D.E. Publicado em 12/05/2015 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, conhecer das apelações criminais e, no mérito, negar provimento à do réu, e dar provimento à do Ministério Público Federal, para condenar o réu pela prática: do crime previsto no art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, em continuidade delitiva, por setenta e cinco vezes, a 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de reclusão; do crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, à pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão. Reconhecido o concurso material, e fixada a pena final em 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de reclusão, a serem cumpridos inicialmente em regime semiaberto, tudo nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:
Trata-se de apelações criminais, interpostas por Antônio Fauzi Haidar e pelo Ministério Público Federal contra sentença de fls. 393/401, que julgou parcialmente procedente a pretensão punitiva estatal, para condenar o primeiro apelante pela prática, in concreto, do crime previsto no art. 241-B da Lei 8.069/90.
Narra a peça inaugural da ação penal (fls. 130/136) que, após proceder a ordem de busca e apreensão realizada no dia 31 de agosto de 2011, a Polícia Federal constatou (por meio da apreensão e análise de disco rígido de computador) que o acusado Antônio Fauzi Haidar utilizava o programa de compartilhamento de arquivos pela internet denominado emule, com o intuito de baixar (obter via download) arquivos contendo vídeos de pornografia infantil, bem como de fornecê-los a terceiros. O réu teria disponibilizado 75 (setenta e cinco) vídeos contendo cenas pornográficas que envolviam crianças ou adolescentes, os quais foram compartilhados com usuários do referido programa. Alega o órgão ministerial que a disponibilização do acervo do acusado seria uma inerência do próprio uso do emule, sistema de compartilhamento que funciona mediante o acesso aos arquivos contidos nos computadores de seus usuários, permitindo as trocas de arquivos digitais entre estes. No que se refere ao armazenamento de arquivos pornográficos envolvendo crianças ou adolescentes, este seria feito em HD mantido pelo acusado. O disco rígido periciado continha um total de 12 (doze) vídeos com o referido conteúdo ilícito, dois dos quais encontrados também na lista de arquivos que foram baixados por terceiros a partir do computador do acusado (o que mostraria o fornecimento/disponibilização do conteúdo ilícito). Requereu, com base nos fatos narrados, o recebimento da denúncia e, ao fim, a condenação do réu como incurso nos crimes previstos nos arts. 241-A e 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Denúncia recebida em 18 de dezembro de 2012 (fl. 139vº).
Após regular seguimento do feito, sobreveio sentença (fls. 393/401). Restou afastada a preliminar de nulidade do feito, suscitada pela defesa. No mérito, entendeu a MM. Magistrada a quo que foram devidamente comprovadas a autoria e a materialidade delitivas em relação ao crime previsto no art. 241-B da Lei 8.069/90, tendo em vista a existência de arquivos com conteúdo pornográfico envolvendo crianças ou adolescentes no HD periciado no processo e o fato de apenas o réu utilizá-lo, salvo ocasiões esporádicas em que sua esposa o fazia para elaborar planilhas. Quanto ao delito previsto no art. 241-A da Lei 8.069/90, compreendeu não haver sido provado o dolo na conduta, haja vista que, mesmo demonstrado que o réu possuía razoáveis conhecimentos de informática, não se conseguiu caracterizar sua consciência quanto ao sistema de compartilhamento do programa emule (que permite o download de arquivos dos computadores de usuários sem que tenha havido comando destes para tanto), "em especial porque há indícios de que o réu utilizava o programa com a exclusiva intenção de obter arquivos e deletá-los, depois de armazená-los em mídia digital." (Fl. 396vº.)
Na dosimetria (relativa apenas ao art. 241-B da Lei 8.069/90): exasperou a pena-base em relação ao mínimo legal na primeira fase (em 1/8 da diferença entre a pena máxima e a pena mínima abstratamente previstas no tipo), por valorar negativamente a culpabilidade do réu, devido a sua profissão (médico pediatra, com constante contato com crianças e com o dever de cuidar de sua integridade), estabelecendo-a em um ano, quatro meses e quinze dias de reclusão; na segunda fase, não constatou agravantes ou atenuantes pertinentes ao caso; na terceira fase, aplicou a causa de diminuição prevista no art. 241-B, § 1º, da Lei 8.069/90, reduzindo a pena-base em 2/3. Fixou a pena de multa de acordo com os mesmos critérios, em 17 (dezessete) dias-multa.
