Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 29/07/2014
EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Juiz Convocado FERNÃO POMPÊO
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
EMBARGADO : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

EMENTA

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. ÁREA RURAL. RESERVA INDÍGENA BURITI. AÇÃO CONEXA COM DECLARATÓRIA JÁ JULGADA PELA PRIMEIRA SEÇÃO DESTA CORTE REGIONAL. MANUTENÇÃO DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL JÁ FIRMADO. EMBARGOS INFRINGENTES PROVIDOS PARA PREVALECER O VOTO VENCIDO.
1. Antes de adentrar à análise do presente caso mostra-se relevante consignar que esta c. Primeira Seção já analisou a mesma questão fático-jurídica em três julgamentos anteriores, mais especificamente, no julgamento dos embargos infringentes interpostos nos autos da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3, nos autos da ação de interdito proibitório nº 2003.60.00.008669-1/MS e nos autos da ação de reintegração de posse nº 2003.60.00.005222-0/MS.
2. A parte ora embargante integra o polo ativo da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3, em litisconsórcio com outros proprietários de terras na área da chamada Reserva Indígena Buriti, na região do município de Sidrolândia, no estado do Mato Grosso do Sul, sendo de fundamental importância mencionar que aquela ação foi considerada principal em relação às demais ações possessórias a ela conexas.
3. Na aludida ação declaratória os ora embargantes e demais litisconsortes objetivam o reconhecimento de que as propriedades por eles tituladas não se enquadrariam no conceito de terras tradicionalmente ocupadas por índios, nos exatos termos previstos no artigo 231 da Constituição Federal, pleiteando a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 1.775/96 e das portarias expedidas pela FUNAI, e, ainda, a invalidade dos atos praticados com base nas mencionadas portarias, em especial, os levantamentos e estudos antropológicos e de avaliação objetivando a demarcação administrativa da área indígena Terena.
4. Prevaleceu naquela ocasião a exegese no sentido de que as terras sobre as quais versam o litígio não se incluem na definição constitucional de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, uma vez que em 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal) já não eram ocupadas por indígenas e a posse dos autores era exercida pacificamente de há muitos anos. No mesmo sentido concluiu esta c. Primeira Seção em relação às ações possessórias conexas, propostas por alguns dos litisconsortes da ação declaratória, em julgamento realizado na mesma data (21/06/2012).
5. O pedido formulado na ação declaratória foi julgado procedente, com o reconhecimento expresso do domínio dos autores, ora embargantes. Não obstante reformada pela c. Quinta Turma em sede de apelação, a sentença restou posteriormente restabelecida pelo julgamento desta c. Seção que deu provimento aos embargos infringentes para prevalecer o voto vencido, que negava provimento às apelações interpostas pelos réus da ação.
6. Diante da dinâmica processual que os diversos feitos mencionados trilharam no âmbito deste tribunal, o desfecho do presente recurso não tem como seguir rumo diverso daquele que norteou o julgamento anterior desta c. Seção, quando restou reconhecido pela maioria do colegiado que as terras sobre as quais versam o litígio não se incluem na definição de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, uma vez que em 05 de outubro de 1988 já não eram ocupadas por indígenas e a posse dos autores era exercida pacificamente, nos termos do voto vencido da e. Desembargadora Federal Suzana Camargo.
7. Trata-se de exegese que se impõe no escopo precípuo de se evitar o grave risco de decisões conflitantes envolvendo processos conexos que discutem a mesma questão jurídica em uma mesma região rural em conflito, a prestigiar-se a segurança jurídica decorrente dos precedentes jurisprudenciais desta e. Corte Regional, dirimindo com coerência, ao menos nesta sede, um conflito de interesses de tamanha envergadura social, de repercussão nacional, envolvendo a região onde se situa a denominada Reserva Índigena Buriti, no estado do Mato Grosso do Sul.
8. E, tratando-se o presente feito de pedido de natureza possessória, conforme destacado no voto vencido restou demonstrada nos autos a presença dos requisitos dos artigos 926 e seguintes do Código de Processo Civil. A posse da parte embargante, precedida de antecessores, restou comprovada por meio dos documentos apresentados às fls. 08/26. Já o esbulho restou incontroverso nos autos por meio do boletim de ocorrência lavrado pela Delegacia de Polícia de Sidrolândia/MS relatando a invasão da propriedade (fls. 27); pela mensagem dirigida ao Superintendente da Polícia Federal no Mato Grosso do Sul (fls. 28); pelas notícias publicadas em jornais (fls. 29/33 e 42/43); pelo termo de reunião realizada na sede da Procuradoria da República do Mato Grosso do Sul (fls. 111/112) e pela informação lançada por dois oficiais de justiça em 14/10/2003, no sentido de que se encontravam na área cerca de 40 famílias, tendo sido orientados pelo Delegado de Polícia a aguardar a tentativa de desocupação pacífica (fls. 226).
9. Por tais razões, impõe-se a prevalência do voto vencido também nestes autos.
10. Embargos infringentes providos.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Seção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar provimento aos embargos infringentes, nos termos do voto do Juiz Federal Convocado Fernão Pompêo (Relator). Acompanharam o Relator os Desembargadores Federais Luiz Stefanini (em antecipação de voto) e André Nekatschalow (em voto vista, pela conclusão), o Juiz Federal Convocado Márcio Mesquita, e a Desembargadora Federal Cecília Marcondes (Presidente da Seção - art. 158, III, do RITRF 3R). Divergiram, para negar provimento ao recurso, os Desembargadores Federais Paulo Fontes (em antecipação de voto), Cotrim Guimarães (deu-se por esclarecido para votar), Antonio Cedenho, e o Juiz Federal Convocado Hélio Nogueira. Deixaram de votar, por estarem ausentes quando da leitura do relatório, os Desembargadores Federais Peixoto Júnior, Cecília Mello, José Lunardelli e Nino Toldo.



São Paulo, 03 de julho de 2014.
FERNÃO POMPÊO
Juiz Federal Convocado


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): FERNAO POMPEO DE CAMARGO:10276
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Data e Hora: 23/07/2014 17:58:55



EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Juiz Convocado FERNÃO POMPÊO
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
EMBARGADO : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

DECLARAÇÃO DE VOTO

Em que pese a profunda admiração e respeito que nutro pelo ilustre Relator, Juiz Federal Convocado Fernão Pompêo, ousei divergir de Sua Excelência, apresentando a seguir os fundamentos do meu voto. Para tanto, reporto-me ao relatório já apresentado a este colegiado.

Entende o ilustre Relator que os presentes embargos infringentes devem ser providos, restabelecendo-se a sentença de primeiro grau que julgou procedente a pretensão possessória dos autores, para seguir o entendimento já adotado por esta Primeira Seção no julgamento dos embargos infringentes interpostos na ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3 e nas ações possessórias a ela conexas - como é o caso da presente ação.

Naquela ocasião este colegiado decidiu, por maioria, que deveria prevalecer o voto vencido da lavra da eminente Desembargadora Federal Suzana Camargo, adotando o entendimento ali sufragado de que as terras em questão, inseridas no perímetro objeto do procedimento demarcatório da Terra Indígena Buriti, não poderiam ser definidas como terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, nos moldes ditados pelo artigo 231 da Constituição Federal, porque na data da sua promulgação (05/10/1988) "já não eram ocupadas por indígenas e a posse dos autores era exercida pacificamente de há muitos anos". Tal raciocínio fundamentou-se na premissa de que o referido instituto constitucional insculpido no § 1º do artigo 231 da Lei Maior já teria sido interpretado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, limitando-se exclusivamente às situações fáticas de presença física indígena na terra encontradas naquela data.

Lidamos, portanto, com o conceito de "marco temporal", aludido dentre as dezenove condicionantes elencadas no julgamento da Pet 3388 pela Corte Suprema, atinente ao emblemático caso Raposa Serra do Sol, condicionantes que, em princípio, passariam a nortear genericamente as demarcações de terras indígenas no país, direcionadas tanto ao Executivo quanto ao Judiciário na análise do tema.

Contudo, peço vênia para discordar da aplicação, neste momento, daquela interpretação conferida por esta Primeira Seção no julgamento da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3 e das demais ações possessórias que envolvem o conflito em torno da região de Buriti, a mesma adotada no voto vencido que se busca fazer prevalecer por meio dos embargos infringentes ora em análise.

A meu ver, a afirmação de que a ausência física da comunidade indígena de Buriti na área a ser demarcada indicaria a ausência de posse tradicional, impedindo assim o reconhecimento da natureza indígena das terras e, consequentemente, sua demarcação, denota uma interpretação equivocada do chamado "marco temporal" estipulado no julgamento da referida Ação Popular pelo Supremo Tribunal Federal. Com efeito, uma análise mais detida da ementa e dos votos ali proferidos revela que a questão não foi posta de maneira tão simples.

Em verdade, o Pretório Excelso consignou que a aferição da tradicionalidade, a fim de se constatar a existência do direito indígena originário de posse sobre uma determinada gleba de terra, não está vinculada à presença física da comunidade na área, ressalvando expressamente que tal verificação deve ocorrer casuisticamente, afastando-se o critério do chamado "marco temporal" nas hipóteses em que os indígenas tenham sido expulsos das terras por força de renitente esbulho praticado por não-índios.

De fato, interpretação como a que querem fazer prevalecer os embargantes indicaria um entendimento contraditório com a própria vontade da Constituição, que quis efetivamente garantir direitos históricos das comunidades indígenas. Ao se estabelecer uma situação de fato existente em outubro de 1988 como o norte do reconhecimento desses direitos, estaríamos vedando qualquer possibilidade de reparo de situações de injustiça, situações de expropriação dessas comunidades indígenas acontecidas no decorrer dos séculos XIX e XX, que foram palco de disputas fundiárias muito intensas e que, muitas vezes, não foram levadas adiante pelos índios até por um caráter sociológico, digamos, mais pacífico da comunidade. E, a meu ver, é esse o caso dessa comunidade Terena de Buriti.

Limitar-se genericamente a esse marco temporal para afirmar que uma comunidade indígena como um todo está restrita a cerca de 2.000 hectares de terra, sem uma análise maior, mais abrangente das especificidades históricas da lide, parece-me realmente preocupante.

Desse modo, não reputo correta a premissa de que o Supremo Tribunal Federal consolidara o entendimento de que o conceito de terra tradicionalmente ocupada previsto no artigo 231 da Constituição Federal - parâmetro para o reconhecimento do direito originário de posse indígena e para a atividade administrativa de demarcação das terras indígenas - teria genérica limitação na condicionante do "marco temporal", relativo à data da promulgação do texto constitucional.

Ao contrário, naquela mesma oportunidade, como dito, abordou-se expressa exceção a esse limite, contrapondo-se o "marco temporal da ocupação" ao "marco da tradicionalidade da ocupação", como se infere do seguinte trecho da ementa daquele julgado (grifei):


"(...) 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios. Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da "Raposa Serra do Sol". (...) O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado "princípio da proporcionalidade". A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse, da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural das etnias nativas. O próprio conceito do chamado "princípio da proporcionalidade", quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo peculiarmente extensivo.

12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). (...)" (Pet 3388, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049)


A propósito, é importante anotar que a Corte Suprema recentemente julgou os embargos de declaração opostos em face do citado acórdão sob relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, em sessão realizada em 23/10/2013, quando, especificamente provocado a dizer se as condicionantes ali estipuladas se aplicariam a outras comunidades e terras indígenas, o Plenário esclareceu pontualmente essa questão, afirmando que as dezenove condicionantes firmadas na apreciação do caso Raposa Serra do Sol - dentre as quais o limite do marco temporal - não são de aplicação vinculante ou obrigatória às demais causas que envolvam a questão indígena, mormente a posse e demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, seja em direção aos tribunais, seja ao Poder Executivo, conforme se lê na seguinte ementa (grifei):


"EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL. 1. Embargos de declaração opostos pelo autor, por assistentes, pelo Ministério Público, pelas comunidades indígenas, pelo Estado de Roraima e por terceiros. Recursos inadmitidos, desprovidos, ou parcialmente providos para fins de mero esclarecimento, sem efeitos modificativos. 2. Com o trânsito em julgado do acórdão embargado, todos os processos relacionados à Terra Indígena Raposa Serra do Sol deverão adotar as seguintes premissas como necessárias: (i) são válidos a Portaria/MJ nº 534/2005 e o Decreto Presidencial de 15.04.2005, observadas as condições previstas no acórdão; e (ii) a caracterização da área como terra indígena, para os fins dos arts. 20, XI, e 231, da Constituição torna insubsistentes eventuais pretensões possessórias ou dominiais de particulares, salvo no tocante à indenização por benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (CF/88, art. 231, § 6º). 3. As chamadas condições ou condicionantes foram consideradas pressupostos para o reconhecimento da validade da demarcação efetuada. Não apenas por decorrerem, em essência, da própria Constituição, mas também pela necessidade de se explicitarem as diretrizes básicas para o exercício do usufruto indígena, de modo a solucionar de forma efetiva as graves controvérsias existentes na região. Nesse sentido, as condições integram o objeto do que foi decidido e fazem coisa julgada material. Isso significa que a sua incidência na Reserva da Raposa Serra do Sol não poderá ser objeto de questionamento em eventuais novos processos. 4. A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões. (Pet 3388 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 23/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-023 DIVULG 03-02-2014 PUBLIC 04-02-2014)


Portanto, ainda que tenha sido assumida como marco temporal a data da promulgação da Constituição Federal, a Corte Suprema acrescentou de forma clara a esse critério que as áreas não ocupadas fisicamente por comunidades indígenas no dia 05/10/1988 em decorrência de persistente esbulho por parte de não-índios (seja por atos estatais, seja de particulares) não perdem a condição de terras de ocupação tradicional. Assim, a titulação privada de domínio que remonta à data anterior a esse marco, ou mesmo a presença física de não-índios e a comercialização dessas terras, ainda que vindas de décadas atrás, não desconstituem o direito indígena.

