Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 29/05/2015
APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0002592-35.2013.4.03.6113/SP
2013.61.13.002592-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal NERY JUNIOR
APELANTE : Fazenda do Estado de Sao Paulo
ADVOGADO : SP068735 JOSE BORGES DA SILVA e outro
APELANTE : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
APELADO(A) : CAROLINA PARZEWSKI GUIMARAES VIVENZIO
ADVOGADO : SP273538 GISÉLIA SILVA OLIVEIRA e outro
PARTE RÉ : FUNDACAO HEMOCENTRO DE RIBEIRAO PRETO
ADVOGADO : SP104127 ANTONIO FRANCE JUNIOR e outro
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 1 VARA DE FRANCA Sec Jud SP
No. ORIG. : 00025923520134036113 1 Vr FRANCA/SP

EMENTA

CONSTITUCIONAL. ARTIGO 2º DA LEI Nº 8.080/90. DIREITO À SAÚDE E À VIDA. REGISTRO NACIONAL DE DOADORES VOLUNTÁRIOS DE MEDULA ÓSSEA - REDOME. PORTARIA MS Nº 844/2012. LIMITAÇÃO DE CADASTRO. ILEGALIDADE.
1 - A saúde é um direito social garantido pela Constituição da República (art. 6º), indissociável do direito à vida (art. 5º, caput).
2 - À luz dos artigos 196 e 198, § 1º, da Magna Carta, a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios são solidariamente responsáveis pela prestação do serviço de saúde à população, o que implica não apenas na elaboração de políticas públicas e em uma consistente programação orçamentária para tal área, como também em uma atuação integrada entre tais entes, que não se encerra com o mero repasse de verbas.
3 - "Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais." (STJ, Processo nº 2009/0076691-2, AgRg no REsp 1136549/RS, 2ª Turma, Relator Ministro Humberto Martins, j. 08/06/2010, v.u., DJe 21/06/2010)
4 - A União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios são solidariamente responsáveis pela prestação do serviço de saúde à população, financiando, inclusive, o Sistema Único de Saúde - SUS.
5 - A Lei nº 8.080/90, que regula as ações e serviços de saúde, assegura o acesso universal e igualitário aos mesmos, bem como a integralidade da assistência.
6 - A Leucemia Mielóide Aguda - LMA é um tipo de câncer, de rápida progressão, que afeta e se desenvolve na medula óssea - onde são produzidos os componentes do sangue -, ocasionando o crescimento incontrolável e exagerado de mieloblastos, que se acumulam na medula óssea e deixam de funcionar como células sanguíneas normais, além de prejudicar ou impedir a produção de glóbulos brancos, plaquetas e glóbulos vermelhos.
7 - Para que se realize um transplante de medula óssea é necessário que haja uma total compatibilidade doador-receptor para moléculas codificadas pelos genes HLA (Human Leucocyte Antigens), para não haver rejeição.
8 - Não havendo doador compatível na família, faz-se uma busca nos registros de doadores voluntários.
9 - Instalado no Instituto Nacional de Câncer - INCA, o Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea - REDOME foi criado para reunir as informações de pessoas que se voluntariam a doar medula óssea para pacientes que precisam do transplante.
10 - Os dados pessoais do doador e os resultados dos exames de histocompatibilidade - HLA são armazenados em um sistema informatizado que cruza as informações dos doadores voluntários cadastrados no REDOME com as dos pacientes que precisam do transplante, cadastrados no Registro Nacional de Receptores de Medula Óssea - REREME. Quando verificada a compatibilidade com um paciente, o doador é chamado para exames complementares e convidado a efetivar a doação.
11 - Consoante informação extraída do sítio do INCA, a chance de encontrar uma medula compatível é, em média, de uma em cem mil!
12 - Insta salientar que a localização de um doador compatível no banco de dados não é garantia de efetiva doação, que dependerá, entre outras coisas, da condição atual de saúde do mesmo. Ressalte-se, ainda, que não obstante os doadores cadastrados possam ser chamados a qualquer momento durante o período em que permanecerem com idade para realizar a doação (18-55 anos), podem mudar de ideia e desistir de doar.
13 - Neste contexto, apesar da necessidade do maior número possível de pessoas cadastradas como doador voluntário, a fim de ampliar o número de medulas a serem analisadas, aumentando a probabilidade de se encontrar um doador compatível, foi editada a Portaria MS nº 844/2012, que limitou o número de cadastro de doadores voluntários de medula óssea, por ano, para cada Estado da Federação (art. 2º, caput).
14 - Esta limitação dificulta que a autora encontre um doador compatível e em condições de efetivar a doação, diminuindo sua chance de sobrevivência em razão da enfermidade que a acometeu.
15 - Ao limitar o número de cadastramento de pessoas dispostas a doar medula óssea, a Portaria MS nº 844/2012 restringiu o direito à saúde, garantido pela Lei nº 8.080/90 (art. 2º), bem assim extrapolou o sentido da Lei nº 9.434/97, regulamentada pelo Decreto nº 2.268/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fim de transplante e tratamento.
16 - A intenção do legislador foi garantir a efetivação de prestações concretas destinadas à preservação e recuperação da saúde pública.
17 - A força normativa revela-se pela efetividade dos comandos nela inseridos, a significar, em concreto, a exigibilidade de seu conteúdo em face do particular ou do Poder Público.
18 - In casu, em face do grave estado de saúde em que se encontrava a autora, a mesma foi submetida a um transplante haploidêntico, por não ter encontrado a tempo um doador 100% (cem por cento) compatível e em condições de efetivar a doação. Há, portanto, mais chance de complicações e de recidiva, não descartando a necessidade de novo transplante.
19 - Apelações não providas. Remessa oficial não provida.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Terceira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, negar provimento às apelações e à remessa oficial, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Vencido o Juiz Federal Carlos Francisco, que dava provimento às apelações e à remessa oficial.