No dispositivo, julgou parcialmente procedente a denúncia, para: absolver o réu da prática do crime previsto no art. 241-A da Lei 8.069/90, por ausência de prova do dolo na conduta; condenar o réu pela prática do crime previsto no art. 241-B da Lei 8.069/90, à pena de 5 (cinco) meses e 15 (quinze) dias de reclusão, mais 17 (dezessete) dias-multa. Valor unitário do dia-multa fixado em um salário mínimo. Estabelecido o regime aberto para o início do cumprimento da pena. Ao fim, substituída a pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas pelo tempo da pena privativa de liberdade substituída, em condições e local a serem estabelecidos pelo Juízo de Execuções.
Determinada, ainda, a retirada de sigilo do processo, salvo em relação aos documentos e mídias digitais que possuíam conteúdo de imagens de pornografia infantil.
Sentença registrada em 12 de março de 2014 (fl. 402). Petição de fls. 414/418, mediante a qual o réu requereu a manutenção de sigilo total nos autos.
Manifestação do Ministério Público Federal (fls. 421/424), pugnando pela retirada parcial de sigilo do processo, nos termos determinados pela sentença.
O Ministério Público interpôs recurso de apelação contra a sentença (fl. 408), em cujas razões (fls. 427/437) aduz os seguintes argumentos para amparar o pleito de reforma da sentença:
- Teria sido comprovado nos autos que o réu possuía plena consciência de que tanto baixava como disponibilizava arquivos, caracterizando a conduta típica prevista no art. 241-A da Lei 8.069/90;
- A sentença teria aplicado incorretamente a causa de diminuição prevista no art. 241-B, § 1º, da Lei 8.069/90, pois não haveria apenas dois arquivos, mas sim doze arquivos contendo pornografia infanto-juvenil (dez deles - os arquivos inativos - desconsiderados pelo decisum);
- Deveria também ter tido a pena-base maior agravamento em relação ao mínimo legal, devido à elevada culpabilidade do réu (derivada do fato de ser ele médico pediatra);
Pede, ao fim, a reforma da sentença, para condenar o réu pela prática concreta do delito tipificado no art. 241-A da Lei 8.069/90, por setenta e cinco vezes, em continuidade delitiva (Código Penal, art. 71), e ainda, para majorar a pena privativa de liberdade imposta, na sentença, pela prática do crime previsto no art. 241-B da Lei 8.069/90.
Interposto recurso de apelação pelo réu (fls. 412/413). Nas razões recursais (fls. 483/496), pleiteia a reforma da sentença, forte nas seguintes alegações:
- Preliminarmente, argumenta que a Justiça Federal teria se tornado incompetente para a apreciação do feito, tendo em vista que o único fato que atrairia sua competência seria a prática do crime previsto no art. 241-A da Lei 8.069/90, em relação à qual o apelante foi absolvido pela sentença;
- No mérito, que o apelante seria inocente, pois os únicos arquivos encontrados em seu computador estariam inativos, significando que foram excluídos pelo usuário, somente sendo recuperáveis mediante procedimento especial, o qual jamais poderia ser feito pelo homem médio. Isso provaria a ausência de dolo no armazenamento/arquivamento do conteúdo, porquanto o réu teria tentado apagar/destruir o conteúdo logo após identificá-lo;
- Seria temerário apontar o apelante como autor do crime, pois seria possível que os arquivos tivessem sido baixados por alguém que tivesse usado o computador remotamente. Além disso, a perícia feita no HD do apelante não seria apta a estabelecer de modo definitivo sua autoria e sua culpa.
Ao fim, requer a anulação da sentença, com a remessa dos autos à Justiça Estadual, para que esta proceda a novo julgamento do feito (apenas com base no art. 241-B da Lei 8.069/90); no mérito, a absolvição, "em razão da insuficiência probatória quanto à autoria delitiva e pela falta de elemento essencial ao tipo penal, qual seja, o dolo direto" (fls. 495/496). Ainda, que a conduta efetivamente praticada (supostamente, baixar vídeos com conteúdo pornográfico) não seria crime.
Contrarrazões ao recurso de apelação do réu (fls. 499/502), pelo seu desprovimento.
