D.E. Publicado em 20/01/2017 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento à remessa oficial, tida por interposta, e ao recurso de apelação para determinar que, solidariamente, a União e o Estado de São Paulo, no prazo de 120 (cento e vinte dias), implantem o serviço de realização de Triagem Neonatal Ampliada na rede pública de saúde no estado de São Paulo, acrescentando exames para diagnosticar a Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como garantam atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para as crianças diagnosticadas, devendo determinada política pública ser incluída nos planos orçamentários dos entes federados, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais), nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
Trata-se de remessa oficial e recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal, em face de sentença (fls. 528/531) que julgou improcedente a Ação Civil Pública promovida em face da União e do Estado de São Paulo, buscando inclusão na Triagem Neonatal da rede pública de saúde no estado de São Paulo de diagnósticos de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose - 6 - Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas (fls.02/42).
Em 05 de junho de 2012, o Ministério Público Federal promoveu ação civil pública, com pedido de tutela antecipada, em face da União e do Estado de São Paulo, buscando inclusão, em 90 dias, da Triagem Neonatal Ampliada na rede pública de saúde no Estado de São Paulo.
Em abril de 2010, o ministério Público Federal, em São Paulo, instaurou inquérito Civil para apurar se a rede pública de saúde do Estado oferecia Triagem Neonatal ampliada. O procedimento identifica maior número de doenças (fls.43/45).
Na petição inicial, o autor afirmou que a rede particular e Estados de Góias e Santa Catarina já oferecem triagem ampliada, mas o Estado de São Paulo ainda não implantou procedimento. Sustentou que omissão da União e do Estado em aumentar diagnóstico de doenças enfrenta o Estatuto da Criança e do Adolescente, e coloca em risco o direito à vida, pois o diagnóstico precoce pela triagem neonatal pode reduzir o número de hospitalizações e óbitos, assim como os sintomas das doenças. Assim, ressaltou que o Estado tem o dever de promover o direito a saúde, previsto na constituição.
O pedido de antecipação de tutela foi indeferido (fls. 363/365v).
Após regular processamento do feito foi proferida sentença de improcedência dos pedidos contidos na inicial.
Na decisão afirmou-se que serviços e benefícios da Seguridade Social não podem ser criados ou ampliados sem respectiva fonte de custeio (artigo 195, §5º, da Constituição), Poder Judiciário não pode interferir na política orçamentária do Estado (fls. 528/531). Por fim, afirmou:
"a interpretação e conciliação desses conceitos vagos previstos na constituição, em tema de políticas públicas deve considera-la em sua totalidade, e não às tiras, aos pedaços. A decisão política caberá sempre a Poder Legislativo e ao Poder Executivo. Estes, pelas regras democráticas, têm responsabilidade política pela escolha. Reserva-se ao Poder Judiciário, depois da decisão política, de previsão em lei de política pública e do estabelecimento de sua fonte de custeio total, o controle de legalidade na implantação e execução dessa política". (fls. 530v) |
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O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação a fls. 534/541, sustentando, preliminarmente, nulidade por cerceamento do direito de produção da prova, pois a sentença foi proferida sem oitiva de testemunhas.
No mérito sustentou que Triagem Neonatal está prevista no artigo 10, inciso III, da Lei nº 8.069/90, regulamentado pela Portaria nº 822/2001 do Ministério da Saúde. Afirmou que, com avanços científicos e tecnológicos, é possível diagnóstico de outras doenças (Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Congênita, Deficiência de G6PD e Galactosemia), em procedimento chamado "Teste do Pezinho Ampliado", não previsto em Portaria do Ministério da Saúde. Afirmou que a rede particular de saúde já adota procedimento mais abrangente para diagnóstico de doenças em Triagem Neonatal e que referido procedimento não é realizado na rede pública de saúde no Estado de São Paulo. Sustentou que, transcorridos mais de 10 anos da edição última Portaria, há omissão do Estado em adotar medidas para diagnóstico adequado de recém-nascido. Investimento no diagnóstico evita gastos futuros em programas de tratamento integral de doenças. Por fim, sustentou que o Poder Judiciário pode determinar a realização de políticas públicas, buscando garantir o mínimo existencial.
A União e o Estado de São Paulo ofereceram contrarrazões ao recurso, respectivamente, a fls. 545/581 e 586/597, ambos requerendo que seja negado provimento ao recurso de apelação, mantendo a sentença em sua integralidade.
O Ministério Público Federal em seu parecer nesta Instância (fls. 606/618) opinou pelo provimento do recurso de apelação, sustentando que o pedido formulado na inicial deve ser julgado procedente.
É o relatório.
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VOTO
De início, impende frisar que a Lei da Ação Civil Pública e a Lei da Ação Popular integram o microssistema processual coletivo. Portanto, apesar de a Lei nº 7347/85 não ter expressa previsão acerca da remessa oficial, aplica-se nos casos de improcedência da ação, por analogia, o artigo 19, da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular), uma vez que referida norma deve ser aplicada em todo o microssistema naquilo que for útil aos interesses da sociedade. Nesse sentido é o entendimento sedimentado do E. Superior Tribunal de Justiça.
