Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 20/01/2017
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0005687-25.2012.4.03.6108/SP
2012.61.08.005687-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal MARCELO SARAIVA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SP121553 PEDRO ANTONIO DE OLIVEIRA MACHADO e outro(a)
APELADO(A) : Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica IBGE
ADVOGADO : CE013849 SERGIO AUGUSTO ROCHA COELHO
No. ORIG. : 00056872520124036108 1 Vr BAURU/SP

EMENTA

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO AO REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO. DEVER DE SIGILO DE DADOS DO IBGE. NORMAS ANTERIORES À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE. DESCABIMENTO. JUÍZO DE RECEPÇÃO DAS NORMAS. CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS FUNDAMENTAIS. PONDERAÇÃO. AFASTAMENTO EXCEPCIONAL DO SIGILO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.
I. De fato, a jurisprudência dos tribunais superiores é firme no sentido de reconhecer a possibilidade de alegação de inconstitucionalidade de determinada lei na ação civil pública, enquanto tópico integrante da causa de pedir. No entanto, as normas objeto de impugnação pelo Parquet foram promulgadas em momento anterior ao advento da Constituição Federal de 1988. Não há que se falar em controle difuso de constitucionalidade, mas em juízo de recepção ou não das normas pela atual ordem constitucional. Inaplicável a cláusula de reserva de plenário prevista no art. 97 da Constituição Federal.
II. Se, por um lado, a República Federativa do Brasil possui dentre seus fundamentos a cidadania, por outro, possui dentre seus objetivos fundamentais garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, todos consagrados como princípios fundamentais e como instrumentos de concretização do princípio da dignidade humana.
III. As informações colhidas pelo IBGE retratam a realidade socioeconômica do país e norteiam as providências para solucionar os problemas identificados. O dever de sigilo proporciona segurança a quem presta as informações e contribui para a confiabilidade das pesquisas efetuadas. Recepção das normas que estabelecem o sigilo das informações colhidas pelo IBGE (art. 2º, § 2º, do Decreto-lei nº 161/1967 e parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 5.534/1968) pela Constituição Federal de 1988.
IV. Quando princípios fundamentais da Constituição conflitam entre si, a questão deve ser analisada tendo em vista o caso concreto, respeitados os valores supremos consagrados na ordem constitucional. Com base no juízo de ponderação, busca-se identificar em qual dimensão deve um direito fundamental preponderar quando contraposto a outro direito também fundamental. Para isso, deve-se recorrer aos princípios instrumentais da razoabilidade e da proporcionalidade, implícitos na Constituição, e sopesar os valores protegidos pelas normas em conflito. Não se trata de eliminar um direito para fazer predominar exclusivamente outro, mas sim de conciliar os bens jurídicos em conflito e harmonizá-los com os princípios consagrados no sistema jurídico constitucional.
V. O afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE é medida excepcional, a ser analisada diante de cada caso concreto, assegurando-se dessa forma a manutenção da confiabilidade das pesquisas efetuadas pelo Instituto. Na hipótese dos autos, justifica-se o excepcional afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE, porquanto suficientemente demonstrada a existência de 45 (quarenta e cinco) crianças, na área urbana do município de Bauru/SP, desprovidas de registro de nascimento e, por conseguinte, da proteção do Estado e da sociedade.
VI. Apelação parcialmente provida.


ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 07 de dezembro de 2016.
MARCELO SARAIVA
Desembargador Federal


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APELAÇÃO CÍVEL Nº 0005687-25.2012.4.03.6108/SP
2012.61.08.005687-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal MARCELO SARAIVA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SP121553 PEDRO ANTONIO DE OLIVEIRA MACHADO e outro
APELADO : Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica IBGE
ADVOGADO : CE013849 SERGIO AUGUSTO ROCHA COELHO
No. ORIG. : 00056872520124036108 1 Vr BAURU/SP

RELATÓRIO

Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em 10/08/2012, com pedido de liminar, em face da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pretende o Ministério Público seja imposta ao IBGE a obrigação de prestar as informações necessárias para a identificação de 45 crianças ou mais que não estão regularmente registradas nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, situação verificada pelo IBGE na realização do Censo 2010. Alega o autor que a ré se recusa a fornecer as informações de interesse do Ministério Público devido ao caráter sigiloso de informações pessoais que possibilitem a identificação dos cidadãos, atribuído em legislação específica, sobretudo Decreto-Lei nº 161/67 e Lei nº 5.534/68.