Contrarrazões ao recurso do Ministério Público Federal (fls. 447/460), pelo seu desprovimento.
Parecer da Procuradoria Regional da República (fls. 504/518), opinando pelo provimento do recurso do Parquet federal e pelo desprovimento do recurso do réu.
É o relatório.
À revisão.
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VOTO
O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:
Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço dos recursos, e passo ao exame de mérito.
I - Da Competência da Justiça Federal
Alega o apelante Antônio Fauzi Haidar que a competência da Justiça Federal teria cessado, diante de sua absolvição pela prática do crime previsto no art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Não procede a preliminar. Em primeiro lugar, a absolvição nem sequer transitou em julgado para a acusação, tendo em vista que foi interposto tempestivamente recurso, buscando a reforma da sentença para condenar o réu pela prática, também, da figura penal constante do art. 241-A do ECA. Portanto, não houve decisão definitiva quanto ao tema, o que implica dizer que o motivo pelo qual há competência da Justiça Federal permanece, pois a disponibilização de arquivos pornográficos envolvendo crianças e adolescentes em servidores globais atrai a competência da Justiça Federal, conforme jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal (HC n. 86.289-GO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06.06.06), bem como desta C. Corte Regional (TRF3 - 5º TURMA - RSE 0004609-07.2009.4.03.6106 - Relator: JUIZ CONVOCADO HÉLIO NOGUEIRA - e-DJF3: 12/02/2010 página 139).
Em segundo lugar, porque a absolvição em relação ao crime de competência federal, ao final do processo, não faz cessar a competência da Justiça Federal para o julgamento de crime conexo (que seria, isoladamente considerado, de competência da Justiça Estadual). Este é o comando contido no art. 81, caput, do Código de Processo Penal:
Entendeu a Magistrada sentenciante que não se provou o dolo na conduta do réu de disponibilizar conteúdo pornográfico infanto-juvenil. Isso porque não se conseguiu a comprovação de que o réu teria conhecimento a respeito do modo como funciona o servidor emule, por ele utilizado. Este servidor tem acesso aos arquivos de todos os seus usuários, servindo como uma "ponte" ou "intermediário" entre todos eles; cada usuário baixa o arquivo armazenado por outro(s) usuário(s) que o tenha(m). O Ministério Público Federal argumenta que esse sistema de funcionamento/compartilhamento constitui a própria essência do servidor, o que, aliado aos razoáveis conhecimentos de informática (para um homem médio) detidos pelo réu, provaria sua plena consciência quanto ao fato de disponibilizar os conteúdos. A disponibilização se daria, em suma, pelo fato de manter os arquivos em HD conectado ao emule, o que os torna aptos a serem demandados por upload, ou seja, os arquivos estavam disponíveis a qualquer usuário do emule que procurasse pelos títulos (títulos estes com menções expressas a conteúdo pornográfico infanto-juvenil).
Assiste razão ao órgão ministerial. O emule é, por essência, um programa de compartilhamento de arquivos, como esclareceram o Parquet federal e o perito criminal federal (fl. 62). Deveras, como informado pelo perito criminal federal em seu depoimento em juízo (mídia digital de fl. 350), o emule informa de maneira didática quais arquivos o usuário está "baixando", e quais está compartilhando com outros usuários, os quais estão "baixando" os arquivos contidos em seu computador (nas pastas de compartilhamento). Portanto, é absolutamente simples o conhecimento a respeito dessa característica do programa, seja porque ela representa a própria utilidade, a ideia básica do sistema, seja porque este é extremamente didático ao mostrar os dados pertinentes ao compartilhamento feito por cada usuário. Em outros termos: cada usuário do emule sabe, de forma simples e clara, quais arquivos está baixando (trazendo de outros computadores para o seu via emule), e quais está compartilhando (transmitindo para outros computadores de usuários que encontraram os arquivos no computador do usuário realizador de upload, tudo via emule). Cito trecho esclarecedor do depoimento do expert (minutos 37 e 38 do arquivo de mídia digital juntado na fl. 350):
Portanto, não se pode dizer que a natureza do programa (utilizado com frequência pelo réu, que admitiu que dele se usava para baixar arquivos - interrogatório policial de fls. 111/112) era desconhecida do primeiro apelante, tendo em vista a facilidade de compreensão proporcionada pela interface aplicativo/usuário deste programa em específico. Além disso, esclareceu o perito (minuto 57 da mídia digital de fl. 350) que arquivos deletados pelo usuário não poderiam ser compartilhados pelo emule, pois nenhum programa aberto pelo sistema operacional Windows poderia acessá-los. Isso significa que os arquivos estavam nas pastas de compartilhamento quando foram compartilhados via emule e partindo do computador do primeiro apelante, que mantinha os vídeos com o conteúdo ilícito. Sua manutenção ali, somada ao didatismo da própria interface do software tão utilizado pelo réu - que o usou durante anos -, tornam inevitável a conclusão de que este tinha consciência de estar disponibilizando os conteúdos ao mantê-los vinculados às pastas acessadas pelo emule (e cujos arquivos eram apresentados aos demais usuários mediante a conexão via palavras-chave que ligassem aos arquivos).