Nesse sentido, inclusive, seguiu a corrente vencida neste colegiado por ocasião do julgamento da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3, explicitada no voto-vista apresentado pelo eminente Desembargador Federal Antonio Cedenho, do qual ressalto alguns trechos elucidativos (grifei):


"Compartilho do entendimento do Ilustre Relator, Desembargador Federal Nelton dos Santos, na parte em que se expressou no sentido de que o julgamento destes Embargos Infringentes deve reger-se pela orientação dada pelo C. STF quando do julgamento da Pet. nº 3.388.

Ocorre que, restringir a leitura dessa decisão histórica à sua ementa pode conduzir o leitor a uma interpretação limitada sobre a matéria, qual seja, a de que o marco temporal da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene seria a data da promulgação da Constituição Federal (05/10/1988), uma vez que está expressamente consignado no item 11 da referida Ementa , transcrita pelo I. Relator (fl. 5.479).

Mas o exame cuidadoso dos Votos dos Ilustres Ministros da Corte Constitucional revela que tal julgamento não se limitou à data de 05/10/88, estendendo-se até alcançar os primórdios da formação do Estado Brasileiro. Para essa compreensão, considero necessário trazer as questões que foram apreciadas e julgadas pelo STF nos autos da noticiada Ação Popular, que pretendia a desconstituição da demarcação contínua da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol (Petição nº 3.388), em sessão realizada em 19/03/2009, mesmo porque, conforme ressaltou em seu voto o Ministro Marco Aurélio "Não restam dúvidas, porém, que a conclusão adotada na presente ação norteará a atuação da Corte nas demais."

(...) Prosseguindo, entendo que o marco temporal de 05/10/88 não é o único critério definidor das terras indígenas, válido apenas para impedir a ocupação de outras propriedades ou a migração das comunidades indígenas, a partir dessa data.

Isso porque, limitar o direito às terras àqueles indígenas que já estavam na posse de determinada área importaria em excluir dessa proteção os que delas foram desapossados e, com isso, legitimar os atos nulos praticados pelo Estado do Mato Grosso, no caso, que transferiu aos particulares o que não lhe pertencia, já que de terras devolutas não se tratavam, situação que o Poder Judiciário não pode legitimar.

Assim, permitir a data de 05/10/88 como o único sinal de ocupação que se põe para o estabelecimento de limites territoriais indígenas, é aceitar o pressuposto utilitarista do Direito, consistente em pesar custos e benefícios de determinado fato e apenas esperar uma avaliação mais ampla das conseqüências sociais, tendentes a acomodação.

Mas o que se exige da Justiça é muito mais, dela se requer diretrizes que corrijam as desvantagens sociais e econômicas, pois na moldura do caso em questão o afastamento dos índios, embora paulatino, não foi voluntário.

Nesse quadro, reitero a manifestação do Ministro Eros Grau, já transcrita acima: "Repito: essas terras são protegidas contra os esbulhos posteriores à Constituição de 1988, mas também contra elas são inválidos e de nenhum efeito os títulos de propriedade anteriores." (destaquei)

De igual forma, considero relevante a manifestação da I. Desembargadora Federal Ramza Tartuce, em sua Declaração de Voto, apresentada por ocasião do julgamento das Apelações Cíveis interpostas nestes autos pela União Federal, FUNAI e MPF (fls. 4.599/4.608 - volume 20):

"(...)

E, no caso, não consta que a área objeto desta ação seja área de extinto aldeamento indígena.

Não consta tenham os indígenas deixado de ocupá-la algum dia, por vontade própria e em passado remoto, ali retornando após o decurso de tempo suficiente para justificar o título de domínio defendido pelos autores nestes autos.

Não consta, ainda, que a área em questão tenha sido declarada terras devolutas para habilitar a alienação feita pelo Estado aos autores e imprimir eficácia ao título de domínio lavrado em favor dos autores.

(...)" (fl. 4.600)

Na hipótese dos autos, conforme a prova testemunhal, o desapossamento restou comprovado através dos depoimentos, um deles "do indígena Armando Gabriel, nascido em 1918, sendo o cacique mais antigo dos Terenas", transcrito na sentença (fl. 4.152). Portanto, a retirada não ocorreu sponte propria.

(...) Portanto, a questão das terras indígenas ultrapassa os conceitos civilistas de posse e propriedade para alcançar foros de garantia constitucional, contexto no qual deve ser analisado e julgado o inconformismo recursal que ora se aprecia.

Diante do exposto, NEGO PROVIMENTO aos Embargos Infringentes."


Na mesma linha seguiu o julgamento majoritário dos recursos de apelação aqui reapreciados, com esteio no voto-condutor do eminente Desembargador Federal André Nabarrete, acompanhado pela ilustre Desembargadora Federal Ramza Tartuce, de cuja ementa se extrai a conclusão - fundada nos elementos probatórios destes autos e daqueles em que deduzida a pretensão declaratória dos particulares - de que ficara demonstrado o caráter originário da presença dos índios nas terras, prevalecendo assim seu direito constitucionalmente assegurado:


"(...) - As terras não foram desocupadas espontaneamente, mas foram obtidas por meio de inegável expulsão dos indígenas. O contato dos Terena com as terras do Buriti, não obstante a expulsão e o confinamento, jamais se extinguiu e continua vivo até os dias atuais.

- A final, a conclusão dos estudos designados pelo Juízo na ação declaratória n.º 2001.60.00.003866-3 foi peremptória no sentido de que a área periciada pode ser conceituada como de tradicional ocupação indígena.

- Quanto ao cabimento da conceituação jurídica das terras da região do Buriti como tradicionalmente ocupadas pelos Terena, o conhecido Alvará Régio de 1º de abril de 1680, estendido posteriormente, em 1758, a todo o Brasil reconheceu como originário o direito dos índios às próprias terras, fonte primária e congênita da posse. (...) Conseqüentemente, as alienações feitas a particulares pelo Estado de Mato Grosso do Sul das terras dos Terena como se fossem devolutas não têm legitimidade, bem assim os títulos acostados aos autos e a cadeia dominial derivada, independentemente da boa fé dos adquirentes."


Por todo o exposto, penso não ser correta a assertiva genérica de impossibilidade de demarcação de terras indígenas, por não se enquadrarem de antemão no conceito de ocupação tradicional, no caso de formal titulação civil por particulares e ausência de ocupação física por indígenas na data da promulgação da atual Constituição, em especial por não ser essa a exata interpretação dada ao tema pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim, diante desses desdobramentos e, sobretudo, dessa análise feita pela Corte Constitucional acerca do valor jurídico daquelas condicionantes firmadas no caso Raposa Serra do Sol, entendo que podemos chegar à adoção de diverso entendimento na apreciação dos presentes embargos infringentes.

Destarte, julgo que não há como prevalecer o entendimento sufragado no voto vencido a propósito do não reconhecimento do direito do grupo indígena Terena à posse da área objeto da discussão.

E outra questão a ser destacada diz respeito ao fato de que o julgamento da ação declaratória ainda não é definitivo, estando pendentes de apreciação pelas cortes superiores os recursos excepcionais interpostos pelas partes. Nessa esteira, julgo de certo modo temerário o provimento dos presentes embargos infringentes, para julgar procedente o pedido de reintegração de posse, entendendo que seria mais prudente manter o estado atual da situação ao revés de determinar a desocupação dessas áreas pela comunidade.

Ainda que se deva buscar, sem dúvida, a coerência entre decisões judiciais, em especial nas hipóteses de ações conexas, como é o caso, entendo que o julgamento da ação declaratória não deve, necessariamente, condicionar a análise do conflito possessório, mormente por se tratar de julgamento ainda não definitivo e proferido antes da mencionada decisão do Supremo Tribunal Federal nos embargos declaratórios opostos no caso Raposa Serra do Sol.

Por fim, aponto ainda uma terceira questão a fundamentar minha divergência em relação ao voto do ilustre Relator, relativa ao meu posicionamento quanto à carência de ação dos autores da demanda declaratória, dentre os quais os ora embargantes, ante a falta de interesse jurídico-processual e legitimidade para o manejo de pedido de declaração da inexistência de posse tradicional indígena sobre a área objeto de demarcação administrativa pela União.

Anoto que a ação declaratória em comento foi movida antes da edição da portaria do Ministério da Justiça que declarou a área como de posse permanente da comunidade indígena, sobrevinda já no curso do processo (Portaria n° 3.079, de 28/09/2010).

Ainda que se possa aferir direto interesse econômico dos particulares detentores dos imóveis rurais inseridos na área a ser demarcada como terra indígena, tal interesse não se traduz na legitimidade e interesse processuais para demandar previamente no Judiciário pedido declaratório naqueles termos, como inclusive já decidiu este Tribunal em caso semelhante (grifei):


"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. AÇÃO DECLARATÓRIA QUE OBJETIVA PRONUNCIAMENTO JUDICIAL NO SENTIDO DE QUE AS TERRAS EM QUESTÃO SÃO PARTICULARES E NÃO TERRAS PÚBLICAS INDÍGENAS. (...) DETERMINAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE ASSEGURA AOS ÍNDIOS O DIREITO À DEMARCAÇÃO DE SUAS TERRAS. COMUNIDADE KAIOWA, DESCENDENTE DOS ÍNDIOS GUARANI, QUE SEMPRE HABITARAM A TERRA INDÍGENA GUYRAROKA, ONDE ESTÁ LOCALIZADA A FAZENDA CANA VERDE, NO MUNICÍPIO DE CAARAPÓ/MS, DA QUAL O AGRAVADO É DETENTOR DO DOMÍNIO. INOCORRÊNCIA DE HIPÓTESE DE EXTINTO ALDEAMENTO INDÍGENA. PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE GOZA DE PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE E VERACIDADE E QUE RESPEITOU O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. AGRAVO NÃO CONHECIDO COM RELAÇÃO À FUNAI E PROVIDO QUANTO À UNIÃO FEDERAL. (...) III - A prova de domínio particular não impede o processo administrativo de demarcação das terras indígenas, devendo tal alegação ser apreciada pela Administração. IV - Em razão do princípio federativo que impõe a separação e a harmonia entre os Poderes, não cabe ao Judiciário antecipar-se na apreciação das provas do alegado domínio sobre as terras indígenas, ainda que preventivamente, através de ação declaratória, sendo o autor carecedor da ação. V - Segundo as disposições contidas no artigo 231, caput, e §§ 2º, 4º e 6º, da Constituição Federal, a posse e o domínio privado não impedem a demarcação das terras indígenas, mas apenas asseguram o direito à indenização das benfeitorias de boa-fé e da propriedade, esta se anterior à Carta Constitucional de 1934. VI - Tutela antecipada que, ademais de concedida por decisão nula, violou o princípio federativo e desconsiderou a absoluta falta de relevância dos fundamentos da ação subjacente. VII - A demarcação das terras indígenas decorre de imperativo constitucional (arts. 231 e 67 do ADCT). VIII - Segundo se deflui dos autos, não se trata de extinto aldeamento indígena, uma vez que os índios da comunidade KAIOWA, descendente dos índios Guarani, sempre habitaram a região. IX - No cumprimento das determinações constitucionais a FUNAI tem empreendido, através de processos administrativos, o itinerário de identificação e delimitação dessas terras, o mesmo ocorrendo com relação à terra indígena GUYRAROKA, localizada no Município de Caarapó/MS. X - Os atos administrativos gozam da presunção de legalidade e veracidade. XI - Eventual irregularidade na demarcação não está imune ao controle do judiciário. XII - O processo demarcatório suspenso pela decisão agravada não implica a perda imediata da posse. Inexistência de dano irreparável ou de difícil reparação (CPC, art, 273, I) que justificasse a concessão de tutela antecipada. XIII - Agravo não conhecido com relação à FUNAI e provido quanto à UNIÃO FEDERAL." (TRF 3ª Região, SEGUNDA TURMA, AI 0064533-70.2005.4.03.0000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HENRIQUE HERKENHOFF, julgado em 09/12/2008, e-DJF3 Judicial 2 DATA:18/12/2008 PÁGINA: 165)


A corrente jurisprudencial acima expressada, a que me filio, entende não ser possível o ajuizamento de ações declaratórias para dizer se uma determinada área é ou não indígena, antes mesmo de o Poder Executivo, no exercício de suas atribuições legais e constitucionais, ter concluído os respectivos estudos, integrantes de procedimentos complexos que exigem, por exemplo, a confecção de laudos técnicos históricos e antropológicos.

Contudo, diante até da existência de uma situação histórica de conflitos sociais já instalados, os produtores rurais eventualmente se antecipam e batem à porta do Poder Judiciário para obter a tutela declaratória, muitas vezes com um suporte fático-probatório muito menor e num âmbito de cognição mais restrito do que aquele propiciado no procedimento de demarcação da terra indígena, e que poderá vir a ser judicializado após a atuação administrativa do Poder Executivo declarando a existência ou não de posse tradicional na área estudada, seara na qual deve ser instaurada a questão, ao menos de forma inicial.

Assim, encontramos na jurisprudência essa ressalva de que permitir ao Poder Judiciário antecipar-se à conclusão do procedimento administrativo de demarcação, declarando uma área como não indígena e fechando a questão sob o manto da coisa julgada, implicaria, inclusive, ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Ante todo o exposto, nego provimento aos embargos infringentes, para manter o julgamento de improcedência do pedido inicial de reintegração de posse.

É COMO VOTO.


PAULO FONTES
Desembargador Federal


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EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Juiz Convocado FERNÃO POMPÊO
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
EMBARGADO(A) : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO(A) : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

VOTO-VISTA

Inicialmente, cumpre registrar o respeito e admiração que nutro pelo Eminente Juiz Federal Convocado Fernão Pompêo, salientando que o meu pedido de vista se assentou na necessidade de uma análise mais detida dos autos para formação de minha convicção.
Trata-se de embargos infringentes opostos pelo Espólio de Geraldo Corrêa da Silva e por Celina Ferreira Corrêa contra o acórdão proferido pela Quinta Turma desta Corte que, por maioria, deu provimento aos recursos do Ministério Público Federal, da FUNAI e da União Federal para julgar improcedente a ação, "ficando cassada quaisquer liminares que tenham sido concedidas aos autores", nos termos do voto do Desembargador Federal André Nabarrete, acompanhado pelo voto da Desembargadora Federal Ramza Tartuce, vencida a Desembargadora Federal Suzana Camargo, que negava provimento ao recurso do Ministério Público Federal e dava parcial provimento ao recurso da FUNAI e da União Federal, apenas para determinar a exclusão da multa diária (fl. 1.352).
Os embargantes alegam que deve prevalecer o voto vencido proferido pela Desembargadora Federal Suzana Camargo (fls. 1.538/1.576).

