D.E. Publicado em 16/01/2015 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar provimento ao recurso em sentido estrito do Ministério Público Federal, nos termos do relatório e votos que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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Data e Hora: | 13/01/2015 14:31:42 |
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VOTO CONDUTOR
Ressalto inicialmente meu profundo respeito e admiração pelo E. Des. Fed. André Nekatschalow, a quem peço vênia para divergir, observando, contudo, que o voto de Sua Excelência no presente caso, como em tantos outros, é fruto de reflexão pessoal autêntica e profunda, sempre em busca da resposta judicial mais correta e adequada. Divido o meu pensamento em três partes para enfrentar o presente recurso: i) Elementos fáticos - indícios de materialidade e autoria; ii) Da natureza permanente do crime de ocultação de cadáver; iii) Decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso "Gomes Lund e outros vs. Brasil" : observância necessária.
I - ELEMENTOS FÁTICOS - INDÍCIOS DE MATERIALIDADE E AUTORIA
Inicialmente, vislumbro, nos autos, indícios suficientes de materialidade e autoria para o recebimento da denúncia.
Com efeito, o Ministério Público Federal imputa aos denunciados CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e ALCIDES SINGILLO o crime consistente na ocultação do cadáver do militante Hirohaki Torigoe, morto em 05 de janeiro de 1972.
Hirohaki Torigoe, estudante de medicina, era militante político dissidente do regime militar, atuando segundo os autos na facção denominada MOLIPO, dissidência da ALN. Os militantes pertencentes ao MOLIPO foram intensamente procurados por agentes do DOI-CODI durante os anos de 1971 e 1972, tendo sido toda a direção do movimento morta naquele período.
Segundo a versão oficial, Hirohaki Torigoe foi morto ao resistir à prisão no dia 05 de janeiro de 1972. Como portava documentos em nome de Massahiro Nakamura, a requisição de autópsia, o próprio laudo pericial, o sepultamento e o registro de óbito foram todos feitos sob esse último nome. A denúncia dá conta de que o denunciado BRILHANTE USTRA, ouvido pelo Ministério Público Militar em 15 de outubro de 2009, afirmou que os agentes não tinham conhecimento da verdadeira identidade do militante, o que era comum acontecer, e por isso ele foi enterrado com o nome falso que utilizava.
O Ministério Público Federal contesta a versão e traz elementos suficientes a embasar sua tese.
Ao que tudo indica, os agentes do DOI-CODI, quando se confrontaram com Torigoe, no dia de sua morte, sabiam de quem se tratava, pois era um dos militantes mais procurados, com mandado de prisão contra si expedido pela Justiça Militar e divulgação de sua foto e nome verdadeiro veiculados em cartazes constantes dos autos. Segundo duas testemunhas, que estavam presos naquele dia nas dependências do DOI-CODI em São Paulo, ouviram quando a prisão de Hirohaki Torigoe foi anunciada pelos agentes, aduzindo ainda que, ao contrário da versão oficial, ele chegou vivo à repartição e foi torturado antes de sua morte.
No mesmo sentido, os documentos trazidos com a denúncia atestam que a morte de Hirohaki Torigoe somente foi noticiada pela imprensa escrita em 20 de janeiro de 1972, 15 dias após o óbito. Contudo, relevante documento avistável no volume 2 do Procedimento Investigatório Criminal-PIC anexo (volume que se encontra sob a capa de "apenso"), às fls. 270 e seguintes, consistente em "reunião da CI de 12 de janeiro de 1972" - onde CI significa "comunidade de informações" - contém a informação de que Torigoe fora morto, do que se infere o conhecimento de sua identidade.
Portanto, é razoável nessa fase processual inferir-se que os agentes do DOI-CODI sabiam da identidade de Torigoe já no momento de sua captura e morte e, mesmo assim, fizeram-no sepultar sob nome falso, dificultando a identificação do túmulo pela família que até hoje não localizou os seus restos mortais - apesar das inúmeras tentativas de que dá conta a denúncia, capitaneadas pelo Ministério Público Federal.
A certidão de óbito foi, pois, lavrada em nome de Massahiro Nakamura, avistável às fls. 256 do mesmo apenso mencionado acima. Importante também o documento de fls. 255, em que o Delegado titular da DEOPS, encaminhando a certidão em questão, informa ao Juízo da Auditoria da 2ª Região Militar que Hirohaki Torigoe "foi sepultado com o nome de Massahiro Nakamura."