A alegação defensiva de ausência de dolo, em síntese, não pode ser acolhida. Firmados todos os elementos de convicção expostos supra, e tendo em vista o elevado grau de instrução do réu (ensino superior completo - o réu é médico), bem como o fato de que dispunha ocasionalmente dos serviços de técnico especializado - o qual inclusive depôs nos autos como testemunha de defesa (mídia digital de fl. 290) -, não se poderia entender pela inexistência de autoria e de dolo na conduta imputada sem que houvesse contraprovas, o que não ocorreu no caso concreto. Jamais foi descoberta, reitero, qualquer invasão do computador; o emule, como esclareceu o perito, não baixa arquivos automaticamente; apenas o réu utilizava o emule em seu computador, visto que sua esposa apenas o utilizava para elaborar planilhas de custos (interrogatório de fl. 349). Embora a defesa tenha tentado alegar que vírus ou acessos remotos poderiam ter feito estes downloads e permitido os uploads no computador do réu, o perito criminal não encontrou elementos nesse sentido. A defesa tampouco trouxe quaisquer elementos, laudos ou relatórios que sustentassem a tese, a qual, sem isso, ganha caráter meramente argumentativo, cedendo aos elementos probatórios colhidos, todos em sentido contrário ao aventado pela defesa.
Autoria e materialidade delitivas devidamente comprovadas nos autos.
1. Materialidade. O laudo pericial feito por perito criminal federal (fls.61/74) constatou, por meio de acesso ao histórico de acesso ao emule utilizado pelo réu, que houve 75 compartilhamentos de vídeos a partir do computador do réu, ou seja, 75 vídeos foram baixados com conteúdo pornográfico infanto-juvenil por outros usuários do emule tendo por base os arquivos disponibilizados publicamente (em específico, via emule) na internet pelo réu, em seu computador. Destaco que a perícia foi feita no disco rígido do computador do apelante, obtido mediante regular busca e apreensão, realizada na casa do réu e com seu acompanhamento (fls. 48/52). Estes 75 vídeos não estavam no HD do réu quando da apreensão deste, mas confirmou-se pelo histórico de compartilhamento que foram baixados por outros usuários a partir do computador do réu, isto é, utilizando os arquivos do computador do réu como fonte do download. A despeito de não estarem no computador do réu, estes 75 vídeos foram encontrados pelo perito (presumivelmente, pela via do próprio emule) devido a suas "hashs" (a "impressão digital" de um arquivo), e todos continham de fato conteúdo de pornografia infanto-juvenil (como, de resto, já indicavam seus títulos).
Ainda quanto à materialidade, é de se destacar que não foram encontrados vídeos ativos (ou seja, imediatamente acessáveis por meio do sistema operacional Windows) no computador do réu. Somente após perícia foram encontrados arquivos que haviam sido deletados, mas que ainda não haviam sido retirados do HD. Isso significa que eles foram deletados do Windows, e, por isso, este sistema operacional não mais os acessava. Apenas acessando o computador sem a entrada via Windows é que o expert pôde abrir os arquivos contidos em HD, entre eles doze vídeos de pornografia infanto-juvenil (mídia de fl. 68). Destes doze vídeos, dois eram iguais a vídeos cujo compartilhamento on-line (a partir do computador do réu) foi registrado pelo emule (correspondendo aos itens 38 e 42 da lista de compartilhamentos de vídeos de pedofilia, contida nas fls. 69/74).