O Eminente Juiz Federal Convocado Fernão Pompêo deu provimento aos Embargos Infringentes para fazer prevalecer o voto vencido (fls. 1.750/1.755).

Pedi vista dos autos sobretudo porque, desde o julgamento dos Embargos Infringentes n. 2001.60.00.003866-3, ocorrido em 21.06.12, e no qual proferi voto-vista para acompanhar o Relator, Desembargador Federal Nelton dos Santos, e assim dar provimento àquele recurso e fazer prevalecer o voto vencido da Eminente Desembargadora Federal Suzana Camargo, que por sua vez manteve a sentença de procedência da ação intentada pelos proprietários das áreas em disputa com indígenas, venho refletindo sobre conflitos dessa natureza. Nesse sentido, penso ser caso de relativizar a existência de cadeia dominial, ainda que remonte à virada do Século XIX para o Século XX - como sucede na maioria das vezes - e a concessão de uma determinada área aos indígenas (Terena) para assim constituir sua "reserva": o caminho é considerar o conteúdo do laudo antropológico, mas, obviamente, atento às diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente no que se refere aos marcos da tradicionalidade e da temporalidade.
Sem embargo dessas considerações, não vejo razões para reformular a compreensão dos fatos do modo em que procedi no voto-vista por mim proferido nos Embargos Infringentes n. 2001.60.00.003866-3. Excluindo-se as referências à cadeia dominial e, até certo ponto, à índole pacífica dos Terenas, o fato é que a prova antropológica não autoriza afirmar que esteja presente, no caso, o marco da temporalidade. Quanto ao assunto, transcrevo parte daquele voto:
Por outro lado, o laudo pericial aponta, também, que "os atuais proprietários exerciam posse pacífica destas terras até 1999, tendo-as adquirido de boa-fé e mantendo boa relação com os Terena" (fl. 2.493). Tudo leva a crer que na ocasião da promulgação da Constituição da República de 1988 os Terena não tinham a posse da região, vindo a pleiteá-la somente mais de uma década depois, diante do crescimento populacional e dos estímulos recebidos pela suposição de um direito que lhes seria conferido pela Carta Magna.
Os Terena com mais de oitenta anos como Leonardo Reginaldo, Armando Gabriel e outros, afirmaram categoricamente que nunca se conformaram com a saída dos territórios que ocupavam, mas não tinham meios para encaminharem suas demandas. Relatam que diversas vezes expuseram o problema para os chefes de posto do SPI e depois FUNAI, mas eles sempre se recusaram a apoiá-los na demanda de tentarem reaver suas terras. A situação mudou com a nova Constituição Federal, promulgada em 1988, quando algumas lideranças Terena de Buriti passam a participar mais ativamente dos debates sobre direitos indígenas e, conscientes dos direitos assegurados pela legislação atual, começam a exigir de forma explícita seus direitos sobre terras ocupadas pelas famílias naquela região, em décadas passadas (fl. 2.491)
Portanto, não se evidencia nos autos que havia ocupação ou que tenha ao menos ocorrido a concreta reivindicação das terras quando da promulgação da Constituição Federal. Acrescente-se que, da mesma forma, não há elementos a indicar a ocorrência de qualquer conflito ou resistência por parte dos índios em tal época. Ademais, há indicação de que houve convivência pacífica entre os proprietários dos imóveis e os índios que chegaram a trabalhar para aqueles.
Esses fundamentos, vale dizer, a falta de elementos no sentido de que os indígenas estivessem a postular a reivindicação de sua terra, por qualquer modo que fosse, em 1988, infirma sua pretensão alicerçada sobre a norma constitucional que então entrou em vigor.
Julgo conveniente fazer algumas considerações finais.
Esta demanda é de natureza possessória, de modo que nela não se resolve a respeito do domínio. Sem embargo, é sabido não ser adequado conceder tutela possessória a quem evidentemente não seja o titular do domínio. Na espécie, a questão dominial é versada na Ação n. 2001.60.00.003866-3. Tendo sido declarada a posse permanente dos índios na Terra Indígena Buriti pela Portaria n. 3.079, publicada em 28.09.10 (fl. 1.711), a respectiva eficácia (ius superveniens?) deve ser resolvida naquele feito, inclusive para fins de ensejar ou não os correspondentes registros no Cartório de Registro de Imóveis: a presente tutela possessória - concedida aliás como meio de desestimular movimentação de indígenas ou meios violentos, ainda que para fazer valer direitos legítimos - restringe, desnecessário dizer, aos fatos constantes da petição inicial e eventuais modificações de fato (turbação consumada em esbulho etc.).
Ante o exposto, ACOMPANHO o Relator pela conclusão.
É o voto.

Andre Nekatschalow


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EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Juiz Convocado FERNÃO POMPÊO
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
EMBARGADO(A) : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO(A) : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

VOTO


Trata-se de embargos infringentes opostos pelos apelados, em face do V. acórdão proferido pela Quinta Turma desta E. Corte que reformou, por maioria de votos, nos autos da ação de reintegração de posse, a sentença monocrática, ao dar provimento às apelações da União Federal e do Ministério Público Federal, para "julgar improcedente a ação e cassar quaisquer liminares que tenham sido concedidas aos autores", vencida a Senhora Relatora, que dava parcialmente provimento às apelações da União Federal e da FUNAI, apenas para determinar a exclusão da multa diária cominada na sentença, e negava provimento ao recurso do Ministério Público Federal.


Pleiteiam, pois os embargantes a prevalência do voto vencido.


Após apresentar relatório, o qual eu adoto, o E. Relator deu provimento ao presente recurso, para prevalecer o voto vencido.

Destaca-se que o presente feito está vinculado ao proc. Nº 2001.60.00.003866-3, já julgado nesta C. Corte.


A matéria é complexa de forma que após a colheita dos votos dos E. pares que integram esta C. Seção, observou-se o empate.


A parte embargante, autora na presente relação jurídica processual, defende a prevalência do voto vencido, sob o fundamento de que as áreas objeto do presente feito não se enquadram no conceito de "terras tradicionalmente ocupadas por índicos" nos termos dos ditames constitucionais.


Registra-se que na ação declaratória, Proc. 2001.60.00.003866-3, já julgada prevaleceu o voto vencido, tendo em vista o fato de que na data da promulgação, não constituía aldeamento indígena, as terras objeto de discussão.


Pois bem, para dar início à análise do presente feito, mister se faz examinar os ditames do ordenamento pátrio que regem a matéria, bem como os fatos discutidos nos respectivos autos, para solução da lide.


De acordo com os ditames da Constituição Federal de 1988, em seus arts. 231 e 232, resta estabelecido que:


"Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.


§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.


§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.


§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.


§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.


§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.


§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.


§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.


Art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo."


Por outro lado, a Súmula 650 do C. Supremo Tribunal Federal estabelece que:


"Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto."


Assim, observa-se que o Constituinte estabeleceu as condições para garantir o direito dos silvícolas às terras consideradas aldeamentos indígenas, a saber, que estejam na posse do indígenas, na data da promulgação da Constituição Federal, que sejam utilizadas para suas atividades produtivas e que tais terras sejam imprescindíveis para a preservação dos recursos ambientais e a seu bem-estar.


De outra banda, mister se faz atentar ao instituto jurídico das sesmarias, de origem portuguesa que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção. O Estado, recém-formado e sem capacidade para organizar a produção de alimentos, decidiu legar a particulares essa função.


Destaca-se que este sistema surgira em Portugal durante o século XIV, com a Lei das Sesmarias de 1375, criada para combater a crise agrícola e econômica que atingia o país e a Europa, e que a peste negra agravara.


Quando da conquista do território brasileiro efetivado a partir de 1530, o Estado português decidiu utilizar o sistema sesma rial em território brasileiro, com algumas adaptações.


Assim, a partir do momento em que chegaram ao Brasil os capitães-donatários, titulares das capitanias hereditárias, a distribuição de terras a sesmeiros (em Portugal era o nome dado ao funcionário real responsável pela distribuição de sesmarias, no Brasil, o sesmeiro era o titular da sesmaria) passou a ser prioridade, pois a sesmaria é que iria garantir a instalação das atividades agrícolas na colônia.


Desta feita, a função primordial do sistema de sesmarias era estimular a produção. Desta feita, quando o titular da propriedade não iniciava a produção dentro dos prazos estabelecidos, seu direito de posse poderia ser cassado.


Pois bem, consoante bem colocado pela E. Desembargadora Federal Suzana Camargo, com base nas lições de Linhares de Lacerda, (Tratado das Terras do Brasil, Vol. III Rio de Janeiro, Ed. Alba, 1960, pg. 124), por meio de Lei Imperial nº 1114/1860, foram revalidadas as vendas de terras já efetuadas com respectiva regularização das áreas situadas nas Províncias do Amazonas, Pará, Paraná e Mato Grosso.


Cumpre ser asseverado que, consoante também destacado pela E. Julgadora, o Estado de Mato Grosso, em 14/11/1928, editou Decreto 834/28 reservando aos índios Terena, 2.090 hectares, onde foram assentados, desde então, sendo a referida demarcação se encontra registrada em Cartório sob o nº 9.258 (doc. fls. 422/423 do Proc. 2001.60.00.003866-3).


Assim sendo, conclui-se que terras foram distribuídas àqueles que tinham interesse em exercer atividades agrícolas pelos vários estados federativos, inclusive Mato Grosso.


Pois bem, analisando os respectivos autos, observa-se que a autora, ora embargante, sob a alegação de que é proprietária da Fazenda Alegre, situada no Município Sidrolândia/MS, afirma que o referido imóvel foi objeto de esbulho pelos silvícolas de origem Terena, da Aldeia de Buriti, os quais integram o polo passivo da presente relação jurídica processual.


Analisando as provas juntadas nos respectivos autos, verifica-se que tais índios não ocupavam, na data da promulgação da CF/88, a área, objeto da demanda, cuja titularidade se encontra nas mãos dos não índios há muitas décadas.


Conforme está demonstrado nos respectivos autos, os indígenas invadiram as áreas objeto de litígio em 30/06/2003, conforme Boletim de Ocorrência 410/2003. Também é constatado que os silvícolas chegaram às terras pelos fundos e rumaram à Sede do imóvel.


Portanto, não se encontravam na posse das terras.


Ademais, ainda que a parte autora deste feito não integre o Proc. Nº 2001.60.00.00386 de acordo com o laudo pericial apresentado 6-3, ao analisar a área, objeto de conflito, os peritos afirmam que "os atuais proprietários exerciam posse pacífica destas terras até 1999, tendo-as adquirido de boa-fé e mantendo boa relação com os Terena". (fls. 2.493 do ref. Proc. juntado às fls. 964 do presente feito)


Por outro lado, observa-se que a titularidade dos autores de parte das terras se deu em 05/05/69, comprovada por meio de escritura onde se verifica os limites do imóvel Fazenda São Roque, denominada Furna de Estrela. (doc. fls. 08/13), e a maior parte da terra está vinculada à matrícula feita em 24/11/99 (fls.13 e 09), demonstrada está a invasão ocorrida em 2003.


Também, cumpre ser asseverado que está comprovado nos respectivos autos que desde o Século XIX já se havia levado a registro a posse das terras, objeto de discussão, (documentos de fls. 3795/3797 do Proc. 2001.60.00003866-3), do que se extrai que o local vem a ser antiga sesmaria.


Ademais, não há prova irrefutável da ocupação dos índios e de sua respectiva expulsão de forma violenta, entretanto, provada está a invasão por parte dos indígenas.


De acordo com o bem fundamentado voto da E. Relatora:


"Tanto é verdade, que, após serem acomodados (os índios) nos 2.090 hectares da área da Reserva Buriti, passaram a conviver pacificamente com os proprietários. Trabalhando para estes até recentemente, quando resolveram dar início ao processo sistemático de invasão das fazendas ora disputadas.

..." (fls. 1410)


Aliás, as testemunhas ouvidas em Juízo, todas de origem indígena, afirmam a posse pacífica daqueles não índios, no que tange a região em litígio, em que a autora tem título de propriedade (fls. 1.46869 - índio Leonardo, 1471/74 - índio Manoel L. da Silva, e de David Diniz Leite, fls. 3974 do Proc. 2003.60.00.007903-0, conforme citado às fls. 670/671 e 1.411 dos respectivos autos).


Além de ser afirmado pelos mesmos depoentes que durante muitas décadas a região foi adequada para as atividades do homem branco, tendo o índio Leonardo iniciado a trabalhar na área em 1942.


Também está demonstrada a invasão, consoante os docs. de fls. 113/114 e 268/269.


Desta forma, incontroversa a afirmativa da autora, ora embargante, no sentido de que tem a posse pacífica, por seus antecedentes, tanto em decorrência dos depoimentos colhidos em processo citado, como também em decorrência da juntada de escrituras públicas, documentos estes que gozam de fé pública.


Não fosse tudo, ainda deve ser ressaltado que às fls. 16/23, dos respectivos autos, constam declarações anuais do produtor rural, certificado de cadastro de imóvel rural, além de notificação de lançamento, identificado sob o número no CNPJ indicado.


A tese defendida pela maioria que fez o v. Acordão se fundamentou no fato de as terras terem sido dos índios, vez que é afirmado pelo E. Desembargador Federal André Nabarrete que as terras "eram ocupadas tradicionalmente por eles" concluindo ser "o bastante para a sua manutenção no local". (grifo não é do original)


Portanto, o esbulho se mostrou incontroverso, demonstrada a invasão das terras, objeto do presente litígio, da mesma forma que demonstrado está que o aldeamento indígena não se constituía no momento da promulgação da Magna Carta de 1988.