Sustenta o Ministério Público que a legislação impositiva do sigilo funciona como instrumento protetivo e vetorial dos trabalhos da Fundação, mas encontra limitações perante valores de maior densidade e dimensão insculpidos na atual Constituição Federal como direitos fundamentais. Cita legislação que autoriza a relativizar o sigilo dos dados colhidos pelo IBGE: Convenção sobre os Direitos da Criança, da Assembléia Geral das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 24/09/90, promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21/11/90; Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 678, de 08/11/92; Artigos 15 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente; Artigo 16 Código Civil.


Requer ao final:


-o reconhecimento da não recepção dos dispositivos normativos, notadamente os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário;

- o reconhecimento da revogação (implícita) dos dispositivos normativos, notadamente, os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário, em face do que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil;

- o reconhecimento da inconstitucionalidade, incidenter tantum, dos dispositivos normativos, notadamente, os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário;

- o reconhecimento, no exercício do controle difuso de convencionalidade, da revogação ou incompatibilidade dos dispositivos normativos, notadamente os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário, em face do que preceituam a Convenção sobre os Direitos da Criança, além da Convenção Americana de Direitos Humanos.


Atribuiu à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).


O MM Juiz deferiu em parte o pedido de liminar e determinou a notificação do Chefe da Unidade Estadual do IBGE para, no prazo de dez dias, enviar ao Juízo informações com identificação das famílias e endereços residenciais, apuradas nos últimos dois censos realizados, das crianças que vivem em Bauru/SP e nos Municípios abrangidos pela 8ª Subseção da Justiça Federal de São Paulo que não possuem assento de nascimento junto às serventias extrajudiciais das respectivas Comarcas.


Contra referida decisão, o IBGE interpôs agravo de instrumento.


O feito foi contestado.


Após pedido de reconsideração da liminar pelo IBGE, sobreveio sentença.


O MM Juiz extinguiu o feito sem julgamento do mérito em relação aos pedidos de reconhecimento de não recepção, revogação, incompatibilidade e inconstitucionalidade dos dispositivos normativos que impõem sigilo às informações prestadas ao IBGE; entendeu o MM Juiz pela inadequação da via eleita, uma vez que referidos pedidos não podem ser veiculados em ação coletiva. Quanto ao pedido referente à obrigação de fazer consistente em prestar as informações necessárias para a identificação das crianças sem registro de nascimento, o MM Juiz julgou-o improcedente, sob o fundamento de que o afastamento do sigilo de dados dos recenseamentos prejudicaria a finalidade dos estudos do IBGE.


Em apelação, sustenta o Ministério Público que não postula o exercício do controle concentrado de constitucionalidade como pedido principal, mas, sim, o exercício do controle difuso de constitucionalidade ou do controle da convencionalidade. Afirma que o pedido principal se refere à prestação de informações, para o quê é necessário superar o óbice da norma legal impositora do sigilo. Pré-questiona a interpretação e aplicabilidade, ao caso tratado, do Artigo 227 da Constituição Federal, além de dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução nº L.44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 20/11/89, e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).


Houve contrarrazões.


Às fls. 177, consta informação de que foi negado seguimento ao agravo de instrumento ante a prolação da sentença.


Em parecer, o Ministério Público Federal opinou pelo provimento da apelação.


É o relatório.




MARCELO SARAIVA
Desembargador Federal


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APELAÇÃO CÍVEL Nº 0005687-25.2012.4.03.6108/SP
2012.61.08.005687-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal MARCELO SARAIVA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
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VOTO

Inicialmente, quanto à adequação da via processual eleita, esclarece o autor que o pedido principal veiculado nos autos não diz respeito ao exercício do controle concentrado de constitucionalidade, mas sim ao exercício de controle difuso. Afirma que seu objetivo é o acesso a informações do IBGE, necessárias para a identificação das crianças sem registro, que vêm sendo negadas com fulcro na lei instituidora do sigilo.