Saliento, por derradeiro, que não é necessária a comprovação de que o compartilhamento se efetivou integralmente, ou que o réu foi a única fonte do download. Isso porque o tipo penal contido no art. 241-A da Lei 8.069/90 se perfaz pela simples disponibilização do conteúdo, o que, no caso de uso do emule, ocorre pela manutenção dos vídeos em pastas de compartilhamento, as quais permitem o download do conteúdo nelas contido. Nesse sentido já decidiu este E. TRF-3 (ACR 47.860, Rel. Des. Fed. Antônio Cedenho, Quinta Turma, DJe 08.10.2013).
2. Autoria. O próprio réu disse que apenas ele e sua esposa utilizavam o computador da casa; a esposa, apenas para "elaborar planilhas de custos" (trecho do interrogatório contido na mídia digital de fl. 349). Esclareço que não foi oferecida denúncia em relação à esposa do apelante, tendo em vista a ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva por parte desta. Assim, sendo seu o computador (o que é incontroverso), e sem qualquer prova ou indício de que tenha havido invasão (física ou cibernética) na máquina eletrônica, resta clara a autoria delitiva, por ser o principal usuário, e aquele que se conectava ao emule no computador.
A este conjunto de provas se soma outro elemento relevante: os títulos dos vídeos encontrados faziam remissão expressa e incontestável ao conteúdo do vídeo, ou seja, a pornografia infantil. Dois dos arquivos recuperados no HD do réu foram efetivamente compartilhados via emule, ou seja, dois vídeos contendo pornografia infantil foram baixados por outros usuários utilizando como fonte do download o arquivo contido no computador do réu. Os títulos dos vídeos são os seguintes: "Linda menina enfia dedo - Pedofilia - ZFX Valya", e "Pedofilia _-_6_years_old_porn_quens (...)" (fl. 64). Portanto, mesmo quem não conhecesse minimamente questões relativas à internet ou ao emule poderia ser repelido por vídeos com títulos de tamanha clareza quanto ao conteúdo neles depositado. Os vídeos, em síntese, foram baixados, armazenados (tanto que encontrados em HD) e disponibilizados (posto que foram baixados por terceiros via emule, como consta do laudo pericial).
Com essas considerações, entendo deva ser reformada a sentença neste ponto, pois a conduta do réu (repetida 75 vezes, conforme histórico de compartilhamento de vídeos obtido por perícia a partir do aplicativo emule instalado no computador do apelante - lista na fl. 68) se amolda ao disposto no art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, havendo provas suficientes de dolo, autoria e materialidade delitiva.
III - Do crime previsto no art. 241-B do ECA
Busca o réu a absolvição quanto à imputação de que teria incorrido na prática concreta do tipo penal contido no art. 241-B da Lei 8.068/90, ao armazenar em seu computador arquivos de pornografia infantil (vídeos com esse conteúdo). Sustenta, em suma, que os arquivos encontrados no computador do apelante estavam todos inativos, o que provaria a ausência de dolo em seu armazenamento. O apelante teria deletado os vídeos com o conteúdo ilícito assim que acidentalmente baixados, e eles só permaneciam no computador por elementos alheios à sua vontade, posto que este buscou excluí-los permanentemente ao deletá-los.
A tese não prospera diante dos elementos colhidos nestes autos. De fato, os arquivos encontrados (doze vídeos de pornografia infanto-juvenil) não estavam mais acessíveis a partir do sistema operacional Windows. Contudo, os arquivos haviam sido armazenados anteriormente. O primeiro fator a ser levado em conta é que seria impossível que se baixassem doze vídeos com títulos explícitos como os já referidos supra "por acidente". Isso tanto pela expressividade dos títulos (que denotam inequivocamente qual o objeto dos arquivos), quanto por eles não lembrarem qualquer nome ou arquivo inocente, ou seja, os títulos desses arquivos não poderiam ser confundidos (em simples acidente, causado por eventual leitura rápida) com filmes, fotos ou músicas "comuns", de conteúdo diverso daquele. Nos vídeos já citados, há inclusive a expressa menção à palavra "pedofilia".
