D.E. Publicado em 20/01/2017 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em 10/08/2012, com pedido de liminar, em face da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Pretende o Ministério Público seja imposta ao IBGE a obrigação de prestar as informações necessárias para a identificação de 45 crianças ou mais que não estão regularmente registradas nos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais, situação verificada pelo IBGE na realização do Censo 2010. Alega o autor que a ré se recusa a fornecer as informações de interesse do Ministério Público devido ao caráter sigiloso de informações pessoais que possibilitem a identificação dos cidadãos, atribuído em legislação específica, sobretudo Decreto-Lei nº 161/67 e Lei nº 5.534/68.
Sustenta o Ministério Público que a legislação impositiva do sigilo funciona como instrumento protetivo e vetorial dos trabalhos da Fundação, mas encontra limitações perante valores de maior densidade e dimensão insculpidos na atual Constituição Federal como direitos fundamentais. Cita legislação que autoriza a relativizar o sigilo dos dados colhidos pelo IBGE: Convenção sobre os Direitos da Criança, da Assembléia Geral das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 24/09/90, promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 21/11/90; Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 678, de 08/11/92; Artigos 15 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente; Artigo 16 Código Civil.
Requer ao final:
-o reconhecimento da não recepção dos dispositivos normativos, notadamente os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário;
- o reconhecimento da revogação (implícita) dos dispositivos normativos, notadamente, os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário, em face do que preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Civil;
- o reconhecimento da inconstitucionalidade, incidenter tantum, dos dispositivos normativos, notadamente, os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário;
- o reconhecimento, no exercício do controle difuso de convencionalidade, da revogação ou incompatibilidade dos dispositivos normativos, notadamente os anteriores à promulgação da Constituição vigente, que impõem sigilo às informações de recenseamento governamental sobre crianças e adolescentes, quando se tratar de requisições do Ministério Público e do Poder Judiciário, em face do que preceituam a Convenção sobre os Direitos da Criança, além da Convenção Americana de Direitos Humanos.
Atribuiu à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
O MM Juiz deferiu em parte o pedido de liminar e determinou a notificação do Chefe da Unidade Estadual do IBGE para, no prazo de dez dias, enviar ao Juízo informações com identificação das famílias e endereços residenciais, apuradas nos últimos dois censos realizados, das crianças que vivem em Bauru/SP e nos Municípios abrangidos pela 8ª Subseção da Justiça Federal de São Paulo que não possuem assento de nascimento junto às serventias extrajudiciais das respectivas Comarcas.
Contra referida decisão, o IBGE interpôs agravo de instrumento.
O feito foi contestado.
Após pedido de reconsideração da liminar pelo IBGE, sobreveio sentença.
O MM Juiz extinguiu o feito sem julgamento do mérito em relação aos pedidos de reconhecimento de não recepção, revogação, incompatibilidade e inconstitucionalidade dos dispositivos normativos que impõem sigilo às informações prestadas ao IBGE; entendeu o MM Juiz pela inadequação da via eleita, uma vez que referidos pedidos não podem ser veiculados em ação coletiva. Quanto ao pedido referente à obrigação de fazer consistente em prestar as informações necessárias para a identificação das crianças sem registro de nascimento, o MM Juiz julgou-o improcedente, sob o fundamento de que o afastamento do sigilo de dados dos recenseamentos prejudicaria a finalidade dos estudos do IBGE.
Em apelação, sustenta o Ministério Público que não postula o exercício do controle concentrado de constitucionalidade como pedido principal, mas, sim, o exercício do controle difuso de constitucionalidade ou do controle da convencionalidade. Afirma que o pedido principal se refere à prestação de informações, para o quê é necessário superar o óbice da norma legal impositora do sigilo. Pré-questiona a interpretação e aplicabilidade, ao caso tratado, do Artigo 227 da Constituição Federal, além de dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução nº L.44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 20/11/89, e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).
Houve contrarrazões.
Às fls. 177, consta informação de que foi negado seguimento ao agravo de instrumento ante a prolação da sentença.
Em parecer, o Ministério Público Federal opinou pelo provimento da apelação.
É o relatório.
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VOTO
Inicialmente, quanto à adequação da via processual eleita, esclarece o autor que o pedido principal veiculado nos autos não diz respeito ao exercício do controle concentrado de constitucionalidade, mas sim ao exercício de controle difuso. Afirma que seu objetivo é o acesso a informações do IBGE, necessárias para a identificação das crianças sem registro, que vêm sendo negadas com fulcro na lei instituidora do sigilo.