São Paulo, 21 de maio de 2015.
NERY JÚNIOR
Desembargador Federal Relator


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APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0002592-35.2013.4.03.6113/SP
2013.61.13.002592-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal NERY JUNIOR
APELANTE : Fazenda do Estado de Sao Paulo
ADVOGADO : SP068735 JOSE BORGES DA SILVA e outro
APELANTE : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 TÉRCIO ISSAMI TOKANO
APELADO(A) : CAROLINA PARZEWSKI GUIMARAES VIVENZIO
ADVOGADO : SP273538 GISÉLIA SILVA OLIVEIRA e outro
PARTE RÉ : FUNDACAO HEMOCENTRO DE RIBEIRAO PRETO
ADVOGADO : SP104127 ANTONIO FRANCE JUNIOR e outro
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 1 VARA DE FRANCA Sec Jud SP
No. ORIG. : 00025923520134036113 1 Vr FRANCA/SP

DECLARAÇÃO DE VOTO

Tratam-se de apelações interpostas pela Fazenda Pública do Estado de São Paulo e pela União Federal, bem como de remessa oficial em face de sentença que julgou procedente pedido deduzido em ação ordinária para que o Hemocentro de Ribeirão Preto, em sua unidade de França, realize o cadastramento/captação de quantos novos doadores de medula óssea compareçam voluntariamente àquela instituição, com o intuito de se cadastrarem como doadores de medula, sem as restrições da Portaria MS 844/2012.

Depois dos votos dos eminentes Desembargadores Federais Nery Júnior (relator) e Carlos Muta, que negaram provimento às apelações e à remessa oficial, ouso divergir.

Por certo é verdade que o art. 196 e seguintes da Constituição dão amplo acesso à saúde, cabendo tanto ao próprio interessado mas especialmente aos entes estatais (de todas as esferas federativas) um conjunto de providências para a consecução desse tão vital mandamento constitucional. Há vários diplomas normativos regentes para a eficácia desses dispositivos constitucionais, dentre eles a Lei Federal 9.434/1997 e o Decreto Federal 2.268/1997.

Particularmente acredito que a definição concreta da manutenção regulada do número de doadores no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) não é matéria reserva à lei ordinária pelo Constituinte, mesmo porque há uma série de elementos técnicos que cuidam das especificidades dessa matéria, de tal modo que o tema vem sendo corretamente tratado por atos normativos infralegais, notadamente portarias ministeriais (em especial do Ministério da Saúde). Somente essas áreas técnicas têm condições de definir o fluxo de informações, tipificação e cadastro de doadores no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME), organizar a Rede Nacional de Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário (Rede BRASILCORD) e também gerenciar o Sistema Nacional de Transplantes.