Resta a materialidade provada, pois foram encontrados vídeos de pornografia infantil no computador do réu, como confirmado no laudo de fls. 61/74 e no depoimento do perito, contido na mídia de fl. 350. Também firmada a caracterização do dolo, pois houve o efetivo armazenamento dos arquivos em seu computador, de modo que seria necessária contraprova para demonstrar que se teria um acidente ou uma exclusão imediata, assim que descoberto o conteúdo. Não há prova disso nos autos.
A autoria foi igualmente comprovada, tendo-se em conta os seguintes elementos: jamais foi descoberta qualquer invasão do computador; o emule, como esclareceu o perito, não baixa arquivos automaticamente; apenas o réu utilizava o emule em seu computador, visto que sua esposa apenas o utilizava para elaborar planilhas de custos (interrogatório de fl. 349). O armazenamento de arquivos não é descaracterizado por terem sido eles deletados posteriormente (desde que isso não tenha ocorrido de forma imediata), e o desconhecimento quanto ao conteúdo não se sustenta diante da clareza dos títulos dos vídeos. Ademais, os muitos vídeos de pornografia compartilhados (75 confirmados, conforme relatório pericial) evidenciam que o armazenamento, ainda que por período curto de tempo, era prática corriqueira do réu, mormente tendo em conta que os vídeos puderam ser baixados por terceiros utilizando seu computador como fonte (ou seja, os arquivos não foram "automaticamente" deletados). A própria diferença entre as datas de modificação e datas de compartilhamento (por vezes, de alguns dias) mostra que houve o armazenamento por, no mínimo, alguns dias, de todos os vídeos compartilhados. Já quanto aos efetivamente encontrados, ainda que inativos, sabe-se que foram armazenados como ativos em algum momento, como esclareceu o perito em seu depoimento, embora não se saiba por quanto tempo. Ainda, o delegado federal que conduziu a busca e apreensão na residência do acusado depôs em juízo (depoimento na mídia de fl. 290), e afirmou que, ao ser comunicado sobre a razão da diligência, o réu disse "mas isso [manter conteúdo de pornografia infantil armazenado] todo mundo faz."
Por fim, indícios complementares encontrados pelo perito federal reforçam as descobertas referidas acima, e evidenciam a autoria e o dolo do acusado. O expert examinou a lista de "arquivos de links" do computador do réu. Estes são os arquivos que não estão no computador, mas que foram acessados recentemente pelo usuário, em especial via CD inserido naquele computador. Há dezenas de correspondências de arquivos de links com títulos que indicam se tratar de vídeos de pornografia infantil (mídia digital de fl. 68, anexa ao relatório pericial). Evidentemente, por serem arquivos contidos em mídia externa (CD-ROM), não há acesso a eles, nem modo de se comprovar que se tratava efetivamente de vídeos contendo pornografia infantil. No entanto, os títulos indicam expressamente ser esse o conteúdo de muitos dos acessos recentes (ou seja, arquivos visualizados recentemente no computador) do usuário. Convém a lembrança de que 75 vídeos (referidos no histórico de compartilhamento do emule do usuário) com títulos que indicavam ser de conteúdo pornográfico infantil foram conferidos pelo perito, que constatou serem de fato vídeos pornográficos infanto-juvenis.
Da mesma forma, constatou-se que o réu possuía em seu computador dois programas de conversão/transmissão de arquivos para o formato de DVD. Em ambos os programas, o histórico de utilização mostra que dezenas de vídeos com títulos que continham remissões expressas a conteúdo pornográfico infantil ou pedofilia foram ali inseridos, em tentativas de transmissão para DVD's. Não se sabe se a transmissão teve sucesso, e nem se tem a comprovação de que os arquivos continham de fato pornografia infantil. No entanto, seus títulos continham termos ligando crianças a sexo, e frequentemente a própria palavra "pedofilia". Os indícios vão todos na mesma direção das provas relatadas: o réu armazenava dados contendo pornografia infantil em seu computador.
Diante desses elementos, resta comprovada à saciedade a materialidade do delito previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente.