Os dispositivos impugnados pelo Parquet constam do Decreto-lei nº 161/1967, que autorizou o Poder Executivo a instituir a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e da Lei nº 5.534/1968, podendo-se extrair do texto de ambos o caráter sigiloso das informações colhidas pelo IBGE.
Dispõe o art. 2º, § 2º, do Decreto-lei nº 161/1967, in verbis:
Estabelece o parágrafo único, do art. 1º, da Lei nº 5.534/1968, ad litteram:
De fato, a jurisprudência dos tribunais superiores é firme no sentido de reconhecer a possibilidade de alegação de inconstitucionalidade de determinada lei na ação civil pública, enquanto tópico integrante da causa de pedir, conforme se verifica dos arestos a seguir transcritos:
De todo modo, no caso dos autos, verifica-se que as normas impugnadas são anteriores à Constituição Federal vigente, não havendo que se falar, portanto, em controle difuso de constitucionalidade, mas em juízo de recepção ou não das normas pela atual ordem constitucional.
Nesse contexto, oportuno destacar a inaplicabilidade da cláusula da reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição Federal, no exame da compatibilidade de normas pré-constitucionais com a ordem vigente, podendo o juízo de recepção ser feito por órgão fracionário dos Tribunais.
Este é o entendimento do C. Supremo Tribunal Federal:
Passa-se à análise do mérito, porquanto indissociável do juízo de recepção, uma vez que o Ministério Público Federal entende que a norma não foi recepcionada pela atual Constituição Federal.
Assevera o autor a incompatibilidade com a atual ordem constitucional dos dispositivos legais que asseguram o absoluto sigilo da identidade das pessoas entrevistadas pelo IBGE em suas pesquisas de opinião para fins de estatísticas, vedando ao Instituto fornecer as identidades sob pena de responsabilidade civil e penal.
Conforme se depreende do art. 2º da Lei nº 5.878/73:
Da análise da legislação reguladora do IBGE, extrai-se que sua finalidade precípua guarda relação com o título dedicado aos princípios fundamentais da Constituição Federal, a qual enuncia como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incisos II e III).
Nesse passo, as pesquisas realizadas pelo IBGE se revelam de suma importância para o alcance dos objetivos traçados na Carta Maior, porque, ao identificarem os potenciais e as carências dos diversos setores da sociedade, as informações servem de base para a elaboração das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento nacional e à melhoria da qualidade de vida dos brasileiros.
É certo que o sigilo assegurado por lei influi no resultado das pesquisas e, consequentemente, nas políticas públicas a partir delas implementadas, pois contribui para a veracidade das informações prestadas pelo cidadão, o qual tem a segurança de que tais informações estarão protegidas.
Sob tal ótica, entendo que as normas em questão foram recepcionadas pela Constituição Federal de 1988.
De outra parte, a Constituição reconhece o Registro Civil de Nascimento como direito fundamental, inclusive com gratuidade estabelecida pelo art. 5º, inciso LXXVI, alínea "a".
O Registro Civil de Nascimento está relacionado com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, erigidos como fundamentos da República Federativa do Brasil.
A Certidão de Nascimento é documento necessário ao exercício da cidadania em toda sua amplitude, englobando o gozo de direitos civis, políticos e sociais. Sua inexistência, ao obstar o acesso a direitos fundamentais, fere a dignidade da pessoa humana.
Se, por um lado, a República Federativa do Brasil possui dentre seus fundamentos a cidadania, por outro, possui dentre seus objetivos fundamentais garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, todos consagrados como princípios fundamentais e como instrumentos de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.
Quando princípios fundamentais da Constituição conflitam entre si, a questão deve ser analisada tendo em vista o caso concreto, respeitados os valores supremos consagrados na ordem constitucional.
Com base no juízo de ponderação, em situações que envolvam conflito entre preceitos constitucionais, busca-se identificar em qual dimensão deve um direito fundamental preponderar quando contraposto a outro direito também fundamental.
Para isso, deve-se recorrer aos princípios instrumentais da razoabilidade e da proporcionalidade, implícitos na Constituição, e sopesar os valores protegidos pelas normas em conflito.
Na verdade, a proporcionalidade é uma regra, composta por três sub-regras, que devem ser aplicadas subsidiariamente e na seguinte ordem: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação exige que o meio empregado seja hábil para fomentar, promover o resultado almejado. Por sua vez, em observância à regra da necessidade, entre dois ou mais meios adequados deve ser escolhido aquele que menos intensamente intervenha no direito atingido no caso concreto. Dessa forma, somente se não houver alternativa com a mesma eficácia e que implique menor restrição ao direito fundamental, será considerada necessária a medida restritiva. Trata-se da proibição da adoção de meio excessivamente gravoso. Por fim, o exame da proporcionalidade em sentido estrito consiste no sopesamento entre a intensidade da restrição de um direito fundamental e a importância da realização do direito fundamental com quem o primeiro colide.