Ademais, cumpre ser asseverado que as provas produzidas nos autos principais (Proc. 2001.60.00.003866-3) são robustas para demonstrar a cessão da área para o desenvolvimento de atividades agrícolas, além do que para a segurança jurídica é imprescindível que aos mesmos fatos sejam proferidas decisões de igual teor.


Ante o exposto, pedindo vênia aos que do meu voto divergem, acompanho o E. Relator, para dar provimento ao presente recurso.


É como voto.






CECILIA MARCONDES
Vice-Presidente


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Data e Hora: 07/07/2014 14:24:06



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2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Desembargador Federal WILSON ZAUHY
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ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
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PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros(as)
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

DECLARAÇÃO DE VOTO

Anoto, de início, que estou esclarecido para votar, uma vez que se trata de matéria que já tive a oportunidade de apreciar em outros feitos.


No tocante ao mérito, não considero que seja um marco jurídico o voto do ilustríssimo ex-ministro Carlos Britto para a situação fundiária nacional, porque não há súmula e nem muito menos súmula vinculante.


Houve um entendimento em relação à ocupação daquela área da Raposa Serra do Sol, uma decisão específica, evidentemente com repercussão geral. Mas essa repercussão não está no plano da súmula ou das súmulas vinculantes, enfim, é um entendimento que eu reputo como sendo aplicável àquele caso concreto e sem vincular a análise da ocupação ou da terra tradicional ou por parte do julgador.


Conforme muito bem apontado pelo Acórdão da 5ª Turma, no presente caso, existem elementos no sentido de se tratar de terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas e que não foram desocupadas espontaneamente; há provas que o processo trouxe aqui, fortes nesse sentido, motivo pelo qual peço vênia ao eminente relator para negar provimento aos embargos infringentes.


É como voto.


COTRIM GUIMARÃES
Desembargador Federal


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Data e Hora: 20/04/2017 12:40:22



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: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

DECLARAÇÃO DE VOTO

Trata-se de embargos infringentes interpostos pelo espólio de Celina Ferreira Correa em face de acórdão que, por maioria, deu parcial provimento às apelações do MPF, da União e da FUNAI, para julgar improcedente pedido de reintegração de posse da Fazenda Furna Estrela, situada no Município de Dois Irmãos do Buriti/MS.


A Primeira Seção, sob o fundamento de que não existem provas da ocupação da área por índios Terena na data da promulgação da CF de 88, deu provimento ao recurso.


Ousei divergir da posição do eminente relator, pelas razões expostas na sequência.


As condicionantes adotadas pelo Supremo Tribunal Federal na demarcação da Reserva Indígena "Raposa Serra do Sol" (Petição n° 3.388/RR), em especial a manutenção da posse tradicional diante de esbulho renitente, não foram observadas na análise dos novos limites da Terra Indígena Buriti.


Embora a CF tenha limitado os direitos originários dos índios às ocupações que se estendam a outubro de 88, a inexistência de presença indígena no momento é relativizada na hipótese da preservação do vínculo material e espiritual do silvícola com a terra.


A tradicionalidade demanda uma associação entre o espaço geográfico e as necessidades em geral do povo nativo. Ela não se perde pela simples cessação do contato físico: os membros do grupo podem mantê-la no modo de vida adotado, fazendo ritualizações, reivindicações e incursões "clandestinas" para caça, pesca, visitas, rememorações.


O vínculo fundiário apenas cessa, se houver abandono voluntário ou a população tradicional não reagir às invasões, esbulhos de terceiros, a ponto de gradativamente as gerações não receberem ensinamentos, conhecimentos sobre o lugar.


Naturalmente, não é necessário o uso de violência, que desemboque em constantes conflitos; muitos grupos indígenas são culturalmente pacíficos ou não iniciam uma reação devido ao maior poderio político e material do invasor. A ruptura da tradicionalidade reclama a desagregação do valor da terra nas práticas, costumes e crenças da tribo, por esquecimento espontâneo ou decorrente de fator externo.


A desintegração não ocorre, quando os membros da etnia conservam o espaço como elemento de identificação cultural e só não o retomam fisicamente, em razão da estruturação do ocupante atual. O esbulho consumado em certa ocasião se torna renitente na expressão usada pelo STF, deixando de ostentar a durabilidade, a estabilidade e mansidão que justificam o encerramento da função tradicional.


A condicionante se aplica inteiramente à ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti.


Desde que os índios Terena foram expulsos das áreas que ocupavam no Alto Buriti e na Serra do Maracaju, eles nunca esqueceram a origem fundiária: segundo o Resumo do Relatório Circunstanciado da FUNAI, os representantes do grupo foram ao Rio de Janeiro para denunciar a espoliação progressiva (1937), levaram posteriormente um abaixo-assinado ao pessoal do Exército com a mesma intenção (1951) e enviaram ofícios à FUNAI para a revisão/recomposição dos limites da terra (1981, 1983 e 1985).


A perícia produzida na ação declaratória n° 2001.60.00.003866-3 - de iniciativa dos proprietários que buscam a reintegração de posse -, reforça a ligação cultural do território: por intermédio de pesquisas arqueológicas e antropológicas, o perito relatou que os índios Terena, desde a perda da posse civil, mantêm incursões na área para pesca e caça, fazem referências ritualísticas ao lugar e identificaram vários trechos destinados especificamente a sepultamentos e cerimônias religiosas, o que demonstra o repasse do conhecimento fundiário para gerações seguintes à vitimada pelas invasões.


As sucessivas reivindicações e a presença do espaço nos costumes, crenças e práticas do Grupo Indígena Terena em momento relativamente próximo da promulgação da CF de 88 tornam renitente o esbulho praticado, mantendo a tradicionalidade da ocupação e inviabilizando a reintegração de posse de terceiros.


Voto, assim, pelo desprovimento dos embargos infringentes.


ANTONIO CEDENHO
Desembargador Federal


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Data e Hora: 24/05/2017 10:22:43



EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Desembargador Federal WILSON ZAUHY
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro(a)
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 LUIZ CARLOS DE FREITAS
EMBARGADO(A) : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO(A) : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros(as)
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

DECLARAÇÃO DE VOTO

Inicialmente, registro a profunda admiração e respeito que nutro pelo E. Relator.

Analisando detidamente o processo e as questões controvertidas, peço venia ao Exmo. Relator para divergir, nos pontos a seguir, pelas razões que passo a expor.


Do direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas


Consoante amplamente sedimentado pela doutrina e jurisprudência, a demarcação de terras indígenas decorre do reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, cuja propriedade é da União (art. 20, XI, da Constituição da República), tratando-se, portanto, de ato declaratório de uma situação jurídica preexistente.

Por tal razão, o constituinte originário estabeleceu que eventuais títulos privados sobre tais terras serão considerados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos (art. 231, § 6º, da Constituição da República).

Depreende-se que o constituinte estabeleceu um comando expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos por não índios sobre terras indígenas, cujos efeitos se estendem sobre vínculos jurídicos de origem pré-constitucional. Essa previsão visa ao resguardo da igualdade material dos indígenas, assegurando-lhes os meios para a digna subsistência, preservação e reprodução física e cultural.

Nesse sentido, sendo a Constituição da República o vértice axiológico do ordenamento jurídico, mostram-se inadmissíveis interpretações que busquem atribuir prevalência a situações jurídicas contrárias aos comandos da vigente ordem constitucional. Sobre a questão, elucida a doutrina:


"(...) há que se considerar que o exercício do poder constituinte, mesmo quando não resulte de um processo revolucionário, tem a pretensão de representar um 'recomeço', o que envolve ruptura com o passado, ao menos sob o ângulo jurídico. Nessa perspectiva, não deve ser superdimensionada a força de situações e vínculos jurídicos pré-constitucionais, muitas vezes em absoluta desarmonia com os valores e princípios do novo regime (...). É evidente que, quando o próprio constituinte, por meio de regra expressa, definir a solução para a questão intertemporal, prevendo ou vedando a incidência de norma constitucional sobre os efeitos de situações ocorridas no passado, a sua vontade tem de prevalecer".
(SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: Teoria, história e métodos de trabalho. 2ª ed., 3. reimpr. Belo Horizonte: Fórum, 2017, pp. 552-553) - g.n.

No caso em exame, a demanda tem por objeto pretensão possessória, cuja causa de pedir consubstancia-se em suposto esbulho promovido por índios em área em relação à qual, embora submetida a processo demarcatório, subsistem títulos legitimadores de posse a favor de não índios.


Do interdito possessório


Em conformidade com a jurisprudência dos Tribunais Superiores, a demarcação de terra indígena constitui ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário). Trata-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade (presunção juris tantum), cabendo à parte contrária impugná-lo, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-lo. Confira-se:


AGRAVO REGIMENTAL NA SUSPENSÃO DE LIMINAR. EXECUÇÃO DE SENTENÇA EM AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO. INTERESSE PÚBLICO MANIFESTO. ÁREA ENCRAVADA EM ESPAÇO DA RESERVA INDÍGENA IBIRAMA-LA KLANÓ, RECONHECIDA POR PORTARIA DO MINISTRO DA JUSTIÇA. PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO DE ÁREA DA UNIÃO. GRAVE LESÃO À ECONOMIA PÚBLICA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
I - (...)
III - Desapropriação de área encravada em espaço demarcado como reserva indígena pela Portaria do Ministério da Justiça 1.128/03, cuja validade está sendo discutida na ACO 1.100 (Relator Ministro Ricardo Lewandowski).
IV - A demarcação de terra indígena é ato meramente formal, que apenas reconhece direito preexistente e constitucionalmente assegurado (art. 231 da CF). Os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade, não afastada na hipótese. (...)
(STF, SL 610 AgR., Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pleno, j. 04/02/2015) - g.n.

Nesses termos, não se mostra cabível a oposição baseada em direito possessório, com fulcro em títulos legitimadores de posse, como fundamento a obstar, por si, a realização do processo de demarcação de terra indígena e os diversos atos administrativos que o compõem, os quais gozam de presunção de legitimidade e se encontram amparados em comando constitucional preeminente, sendo vedado, inclusive, o manejo de ação de interdito possessório contra a demarcação. Nesse sentido:


"19.6 Vedação ao interdito possessório contra a demarcação
A disposição do § 2º permite àquele que se sinta prejudicado com a demarcação apenas o ajuizamento de ações petitórias ou demarcatórias. "No juízo 'petitório', a pretensão deduzida no processo tem por supedâneo o direito de propriedade, ou seus desmembramentos, do qual decorre o direito à posse do bem litigioso", de modo que a discussão estará centrada no direito real. Em contrapartida, a ação demarcatória visa tão somente a apontar vícios que possam comprometer a validade ou alterar a delimitação da área, que foi definida pelo procedimento administrativo de demarcação.
Essa vedação das medidas judiciais cabíveis é muito mais um consectário lógico da natureza da posse indígena que uma restrição de direitos processuais. Como a terra indígena é de propriedade originária da União e usufruto exclusivo dos índios, é impossível que qualquer direito possessório possa a ela ser oposto. A única possibilidade para que o terceiro mantenha a área de seu interesse é desconstituir a condição indígena da área, por exemplo, se opondo a tradicionalidade da ocupação, apontando vícios nos procedimentos de demarcação ou comprovando que a área controversa está fora dos limites demarcados.
No que se refere ao interdito proibitório, somente "é adequado a utilização do interdita proibitório quando ainda não ocorre moléstia à posse do demandante, existindo apenas uma ameaça de esbulho ou turbação. Trata-se, pois, de demanda repetitiva". Desse modo, não será cabível o interdito proibitório, uma vez que a União, ao reconhecer a terra como pertencente a povos indígenas, reconhece que sobre ela incide a proteção do art. 231, § 6º, da Constituição. Nesse sentido:
TERRAS INDÍGENAS. INTERDITO PROIBITÓRIO. TURBAÇÃO INDEMONSTRADA. IMPROCEDÊNCIA. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ART. 927. ESTATUTO DO ÍNDIO, ART. 19. 1. O artigo927 do CPC, para outorgar proteção possessória, exige, entre outras condições, a prova da posse e da turbação ou esbulho. 2. Iniciada a demarcação das terras pela FUNAI para o fim de reconhecimento de terras indígenas, a interposição de interdito possessório contra turbação inexistente nada mais é do que oposição disfarçada ao ato administrativo, o que é vedado pelo parágrafo 2º. do artigo 19 da lei n. 6.001/73 (Estatuto do Índio). 4. Ação improcedente. Apelações providas. Sucumbência invertida. (TRF4 - AC - Apelação Cível - 200204010217158. Órgão Julgador: Quarta Turma. Data da decisão: 17/12/2008. Fonte: D.E. Data: 09/02/2009. Relator Marga Inge Barth Tessler)
ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. AÇÃO CAUTELAR. TERRAS INDÍGENAS. DEMARCAÇÃO. PROIBIÇÃO DE INGRESSO, TRÂNSITO OU PERMANÊNCIA DE NÃO-ÍNDIOS NA ÁREA A SER DEMARCADA. A ação cautelar é a via adequada para impedir a extração de madeira por parte dos índios, para permitir o ingresso no imóvel daquele que é tido como seu proprietário, uma vez que a proibição de ingresso, trânsito ou permanência de pessoas não-índios partiu de ato administrativo um órgão do Governo, não se podendo falar, em princípio, em esbulho ou turbação. Há, na hipótese, um ato administrativo. Ademais, por força de dispositivo lega, contra a demarcação de terras indígenas não cabe a concessão de interdito proibitório (Lei n. 6.001, de 1973, art. 19, § 2º). (TRF1 - AC - Apelação Cível - 9601155457. Órgão Julgador: Terceira Turma. Data da decisão: 24/09/1997. Fonte: D.J. Data: 14/10/1996. Relator Juiz Tourinho Neto)
Desse modo, sendo intentada ação de interdito, deve o feito ser extinto sem julgamento do mérito por impossibilidade jurídica do pedido, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, no RE nº 97867, DJ de 12.08.1983. É preciso observar que o interdito proibitório é vedado tão somente nos casos de procedimento demarcatório. Em se tratando de turbação, seu manejo continua perfeitamente cabível. É o caso, por exemplo, de ocupação indígena em propriedades efetivamente particulares. Essa situação, entretanto, deve ser tratada pelo juiz com muito cuidado, uma vez que, na maioria dos casos, se trata de uma forma legítima de protesto dos índios contra a ocupação de terras que, apesar de não demarcadas, são de ocupação tradicional e foram indevidamente apropriadas por particulares".
(VITORELLI, Edilson. Estatuto do Índio: Lei 6.001/1973. 3ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016, pp. 155/157) - g.n.