Por tudo isso, a judicialização de temas como o presente tem despertado relevantes preocupações de entidades como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem se empenhado em promover amplos debates com instituições judiciárias, inclusive expedindo recomendações para auxiliar nos trabalhos jurisdicionais. Não se trata, portanto, de simplesmente negar o controle judicial, mas de aclarar situações nas quais esse controle pode ser feito com em situações nas quais entidades técnicas realizam amplos estudos e planejamentos.

Dito isso, no caso dos autos, é evidente a angústia que se tem por traz de eventos tais como os relatados nos autos, com doenças de extraordinária gravidade. Contudo, o combate a gravidade desses quadros deve ser feito de modo organizado e balizado por elementos técnicos, o que também não exclui a necessária gestão orçamentária para que não ocorra gastos que não resultam necessariamente nos efeitos pretendidos.

Há um complexo conjunto de informações técnicas que devem ser consideradas para a definição de parâmetros números de bancos de dados de doadores. Deve ser considerada também a ideia relevante de que esses bancos não são as únicas fontes de doadores, uma vez que a compatibilidade entre doador-recepetor muitas vezes leva a membros da família se auxiliarem nessas circunstâncias.

Não bastasse, a indeterminação quantitativa gerada pela decisão judicial recorrida (realização do cadastramento/captação de quantos novos doadores de medula óssea compareçam voluntariamente) pode levar a gestão orçamentária sem parâmetros, pois é possível que centenas milhares de novos doadores apareçam (gerando excessivos cadastros, além dos quantitativos necessários) como também pode ser inócua (uma vez que não é a indeterminação de limites que aumentará a quantidade de doadores, por óbvio porque a doação é voluntária).

Essas diversas possibilidades dão apenas exemplos da expressiva complexidade que se verifica em matérias técnicas como a presente, quando então o controle jurisdicional deve ser feito em circunstâncias nas quais as decisões técnicas da administração pública se mostram manifestamente incorretas. Ademais, é de se supor que a administração pública (notadamente em áreas de saúde) atue com relevante seriedade e com padrão de trabalho qualificado.

Noto que a combatida Portaria MS 844/2012 se mostra formalmente em consonância com a legislação de regência, ao mesmo tempo em que exibe detalhamento de manutenção regulada do número de doadores no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) por várias unidades federativas, fazendo crer que também há consistência material em seus comandos.

Já a sentença combatida não estabelece parâmetros claros para que a gestão dessa área técnica seja juridicamente combatida, determinando que o Hemocentro de Ribeirão Preto, em sua unidade de França, realize o cadastramento/captação de quantos novos doadores de medula óssea de quantos novos doadores de medula óssea compareçam voluntariamente àquela instituição, com o intuito de se cadastrarem como doadores de medula, sem as restrições da Portaria MS 844/2012. A indeterminação quantitativa que está no centro da ideia contida na sentença mostra que há o repúdio às decisões técnicas realizadas por órgãos executivos, como se tais decisões não fossem merecedoras de crédito ou que não estivessem contextualizadas com diversos elementos essencialmente relacionados a essa área tão complexa do conhecimento do biodireito.

Além disso, foi editada a Portaria MS 2132/2013, que elevou substancialmente o número de doadores no Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME), embora também seja verdade que o quantitativo do Estado de São Paulo tenha se mantido. Essa nova portaria se preocupou com a necessidade de manter a regulação do cadastro de novos doadores voluntários de medula óssea e outros progenitores hematopoiéticos no REDOME e na rede BRASILCORD, de forma a garantir a adequada representatividade da diversidade genética da população brasileira nesses registros, garantir a oportunidade de identificação de doadores histocompatíveis e de assegurar a utilização adequada dos recursos financeiros disponíveis.

Diante disso, com a devida vênia, dou provimento às apelações bem como à remessa oficial para afirmar a validade dos procedimentos combatidos.

É o voto.



