D.E. Publicado em 24/03/2014 |
|
|
|
|
|
EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, DAR PROVIMENTO À REMESSA OFICIAL para anular a sentença na parte em que é ultra petita, e DAR PROVIMENTO À APELAÇÃO para reformar integralmente o que sobeja da sentença, afastando o reconhecimento da prescrição, revogando expressamente a antecipação de tutela e invertendo a sucumbência, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
Signatário (a): | LUIZ ANTONIO JOHONSOM DI SALVO:10042 |
Nº de Série do Certificado: | 071C0E4C5CCF4CC3 |
Data e Hora: | 14/03/2014 15:09:57 |
|
|
|
|
|
RELATÓRIO
O Desembargador Federal Johonsom di Salvo:
Trata-se de ação ordinária ajuizada por WALTER SAYEG, médico, contra o CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO (CRM/SP), objetivando o arquivamento de processo administrativo promovido contra o autor, seja pela declaração de prescrição da pretensão punitiva disciplinar, seja por força da inépcia da denúncia.
Consta que o CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO (CRM/SP), depois de receber delação do "Grupo Tortura Nunca Mais" dando conta que o autor integrou um grupo de 65 médicos envolvidos com a repressão política desenvolvida pelo regime autoritário inaugurado em abril de 1964, tratando-se de médico legista emitente de laudos necroscópicos falsos destinados a ocultar a morte - sob sevícias e torturas - dos presos políticos.
O CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO (CRM/SP) instaurou o processo administrativo disciplinar previsto na Lei nº 6.838/80, mas o autor afirma que operou-se a prescrição qüinqüenal, contada a partir da "verificação do fato", à luz dos arts. 1º, 2º e 4º dessa norma; diz o autor que os fatos teriam ocorrido entre 1960 e 1970, e que já haviam sido tornados públicos com a edição do livro "Brasil Nunca Mais", no primeiro semestre de 1985. Aduz que a denúncia é inepta porquanto trata os fatos genericamente, sem imputar condutas e circunstâncias, assim impedindo o exercício do direito de defesa.
Processado o feito, com contestação do réu, concedeu-se a antecipação dos efeitos da tutela a fls. 275, ratificada em sede de agravo de instrumento julgado por esta Turma em01/09/2004 (fls. 355).
Sentença a fls. 358/369.
Desbordando do pedido contido na inicial, o Sr. Juiz Federal Ronald de Carvalho Filho decretou ex officio a nulidade de decisão do CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA que anulou a primeira manifestação do CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO (CRM/SP) que havia arquivado as delações formuladas contra o autor. Para isso declarou que época não havia previsão, nas normas internas do regramento da profissão médica, dispositivo regulamentar que autorizasse recurso no caso de imposição de penalidade enumerada na "legislação" vigente à época, a Resolução CFM 413/71, já que essa possibilidade só sobreveio com a Resolução CFM 1464/96. Assim, declarou "...nula a remessa do processo ao Conselho Federal de Medicina e, consequentemente a determinação de instauração de processo administrativo por aquele órgão. De modo a prevalecer a decisão de arquivamento proferida pelo Conselho Regional de Medicina, na Sessão Plenária realizada em 18/2/1991, relativa ao expediente nº 26.809/90".
Ainda, declarou a prescrição dos fatos imputados ao autor. Para isso, considerou a prescrição qüinqüenal, seja a partir da verificação do fato (para o futuro - art. 1º), seja a partir das faltas já cometidas e com processo iniciados (prazo que, nessa hipótese, corre da vigência da própria Lei nº 6.838/80 - art. 4º). Assim, como os fatos atribuídos ao autor ocorreram entre 1969 e 1976, o termo inicial da prescrição deve ser 15/12/1980, 45 dias após a publicação da Lei nº 6.838/80, o que ocorreu em 30/10/1980 (art. 5º).
Destarte, julgou procedente o pedido do autor para declarar a prescrição e anular o processo administrativo disciplinar 2.503-149/94, instaurado depois que o CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA anulou, em sede recursal, decisão anterior do atual réu, que havia arquivado a delação existente contra o médico acusado de falsificar laudos necroscópicos para ocultar mortes sob tortura perpetradas pelos algozes da repressão política. Condenação em honorários de mil reais e antecipação de tutela (que o Juiz achou necessária). Sentença submetida à remessa oficial.