A família de Torigoe, segundo depoimento de seu irmão constante dos autos, chegou a se dirigir ao DOI-CODI mesmo antes da divulgação da morte pela imprensa, em busca de notícias suas, tendo recebido a resposta de que ele não havia dado entrada naquela repartição. Posteriormente, obteve a retificação judicial do registro de óbito, que foi então lavrado corretamente, com o nome de Hirohaki Torigoe, conforme se observa da certidão constante às fls. 147 do volume 1 do PIC apenso - tendo sido feito o registro em 27/12/1972 por determinação judicial. Quanto à localização do corpo, a família tentou ainda durante o regime militar a sua localização no cemitério de Perus, não obtendo êxito, tendo sido feitas novas tentativas de identificação já sob a nova ordem constitucional, por iniciativa do MPF, como dito acima, também sem sucesso.
Assim, presentes os indícios de materialidade do crime de ocultação de cadáver, vislumbram-se da mesma forma indícios de autoria pelos denunciados.
Quanto ao Delegado ALCIDES SINGILLO, à época lotado na DEOPS, tomou declarações em 24/01/1972 do verdadeiro Massahiro Nakamura, estudante de economia, que compareceu à repartição por ter lido a notícia da morte de Torigoe e também que ele utilizava falsamente o seu nome. Parte do depoimento está transcrito na denúncia, havendo, pois, indícios de que ALCIDES SINGILLO ao menos teria se omitido do seu dever legal de retificar o registro de óbito e fazer à família de Torigoe as comunicações devidas.
Quanto a CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, foi o comandante operacional do DOI-CODI-II Exército entre 28 de setembro de 1970 e 23 de janeiro de 1974, havendo nos autos notícia de diversos desaparecimentos, mortes e episódios de tortura ocorridos nas dependências sob sua chefia, havendo ainda informações de que tinha absoluto controle sobre as atividades dos seus subordinados. A denúncia enumera outros casos em que os militantes foram enterrados com nomes falsos, dificultando a localização dos seus corpos pelos familiares e eventuais apurações. O MPF chega a invocar a teoria do domínio do fato que, segundo Cezar Roberto Bitencourt, foi desenvolvida na Alemanha sobretudo por Claus Roxin, para dar conta de crimes cometidos pelos nazistas, afirmando este último autor que "quem ocupasse uma posição dentro de uma chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um crime, tem de responder como autor e não só como partícipe, ao contrário do que entendia a doutrina dominante na época", sendo, pois, de acordo com esse enfoque, necessário examinar quem detém o "controle final do fato".
Assim, presentes indícios capazes de propiciar a abertura da ação penal.
II - DA NATUREZA PERMANENTE DO CRIME DE OCULTAÇÃO DE CADÁVER
Aqui, pedindo vênias ao E. Relator, que trilhou caminho distinto, e indo diretamente ao ponto, adoto a tese que penso majoritária na doutrina e na jurisprudência de que o crime de ocultação de cadáver tem natureza de crime permanente, isto é, segue sendo consumado enquanto o cadáver ou restos mortais não são localizados, o que, de igual modo, impede o fluxo do prazo prescricional.
Precedente do Supremo Tribunal Federal tratou a matéria da seguinte maneira:
Ora, no presente caso, como descrito no item anterior, as condutas objetivaram não a simples remoção do cadáver, mas, nos exatos termos do precedente supracitado, consistiram na adoção de procedimentos capazes propriamente de ocultá-lo. Não encontrados até hoje os restos mortais de Hirohaki Torigoe, não há que se falar na prescrição do delito, nem na aplicação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79), que no seu artigo primeiro abrange delitos cometidos no lapso temporal compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
A natureza permanente desse delito está igualmente reconhecida na decisão Gomes Lund da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é tratada abaixo.
III - DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO "GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL" : OBSERVÂNCIA NECESSÁRIA
É sabido que, após as assombrosas práticas verificadas na Segunda Guerra Mundial, consolidou-se no cenário internacional uma maior preocupação com a proteção dos direitos humanos, sobrevindo a adoção de normas como a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e de mecanismos de proteção dotados de maior eficácia. Atribuem-se a esse contexto, igualmente, as transformações observadas no Direito Constitucional de diversos países, com a explicitação dos direitos fundamentais e a propagação do controle de constitucionalidade das leis. O Direito Internacional, por sua vez, postulará maior amplitude e força frente à outrora intocável soberania dos Estados; são criados sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1953, que criou a Corte Europeia dos Direitos do Homem, sediada em Estrasburgo, na França, com jurisdição sobre todos os países membros do tratado.
Seguindo a lógica dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, em 1969 foi adotada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica. O Brasil ratificou a referida Convenção em 25/09/1992, tendo ela sido promulgada através do Decreto 678, de 06/11/1992. Posteriormente, após aprovação do Congresso Nacional, foi reconhecida como obrigatória a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos termos do Decreto 4463, de 08/11/2002:
Vê-se, pois, que o Brasil somente reconheceu a competência da Corte posteriormente à ratificação, e fê-lo com as ressalvas da reciprocidade e "para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998."