IV - Da Dosimetria
1. Crime tipificado no art. 241-A do ECA
No caso do delito consistente na disponibilização de conteúdo pornográfico infantil, deve-se, na primeira fase da dosimetria, exasperar a pena-base em relação ao mínimo legal, tendo em vista a culpabilidade do réu, entendida para os fins do art. 59 do Código Penal como juízo concreto de reprovabilidade da conduta. O réu é experiente médico pediatra - conta com quase quatro décadas de exercício da pediatria - clinicando "de segunda a sábado" (como informou em seu interrogatório - mídia de fl. 349), e em constante contato com crianças e adolescentes. Seu elevado grau de conhecimento médico e técnico sobre o tema e as funestas consequências da pornografia infantil para as crianças utilizadas nesta prática odiosa torna ainda mais reprovável sua conduta; a disponibilização de conteúdo pornográfico auxilia, ainda que obliquamente, na perpetuação da indústria clandestina de produção e disseminação deste material ilícito no Brasil e no exterior, e sua reprovabilidade é tanto maior quanto mais esclarecido é o réu quanto ao tema. No caso, tratando-se de competente médico, especializado no trato de crianças, cabe a ele ainda maior responsabilidade do que o habitual com relação à integridade completa de crianças e adolescentes. Nas demais circunstâncias, nada há a desabonar a conduta do réu. Os motivos, consequências e circunstâncias se atém aos limites normais do tipo. Nenhum especial traço de personalidade foi ressaltado ou noticiado nestes autos. O réu não possui antecedentes judiciais. Deve-se valorar positivamente sua conduta social, posto que diversas testemunhas de defesa atestaram sua competência e profissionalismo como médico. Além disso, não há qualquer notícia de reclamação ou denúncia quanto a seu comportamento passado, pessoal ou profissional, nem condenação em qualquer âmbito judiciário. A conduta social, em suma, deve ser valorada positivamente para o fim de fixar a pena-base.
Saliento, por necessário, que as características aqui examinadas não se colocam em contradição. Do ponto de vista externo (ambiente social), os elementos constantes dos autos são favoráveis ao réu, aparentando boa conduta pessoal e profissional, que deve ser positivamente valorada, para os fins do art. 59 do Código Penal. No entanto, o comportamento delitivo, mantido em ambiente íntimo, não deixa de ser especialmente reprovável, especialmente, reitero, pelo conhecimento específico e elevado do réu quanto a todas as características negativas da pornografia infantil sobre as crianças que são envolvidas nessa prática delitiva, bem ainda pela confiança depositada pela comunidade em relação ao comportamento de médicos pediatras em todas as circunstâncias que coloquem em risco a integridade de uma criança, como é o caso da pornografia infantil. A valoração positiva de uma circunstância e a valoração negativa de outra não se "anulam", como se fossem equivalentes matemáticas, mas devem ser ponderadas pelo Magistrado com atenção às características do caso e do tipo, do que dá prova o próprio fato de o art. 59 do Código Penal não estabelecer pesos exatos ou objetivos para cada circunstância nele descrita. No caso concreto, a culpabilidade prepondera sobre a conduta social (sem, evidentemente, causar sua desconsideração), seja pelo já citado conhecimento médico e científico do réu a respeito da saúde de crianças e adolescentes, seja pela imensa confiança inspirada por profissionais da pediatria em pais e nas próprias crianças, as quais são as maiores vítimas da pornografia infantil. Neste caso, considero que a conduta social reduz a majoração que seria imposta pela culpabilidade exacerbada do réu, se isoladamente considerada. Posto isso, estabeleço a pena acima do mínimo legal, em três anos e seis meses de reclusão.
Sem agravantes ou atenuantes.
Não havendo causas de aumento ou de diminuição da pena em relação ao caso concreto, fixo a pena em um ano e seis meses de reclusão. Constato, ainda, que foram confirmados 75 compartilhamentos de arquivos pornográficos, em downloads que tiveram por fonte (parcial ou integral) vídeos contidos no computador do réu. Todos foram compartilhados pelo sistema de uploads do arquivo emule no computador pessoal do réu, de modo que, havendo a repetição de condutas em circunstâncias semelhantes de tempo e lugar, reconheço a existência de continuidade delitiva da conduta, na forma do art. 71 do Código Penal. Devido ao alto número de vídeos compartilhados (setenta e cinco), aumento a pena fixada em um terço, fixando-a no patamar final de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de reclusão.