Os dispositivos impugnados pelo Parquet constam do Decreto-lei nº 161/1967, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e da Lei nº 5.534/1968, podendo-se extrair do texto de ambos o caráter sigiloso das informações colhidas pelo IBGE.

Dispõe o art. 2º, § 2º, do Decreto-lei nº 161/1967, in verbis:


Art. 2º Ficam instituídos o Plano Nacional de Estatística e o Plano Nacional de Geografia e Cartografia Terrestre, a serem formulados em conformidade com a legislação de diretrizes e bases da espécie, e definidos por ato do Poder Executivo, compreendendo o conjunto de informações e levantamentos necessários ao conhecimento da realidade econômica, social, cultural e física do país.
(...)
§ 2º As informações necessárias à execução do Plano Nacional de Estatística serão prestadas obrigatoriamente pelas pessoas físicas e jurídicas, de direito público e privado, com uso exclusivo para fins estatísticos, não podendo tais informações servir de instrumento para qualquer procedimento fiscal ou legal contra os informantes, salvo quanto a esse último, para efeito de cumprimento da presente lei.


Estabelece o parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 5.534/1968, ad litteram:


Art 1º. Toda pessoa natural ou jurídica de direito público ou de direito privado que esteja sob a jurisdição da lei brasileira é obrigada a prestar as informações solicitadas pela Fundação IBGE para a execução do Plano Nacional de Estatística (Decreto-lei número 161, de 13 de fevereiro de 1967, artigo 2º, §2º).
Parágrafo único. As informações prestadas terão caráter sigiloso, serão usadas exclusivamente para fins estatísticos, e não poderão ser objeto de certidão, nem, em hipótese alguma, servirão de prova em processo administrativo, fiscal ou judicial, excetuado apenas, no que resultar de infração a dispositivos desta lei.


De fato, a jurisprudência dos tribunais superiores é firme no sentido de reconhecer a possibilidade de alegação de inconstitucionalidade de determinada lei na ação civil pública, enquanto tópico integrante da causa de pedir, conforme se verifica dos arestos a seguir transcritos:


PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI ESTADUAL. TRANSPOSIÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS. DECLARAÇÃO INCIDENTAL DE INCONSTITUCIONALIDADE. POSSIBILIDADE. CONTROLE DIFUSO. CAUSA DE PEDIR. RETORNOS DOS AUTOS À ORIGEM PARA REGULAR PROCESSAMENTO DA LIDE.
1. Recurso especial proveniente de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Ceará, com o objetivo de que seja declarada a inconstitucionalidade dos arts. 6º, parágrafo único, 7º e 9º, da Lei Estadual 14.055/2008, que "transpôs" o cargo de Perito Criminalístico Auxiliar para Perito Criminal Auxiliar, e, por consequência, sejam os servidores reconduzidos aos cargos de origem e anulados todos os atos decorrentes da mencionada "transposição".
2. Não é possível a aplicação da teoria da Causa Madura em recurso especial, porquanto o art. 515, § 3º, do CPC refere-se ao julgamento da apelação que devolve ao tribunal a apreciação de toda matéria, sem adstrição aos fundamentos da sentença, característica esta que não está presente no recurso especial. Precedentes.
3. É firme o entendimento do STJ no sentido de que a inconstitucionalidade de determinada lei pode ser alegada em ação civil pública, desde que a título de causa de pedir - e não de pedido -, como no caso em análise, pois, nessa hipótese, o controle de constitucionalidade terá caráter incidental. Precedentes.
4. Não há falar em extinção do feito sem resolução do mérito ou uso indevido da ação civil pública para buscar a inconstitucionalidade em tese de lei, uma vez que ela é cabível como instrumento de controle difuso de constitucionalidade, conforme já reconhecido, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal. Retorno dos autos à instância de origem para apreciação do mérito da demanda.
Recurso especial parcialmente provido. (grifos nossos)
(REsp 1569401/CE, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/03/2016, DJe 15/03/2016).
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE - IMPLEMENTO E ESPÉCIES. Descabe confundir o controle concentrado de constitucionalidade com o difuso, podendo este último ser implementado por qualquer Juízo nos processos em geral, inclusive coletivo, como é a ação civil pública - precedentes: Recursos Extraordinários nº 424.993/DF, relator ministro Joaquim Barbosa, e 511.961/SP, relator ministro Gilmar Mendes, acórdãos publicados, respectivamente, no Diário da Justiça eletrônico de 19 de outubro de 2007 e 13 de novembro de 2009.(Rcl 8605 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 17/10/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-220 DIVULG 06-11-2013 PUBLIC 07-11-2013)

De todo modo, no caso dos autos, verifica-se que as normas impugnadas são anteriores à Constituição Federal vigente, não havendo que se falar, portanto, em controle difuso de constitucionalidade, mas em juízo de recepção ou não das normas pela atual ordem constitucional.