Em 24 de novembro de 2010, adveio sentença oriunda da Corte Interamericana no "caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil", com importantes consequências para o caso sub examine.
Nessa decisão, que trata do desaparecimento de militantes envolvidos na Guerrilha do Araguaia, no seu parágrafo de nº 256, consta que "este Tribunal dispõe que o Estado deve conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha." Obriga, ainda, a:
Nos parágrafos a que remete, a Corte Interamericana aplicou sua jurisprudência, afirmada em relação a outros países latino-americanos que também enfrentaram regimes de exceção, no sentido da invalidade das leis de anistia, nos contextos analisados, perante o Direito Internacional.
Importante salientar que a ressalva temporal feita pelo Brasil no Decreto 4463/2202 ("fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998") foi levada em conta pela Corte (parágrafos 15 a 19 e 181). A Corte reconhece a validade da ressalva temporal, mas aduz que, em sua jurisprudência constante,
Passo a tecer algumas considerações que entendo relevantes para o deslinde do presente feito:
- Primeiramente, penso não haver dúvidas de que o Brasil está sujeito à jurisdição da Corte Interamericana, pelos atos de ratificação e reconhecimento da competência da Corte acima mencionados;
- Por outro lado, entendo que a decisão do STF na ADPF 153, que considerou ter sido a Lei de Anistia recepcionada pela Constituição de 1988, não representa óbice ao cumprimento da decisão da Corte Interamericana;
- Isso porque cabe precipuamente à Corte Interamericana o chamado "controle de convencionalidade" das leis e atos normativos que se mostrem incompatíveis com a Convenção Americana, controle este que também pode e deve ser exercido pela jurisdição nacional;
- A necessidade de compatibilidade normativa tanto com a Constituição Federal quanto com a Convenção Interamericana fica muito clara com a decisão do STF no HC 90172/SP, que culminou na Súmula Vinculante nº 25, que veda a prisão civil do depositário infiel. Tal modalidade de prisão foi considerada incompatível com o Pacto de São José da Costa Rica, embora seja permitida pela Constituição brasileira. Assim sendo, a Lei de Anistia pode igualmente mostrar-se compatível com a Constituição e incompatível com a Convenção;
- Ademais, a adesão à Convenção levou ao reconhecimento de uma regra de competência - a da Corte Interamericana de Direitos Humanos - para apreciar soberanamente casos em que se alegue o descumprimento da Convenção;
- Ainda nessa linha de raciocínio, é mister salientar que o Supremo Tribunal Federal reconhece aos tratados sobre direitos humanos, mesmo àqueles previstos no art. 5º, §2º, da Constituição, hierarquia supralegal;
- Por fim, os autores mais abalizados do Direito Internacional afirmam que a obrigatoriedade de observância pelo Brasil ocorre tanto diante da coisa julgada quanto da "coisa interpretada", ou seja, o país deve aplicar o entendimento consagrado pela Corte a outros casos que envolvam a mesma matéria.
Fixada a obrigatoriedade de dar cumprimento à decisão da Corte, de forma genérica, faz-se necessário esclarecer alguns aspectos pertinentes ao presente feito. Apesar da diferença de nomenclatura - pois não temos no nosso direito interno as figuras legais do "desaparecimento forçado" e da "execução extrajudicial" - é certo que podemos associá-las aos delitos de ocultação de cadáver e homicídio. No caso dos autos, como o cadáver e os restos mortais de Hirohaki Torigoe não foram ainda encontrados, aplicam-se as considerações da Corte sobre a permanência e continuidade do ilícito consistente no desaparecimento forçado, acima explicitadas, sendo necessário dar cumprimento à decisão que determina a investigação, processamento e julgamento das infrações. Restam afastadas, assim, de acordo com o entendimento da Corte Interamericana, tanto a prescrição do delito quanto a eventual aplicação ao caso da Lei de Anistia.
Ante o exposto, voto por dar provimento ao recurso e receber a denúncia em face de CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA e ALCIDES SINGILLO.
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Data e Hora: | 13/01/2015 14:31:32 |
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RELATÓRIO
Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra a sentença de fls. 634/635 que reconheceu a prescrição e decretou extinta a punibilidade dos réus com base no art. 107, IV, do Código Penal c. c. o art. 397, IV do Código de Processo Penal.
O Ministério Público Federal recorre com os seguintes argumentos:
Carlos Alberto Brilhante Ustra oferece contrarrazões em que sustenta o quanto segue:
Alcides Singillo apresenta contrarrazões nos seguintes termos:
O Juízo a quo manteve a sentença recorrida por seus próprios fundamentos (fl. 712).
Manifesta-se a Ilustre Procuradora Regional da República, Dra. Rose Santa Rosa, pelo provimento do recurso (fls. 715/720v.).
Dispensada a revisão nos termos regimentais.
É o relatório.
VOTO
É o voto.
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