Apelou o réu, sendo seu recurso recebido no duplo efeito (fls. 382).
Contrarrazões ofertadas.
A seu pedido, deu-se vista ao Ministério Público Federal, que exarou manifestação a fls. 396/404.
É o relatório.
Á revisão.
Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
Signatário (a): | LUIZ ANTONIO JOHONSOM DI SALVO:10042 |
Nº de Série do Certificado: | 071C0E4C5CCF4CC3 |
Data e Hora: | 14/03/2014 15:09:54 |
|
|
VOTO
O Desembargador Federal Johonsom di Salvo, relator:
Por primeiro, cumpre anular a r. sentença na parte em que declarou "...nula a remessa do processo ao Conselho Federal de Medicina e, consequentemente a determinação de instauração de processo administrativo por aquele órgão. De modo a prevalecer a decisão de arquivamento proferida pelo Conselho Regional de Medicina, na Sessão Plenária realizada em 18/2/1991, relativa ao expediente nº 26.809/90".
No ponto, a sentença é ultra petita, posto que decidiu muito além do pedido formulado pelo autor, que conforme se vê da leitura da petição inicial pretendia ver-se livre das investigações abertas pelo réu, e consequentes punições, somente à conta da prescrição da pretensão punitiva da infração disciplinar contra a Ética Médica, ou, alternativamente, à conta do que chamou de "inépcia da denúncia".
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA sequer integrou a relação processual e por isso não poderia ter seus atos decisórios perscrutados pelo Juízo a quo, sob pena de violação do devido processo legal
Assim, em sede de remessa necessária esse tópico do capítulo decisório deve ser nulificado, à luz do art. 460 do CPC, pois o Juízo a quo desbordou dos limites da lide tal como foi gizada pela petição inicial e pela contestação do réu.
No mais, cumpre apreciar o caso ventilado na apelação nos exatos termos em que a lide viceja, sem qualquer juízo acerca dos fatos atribuídos ao autor (cooperação, na condição de médico legista da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, no encobrimento de crimes cometidos pelos agentes das forças de repressão da ditadura militar, através da assinatura de laudos com conteúdo falso).
Impõe-se verificar se operou-se a prescrição qüinqüenal cogitada no art. 1º da Lei nº 6.838/80 (a punibilidade de profissional liberal, por falta sujeita a processo disciplinar, através de órgão em que esteja inscrito, prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data da verificação do fato respectivo). A intelecção desse dispositivo indica que a data em que houver a ciência (verificação) do fato é o dies a quo da prescrição administrativa em desfavor do órgão de controle profissional.
Contra o autor - e outros 65 médicos - pesa a afirmação de haver contribuído para ocultar da sociedade a prática de tortura homicida, levada a cabo por agentes da repressão política do regime autoritário, através da falsificação (falsidade ideológica) de laudos médicos legais necroscópicos decorrentes de autópsias e exames feitos em cadáveres e pessoas de presos políticos.
No campo penal, em tese, o autor teria cometido falsidade ideológica na condição de legista (funcionário público), fato capitulado no art. 299, § único, do CP.
Mas aqui o fato é tratado somente no âmbito da infração disciplinar contra os rigores da carreira médica.
Não há que cogitar da imputação de "crime contra a humanidade", imprescritível. O autor não praticou atos de violação de direitos humanos (especialmente a tortura); atribui-se-lhe haver acobertado a prática de tortura, alterando a verdade sobre fato relevante (causa mortis) referente a cadáveres por ele necropciados.
Assim, deve-se perscrutar a data em que a alegada participação do autor no acobertamento de mortes e lesões sobrevindas após torturas, veio a público.
Certamente não foi com a edição do conhecidíssimo livro "Brasil Nunca Mais" (Arquidiocese de São Paulo, editora Vozes).