Portanto, questionamentos acerca do direito real à posse do bem litigioso ou de eventuais vícios que maculem a validade do processo de demarcação de terras indígenas, somente poderão ser submetidos à apreciação judicial por meio de ação petitória ou demarcatória, respectivamente.

Tal entendimento decorre do fato de que, consoante já reconhecido pelo STJ, a demarcação de terras indígenas não configura esbulho possessório ou qualquer forma de perda ou restrição da propriedade, posto que se trata de ato meramente declaratório de uma situação jurídica pré-existente. Confira-se:


PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO BUSCANDO A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE PORTARIA DE DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. DECRETO 20.910/32. RECURSO PROVIDO.
1. Hipótese na qual se busca, mediante ação ajuizada em 16 de setembro de 2004, a nulidade da Portaria Ministerial 793/94, publicada no DOU de 20 de outubro de 1994, expedida pelo Ministro de Estado da Justiça, pela qual declarou de posse permanente indígena, para efeito de demarcação, terras situadas no Estado de Santa Catarina (Área Indígena Pinhal), caracterizadas como de ocupação tradicional e permanente indígena, nos termos dos arts. 231, da CF/88, e 17 da Lei 6.001/73. Importante registrar que, em consequência da referida demarcação, a parte autora recebeu a devida indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (art. 231, § 6º, da CF/88).
(...)
3. O procedimento de demarcação de terras indígenas não pode ser comparado ao apossamento administrativo também chamado de desapropriação indireta, caracterizado como verdadeiro esbulho possessório, sem a necessária garantia do contraditório e do devido processo legal.
4. A demarcação de terras indígenas é precedida de processo administrativo, por intermédio do qual são realizados diversos estudos de natureza etno-histórica, antropológica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental, necessários à comprovação de que a área a ser demarcada constitui terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
5. Ademais, o particular que eventualmente esteja na posse da área a ser demarcada, segundo o disposto no § 8º do art. 2º do Decreto 1.775/96, tem a possibilidade de se manifestar, apresentando à FUNAI razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas, para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório de identificação e delimitação da área a ser demarcada.
6. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios não perdem essa característica por ainda não terem sido demarcadas, na medida em que a demarcação tem efeito meramente declaratório. Assim entendido, não se pode falar em perda ou restrição da propriedade por parte de quem nunca a teve.
(...)
(REsp. 1097980 SC 2008/0223900-0, T1 - PRIMEIRA TURMA, Rel. Min. DENISE ARRUDA, DJe 01/04/2009) - g.n.

Por outro lado, em se tratando de ação fundada em hipótese de ocupação promovida por índios em propriedades efetivamente particulares (esbulho), tal como se alega no presente feito, mostra-se cabível, em princípio, o interdito possessório.

Não obstante, no caso, impõem-se determinadas ponderações à análise da pretensão possessória.

Primeiramente, é incontroverso que a situação jurídica subjacente encontra-se envolta em quadro social complexo, tratando-se de circunstância de elevada conflituosidade, ensejadora de impacto com elevada carga político-econômico-social sobre os envolvidos. O provimento jurisdicional, portanto, tem de se constituir com base em uma estrutura dialética, devendo o deslinde da controvérsia ser orientado pela ponderação de direitos fundamentais dos indivíduos atingidos pela situação jurídica coletiva.

Nesse sentido já se manifestou a Corte Especial do STJ (IF 92/MT, DJe 04/02/2010, Rel. Min. Fernando Gonçalves), que, ao apreciar demanda fundada em grave situação de esbulho, promoveu um juízo de ponderação de direitos fundamentais, por meio do qual atribuiu prevalência ao direito da dignidade da pessoa humana sobre o direito de propriedade. Confira-se:

"Nesse contexto, a solução do problema deve ter por base o princípio da proporcionalidade, conforme aliás, antes mencionado, pois, como visto, o caso encerra, a toda evidência, um conflito de valores ou, em outras palavras, a ponderação de direitos fundamentais. De um lado, o direito à vida, à liberdade, à inviolabilidade domiciliar e à própria dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil (art. 1º, III da Constituição Federal). De outro, o direito à propriedade. Em tema de ponderação de valores, a doutrina constitucionalista e a jurisprudência da Suprema Corte, salientam que, sem a exclusão de quaisquer dos direitos em causa, até mesmo porque não pode haver antinomia entre valores constitucionais, deve prevalecer, no caso concreto, aquele valor que mais se apresenta consentâneo com uma solução ponderada para o caso, expandindo-se o raio de ação do direito prevalente, mantendo-se, contudo, o núcleo essencial do outro, com aplicação da três máximas norteadoras da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
No caso concreto, à saciedade, está demonstrado que o cumprimento da ordem judicial de imissão na posse, para satisfazer o interesse de uma empresa, será à custa de graves danos à esfera privada de milhares de pessoas, pois a área objeto do litígio encontra-se não mais ocupada por barracos de lona, mas por um bairro inteiro, com mais de 1000 famílias residindo em casas de alvenaria. A desocupação da área, à força, não acabará bem, sendo muito provável a ocorrência de vítimas fatais. Uma ordem judicial não pode valer uma vida humana. Na ponderação entre a vida e a propriedade, a primeira deve se sobrepor.
(...)
Trazendo, então, as três máximas do princípio da proporcionalidade para o caso concreto, podemos afirmar que o emprego da força policial, pode até ser necessária, pois trará o efeito desejado, ou seja, imitir na posse do imóvel a empresa, mas não será adequada, pois existem outros meios de compor a propriedade privada da credora, por exemplo fazendo uma desapropriação ou resolvendo-se em perdas e danos, e muito menos proporcional em sentido estrito, pelos fundamentos exaustivamente já expendidos, notadamente a prevalência da dignidade da pessoa humana em face do direito de propriedade" - g.n.

A pretensão deduzida nos autos, portanto, não pode ser analisada apenas à luz do formal preenchimento dos requisitos previstos no art. 561, do Código de Processo Civil, impondo-se, igualmente, a realização de um exame de proporcionalidade para o caso concreto.

Por outro lado, verifica-se que, no caso em tela, a pretensão possessória fundamenta-se no entendimento de que a área alegadamente esbulhada, compreendida no âmbito dos limites territoriais do procedimento demarcatório da Terra Indígena Buriti, não seria passível de demarcação como terra indígena, porquanto demonstrada a existência de titulação e ocupação por não-índios desde período anterior ao marco temporal estabelecido pelo STF na Pet. 3.388/RR, qual seja, a data da promulgação da Constituição da República de 1988.

Ocorre que, na hipótese de a referida terra vir a ser reconhecida, pela União, como pertencente a povos indígenas, recaindo-lhe a proteção do art. 231, § 6º, da Constituição da República, não será mais cabível o presente interdito possessório, sob pena de, a pretexto de tutelar-se direito possessório, configurar-se, por via oblíqua, incabível oposição ao próprio ato administrativo demarcatório.

Dessa forma, para além das considerações acima expostas, relativas à necessária ponderação de valores quando da apreciação da pretensão reintegratória, impõe-se, igualmente, a análise do fundamento relativo à tese do denominado "marco temporal", inobstante a presente demanda, por sua natureza, não tenha por objeto matéria relativa ao domínio do bem litigioso.


Do marco temporal


Os parâmetros para a efetiva delimitação das circunstâncias que se subsumem ao conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" e "por eles habitadas em caráter permanente" (art. 231, § 1º, da Constituição da República) vieram a ser delimitados pela jurisprudência quando do julgamento, pelo STF, em 19/03/2009, da Pet. 3.388/RR (Rel. Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009, DJe-181 DIVULG 24-09-2009 PUBLIC 25-09-2009 REPUBLICAÇÃO: DJe-120 DIVULG 30-06-2010 PUBLIC 01-07-2010 EMENT VOL-02408-02 PP-00229 RTJ VOL-00212- PP-00049), denominado "Caso Raposa Serra do Sol".

No julgamento, o Min. Menezes Direito consignou, em sua voto, à luz da interpretação constitucional, a imprescindibilidade do reconhecimento da terra indígena para a preservação das comunidades que titularizam sua ocupação:


"Não há índio sem terra. A relação com o solo é marca característica da essência indígena, pois tudo o que ele é, é na terra e com a terra. Daí a importância do solo para a garantia dos seus direitos, todos ligados de uma maneira ou de outra à terra. É o que se extrai do corpo do art. 231 da Constituição. Sua organização social, seus costumes, língua, crenças e tradições estão, como se sabe, atrelados à terra onde vivem".

É cediço que a terra apresenta relevância central para os indígenas, sendo imprescindível à sua subsistência. Esse aspecto foi reafirmado, no caso Raposa Serra do Sol, pelo Min. Menezes Direito, que consignou que, uma vez constatado o denominado fato indígena, resta suplantado qualquer direito de cunho privado, que não poderá prevalecer sobre os direitos dos índios:


"O tema das terras indígenas sempre despertou a discussão quanto à prevalência dos direitos dos índios em face de situações anteriormente constituídas (...) Toda essa discussão está se não superada, pelo menos destituída da relevância antes merecida, pelo regime da Constituição de 1988 (...) O constituinte quis suplantar todas as pretensões e os supostos direitos sobre as terras indígenas identificadas a partir de 1988 (...) Conclui-se que uma vez demonstrada a presença dos índios em determinada área na data da promulgação da Constituição (5/10/1998) e estabelecida a extensão geográfica dessa presença, constatado o fato indígena por detrás das demais expressões de ocupação tradicional da terra, nenhum direito de cunho privado poderá prevalecer sobre os direitos dos índios. Com isso, pouco importa a situação fática anterior (posses, ocupações, etc). O fato indígena a suplantará, como decidido pelo constituinte dos oitenta." - g.n.

Examinadas tais premissas, resta perquirir acerca da denominada teoria do fato indígena, referida na fundamentação acima transcrita, a qual embasou o entendimento estabelecido no julgamento da Pet. 3.388/RR.

De acordo com essa concepção, consideram-se terras indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição da República, eram ocupadas por indígenas, adotando-se, assim, o marco temporal de 5 de outubro de 1988 como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico.

Seguindo-se tal entendimento, deve-se analisar, em cada caso, em vista do conjunto probatório produzido, a situação fática acerca da existência, ou não, de ocupação tradicional, de acordo com o marco temporal fixado pelo STF.

Nesse ponto, deve-se ressaltar que, embora a decisão proferida na Pet. 3.388/RR não tenha produzido efeito erga omnes, porquanto desprovida de eficácia vinculante em sentido formal, o marco temporal para configuração da tradicionalidade da ocupação indígena veio a ser consolidado posteriormente, no julgamento do RMS nº 29.087 - denominado "Caso Guyrároka" (DJe 14/10/2014) -, em que reafirmou-se, no voto proferida pela Min. Cármem Lúcia, o mesmo entendimento estabelecido pelo Min. Roberto Barroso no julgamento da Pet. 3.388-ED, segundo o qual, "embora não tenha efeitos vinculantes em sentido formal, o acórdão do caso Raposa Serra do Sol ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite de superação das suas razões".

Efetivamente, portanto, as decisões proferidas em casos futuros devem considerar, em sua análise, a força persuasiva - embora não vinculante - dos fundamentos determinantes fixados pelo STF nos aludidos precedentes.

Não obstante, é relevante ponderar que, a despeito do entendimento estabelecido nos precedentes acima referidos, não é possível afirmar, no atual estágio de desenvolvimento da jurisprudência acerca da matéria, que a teoria do fato indígena - a partir da qual estipulou-se como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico a data da promulgação da Constituição da República de 1988 - tenha restado definitivamente firmada pela Corte Constitucional.

Nesse ponto, observa-se que, em recentes decisões, o Plenário do STF, em 16/08/2017, utilizou-se de fundamentos diversos para julgar as Ações Civis Originárias nº 362 e 366, cuja controvérsia era concernente à tradicionalidade da ocupação indígena sobre áreas submetidas a processo demarcatório.

Em seu voto, o Rel. Min. Marco Aurélio consignou que, desde a Constituição da República de 1934, é reconhecido o direito dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, havendo tal previsão sido igualmente estabelecida pela Constituição da República de 1988 (art. 20, XI, e art. 231). Com base em tais fundamentos constitucionais, bem como no teor dos laudos antropológicos produzidos naqueles autos, o STF concluiu que as áreas objeto das referidas demandas (Parque Nacional do Xingu e Reservas Indígenas Nambikwára e Parecis) constituem, de fato, áreas habitadas historicamente por indígenas.

Da análise dos votos proferidos pelo Rel. Min. Marco Aurélio nas referidas Ações Civis Originárias, depreende-se a inexistência, dentre os fundamentos determinantes, de referência à teoria do fato indígena (e, portanto, ao marco temporal aludido na Pet. 3.388/RR), havendo a conclusão acerca da ocupação tradicional das terras por povos indígenas se pautado, essencialmente, pelos laudos antropológicos produzidos, os quais referem-se apenas à ocupação histórica da região.

Em vista de tais precedentes, depreende-se que a tese do marco temporal não se presta a constituir fundamento idôneo a limitar, aprioristicamente, a efetivação do processo demarcatório, sob pena de violação ao comando constitucional de demarcação das terras indígenas pela União (art. 231, da Constituição da República; e art. 67, do ADCT).


Do esbulho renitente


Em relação ao aludido marco temporal, deve-se observar que a interpretação atribuída ao art. 20, XI, da Constituição da República, no caso Raposa Serra do Sol, foi expressamente ressalvada em relação às hipóteses em que restar caracterizado o denominado esbulho renitente.