Nesse contexto, oportuno destacar a inaplicabilidade da cláusula da reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição Federal, no exame da compatibilidade de normas pré-constitucionais com a ordem vigente, podendo o juízo de recepção ser feito por órgão fracionário dos Tribunais.


Este é o entendimento do C. Supremo Tribunal Federal:


AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO. LEI 4.156/62. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. ARGUIÇÃO DE AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO DA DECISÃO. OFENSA REFLEXA. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DA CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO (ARTIGO 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). INOCORRÊNCIA. NORMA ERIGIDA SOB A ÉGIDE DA CONSTITUIÇÃO ANTERIOR. RECEPÇÃO DA LEI POR ÓRGÃO FRACIONÁRIO. POSSIBILIDADE.
1. Os princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, da motivação das decisões judiciais, bem como os limites da coisa julgada, quando a verificação de sua ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, revelam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si só, não desafia a instância extraordinária. Precedentes 2. A cláusula de reserva de plenário (full bench) é aplicável somente aos textos normativos erigidos sob a égide da atual Constituição. 3. As normas editadas quando da vigência das Constituições anteriores se submetem somente ao juízo de recepção ou não pela atual ordem constitucional, o que pode ser realizado por órgão fracionário dos Tribunais sem que se tenha por violado o art. 97 da CF. Precedentes: AI-AgR 582.280, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 6.11.2006 e AI 831.166-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, Dje de 29.4.2011. 3. Agravo regimental desprovido. (grifos nossos) (ARE 705316 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 12/03/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-070 DIVULG 16-04-2013 PUBLIC 17-04-2013)


Passa-se à análise do mérito, porquanto indissociável do juízo de recepção, uma vez que o Ministério Público Federal entende que a norma não foi recepcionada pela atual Constituição Federal.

Assevera o autor a incompatibilidade com a atual ordem constitucional dos dispositivos legais que asseguram o absoluto sigilo da identidade das pessoas entrevistadas pelo IBGE em suas pesquisas de opinião para fins de estatísticas, vedando ao Instituto fornecer as identidades sob pena de responsabilidade civil e penal.

Conforme se depreende do art. 2º da Lei nº 5.878/73:


Art. 2º- Constitui objetivo básico do IBGE assegurar informações estudos de natureza estatística, geográfica, cartográfica e demográfica necessários ao conhecimento da realidade física, econômica e social do País, visando especificamente ao planejamento econômico e social e à segurança nacional.


Da análise da legislação reguladora do IBGE, extrai-se que sua finalidade precípua guarda relação com o título dedicado aos princípios fundamentais da Constituição Federal, a qual enuncia como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos II e III).

Nesse passo, as pesquisas realizadas pelo IBGE se revelam de suma importância para o alcance dos objetivos traçados na Carta Maior, porque, ao identificarem os potenciais e as carências dos diversos setores da sociedade, as informações servem de base para a elaboração das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento nacional e à melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.

É certo que o sigilo assegurado por lei influi no resultado das pesquisas e, consequentemente, nas políticas públicas a partir delas implementadas, pois contribui para a veracidade das informações prestadas pelo cidadão, o qual tem a segurança de que tais informações estarão protegidas.

Sob tal ótica, entendo que as normas em questão foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988.

De outra parte, a Constituição reconhece o Registro Civil de Nascimento como direito fundamental, inclusive com gratuidade estabelecida pelo art. 5º, inciso LXXVI, alínea "a".

O Registro Civil de Nascimento está relacionado com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, erigidos como fundamentos da República Federativa do Brasil.