CARLOS FRANCISCO
Juiz Federal Convocado


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APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0002592-35.2013.4.03.6113/SP
2013.61.13.002592-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal NERY JUNIOR
APELANTE : Fazenda do Estado de Sao Paulo
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RELATÓRIO

Trata-se de ação ordinária, com pedido de tutela antecipada, ajuizada em face da União Federal, da Fazenda do Estado de São Paulo, do Município de Franca e da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto - FUNDHERP, em 17 de setembro de 2013, visando a declaração incidental de inconstitucionalidade do artigo 2º, da Portaria nº 844, de 2 de maio de 2012, do Ministério da Saúde, que limita o número de cadastro de doadores voluntários de medula óssea por ano, para cada Estado da Federação. Foi atribuída à causa o valor de R$ 762,65 (setecentos e sessenta e dois reais e sessenta e cinco centavos), atualizado até abril de 2015. Com a inicial, acostou documentos.


A autora alega ser portadora de Leucemia Mielóide Aguda - LMA, bem assim que sua única chance de cura é um transplante de medula óssea.


Sustenta que os doadores voluntários de medula óssea da região de Ribeirão Preto estão sendo impedidos de se cadastrar no Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea - REDOME, em decorrência da limitação imposta na Portaria supracitada.


Defende a inconstitucionalidade da Portaria MS nº 844/2012 por afronta ao direito à vida e à saúde.


Deferida a antecipação dos efeitos da tutela pleiteada, às fls. 45/46-vº, "para que o Hemocentro de Franca realize o cadastramento/captação de quantos novos doadores de medula óssea compareçam voluntariamente àquela instituição, com o intuito de se cadastrarem como doadores de medula, sem as restrições da Portaria 844 de 02 de maio de 2012, do Ministério de Estado da Saúde".


Citados, a União Federal, o Município de Franca, a Fazenda do Estado de São Paulo e a Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto - FUNDHERP apresentaram contestação às fls. 102/111, 116/122, 135/148 e 150/162, respectivamente.


Deferidos os benefícios da Justiça Gratuita. (fl. 130)


Após a réplica (fls. 207/212), a d. magistrada a quo extinguiu o processo sem resolução de mérito com relação à Prefeitura de Franca (art. 267, VI, CPC) e julgou procedente o pedido (art. 269, I, CPC), tornando definitiva a antecipação de tutela concedida, para determinar que "o Hemocentro de Ribeirão Preto, em sua unidade de Franca, realize o cadastramento/captação de quantos novos doadores de medula óssea compareçam voluntariamente àquela instituição, com o intuito de se cadastrarem como doadores de medula, sem as restrições da Portaria n.º 844 de 02 de maio de 2012, do Ministério de Estado da Saúde ficando desde já determinado que proceda ao faturamento dos cadastros na mesma forma dos Cadastros fixados dentro dos limites da referida Portaria". Custas nos termos da lei. Honorários fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor atribuído à causa, a serem pagos pelas rés na proporção de 1/3 (um terço) para cada um. Decisão submetida ao reexame necessário. (fls. 217/221)


Irresignadas, apelaram a Fazenda Pública do Estado de São Paulo (fls. 223/236) e a União Federal (fls. 238/254), tempestivamente, pugnando pela reforma in totum da sentença.


Apelações recebidas no efeito meramente devolutivo. (fl. 257)


Com contrarrazões da autora, subiram os autos a esta Corte.


É o relatório.


VOTO

A questão que ora se impõe cinge-se em saber se a Portaria MS nº 844/2012 violou ou não o direito à saúde e à vida.


A saúde é um direito social garantido pela Constituição da República (art. 6º), indissociável do direito à vida (art. 5º, caput).


O artigo 196 da Carta Magna dispõe, in verbis:


"Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."


À luz dos artigos 196 e 198, § 1º, da Magna Carta, a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios são solidariamente responsáveis pela prestação do serviço de saúde à população, o que implica não apenas na elaboração de políticas públicas e em uma consistente programação orçamentária para tal área, como também em uma atuação integrada entre tais entes, que não se encerra com o mero repasse de verbas.


"Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais." (STJ, Processo nº 2009/0076691-2, AgRg no REsp 1136549/RS, 2ª Turma, Relator Ministro Humberto Martins, j. 08/06/2010, v.u., DJe 21/06/2010)


A União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios são solidariamente responsáveis pela prestação do serviço de saúde à população, financiando, inclusive, o Sistema Único de Saúde - SUS.