De acordo com tal entendimento, caso demonstrado que a ausência de ocupação indígena no marco temporal estabelecido pelo STF tenha se dado por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), promovidos por parte de não índios, restará preservado o reconhecimento da ocupação tradicional indígena. Resguarda-se, assim, a tutela dos direitos dos índios às suas terras, ainda que sua ocupação se encontrasse obstada em 05/10/1988, em razão de esbulho.

Nesses termos, destacou o Min. Carlos Ayres Britto, em seu voto, no julgamento da Pet. 3.388/RR:


"Afinal, se, à época do seu descobrimento, o Brasil foi por inteiro das populações indígenas, o fato é que o processo de colonização se deu também pela miscigenação racial e retração de tais populações aborígines. Retração que deve ser contemporaneamente espontânea, pois ali onde a reocupação das terras indígenas, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, somente não ocorreu por efeito do renitente esbulho por parte dos não-índios, é claro que o caso já não será de perda da tradicionalidade da posse nativa. Será de violação aos direitos originários que assistem aos índios, reparável tanto pela via administrativa quanto jurisdicional. Para isso é que servem as regras constitucionais da inalienabilidade e da indisponibilidade das terras indígenas, bem assim a imprescritibilidade dos direitos sobre elas".

No que tange aos aldeamentos extintos, restou pacificado não constituírem bens da União, enquanto terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (art. 20, XI, da Constituição da República), consoante firmado na Súmula 650, do STF.

Em relação, porém, ao tratamento jurídico dispensado às áreas sujeitas a renitente esbulho, em que a expulsão dos indígenas decorreu da ocupação de suas terras por não índios, a jurisprudência veio a estabelecer contornos específicos, em precedentes que se seguiram ao leading case Raposa Serra do Sol.

Nesse sentido, verifica-se que nos casos "Terra Guyrároka" (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015) sedimentou-se a concepção do esbulho renitente em sentido estrito, de acordo com a qual mostra-se possível o reconhecimento da expulsão de comunidades indígenas - de modo a excepcionar a necessidade de ocupação da terra no marco temporal de 05/10/1988 -, caso verificadas circunstâncias de fato que demonstrem a existência de controvérsia possessória judicializada, ou, ainda, a presença de conflito possessório que perdure até a data da promulgação da Constituição da República de 1988.

Acerca de todo o exposto, esclarece a doutrina, em síntese:


"Com isso, o STF entendeu que por 'terras tradicionalmente ocupadas pelos índios' (art. 20, XI, da CF/88) devem ser entendidas aquelas que: (i) as comunidades indígenas ocupavam na data da promulgação da CF/88 (marco temporal); conquanto que (ii) as comunidades ostentassem o caráter de perdurabilidade no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica, com o uso da terra para o exercício das tradições, costumes e subsistência indígena (...). Ainda que o STF, nesse mesmo caso (Raposa Serra do Sol), tenha acatado os marcos temporal e da tradicionalidade da ocupação, cabe notar que o Tribunal reconheceu a exceção do chamado 'renitente esbulho', pela qual as terras seriam ainda indígenas mesmo sem a ocupação no dia 5 de outubro de 1988, caso fosse comprovada que a ausência de ocupação houvesse se dado por 'efeito de renitente esbulho por parte de não índios' (...). Por essa ótica, o renitente esbulho [em sentido estrito] exige situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até a data da promulgação da CF/88 (marco temporal), sendo provado por (i) circunstâncias de fato ou, pelo menos, (ii) por uma controvérsia possessória judicializada (...). A partir deste último caso [Terra Indígena Limão Verde], a tese do renitente esbulho em sentido estrito ganhou seus contornos atuais, tendo o Min. Relator Teori Zavascki condicionado a existência do esbulho ao critério do marco temporal, afirmando que, 'há de haver, para configuração de esbulho, situação de efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passo, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual (vale dizer, na data da promulgação da Constituição de 1988), conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada (ARE n. 803.462-AgR-MS, Rel. Min. Teori Zavacki, julgado em 9-12-2014)".
(RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2017, pp. 788-790)

Ante o exposto, deve-se ter em vista que a conclusão acerca da inexistência de ocupação tradicional indígena imprescinde da efetiva realização dos estudos antropológicos previstos no Decreto nº 1.775/1996 (art. 2º). Ressalta-se, ainda, que tal estudo deve aferir não apenas a existência de eventual ocupação indígena em 05/10/1988, mas tem de analisar, igualmente, se a ausência de índios na região se deu por força de atos de extrusão e remoção compulsória (renitente esbulho), conforme consignado no julgamento da Pet. 3.388/RR e sedimentado pela jurisprudência nos casos "Terra Guyrároka" (RMS nº 29.087, DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" (ARE nº 803.462-Agr-MS, DJe 12/02/2015).

A observância a tais parâmetros constitui pressuposto para a estabilidade e coerência da jurisprudência, bem como à efetivação dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia (artigos 926 e 927, § 4º, ambos do Código de Processo Civil).

Portanto, no caso, a ausência física da comunidade indígena de Buriti, na área sob litígio, ao tempo da promulgação da Constituição da República de 1988, não constitui fundamento a autorizar, por si, a conclusão no sentido da inexistência de tradicional ocupação indígena sobre o local.

Cumpre anotar, por fim, que a Corte Interamericana de Direitos Humanos possui precedentes no mesmo sentido, apontando, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos - internalizada pelo Decreto nº 678/92 -, que, na hipótese de restar caracterizada a expulsão de indígenas e o impedimento de acesso a suas terras, por força de renitente esbulho, é imperioso que se assegure o direito daquela comunidade tradicional à recuperação do local de ocupação (Corte IDH, Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, sentença de 29 de março de 2006).

Exposto o conjunto normativo que rege a matéria e os delineamentos atribuídos pela interpretação jurisprudencial, depreende-se que, no caso em exame - embora a matéria de fundo não tenha por objeto a discussão do domínio do bem litigioso -, estão presentes elementos probatórios indicativos de que a área sob litígio constitui terra de tradicional ocupação indígena, bem como de que, inobstante a inexistência de ocupação física ao tempo da promulgação da Constituição da República de 1988, a desocupação não se deu espontaneamente, mas por força de atos de remoção compulsória promovidos por não-índios.

A esse respeito, é ampla a prova documental produzida, mormente as conclusões extraídas dos extensos estudos apresentados pelo laudo pericial judicial de fls. 822/1.298 ("Perícia Antropológica e Histórica da Área Reivindicada pelos Terena para ampliação dos limites da Terra Indígena Buriti, Municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do Buriti, Mato Grosso do Sul, Brasil").


Nesses termos, em vista da necessária ponderação de valores que deve permear a análise de pretensões possessórias sobre situações jurídicas coletivas complexas que envolvem direitos fundamentais, bem como em face da existência de elementos probatórios indicativos da tradicional ocupação indígena sobre a área em litígio, devem ser julgados improcedentes os presentes embargos infringentes, para que seja mantido o julgamento de improcedência do pedido de reintegração de posse.


Ante o exposto, nego provimento aos embargos infringentes.


É o voto.


HÉLIO NOGUEIRA
Desembargador Federal


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EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
RELATOR : Juiz Convocado FERNÃO POMPÊO
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
EMBARGADO : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

RELATÓRIO

Trata-se de embargos infringentes interpostos pelo Espólio de Geraldo Corrêa da Silva e Celina Ferreira Corrêa, inconformados com o v. acórdão da E. 5ª Turma desta Corte Regional, que, por maioria, deu parcial provimento às apelações interpostas pela União, pelo Ministério Público Federal e pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI contra a r. sentença que, em primeiro grau de jurisdição, julgara procedente o pedido de reintegração de posse dos imóveis componentes da Fazenda Furna Estrela.

O acórdão ora embargado, fruto dos votos exarados pelos e. Desembargadores Federais André Nabarrete e Ramza Tartuce, vem assim ementado:


"CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE REINTETRAÇÃO DE POSSE. PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS. LAUDO ARQUEOLÓGICO E ANTROPOLÓGICO. TERRAS TRADICIONALMENTE INDÍGENAS. ALIENAÇÃO PELO ESTADO COMO DEVOLUTAS E CADEIA DOMINIAL DERIVADA. ILEGITIMIDADE. PROVIMENTO DOS RECURSOS DA UNIÃO E FUNAI E MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. AÇÃO IMPROCEDENTE.
- Preliminares de impossibilidade jurídica do pedido e falta de interesse de agir rejeitadas. Não se pretende demarcar as terras em usurpação de atribuição da União, mas da análise de questão possessória relativa a terras reivindicadas pelos autores e pela população indígena local.
- Não prospera a alegada incompetência do magistrado para atuar no feito, pois respondia pela titularidade da 3ª Vara Federal em Campo Grande, conforme ato Conselho da Justiça Federal da 3ª Região.
- Não se extrai da sentença parcialidade do magistrado ou sua vinculação a um entendimento prévio específico favorável a uma das partes. Ademais, caberia, em momento próprio, ter sido deduzida exceção de suspeição.
-Sentença fundamentada, na medida em que houve o enfrentamento dos temas, o exame das provas e a exposição da conclusão.
- Inexistente cerceamento de defesa. Despicienda a realização de perícia, à vista da que foi elaborada na ação declaratória n.º 2001.60.00.003866-3.
- A Constituição Federal, em seus artigos 231 e 232 garante proteção aos índios, à sua cultura, terras, recursos hídricos e minerais e de removibilidade condicionada à aprovação do Congresso Nacional, conforme determinam os arts. 231 e 232.
- Procedimento demarcatório iniciado pela FUNAI das terras dos Terena na região da reserva do Buriti fundamenta-se nos dispositivos constitucionais mencionados e no Decreto n.º 1.775/96.
- O deslinde da controvérsia exige o exame da questão fática, a cargo dos antropólogos e arqueólogos, e da jurídica, que se imiscui na primeira.
- Do "Relatório Antropológico para redefinição dos limites da terra indígena Buriti" elaborado por grupos técnicos da FUNAI coordenados pelo antropólogo Gilberto Azanha, em maio de 2001, com base na Portaria 1.155/Pres/FUNAI, aprovado pelo Sr. Presidente da FUNAI e que fundamenta o procedimento demarcatório ora questionado, consta descrição de todo o histórico de ocupação da tribo indígena na região e como seus membros acabaram por ser expulsos pelos fazendeiros e colonos.
- Laudo elaborado por dois peritos nomeados na ação declaratória n.º 2001.60.00.003866-3, dividido em estudo arqueológico e antropológico, também concluiu que a área em questão é tradicionalmente dos Terena.
- Resumidamente, os Terena, descendentes dos Ganá-Txané, habitaram a região do Chaco e do Pantanal. Em meados do século XIX, estavam divididos em vários subgrupos e conviviam na mesma região com outros os ancestrais dos atuais Kadiwéu, conhecidos pela índole guerreira. Desenvolveram entre si aliança alicerçada em trocas matrimoniais e um sistema de relações simbióticas por meio do qual os primeiros forneciam alimentos em troca de proteção militar e artefatos metálicos dos últimos. Entretanto, com a Guerra do Paraguai, as grandes aldeias até então existentes e a sociedade de grande complexidade do ponto de vista da organização social que se formara entrou em colapso, com as famílias em fuga para refúgios ou em pequenos grupos empregados nas fazendas. Após a demarcação de reservas pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio - SPI, os diversos subgrupos dos Guaná começaram a se fundir e a
compor a população que é hoje denominada Terena.
- Quanto à região do Buriti, os Terena nela habitavam seguramente desde a segunda metade do século XIX e a primeira posse somente se deu com a demarcação da sesmaria Correntes, em 1896/1898, pertencente a Diocleciano Mascarenhas, que mantinha boa relação com os índios já ali instalados e maliciosamente os convenceu a saírem e se juntarem àqueles que viviam fora de seus limites. Após a saída dos Terena da propriedade de Correntes, logo outros particulares iniciaram pressões para obterem títulos de terras na região e o próprio SPI acabou por ceder e, finalmente, estabelecer uma área de 2.090 ha para os índios, na qual vivem atualmente confinados.
- As terras não foram desocupadas espontaneamente, mas foram obtidas por meio de inegável expulsão dos indígenas. O contato dos Terena com as terras do Buriti, não obstante a expulsão e o confinamento, jamais se extinguiu e continua vivo até os dias atuais.
- A final, a conclusão dos estudiosos designados pelo Juízo na ação declaratória n.º 2001.60.00.003866-3 foi peremptória no sentido de que a área periciada pode ser conceituada como de tradicional ocupação indígena.
- Quanto ao cabimento da conceituação jurídica das terras da região do Buriti como tradicionalmente ocupadas pelos Terena, o conhecido Alvará Régio de 1º de abril de 1680, estendido posteriormente, em 1758, a todo Brasil, reconheceu como originário o direito dos índios às próprias terras, fonte primária e congênita da posse. Posteriormente, a Lei n.º 601, de 18 de setembro de 1850, conceituou as chamadas terras devolutas e deixou claro que entre elas não se incluíam aquelas "concessões do Governo". A transferência destas últimas aos Estados pela Constituição de 1891 (artigo 64) manteve sob domínio da União aquelas pertencentes aos indígenas. Conseqüentemente, as alienações feitas a particulares pelo Estado de Mato Grosso Sul das terras dos Terena como se fossem devolutas não têm legitimidade, bem assim os títulos acostados aos autos e a cadeia dominial derivada, independentemente da boa fé dos adquirentes.
- Relativamente aos precedentes invocados e à Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal, inaplicáveis à situação em comento, pois referem-se a antigos aldeamentos indígenas há séculos desaparecidos e substituídos por grandes concentrações urbanas tais como em Guarulhos, Santo André e São Miguel, situação radicalmente distinta do caso dos Terena. Em primeiro lugar, porque ainda habitam a região do Buriti. Ademais, como foi exposto, após a Guerra do Paraguai a ocupação indígena da região não se identifica com o conceito de aldeia, utilizado nos aludidos precedentes e na súmula, mas à noção de tronco. Somente a partir de 1930, com a criação da reserva de 2.090 ha em que foram confinados, é que a idéia de aldeamento volta a fazer algum sentido, mas é certo que não está extinto.
- Demonstrado o caráter originário da presença dos índios nas terras, prevalece os direitos deles constitucionalmente assegurados, de forma que o título de propriedade dos apelados não lhes socorre.
- A demarcação da região apenas confirmará a posse que incumbe aos indígenas há séculos e não se caracteriza como título aquisitivo de posse ou de constituição da ocupação. Não é necessário o seu término para que os silvícolas possam ocupá-la. Não se trata, in casu, de situação regulada pelo Direito Civil, quando há conflitos entre particulares para se dirimir quem é o titular da propriedade ou posse do bem. O direito à posse dos indígenas não é derivado, mas originário, porque a Constituição Federal assim o definiu. Logo, não se aplicam os artigos 1201, parágrafo único, 1210, § 2º e 1211 do Código Civil nem os artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil.
- O processo demarcatório tem como objetivo a fixação dos limites do território pertencente à União, ao qual será dada destinação específica (propriedade reservada), e culmina com o registro em cartório imobiliário (artigo 6º do Decreto nº 1.775/96), ato que tem caráter de publicidade e não de legitimação. Se a própria Constituição Federal define que são assegurados os direitos originários dos indígenas das terras tradicionalmente por eles ocupadas, não é aceitável que a formalidade condicione o direito de usufruir o que lhes pertence.
- Não se pode tratar os silvícolas como absolutamente capazes e exigir o discernimento próprio de um indivíduo civilizado, inclusive o Código Civil de 2002 estabelece no parágrafo único do artigo 4º que a legislação especial regulará acerca da capacidade dos índios.
- Rejeitada a matéria preliminar. Apelações providas. Ação julgada improcedente" (f. 1448-1501)".