2. Crime tipificado no art. 241-B do ECA
Na primeira fase da dosimetria, deve ser majorada a pena-base em relação ao mínimo legal, tendo em vista igualmente a culpabilidade do réu. Os fatos de ser experiente pediatra, em contato iterativo com crianças e adolescentes, e de possuir elevado conhecimento médico-científico a respeito dos malefícios causados pelo sexo envolvendo crianças e sua publicidade pela via da pornografia infantil, elevam a reprovabilidade de sua conduta concreta. Armazenar vídeos com esse conteúdo, possuindo tal nível de experiência profissional cuidando exatamente do desenvolvimento físico de crianças, amplia o juízo de culpabilidade concreta, e, por conseguinte, a pena-base a ser fixada. Também aqui, cabe a redução da pena pela conduta social do réu. Os testemunhos colhidos são harmônicos ao relatar que nunca teve conduta indecorosa com pacientes; não há notícia alguma de denúncia quanto a seu comportamento pessoal ou profissional, e nem registro de condenação ou mesmo de processo contra o réu.
A valoração positiva de uma circunstância e a valoração negativa de outra não se "anulam", como se fossem equivalentes matemáticas, mas devem ser ponderadas pelo Magistrado com atenção às características do caso e do tipo, do que dá prova o próprio fato de o art. 59 do Código Penal não estabelecer pesos exatos ou objetivos para cada circunstância nele descrita. No caso concreto, a culpabilidade prepondera sobre a conduta social (sem causar sua desconsideração), seja pelo já citado conhecimento médico e científico do réu a respeito da saúde de crianças e adolescentes, seja pela confiança inspirada por médicos pediatras em pais e nas próprias crianças, as quais são as maiores vítimas da pornografia infantil. Portanto, estabeleço a pena base acima do mínimo legal, em um ano e seis meses de reclusão.
Sem agravantes ou atenuantes.
Não há causas de aumento. A r. sentença recorrida aplicou a causa de diminuição específica constante do art. 241-B, § 1º, do ECA, reduzindo a pena fixada em dois terços pela pequena quantidade de conteúdo armazenado. A sentença considerou que foi comprovado o armazenamento de apenas dois arquivos. Isso porque dois dos doze arquivos encontrados foram efetivamente compartilhados, o que prova o seu armazenamento anterior. Quanto aos demais, não estaria comprovado que o réu os teria armazenado, sendo possível que tivesse deletado todos assim que inseridos no computador. Deveras, não há a comprovação de que os demais vídeos tenham sido de fato mantidos disponíveis no computador de modo a caracterizar propriamente seu armazenamento. No entanto, a própria lista de compartilhamentos de vídeos com conteúdo pornográfico infantil (fls. 69/74) mostra que diversos outros vídeos eram armazenados no computador, ainda que tenham sido posteriormente deletados. A figura típica não exige o armazenamento perene deste tipo de conteúdo, de maneira que há provas nos autos do armazenamento de vários conteúdos pornográficos, ainda que ulteriormente excluídos. Como já destaquei, a própria diferença entre as datas de modificação e datas de compartilhamento (por vezes, de alguns dias) mostra que houve o armazenamento por, no mínimo, alguns dias, de todos os vídeos compartilhados. Afinal, tanto as alterações quanto os compartilhamentos só podiam ser feitos com os vídeos ativos, o que prova a sua permanência nas pastas disponíveis do réu. A causa de diminuição não subsiste, em suma, diante dos elementos constantes dos autos. Assim, deve ser afastada a causa de diminuição específica, mantendo-se a pena em 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão.
Havendo o concurso de delitos por meio de condutas diversas, tem-se concurso material (Código Penal, art. 69), somando-se as penas cominadas a cada um deles. Desse modo, fixo a pena final em 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de reclusão.
Inexistem motivos para fixação de regime mais gravoso do que o normal para penas nesse montante, razão pela qual fixo o regime semiaberto para o início do cumprimento de pena.
Ante o exposto, CONHEÇO dos recursos de apelação, NEGO PROVIMENTO ao apelo do réu Antônio Fauzi Haidar, e DOU PROVIMENTO ao recurso do Ministério Público Federal, para condenar o réu pela prática: do crime previsto no art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente, em continuidade delitiva (Código Penal, art. 71), por setenta e cinco vezes, à pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de reclusão; do crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente, à pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de reclusão. Por haver concurso material entre as condutas delitivas (Código Penal, art. 69), fixo a pena final em 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto.
É como voto.
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