A primeira edição dessa obra histórica inestimável veio à luz em 1985, mas não mencionou o nome do autor como um dos legistas vinculados ao regime militar. Aliás, nem mesmo na edição juntada aos autos - 27ª edição, de 1995 - o autor está arrolado dentre os médicos que, em São Paulo, eram comprometidos com a feitura dos laudos mentirosos empregados pelas autoridades repressoras para ocultar mortes e lesões corporais sofridas sob tortura, Consulte-se as páginas 234 e 235 da obra, entranhada nos autos.
Na verdade a alegada participação do médico WALTER SAYEG no acobertamento de mortes sob torturas tornou-se pública somente quando o "Grupo Tortura Nunca Mais/RJ" comunicou o fato ao CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SÃO PAULO (CRM/SP) através de delação datada de 05 de novembro de 1990, que acabou acolhida no CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, ensejando a abertura de processo disciplinar em 30 de agosto de 1994.
O processo disciplinar tramitou - embora interrompido certo tempo à conta de decisão judicial - até que em 25 de maio de 2000, comprovados os fatos, o autor teve cassado o seu exercício profissional.
Aplicando-se o art. 1º da Lei nº 6.838/80, resta claro que a prescrição não se consumou, eis que, no caso de infração que não é pública, o dies a quo prescricional coincide com a data em que o fato vem a ser conhecido pelo órgão de fiscalização profissional ("data da verificação do fato", como diz o dispositivo legal).
Não há que se cogitar da incidência do art. 4º dessa lei, que traça a prescrição dos fatos públicos e notórios, caso em que o órgão profissional tem o dever de agir ex officio.
Evidentemente, em especial para aqueles que vivenciaram os chamados "anos de chumbo", entre 1968 até 1978, as práticas de torturas e os atos destinados a encobri-las, e a acobertar as mortes acontecidas nos "porões" da ditadura, não eram visíveis.
Não se pode afirmar - de boa fé ou em sã consciência - que era pública e notória a mendacidade de laudos emitidos por peritos legistas da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, quando atestavam que a causa mortis desta ou daquela pessoa - ou as lesões pessoais - não eram resultado dos suplícios a elas impingidos pelos interrogadores dos centros de repressão instalados no II Exército e na Polícia de São Paulo.
Nem o mais ingênuo dos brasileiros pode acreditar que a tortura era praticada - como ocorria na Idade Média - às escâncaras, como se toda a sociedade aprovasse essa barbárie. Nem o mais ingênuo dos brasileiros pode supor que naquela época os laudos necroscópicos dos cadáveres dos mortos pela ditadura eram levados ao conhecimento da sociedade, podendo ser cotejados com as marcas e lesões que os corpos ostentavam. Até porque os cadáveres eram encerrados em caixões (p. ex., o caso do operário Manoel Fiel Filho) entregues lacrados às famílias desesperadas. Nem o mais ingênuo dos brasileiros levaria a sério se alguém dissesse que as famílias e os amigos dos mortos poderiam comparecer às repartições policiais e judiciárias requerendo exumação dos corpos já sepultados para uma segunda autópsia, verificatória do resultado da primeira, lavrada para mentir sobre a causa mortis. Nem o mais ingênuo dos brasileiros pode duvidar que os cadáveres dos mortos pela ditadura (exceto aqueles que, como Rubens Paiva, tiveram seus despojos lançados em locais desconhecidos) eram entregues às famílias de modo ríspido, com a condição de que os parentes os sepultassem o mais rápido possível e que não comentassem nada sobre as circunstâncias das mortes.
Nesse cenário, soa como um gracejo infeliz a afirmação de que a existência de laudos falsificados - e a autoria das necropsias e exames de corpo de delito, evidentemente - era de conhecimento público, de modo que o prazo prescricional deveria ser contado conforme o art. 4º da Lei nº 6.838/80 (fato notório).