Na ocasião, restou vencido o voto proferido pela e. Desembargadora Federal Suzana Camargo, que negava provimento ao recurso ministerial e dava parcial provimento às apelações da União e da Fundação Nacional do Índio - FUNAI apenas para excluir a multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais) cominada na sentença (fls. 1356/1.427).

Segundo Sua Excelência, o pedido inicial deve ser julgado procedente pelos seguintes motivos:

a) "ainda que tenham sido ocupadas por indígenas em passado remoto, é igualmente certo que, atualmente e já há muitas décadas, encontram-se povoadas por outros que não os silvícolas, notadamente os produtores rurais ora autores, com dezenas de imóveis registrados em Cartórios Imobiliários em nome de particulares, inexistindo qualquer resquício de posse tradicional indígena" (fls. 1.370);

b) o Supremo Tribunal Federal "empresta à expressão 'tradicionalmente ocupadas', constante do § 1º do artigo 231 da atual Constituição Federal, significado relativo apenas às situações fáticas encontradas quando de sua promulgação" (fls. 1.379);

c) A Súmula 650 do Excelso Pretório estabelece que "os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamento extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto" (fls. 1.380);

d) os autores "sempre se mantiveram na posse e propriedade dos imóveis ora em discussão, à qual pode ser somada a posse pacificamente exercida por seus antecessores". (fls. 1.391);

e) dos documentos constantes dos autos da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3, tida como principal em relação às demais demandas, de natureza possessória "extrai-se que aquela região se refere a uma antiga sesmaria e que a ocupação e posse datam da metade do século XIX, já levados a registro desde então" (fls. 1.407).

f) "quando os autores não exercitavam sua posse e sua propriedade pessoalmente, faziam-no através de prepostos e empregados, principalmente por meio da atividade de criação de gado" (fls. 1.409);

g) "não existe nos autos comprovação segura de que os índios tenham sido expulsos das áreas que alegam que ocupavam ancestralmente (nada mais do que as áreas em litígio) mediante grave violência ou ameaça física", tanto que, "após serem acomodados nos 2.090 hectares da área da Reserva Buriti, passaram a conviver pacificamente com os proprietários, trabalhando para estes até recentemente, quando resolveram dar início ao processo sistemático de invasão das fazendas ora disputadas" (fls. 1.410);

h) a posse indígena sobre as áreas ora em litígio, se efetivamente existiu, está tão distante da nova realidade fática que a situação ora vigente se tornou irreversível" (fls. 1.419).

Pretendem os embargantes que prevaleça, no âmbito desta Seção, o voto vencido (fls. 1.538/1.576).

A Fundação Nacional do Índio - FUNAI (1.590/1.619), a União (fls. 1.620/1644) e o Ministério Público Federal (fls. 1.647/1.669), por sua vez, sustentam o acerto dos votos vencedores, traduzidos na ementa supra.

A Fundação Nacional do Índio - FUNAI requereu a juntada de cópia da Portaria n.º 3.079, de 28 de setembro de 2010, do Ministério da Justiça, "que declarou a área objeto das ações originárias como de ocupação tradicional indígena" (fls. 1.710/1.711), documento a respeito do qual se manifestaram a União (fls. 1.717), os embargantes (fls. 1.721/1.737) e o Ministério Público Federal (fls. 1.739).

É o relatório.

Feito submetido à revisão.



FERNÃO POMPÊO
Juiz Federal Convocado


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EMBARGOS INFRINGENTES Nº 0008361-24.2003.4.03.6000/MS
2005.03.99.021636-2/MS
EMBARGANTE : CELINA FERREIRA CORREA espolio e outro
: GERALDO CORREA DA SILVA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
REPRESENTANTE : AROLDO FERREIRA CORREA
ADVOGADO : MS004869 JULIO CESAR SOUZA RODRIGUES
EMBARGADO : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
EMBARGADO : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
PROCURADOR : SP284895B DANNYLO ANTUNES DE SOUSA ALMEIDA
EMBARGADO : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SERGIO FERNANDES DAS NEVES
PARTE AUTORA : CARLOS DELFINO e outros
: AGEU REGINALDO LOURENCO
: DIONIZIO VENTURINO
No. ORIG. : 2003.60.00.008361-6 3 Vr CAMPO GRANDE/MS

VOTO

Inicialmente, impõe-se esclarecer o colegiado sobre alguns pontos fundamentais para a formação do convencimento no caso em exame.

Antes de adentrar à análise do presente caso mostra-se relevante consignar que esta c. Primeira Seção já analisou a mesma questão fático-jurídica em três julgamentos anteriores, mais especificamente, no julgamento dos embargos infringentes interpostos nos autos da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3, nos autos da ação de interdito proibitório nº 2003.60.00.008669-1/MS e nos autos da ação de reintegração de posse nº 2003.60.00.005222-0/MS.

A parte ora embargante integra o polo ativo da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3, em litisconsórcio com outros proprietários de terras na área da chamada Reserva Indígena Buriti, na região do município de Sidrolândia, no estado do Mato Grosso do Sul, sendo de fundamental importância mencionar que aquela ação foi considerada principal em relação às demais ações possessórias a ela conexas.

Peço vênia para relacionar os feitos em referência: processo nº 2003.60.00.008669-1/MS (com embargos infringentes já julgados por esta c. Primeira Seção); processo n° 2001.60.00.005222-0/MS (com embargos infringentes já julgados por esta c. Primeira Seção); processo n° 2000.60.00.001770-9/MS (feito também incluído na pauta de julgamento do dia de hoje); processo n° 2000.60.00.002890-2/MS (feito também incluído na pauta de julgamento do dia de hoje); e processo n° 2005.03.99.021636-2 (trata-se do presente feito).

Na aludida ação declaratória os ora embargantes e demais litisconsortes objetivam o reconhecimento de que as propriedades por eles tituladas não se enquadrariam no conceito de terras tradicionalmente ocupadas por índios, nos exatos termos previstos no artigo 231 da Constituição Federal, pleiteando a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 1.775/96 e das portarias expedidas pela FUNAI, e, ainda, a invalidade dos atos praticados com base nas mencionadas portarias, em especial, os levantamentos e estudos antropológicos e de avaliação objetivando a demarcação administrativa da área indígena Terena.

Na oportunidade em que foram firmados os precedentes por esta c. Primeira Seção nos autos dos Embargos Infringentes nº 2001.60.00.003866-3/MS (acórdão datado de 21/06/2012), votaram pelo provimento e, por consequência, pela prevalência do voto vencido da lavra da e. desembargadora federal Suzana Camargo, os eminentes desembargadores federais Nelton dos Santos (relator), André Nekatschalow (voto-vista), Luiz Stefanini, Cecília Melo, Peixoto Júnior e José Lunardelli (voto-vista), tendo restado vencidos os excelentíssimos desembargadores federais Cotrim Guimarães, Antônio Cedenho (voto-vista) e Ramza Tartuce, que lhes negavam provimento.

Prevaleceu naquela ocasião, portanto, a exegese no sentido de que as terras sobre as quais versam o litígio não se incluem na definição constitucional de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, uma vez que em 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição Federal) já não eram ocupadas por indígenas e a posse dos autores era exercida pacificamente de há muitos anos, conforme ementa a seguir transcrita:


CONSTITUCIONAL. DEMANDA DECLARATÓRIA. ÁREA RURAL. TERRAS PARTICULARES. DIREITO INDÍGENA. PROVA DOS AUTOS. EMBARGOS INFRINGENTES PROVIDOS.
1. Na exata conformidade do artigo 231, caput, da Constituição Federal, são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
2. O Supremo Tribunal Federal assentou que a Constituição Federal fixou a data de sua promulgação como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (STF, Pet 3388, Pleno, rel. Min. Carlos Britto).
3. Na mesma oportunidade, o Excelso Pretório decidiu que: a) é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica; e b) a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.
4. No caso presente, a prova dos autos revela que, em 5 de outubro de 1988, marco temporal a ser considerado para o deslinde da causa, já não havia ocupação indígena e a posse dos não-índios era exercida pacificamente.
5. Embargos infringentes providos.
(TRF - 3ª Região, 1ª Seção, Embargos Infringentes nº 2001.60.00.003866-3/MS, Rel. Des. Federal Nelton dos Santos, DJ 06/07/2012)

Publicado o acórdão foram opostos embargos de declaração, os quais foram rejeitados por unanimidade em sessão realizada em 04/07/2013, conforme consulta realizada ao Sistema de Informações Processuais desta e. Corte Regional.

No mesmo sentido concluiu esta c. Primeira Seção em relação às ações possessórias conexas, propostas por alguns dos litisconsortes da ação declaratória, em julgamento realizado na mesma data (21/06/2012), cujas ementas peço vênia para transcrever:


CONSTITUCIONAL. INTERDITO PROIBITÓRIO. ÁREA RURAL. TERRAS PARTICULARES. DIREITO INDÍGENA. PROVA DOS AUTOS. EMBARGOS INFRINGENTES PROVIDOS.
1. Na exata conformidade do artigo 231, caput, da Constituição Federal, são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
2. O Supremo Tribunal Federal assentou que a Constituição Federal fixou a data de sua promulgação como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (STF, Pet 3388, Pleno, rel. Min. Carlos Britto).
3. Na mesma oportunidade, o Excelso Pretório decidiu que: a) é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica; e b) a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.
4. No caso presente, a prova dos autos revela que, em 5 de outubro de 1988, marco temporal a ser considerado para o deslinde da causa, já não havia ocupação indígena e a posse dos não-índios era exercida pacificamente.
5. Embargos infringentes providos.
(TRF - 3ª Região, 1ª Seção, Embargos Infringentes nº 2003.60.00.008669-1/MS, Rel. Des. Federal Nelton dos Santos, DJ 06/07/2012)
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. ÁREA RURAL. TERRAS PARTICULARES. DIREITO INDÍGENA. PROVA DOS AUTOS. EMBARGOS INFRINGENTES PROVIDOS.
1. Na exata conformidade do artigo 231, caput, da Constituição Federal, são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
2. O Supremo Tribunal Federal assentou que a Constituição Federal fixou a data de sua promulgação como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (STF, Pet 3388, Pleno, rel. Min. Carlos Britto).
3. Na mesma oportunidade, o Excelso Pretório decidiu que: a) é preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica; e b) a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de não-índios.
4. No caso presente, a prova dos autos revela que, em 5 de outubro de 1988, marco temporal a ser considerado para o deslinde da causa, já não havia ocupação indígena e a posse dos não-índios era exercida pacificamente.
5. Embargos infringentes providos.
(TRF - 3ª Região, 1ª Seção, Embargos Infringentes nº 2001.60.00.5222-0/MS, Rel. Des. Federal Nelton dos Santos, DJ 06/07/2012)

Anoto não ter havido o trânsito em julgado nas aludidas ações em razão da interposição de recurso especial e extraordinário, conforme consulta ao Sistema de Informações Processuais, bem como aos autos da ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3/MS que ainda se encontram na Subsecretaria desta c. Primeira Seção.

Faço constar, por fim, que, a meu ver, todos os processos mencionados deveriam ter sido julgados naquela mesma oportunidade, como ocorreu na fase do julgamento das apelações, tendo em vista a relação direta de dependência entre as ações possessórias e a ação declaratória, o que evitaria o grave risco de prolação de decisões conflitantes envolvendo a mesma área em litígio.

Após o intróito necessário, passo ao exame do presente caso.

A apelação foi distribuída por prevenção à c. Quinta Turma (fls. 1.337).

Por ocasião do julgamento da apelação prevaleceu o voto divergente do eminente desembargador federal André Nabarrete, ao qual se somou o da eminente desembargadora federal Ramza Tartuce, resultando na ementa reproduzida no relatório supra.

Naquela oportunidade restou vencido o voto da então relatora, a eminente desembargadora federal Suzana Camargo que, quanto ao mérito, negava provimento aos recursos interpostos, concluindo sua fundamentação nos seguintes termos "considerando os elementos constantes dos autos de nº 2001.60.00.003866-3, tenho que as terras objeto desta ação possessória não podem ser enquadradas no conceito de 'terras tradicionalmente ocupadas pelos índios', consoante requerido pelo texto constitucional, o que desautoriza a ocupação 'manu militari' pelos silvícolas, a pretexto de 'reocupação' de terras que outrora lhes teriam pertencido. Nesse sentido, a desocupação das áreas pelos índios, com a manutenção do 'status quo ante' se faz de rigor, preservando as instituições jurídicas e sociais naquela região (fls. 1422).