A Certidão de Nascimento é documento necessário ao exercício da cidadania em toda sua amplitude, englobando o gozo de direitos civis, políticos e sociais. Sua inexistência, ao obstar o acesso a direitos fundamentais, fere a dignidade da pessoa humana.

Se, por um lado, a República Federativa do Brasil possui dentre seus fundamentos a cidadania, por outro, possui dentre seus objetivos fundamentais garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, todos consagrados como princípios fundamentais e como instrumentos de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Quando princípios fundamentais da Constituição conflitam entre si, a questão deve ser analisada tendo em vista o caso concreto, respeitados os valores supremos consagrados na ordem constitucional.

Com base no juízo de ponderação, em situações que envolvam conflito entre preceitos constitucionais, busca-se identificar em qual dimensão deve um direito fundamental preponderar quando contraposto a outro direito também fundamental.

Para isso, deve-se recorrer aos princípios instrumentais da razoabilidade e da proporcionalidade, implícitos na Constituição, e sopesar os valores protegidos pelas normas em conflito.

Na verdade, a proporcionalidade é uma regra, composta por três sub-regras, que devem ser aplicadas subsidiariamente e na seguinte ordem: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação exige que o meio empregado seja hábil para fomentar, promover o resultado almejado. Por sua vez, em observância à regra da necessidade, entre dois ou mais meios adequados deve ser escolhido aquele que menos intensamente intervenha no direito atingido no caso concreto. Dessa forma, somente se não houver alternativa com a mesma eficácia e que implique menor restrição ao direito fundamental, será considerada necessária a medida restritiva. Trata-se da proibição da adoção de meio excessivamente gravoso. Por fim, o exame da proporcionalidade em sentido estrito consiste no sopesamento entre a intensidade da restrição de um direito fundamental e a importância da realização do direito fundamental com quem o primeiro colide.

Não se trata, portanto, de eliminar um direito para fazer predominar exclusivamente outro, mas sim de conciliar os bens jurídicos em conflito e harmonizá-los com os princípios consagrados no sistema jurídico constitucional.

No caso em apreço, opõem-se o direito das crianças sem registro de nascimento ao exercício pleno da cidadania e o direito de milhões de brasileiros à obtenção de melhores condições de vida, muitas vezes até de sair da extrema pobreza, o que, para muitos, só é possível por meio de ações governamentais, cuja eficiência conta com o auxílio dos trabalhos realizados pelo IBGE.

Como já salientado, as informações colhidas pelo IBGE retratam a realidade socioeconômica do país e norteiam as providências para solucionar os problemas identificados. O dever de sigilo proporciona segurança a quem presta as informações e contribui para a confiabilidade das pesquisas efetuadas.

Assim sendo, o afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE é medida excepcional, a ser analisada diante de cada caso concreto, assegurando-se dessa forma a manutenção da confiabilidade das pesquisas efetuadas pelo Instituto.

Na hipótese dos autos, justifica-se o excepcional afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE, porquanto suficientemente demonstrada a existência de 45 (quarenta e cinco) crianças, na área urbana do município de Bauru/SP, desprovidas de registro de nascimento e, por conseguinte, da proteção do Estado e da sociedade.

A Constituição Federal de 1988 conferiu tratamento prioritário às crianças e aos adolescentes, impondo à família, à sociedade e ao Estado o dever de efetivar seus direitos, especialmente aqueles mencionados no art. 227, caput, da Carta Maior, in verbis:


Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 


Em uníssono, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 9.069/90) consagra o princípio do melhor interesse do menor, na busca da proteção integral dos infantes. Merece destaque o Capítulo II do citado diploma, que assegura o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade da criança e do adolescente.

A Convenção sobre os Direitos da Criança também prescreve em seu texto o direito ao nome, ao registro do nascimento e a todos os elementos que configuram a identidade.

Em que pese a necessidade de preservação do sigilo das informações do IBGE e o fato que o Governo brasileiro vem se mobilizando pela erradicação do sub-registro de nascimento, está-se diante de uma situação concreta de ausência de registro e de vulnerabilidade social, a justificar o parcial acolhimento do pedido do Parquet.

O afastamento excepcional do sigilo, tão somente para a situação fática descrita na exordial, consiste em medida adequada ao fim almejado, necessária e proporcional, por não comprometer a atuação do Instituto e a implementação de políticas públicas.