Desse modo, dou por interposta a remessa oficial, submetendo a r. sentença ao reexame necessário.
Assim, passo a analisar as alegações invocadas no apelo, bem como a remessa oficial.
Destaque-se que o Ministério Público Federal, ora apelante, requer a modificação da sentença proferida pelo juiz a quo que julgou improcedente os pedidos formulados em ação civil pública.
Preliminarmente, sustenta a nulidade por cerceamento do direito de produção da prova, pois a sentença foi proferida sem oitiva de testemunhas. No mérito, requer a inclusão na triagem neonatal da rede pública de saúde no estado de São Paulo de diagnóstico de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como o atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas.
Afirma que devido aos avanços científicos e tecnológicos já é possível diagnosticar essas doenças através do "Teste do Pezinho Ampliado". Por fim, sustenta que o Poder judiciário pode determinar a realização de políticas públicas, buscando garantir o mínimo existencial.
Passo a examinar a preliminar de nulidade.
Da inexistência de nulidade
Primeiramente, não merece acolhimento a alegação do apelante de nulidade por violação ao direito de produção de prova.
Analisando-se os autos, principalmente o pedido do autor e as provas documentais existentes, é possível constatar que a produção de prova testemunhal não era necessária para o julgamento da lide, uma vez que os documentos acostados aos autos são suficientes para análise da demanda.
Como bem afirmado pelo r. Juízo a quo, a questão a ser resolvida trata-se de questão eminentemente de direito, referente ao direito de realização no serviço público de saúde no estado de São Paulo de "triagem neonatal ampliada", possibilitando o diagnóstico precoce de diversas doenças.
O artigo 130, do Código de Processo Civil de 1973, conferia ao juiz a possibilidade de avaliar a necessidade da prova, e de indeferir as diligências inúteis ou meramente protelatórias, de modo que, caso a prova testemunhal fosse efetivamente necessária para o deslinde da questão, poderia até o Magistrado ter ordenado sua realização, independentemente de requerimento.
Na hipótese, inexiste o apontado cerceamento do direito de produção de provas, porquanto a parte recorrente reuniu todos os documentos necessários para o julgamento da demanda.
Portanto, afasto a preliminar de nulidade e passo ao exame do mérito.
Do Mérito
Inicialmente, cumpre destacar que a Triagem Neonatal é prevista no artigo 10, inciso III, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Essa foi regulamentada pela Portaria nº 822/2001, do Ministério da Saúde, a qual estabeleceu a obrigatoriedade de exames aptos a detectar quatro grupos de doenças: Fenilcetonúria, Hipotireoidismo Congênito, Doenças Falciformes e outras Hemoglobinopatias e Fibrose Cística, não prevendo exames para o diagnóstico de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Adrenal Congênita, Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia.
Cabe mencionar que após o ajuizamento desta Ação Civil Pública, transcorridos mais de dez anos da Portaria supramencionada, foi publicada a Portaria do Ministério da Saúde nº 2829/2012, a qual incluiu, na triagem neonatal, a realização de exames para o diagnóstico da Hiperplasia Adrenal Congênita e a Deficiência de Biotinidase.
No entanto, mesmo após o grande lapso temporal e depois de já evidenciada a evolução da medicina referente ao diagnóstico de diversas doenças em Triagem Neonatal, não foi incluída na Portaria a realização dos exames para o diagnóstico da Toxoplasmose Adrenal Congênita, Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia.
Insta frisar, inclusive ressaltando a importância e a essencialidade da triagem neonatal na modalidade ampliada, que, através de pesquisa na Internet, foi possível ter conhecimento da existência de um projeto de Lei nº 1303/2015, tramitando na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que trata da realização do Teste de Triagem Neonatal, na modalidade ampliada, em Espectromia de Massa em Tandem (EIM), em crianças nascidas nos hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde da rede pública do Estado de São Paulo. Todavia, o projeto está pronto para ordem do dia desde março de 2016, encontrando-se paralisado nesse estágio.
Ressalte-se que a Triagem Neonatal Ampliada não se refere à inovação da Medicina, pois a rede particular já realiza essa triagem há muito tempo, já existindo aplicação do referido teste há mais de uma década, e alguns Estados, como Goiás e Santa Catarina, já realizam os exames de referidas doenças na Triagem Neonatal em rede pública (fls. 64/66 e 110/113).
Mesmo assim depois de já reconhecida a eficácia, importância e essencialidade da Triagem Neonatal Ampliada, o Estado de São Paulo ainda não realiza a Triagem Neonatal de forma devida, o que evidencia a omissão do Estado, afrontando a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao não adotar medidas para o diagnóstico adequado dos recém-nascidos, em clara violação, por isso, à dignidade da pessoa humana.
