acusado, não foi comprovada nos autos, sendo certo que tais medidas constritivas determinadas pelo MM. Magistrado a quo encontram amparo nas disposições do art. 4º e seguintes da Lei n. 9.613/98:
Cumpre diferenciar que, nos autos de Medidas Assecuratórias n. 2006.60.05.000398-8, a União requereu o sequestro dos bens do acusado encontrados em território brasileiro, em decorrência de solicitação da Justiça paraguaia, que visava à garantia dos prejuízos lá ocasionados pela prática do crime de roubo, com fundamento em acordo de cooperação mútua internacional. Nesse caso, foi determinado o sequestro de todos os bens movéis e imóveis, veículos e semoventes, encontrados no Brasil, em nome do acusado, pelo MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS), o que desencadeou a propositura de reclamação no Superior Tribunal de Justiça, à qual foi negado seguimento. Foi impetrado o Habeas Corpus n. 105.905/MS no Supremo Tribunal Federal, sustentando-se a necessidade de concessão de exequatur, sendo deferida medida liminar para obstaculizar atos expropriatórios relativos aos bens do acusado (fls. 331/334) e, ao final, afastado o ato de constrição implementado pelo MM. Juízo Federal da 3ª Vara de Campo Grande (MS) (fls. 789/796).
Nesse sentido, manifestou-se o Ilustre Procurador Regional da República:
Dosimetria. Considerando as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, notadamente a potencialidade do dano e a personalidade do agente, o MM. Magistrado a quo fixou a pena-base acima do mínimo legal, em 5 (cinco) anos de reclusão, quantum que tornou definitivo, à míngua de circunstâncias atenuantes, agravantes, causas de diminuição, ou de aumento de pena.
Arbitrou a pena de multa em 200 (duzentos) dias-multa, no valor unitário de R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais), totalizando R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais), sujeitos à atualização.
Fixou o regime inicial semiaberto.
A pena privativa de liberdade não foi substituída por penas restritivas de direito.
O Ministério Público Federal pugna pela majoração da pena-base em 3 (três) anos, resultando a pena definitiva de 8 (oito) anos de reclusão. Protesta pela fixação do regime inicial fechado.
A acusação elabora considerações afetas aos critérios do art. 59 do Código Penal, suscitando o seguinte:
Ressalta o Parquet que deve ser sopesada a gravidade do delito antecedente, consistente no roubo de US$ 11.132.100,00 (onze milhões, cento e trinta e dois mil e cem dólares), bem como a expressiva movimentação financeira de R$ 2.056.384,16 (dois milhões, cinquenta e seis mil, trezentos e oitenta e quatro reais e dezesseis centavos) pelo acusado, nos anos seguintes, sem comprovação de origem lícita.
Conclui tratar-se de reciclagem de vultosa quantia, decorrente de elaborado delito de roubo qualificado, praticado por organização criminosa, envolvendo o transpasse de fronteira e articulados artifícios para dissimulação do proveito do crime.
A seu turno, a defesa pleiteia a redução da pena ao mínimo legal.
O recurso da acusação deve ser parcialmente provido e o recurso da defesa, desprovido.
Observe-se a justificativa utilizada pelo MM. Magistrado a quo para majoração da pena-base:
Compulsando os autos, verifico constarem contra o acusado as seguintes ações penais, além da presente:
Todas essas ações encontram-se em andamento e não se prestam à exasperação da pena-base, a teor da Súmula n. 444 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base".
Todavia, deve ser mantida a pena-base de 5 (cinco) anos de reclusão, tendo em vista o considerável volume de recursos "lavados" que transitou em conta bancária do acusado (mais de R$ 2.000.000,00, cfr. fls. 4/14 do Apenso I).
As argumentações elaboradas pelo Parquet quanto aos critérios do art. 59 do Código Penal dizem respeito a elementos inerentes ao tipo penal de lavagem de capitais, como bem consignou o Ilustre Procurador Regional da República (fl. 787).
Sem circunstâncias agravantes, atenuantes, causas de aumento, ou de diminuição de pena, torno definitiva a pena de 5 (cinco) anos de reclusão.
Esclareço que deixo de aplicar ao caso a causa de aumento do § 4º do art. 1º da Lei n. 9.613/98 cuja aplicação é devida quando o crime for cometido por organização criminosa porque a presente imputação já decorre do fato de ter sido o roubo praticado por organização criminosa, delito antecedente. Portanto, desde que constante do tipo penal a circunstância não pode ensejar nova análise, sob pena de bis in idem.
Mantenho a sanção pecuniária de 200 (duzentos) dias-multa e o valor unitário do dia-multa, estabelecido na sentença em R$ 175,00 (cento e setenta e cinco reais).
O regime inicial de cumprimento de pena deve ser o fechado, tendo em vista os gravosos reflexos da conduta delitiva para o Sitema Financeiro Nacional, em conformidade com o art. 33, § 3º, c. c. o art. 59, ambos do Código Penal.
Esse é também o posicionamento do Ilustre Procurador Regional da República:
Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso de apelação do Ministério Público Federal para fixar o regime inicial fechado e NEGO PROVIMENTO ao recurso da defesa.
É o voto.
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