A efetivação dos direitos e garantias fundamentais depende, entre outras medidas, da realização do registro de nascimento, a partir do qual o indivíduo passa ser conhecido pelo Estado e pela sociedade, tornando-se apto a exercer sua cidadania e a usufruir de uma existência digna.

De rigor, portanto, o parcial provimento do recurso ministerial.



Dos honorários de sucumbência

Em relação à condenação em honorários advocatícios, cumpre ressaltar que a 1ª Seção do C. Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido do descabimento da condenação dos réus ao pagamento de honorários de sucumbência, na ação civil pública julgada procedente.

Por este critério, obsta-se que a parte autora da ação civil pública, cuja condenação em honorários advocatícios se restringe à litigância de má-fé, se beneficie com a percepção de verba honorária quando for vencedora na demanda.

A isenção do pagamento das verbas sucumbenciais está prevista no art. 18 da Lei de Ação Civil Pública, o qual estabelece:


Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais.

Ressalte-se que o regime diferenciado quanto à sucumbência das ações coletivas tem fundamento constitucional (art. 5º, LXXIII e LXXVII) e objetiva incentivar, ou ao menos não desestimular, o uso das demandas coletivas de defesa do interesse público e social, uma vez que o pagamento dos honorários poderia ser um obstáculo adicional à propositura destas ações.

Dito isso, por critério de absoluta simetria, não podem ser fixados honorários sucumbenciais em desfavor do réu.

Nesse sentido, transcrevo os seguintes arestos:


PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS EM FAVOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A jurisprudência da Primeira Seção deste Superior Tribunal é firme no sentido de que, por critério de absoluta simetria, no bojo de ação civil pública não cabe a condenação da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios em favor do Ministério Público.
Precedente: EREsp 895530/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 26/08/2009, DJe 18/12/2009.
2. Agravo regimental não provido. (grifo nosso)
(AgRg no AREsp 21.466/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/08/2013, DJe 22/08/2013)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. AGENTE POLÍTICO. LEGITIMIDADE PASSIVA. TIPICIDADE. DOLO. DOSIMETRIA DAS SANÇÕES. ELEMENTOS DE PROVA. REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS FIXADOS EM FAVOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE.
1. Cuidam os autos de ato de improbidade administrativa atribuída a Procurador-Geral de Município e subordinado, pelo desempenho de atividades de interesse particular - advocacia - no âmbito da Administração Pública. Ficou demonstrada na fundamentação do acórdão recorrido a existência do elemento subjetivo dos agentes, em ato que causou lesão ao erário - art. 10, XIII, da Lei 8.429/1992 -, e violação dos princípios insculpidos no caput do art. 11, da Lei 8.429/1992.
(...)
4. A Primeira Seção, ao julgar os EREsp 895.530/PR, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, por maioria, firmou que, em ação civil pública movida pelo Parquet, devem ser seguidas as seguintes balizas: I) o Ministério Público não pode auferir honorários por vedação constitucional, consoante o art. 128, § 5º, II, letra "a", da Constituição da República; II) aplicam-se estritamente os critérios previstos nas regras específicas da Lei 7.347/85, quanto à verba honorária; III) o STJ entende que o Ministério público somente pode ser condenado ao pagamento de honorários advocatícios apenas nos casos de prova irrefutável de sua má-fé e; IV) dentro de critério de absoluta simetria, se o Ministério Público não paga os honorários, também não deve recebê-los. (Precedente: REsp 1099573/RJ, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, julgado em 27/04/2010, DJe 19/05/2010).
Recurso especial parcialmente conhecido e parcialmente provido. (grifo nosso)
(REsp 1264364/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/03/2012, DJe 14/03/2012)

Assim sendo, deixo de condenar o réu ao pagamento de honorários advocatícios.

Pelo exposto, dou parcial provimento à apelação, para determinar ao IBGE que forneça ao Ministério Público Federal as informações referentes à identificação das famílias e endereços das crianças, residentes na área urbana do município de Bauru/SP, que se encontram sem registro de nascimento, conforme apurado no Censo 2010, medida que deve ser cumprida no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais).


É o voto.


MARCELO SARAIVA
Desembargador Federal


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