A Lei nº 8.080/90, que regula as ações e serviços de saúde, assegura o acesso universal e igualitário aos mesmos, bem como a integralidade da assistência. Por oportuno, transcrevo abaixo o artigo 2º, § 1º e o artigo 7º, incisos I e II, da referida legislação, ipsis litteris:


"Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (...)

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; (...)"


Compulsando os autos, verifico que a autora comprovou ser portadora de leucemia mielóide aguda.


A Leucemia Mielóide Aguda - LMA é um tipo de câncer, de rápida progressão, que afeta e se desenvolve na medula óssea - onde são produzidos os componentes do sangue -, ocasionando o crescimento incontrolável e exagerado de mieloblastos, que se acumulam na medula óssea e deixam de funcionar como células sanguíneas normais, além de prejudicar ou impedir a produção de glóbulos brancos, plaquetas e glóbulos vermelhos.


Para que se realize um transplante de medula óssea é necessário que haja uma total compatibilidade doador-receptor para moléculas codificadas pelos genes HLA (Human Leucocyte Antigens), para não haver rejeição.


Não havendo doador compatível na família, faz-se uma busca nos registros de doadores voluntários.


Instalado no Instituto Nacional de Câncer - INCA, o Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea - REDOME foi criado para reunir as informações de pessoas que se voluntariam a doar medula óssea para pacientes que precisam do transplante.


Os dados pessoais do doador e os resultados dos exames de histocompatibilidade - HLA são armazenados em um sistema informatizado que cruza as informações dos doadores voluntários cadastrados no REDOME com as dos pacientes que precisam do transplante, cadastrados no Registro Nacional de Receptores de Medula Óssea - REREME. Quando verificada a compatibilidade com um paciente, o doador é chamado para exames complementares e convidado a efetivar a doação.


Consoante informação extraída do sítio do INCA, a chance de encontrar uma medula compatível é, em média, de uma em cem mil!


A população brasileira caracteriza-se pela grande diversidade étnica e intensa miscigenação, o que dificulta encontrar um doador compatível.


Insta salientar que a localização de um doador compatível no banco de dados não é garantia de efetiva doação, que dependerá, entre outras coisas, da condição atual de saúde do mesmo. Ressalte-se, ainda, que não obstante os doadores cadastrados possam ser chamados a qualquer momento durante o período em que permanecerem com idade para realizar a doação (18-55 anos), podem mudar de ideia e desistir de doar.


Neste contexto, apesar da necessidade do maior número possível de pessoas cadastradas como doador voluntário, a fim de ampliar o número de medulas a serem analisadas, aumentando a probabilidade de se encontrar um doador compatível, foi editada a Portaria MS nº 844/2012, que limitou o número de cadastro de doadores voluntários de medula óssea, por ano, para cada Estado da Federação (art. 2º, caput).


Esta limitação dificulta que a autora encontre um doador compatível e em condições de efetivar a doação, diminuindo sua chance de sobrevivência em razão da enfermidade que a acometeu.


Ao limitar o número de cadastramento de pessoas dispostas a doar medula óssea, a Portaria MS nº 844/2012 restringiu o direito à saúde, garantido pela Lei nº 8.080/90 (art. 2º), bem assim extrapolou o sentido da Lei nº 9.434/97, regulamentada pelo Decreto nº 2.268/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fim de transplante e tratamento.


A intenção do legislador foi garantir a efetivação de prestações concretas destinadas à preservação e recuperação da saúde pública.


A força normativa revela-se pela efetividade dos comandos nela inseridos, a significar, em concreto, a exigibilidade de seu conteúdo em face do particular ou do Poder Público.


In casu, em face do grave estado de saúde em que se encontrava a autora, a mesma foi submetida a um transplante haploidêntico, por não ter encontrado a tempo um doador 100% (cem por cento) compatível e em condições de efetivar a doação. Há, portanto, mais chance de complicações e de recidiva, não descartando a necessidade de novo transplante.


Mantenho, pois, a sentença combatida.


Ante o exposto, nego provimento às apelações e à remessa oficial, nos termos da fundamentação.


É como voto.


NERY JÚNIOR
Desembargador Federal Relator


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Data e Hora: 25/05/2015 14:42:44