Não se trata, portanto, de eliminar um direito para fazer predominar exclusivamente outro, mas sim de conciliar os bens jurídicos em conflito e harmonizá-los com os princípios consagrados no sistema jurídico constitucional.
No caso em apreço, opõem-se o direito das crianças sem registro de nascimento ao exercício pleno da cidadania e o direito de milhões de brasileiros à obtenção de melhores condições de vida, muitas vezes até de sair da extrema pobreza, o que, para muitos, só é possível por meio de ações governamentais, cuja eficiência conta com o auxílio dos trabalhos realizados pelo IBGE.
Como já salientado, as informações colhidas pelo IBGE retratam a realidade socioeconômica do país e norteiam as providências para solucionar os problemas identificados. O dever de sigilo proporciona segurança a quem presta as informações e contribui para a confiabilidade das pesquisas efetuadas.
Assim sendo, o afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE é medida excepcional, a ser analisada diante de cada caso concreto, assegurando-se dessa forma a manutenção da confiabilidade das pesquisas efetuadas pelo Instituto.
Na hipótese dos autos, justifica-se o excepcional afastamento do sigilo das informações obtidas pelo IBGE, porquanto suficientemente demonstrada a existência de 45 (quarenta e cinco) crianças, na área urbana do município de Bauru/SP, desprovidas de registro de nascimento e, por conseguinte, da proteção do Estado e da sociedade.
A Constituição Federal de 1988 conferiu tratamento prioritário às crianças e aos adolescentes, impondo à família, à sociedade e ao Estado o dever de efetivar seus direitos, especialmente aqueles mencionados no art. 227, caput, da Carta Maior, in verbis:
Em uníssono, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 9.069/90) consagra o princípio do melhor interesse do menor, na busca da proteção integral dos infantes. Merece destaque o Capítulo II do citado diploma, que assegura o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade da criança e do adolescente.
A Convenção sobre os Direitos da Criança também prescreve em seu texto o direito ao nome, ao registro do nascimento e a todos os elementos que configuram a identidade.
Em que pese a necessidade de preservação do sigilo das informações do IBGE e o fato que o Governo brasileiro vem se mobilizando pela erradicação do sub-registro de nascimento, está-se diante de uma situação concreta de ausência de registro e de vulnerabilidade social, a justificar o parcial acolhimento do pedido do Parquet.
O afastamento excepcional do sigilo, tão somente para a situação fática descrita na exordial, consiste em medida adequada ao fim almejado, necessária e proporcional, por não comprometer a atuação do Instituto e a implementação de políticas públicas.
A efetivação dos direitos e garantias fundamentais depende, entre outras medidas, da realização do registro de nascimento, a partir do qual o indivíduo passa ser conhecido pelo Estado e pela sociedade, tornando-se apto a exercer sua cidadania e a usufruir de uma existência digna.
De rigor, portanto, o parcial provimento do recurso ministerial.
Dos honorários de sucumbência
Em relação à condenação em honorários advocatícios, cumpre ressaltar que a 1ª Seção do C. Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido do descabimento da condenação dos réus ao pagamento de honorários de sucumbência, na ação civil pública julgada procedente.
Por este critério, obsta-se que a parte autora da ação civil pública, cuja condenação em honorários advocatícios se restringe à litigância de má-fé, se beneficie com a percepção de verba honorária quando for vencedora na demanda.
A isenção do pagamento das verbas sucumbenciais está prevista no art. 18 da Lei de Ação Civil Pública, o qual estabelece:
Ressalte-se que o regime diferenciado quanto à sucumbência das ações coletivas tem fundamento constitucional (art. 5º, LXXIII e LXXVII) e objetiva incentivar, ou ao menos não desestimular, o uso das demandas coletivas de defesa do interesse público e social, uma vez que o pagamento dos honorários poderia ser um obstáculo adicional à propositura destas ações.
Dito isso, por critério de absoluta simetria, não podem ser fixados honorários sucumbenciais em desfavor do réu.
Nesse sentido, transcrevo os seguintes arestos:
Assim sendo, deixo de condenar o réu ao pagamento de honorários advocatícios.
Pelo exposto, dou parcial provimento à apelação, para determinar ao IBGE que forneça ao Ministério Público Federal as informações referentes à identificação das famílias e endereços das crianças, residentes na área urbana do município de Bauru/SP, que se encontram sem registro de nascimento, conforme apurado no Censo 2010, medida que deve ser cumprida no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais).
É o voto.
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Data e Hora: | 13/12/2016 19:37:10 |