Muito ao contrário: a repressão - até para infundir terror nos corações dos que se opunham ao regime autoritário - ocorria fora das vistas públicas, naquilo que o Brasil conhece como os "porões da ditadura", alguns dos quais - como a Casa da Morte em Petrópolis, em tudo assemelhada à casa de execuções do regime militar chileno localizada no nº 38, da rua Londres, em Santiago, hoje um museu, e como a sinistra sede do DOI/CODI na rua Tutóia, nesta capital paulista, e como o Colégio Militar de Belo Horizonte - acabaram ganhando notoriedade diante de tantos abusos cometidos nos seus interiores.
Mais: a quem os familiares dos mortos, cujos óbitos foram atestados com causae mortis diversas, poderiam se dirigir em busca da verdade ? À Polícia Civil, conivente com o regime autoritário (recordem-se todos do extinto DEOPS) ? Ao Ministério Público, na época absolutamente impotente contra o autoritarismo (vide a luta contra os "esquadrões da morte" incrustrados no DEIC) ? Ao Poder Judiciário, impedido de agir ex officio e desprovido de meios investigativos auxiliares ? Às Forças Armadas ?
Se alguém deu apoio aos amigos e familiares dos perseguidos foram as Arquidioceses de São Paulo e do Rio de Janeiro (cada uma a seu modo, é verdade) e notáveis e corajosos representantes de outras religiões, todas elas absolutamente convictas de que "...a imagem de Deus, estampada na pessoa humana, é sempre única..." (Cardeal Evaristo Arns).
Enfim, não é preciso socorrer-se de qualquer Convenção Internacional para afastar-se a prescrição, in casu. O art. 1º da Lei nº 6.838/80 basta.
Com base nele percebe-se com clareza solar que entre a delação datada de 05 de novembro de 1990, que acabou acolhida no CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, e a abertura do processo disciplinar em 30 de agosto de 1994, não decorrer o qüinqüênio previsto no art. 1º da Lei nº 6.838/80, aplicável nos casos em que - como aqui - não se trata de infração profissional notória ou de prática pública.
De outro lado, não há como perscrutar da suficiência ou não da denúncia ofertada contra o autor, porque: (a) o autor busca confundir a delação feita contra ele, e que motivou os atos processuais do órgão profissional, com a denúncia criminal que deve obedecer a certos rigores, o que não é o caso; (b) em sua petição inicial apenas tangenciou, en passant, a questão, como pedido subsidiário; (c) a conduta imputada era clara: falsidade ideológica de laudos assinados pelo autor; (d) o autor não juntou aos autos (art. 333, I, CPC) elementos demonstrativos da insuficiência da delação.
Um outro ponto merece referência.
Nem mesmo a Lei nº 6.683/79, a famosa Lei da Anistia que surgiu no governo João Figueiredo, poderia ser invocada pelos médicos que foram delatados como partícipes no acobertamento de mortes e sofrimentos físicos impingidos aos opositores do regime militar. É que a Lei da Anistia estende seus efeitos sobre aqueles que cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, também aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público; ainda, favorece os servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, todos punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (art. 1º). Não alcança infrações disciplinares, perpetradas contra a ética profissional da carreira médica.
Examinado o meritum causae, com isso esvaindo-se qualquer resquício de fumus boni iuris nas teses levantadas pelo autor, não pode persistir a antecipação de tutela a ele concedida na própria sentença.
Impõe-se a inversão da sucumbência. Tratando-se de causa - bastante importante à vista da lide subjacente - que tramita desde 1995, exigindo atendo acompanhamento dos advogados, e de valor inestimável, na forma do art. 20, § 4º do CPC fixo honorários em favor dos advogados da ré em R$.10.000,00, corrigíveis a partir desta data conforme a Res. 134/CJF.
Pelo exposto, DOU PROVIMENTO À REMESSA OFICIAL para anular a sentença na parte em que é ultra petita, e DOU PROVIMENTO À APELAÇÃO para reformar integralmente o que sobeja da sentença, afastando o reconhecimento da prescrição, e revogando expressamente a antecipação de tutela e invertendo a sucumbência.
É como voto.
Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
Signatário (a): | LUIZ ANTONIO JOHONSOM DI SALVO:10042 |
Nº de Série do Certificado: | 071C0E4C5CCF4CC3 |
Data e Hora: | 14/03/2014 15:10:00 |