Segundo Sua Excelência, "o entendimento de nossa Corte Constitucional (...) empresta à expressão 'tradicionalmente ocupadas', constante do § 1º do artigo 231 da atual Constituição Federal, significado relativo apenas às situações fáticas encontradas quando de sua promulgação" (fls. 1.379).

Ressaltou, ainda, em outros trechos do voto vencido que "as áreas em questão há décadas, para dizer o mínimo, saíram da posse dos silvícolas, e há muito tempo já se encontram no comércio" (fls. 1.386), esclarecendo, mais adiante que (fls. 1.421), "a respeito dessas áreas não mais se encontra tal moldura constitucional, pois estão todas desmatadas, contando, agora, com inúmeros pastos, gado, currais, poços artesianos,casas, fazenda, dentre tantas outras coisas inerentes às atividades agropecuárias e, grosso modo, ao padrão de vida "branco".

Especialmente em relação à natureza possessória do pedido formulado nestes autos, peço vênia para transcrever o seguinte trecho do voto vencido (fls. 1.422/1426), conforme segue:


"V - DA COMPROVAÇÃO DA POSSE DOS APELADOS E DO ESBULHO PRATICADO PELOS ÍNDIOS
Uma vez superadas estas questões preambulares, ligadas à própria concepção do indigenato, mister se faz analisar, no caso em apreço, a comprovação da posse dos apelados e do esbulho praticado pelos índios no caso em apreço.
E é de se ver que a posse dos apelados resta bem comprovada nos autos.
Às fls. 08/13 foi juntada cópia da Escritura do imóvel em questão junto ao Registro de Imóveis da Comarca de Sidrolândia/MS, a qual é dotada de fé pública. Às fls. 14/18 e 25/26 juntou-se cópias de diversas DAP's - Declaração Anual do Produtor Rural, relativas todas à Fazenda Furna da Estrela, ora objeto desta reintegração de posse, as quais demonstram a utilização econômica da referida propriedade.
Nas fls. 19/21 encartaram-se documentos do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul a respeito da situação do rebanho bovino da Fazenda Furna da Estrela, sendo que os mesmos cobrem o período de 1998 a 2000. Às fls. 22/24 trouxe-se aos autos cópia do Certificado de Cadastro de Imóvel Rural da propriedade ora reintegranda, o qual é relativo a 1999, bem como comprovantes de recolhimento do ITR - Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, os quais remontam a 1995.
Ainda em relação ao domínio sobre as áreas que se busca reintegrar nestes autos, cabe dizer que nos autos nº 2001.60.00.003866-3, ação conexa a estes autos, embora dela não participe o ora apelado, foi proferida sentença de procedência, para reconhecer o domínio de várias
propriedades, pertencentes a diversos autores e incidente sobre a área que se alega ser de posse ancestral dos silvícolas.
Este entendimento que ora esposamos restou consagrado em inúmeros julgados de nossos Tribunais, os quais deixamos de aqui apresentar tendo em vista que restaram cristalizados na recente Súmula 650 do Excelso Supremo Tribunal Federal:
"650. Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto."
Em relação ao esbulho praticado pelos índios, o mesmo também restou devidamente comprovado. Às fls. 27 juntou-se cópia do Boletim de Ocorrência relatando a invasão da propriedade; às fls. 28 está uma cópia da mensagem dirigida ao Delegado da Polícia Federal, na região, comunicando o esbulho praticado pelos silvícolas; diversos informes jornalísticos também dão conta do quanto ocorrido na Fazenda Furna da Estrela (fls. 29/34 e 42/47).
A certidão de fls. 226, lavrada por dois Oficiais de Justiça, em 14.10.2003, dá conta de que, em visita ao local invadido, foram encontradas na área aproximadamente 40 famílias.
O Termo de Reunião de fls. 111/112, dá conta da Reunião de lideranças indígenas e representantes da FUNAI e fazendeiros ocorrida na sede da Procuradoria da República no Mato Grosso do Sul. Desse documento destaca-se o seguinte: "Informaram os presentes ao Procurador da República que os indígenas das aldeias em questão já se comprometeram junto ao Sr. Nelson, genro do Sr. Geraldo Corrêa, de que não vão ocupar a sede da fazenda".
De se destacar que, quanto ao acima exposta, os índios se comprometeram a não invadir a sede da Fazenda visto que boa parte de sua extensão já havia sido ocupada pelos mesmos, conforme fica bem delineado nos documentos anteriormente citados, principalmente o Boletim de Ocorrência de fls. 27.
Nesse mesmo sentido é que deve ser interpretado o documento de fls. 113/114. O mesmo se trata de uma missiva dirigida ao Procurador da República oficiante na região, Dr. Wilson Neto. Do mesmo é de se destacar a seguinte passagem, que corrobora a intenção dos silvícolas de a respeito do esbulho na propriedade dos apelados:
"Nós destas comunidades, queremos comunicar a Vossa Sra. Que estamos acampados desde o dia 27 de junho de 2003, em mais uma parte da Fazenda Furna da Estrela do Senhor Geraldo Corrêa. E para isso queremos que nos entenda a nossa decisão, pois devido o processo que está parado em São Paulo a quase três anos.
Queremos que agilize, para ganharmos essa questão, a decisão das comunidades é não sair desta área pois sabemos que essa terra é nossa."
O mesmo entendimento pode ser empregado também ao documento de fls. 269. Do mesmo se extraem os seguintes argumentos, que também deixam bem caracterizado o esbulho possessório ora examinado:
"As Comunidades, Caciques e Líderes das Aldeias Água-Azul, Olho d'água, Recanto e Tereré.
Ao Administrador Regional da FUNAI - Campo Grande Sr. Márcio Justino Marcos.Através desta vimos esclarecer a V. Sª que a área reocupada nos 500 hec de ocupação na área da Furna Estrela da propriedade do Sr. Geraldo Corrêa foi para resguardar os vestígios dos nossos antepassados, cemitério e moradias para que fosse constatado pelo perito nomeado pelo juiz e ainda diante da necessidade de alimentos plantamos arroz, milho, mandioca que se encontra em fase de crescimento e limpeza.
Diante disso, senhor administrador, não podemos em nenhum momento abandonar a nossa plantação e muito menos deixar os vestígios de nossos antepassados porque o próprio fazendeiro poderá destruir a nossa esperança."
Como se vê, os próprios apelantes, por suas próprias palavras, reconhecem a ocupação indevida que praticaram.
A problemática da questão indígena ainda resta bem evidenciada pelos documentos de fls. 104/110 que, apesar de se referirem a outras áreas invadidas, faz por revelar a sistemática de invasão de terras na área ora
sub exame.
Os diversos documentos trazidos aos autos pela defesa dos indígenas seguem todos no sentido de alertar para a existência do processo demarcatório da Reserva Indígena, bem como sustentam a tese da caracterização da terra indígena imemorial, cujos desdobramentos já refutamos acima.
De sorte que, no que concerne à reintegração de posse, deve a r. sentença ser mantida em sua íntegra.

E, ainda, peço vênia para transcrever, o trecho do voto condutor, proferido pelo e. desembargador federal André Nabarrete, na parte que se refere ao pedido possessório (fls. 1.494/1.496), conforme segue:

4 - DA INEXISTÊNCIA DE ESBULHO
O laudo antropológico, como visto, é categórico em concluir que a área em que se localiza a Fazenda São Sebastião é de posse originária dos Terenas e não há elemento suficiente para invalidá-lo. Ademais, foi devidamente aprovado pelo Presidente da FUNAI e publicado no Diário Oficial, em 17.08.2001. Demonstrado o caráter originário da presença dos índios nas terras, prevalece os direitos deles constitucionalmente assegurados, de forma que o título de propriedade dos apelados não lhes socorre.
A demarcação da região apenas confirmará a posse que incumbe aos indígenas há séculos e não se caracteriza como título aquisitivo de posse ou de constituição da ocupação. Não é necessário o seu término para que os
silvícolas possam ocupá-la. Não se trata, in casu, de situação regulada pelo Direito Civil, quando há conflitos entre particulares para se dirimir quem é o titular da propriedade ou posse do bem. O direito à posse dos indígenas não é derivado, mas originário, porque a Constituição Federal assim o definiu. Logo, não se aplicam os artigos 1201, parágrafo único, 1210, § 2º e 1211 do Código Civil nem os artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil.
O processo demarcatório tem como objetivo a fixação dos limites do território pertencente à União, ao qual será dada destinação específica (propriedade reservada), e culmina com o registro em cartório imobiliário (artigo 6º do Decreto nº 1.775/96), ato que tem caráter de publicidade e não de legitimação. Se a própria Constituição Federal define que são assegurados os direitos originários dos indígenas das terras tradicionalmente por eles ocupadas, não é aceitável que a formalidade condicione o direito de usufruir o que lhes pertence.
Ressalte-se, ademais, as precárias condições de sobrevivência por que os índios estavam passando, principalmente as crianças, bem como que não se furtaram à conciliação (termo de reunião - fls. 104/112) e aguardavam obedientes à solução dada pela Justiça. Assim, se há elementos suficientes de que as terras eram ocupadas tradicionalmente por eles, é o bastante para sua manutenção no local. A retirada causaria transtornos desnecessários, já que o processo administrativo, regulado pelo Decreto nº 1.775/96, tem se delongado. Saliente-se que os trabalhos que concluíram ser as terras indígenas são de 1999 e a aprovação pelo Presidente da FUNAI de 2001.
Na contraposição entre os valores envolvidos, como o interesse de grupos indígenas e o patrimônio particular de fazendeiros, deve prevalecer o primeiro, que envolve o coletivo. Outrossim, não se pode olvidar que o direito à vida (artigo 5º, caput, da Carta Magna) deve se sobrepor ao direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal).
Cabe lembrar que o relacionamento dos índios com a terra não representa a mera exploração econômica. No caso, quase duas centenas de indígenas dependem do cultivo da terra que legitimamente lhe pertence para subsistência dos próprios membros e proteção aos seus costumes e tradições.
Por fim, não há que se falar que os indígenas agiram com propósitos deliberados de invadir a fazenda ou expulsar os moradores. Em razão de não serem afeitos à civilização e desconhecerem todo o trâmite do processo de demarcação das terras, bem como as implicações jurídicas de seus atos, entendiam que a existência do estudo antropológico que concluiu serem as terras tradicionalmente de ocupação da tribo Terena era suficiente para retomarem a posse do imóvel e realizarem suas atividades típicas, como a plantação de culturas de subsistência, e terem uma vida mais digna. Não se pode tratar os silvícolas como absolutamente capazes e exigir o discernimento próprio de um indivíduo civilizado, inclusive o Código Civil de 2002 estabelece no parágrafo único do artigo 4º que a legislação especial regulará acerca da capacidade dos índios.

Observo, uma vez mais, que na presente ação possessória, cujos autores integram também o pólo ativo da ação declaratória, foi proferido julgamento antecipado em primeira instância com base nas provas produzidas no feito principal (ação declaratória nº 2001.60.00.003866-3), em especial a prova pericial e as provas produzidas em audiência de conciliação.

O pedido formulado na ação declaratória foi julgado procedente, com o reconhecimento expresso do domínio em favor dos proprietários rurais. Não obstante reformada pela c. Quinta Turma em sede de apelação, a sentença restou posteriormente restabelecida pelo julgamento desta c. Seção que deu provimento aos embargos infringentes para prevalecer o voto vencido, que negava provimento às apelações interpostas pelos réus naqueles autos.

Diante da dinâmica processual que os diversos feitos mencionados trilharam no âmbito deste tribunal, o desfecho do presente recurso não tem como seguir rumo diverso daquele que norteou o julgamento anterior desta c. Seção, quando restou reconhecido pela maioria do colegiado que as terras sobre as quais versam o litígio não se incluem na definição de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, uma vez que em 05 de outubro de 1988 já não eram ocupadas por indígenas e a posse dos autores era exercida pacificamente, nos termos do voto vencido da e. desembargadora federal Suzana Camargo.

Trata-se de exegese que se impõe no escopo precípuo de se evitar o grave risco de decisões conflitantes envolvendo processos conexos que discutem a mesma questão jurídica em uma mesma região rural em conflito, a prestigiar-se a segurança jurídica decorrente dos precedentes jurisprudenciais desta e. Corte Regional, dirimindo com coerência, ao menos nesta sede, um conflito de interesses de tamanha envergadura social, de repercussão nacional, envolvendo a região onde se situa a denominada Reserva Índigena Buriti, no estado do Mato Grosso do Sul.

E, tratando-se o presente feito de pedido de natureza possessória, conforme destacado no voto vencido restou demonstrada nos autos a presença dos requisitos dos artigos 926 e seguintes do Código de Processo Civil. A posse da parte embargante, precedida de antecessores, restou comprovada por meio dos documentos apresentados às fls. 08/26. Já o esbulho restou incontroverso nos autos por meio do boletim de ocorrência lavrado pela Delegacia de Polícia de Sidrolândia/MS relatando a invasão da propriedade (fls. 27); pela mensagem dirigida ao Superintendente da Polícia Federal no Mato Grosso do Sul (fls. 28); pelas notícias publicadas em jornais (fls. 29/33 e 42/43); pelo termo de reunião realizada na sede da Procuradoria da República do Mato Grosso do Sul (fls. 111/112) e pela informação lançada por dois oficiais de justiça em 14/10/2003, no sentido de que se encontravam na área cerca de 40 famílias, tendo sido orientados pelo Delegado de Polícia a aguardar a tentativa de desocupação pacífica (fls. 226).

Por tais razões, impõe-se a prevalência do voto vencido também nestes autos.

Diante da fundamentação exposta, dou provimento aos embargos infringentes para fazer prevalecer o voto vencido.

É como voto.


FERNÃO POMPÊO
Juiz Federal Convocado


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