Destaque-se que a Toxoplasmose é uma infecção produzida por um parasita intracelular que pode causar doenças graves e lesões neurológicas irreversíveis no feto (fls. 269). A Toxoplasmose Congênita compromete frequentemente o Sistema Nervoso Central e o olho, podendo ocorrer hidrocefalia (fls. 270). Há protocolo clínico para tratamento da doença (fl. 271), sendo que o tratamento tardio pode causar sequelas irreversíveis, especialmente oculares e para o Sistema Nervoso Central (fl. 272).
A deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) interfere na manutenção da estabilidade dos eritrócitos. A deficiência dessa enzima favorece a ruptura da membrana dos glóbulos vermelhos, levando à anemia hemolítica (fl. 139). O tratamento da referida anemia é importante, na medida em que possibilita o controle de crises agudas, visando assegurar quantidade suficiente de oxigênio para os tecidos e glóbulos vermelhos (fls. 140).
A Galactosemia é "um erro inato do metabolismo dos carboidratos relacionados à deficiência enzimática na rota da metabolização da galactose, que passa a ter níveis circulantes elevados, tóxicos principalmente para o fígado, cérebro e olhos" (fl. 112). As manifestações dessa doença iniciam na primeira ou segunda semana de vida e o diagnóstico prévio é relevante, pois a falta de tratamento precoce pode ocasionar óbito (fl. 112).
Os documentos juntados aos autos mostram a importância do diagnóstico precoce em triagem neonatal das referidas doenças, cujo exame para a constatação não possui caráter experimental, eis que já possui eficácia comprovada. Esse diagnóstico pela triagem neonatal pode reduzir o número de hospitalizações e óbitos, assim como as inúmeras consequências das doenças.
Portanto, a realização da triagem neonatal ampliada visa, sem sombra de dúvida, à efetivação do direito à saúde e à preservação do direito à vida digna.
Cabe enfatizar que a Constituição Federal de 1988 inovou na proteção dos direitos sociais, entre eles o direito à saúde, estabelecendo-o como um direito de todos.
Vale dizer, o direito público subjetivo à saúde traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, cabendo ao Poder Público (federal, estadual ou municipal) zelar pela sua integridade, a quem incumbe formular e implementar políticas sociais e econômicas que visem a garantir a plena consecução dos objetivos na Constituição da República.
A Carta de 1988 estabeleceu em seu artigo 6º o direito a saúde como um direito social fundamental, bem como estabeleceu, ainda, em seu artigo 196:
Portanto, o direito à saúde, além de qualificar-se como um direito fundamental inerente a todas as pessoas, representa consequência indissociável do direito à vida. Desse modo, o Poder Público não pode mostrar-se indiferente à efetivação do direito à saúde, principalmente quando sua inércia envolve crianças, sob pena de incorrer em censurável comportamento inconstitucional.
A Doutrina e a Jurisprudência brasileiras muito se dedicam acerca da interpretação do artigo 196 da Constituição Federal, existindo diversos entendimentos acerca do tema. Referidos posicionamentos buscam definir em que medida o direito à saúde se traduz como um direito a prestações positivas do estado, passível de ser tutelado pelo Poder Judiciário.
Ainda referente ao direito à saúde, especificamente no que concerne aos direitos das crianças, a Norma Fundamental também erigiu em seu artigo 227, o direito à saúde com absoluta prioridade, do seguinte modo:
Cabe, bem assim, destacar o princípio do melhor interesse do menor previsto no artigo 4º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do adolescente), o qual estabelece:
Logo, diante da ênfase dada à saúde das crianças pelo poder constituinte originário e pelos legisladores, não há dúvidas que deve ser assegurada a plena efetivação desse direito.
Pertinente destacar, ainda, que a Constituição, ao dispor sobre o direito à saúde, não se limitou aos aspectos de natureza curativa, porquanto estabelece que as políticas públicas devam ser amplas no sentido de garantir tratamentos curativos e a profilaxia de doenças.
Vale frisar que a tutela da saúde possui diversas interconexões com a proteção de outros direitos fundamentais, também objeto de proteção constitucional, como aqueles correspondentes à vida, ao trabalho, à moradia, à proteção da família, das crianças e adolescentes, aos idosos, reforçando a tese de inter-relação entre eles.
Saliente-se, outrossim, que os direitos sociais fundamentais estabelecidos na Constituição Federal precisam ser plenamente efetivados através das políticas públicas, zelando o Poder Público pelo bem estar geral da população.
Como bem destacado pelo doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet:
As divergências acerca da efetivação desse direito decorrem principalmente de sua natureza prestacional e da aplicação do que se conceituou como reserva do possível e mínimo existencial.
Ao analisar a demanda, fica claro que, ao contrário do afirmado pelo MM. Juiz Federal a quo, não é possível aplicar indiscriminadamente a teoria da reserva do possível à execução de políticas públicas referentes ao direito à saúde, uma vez que esse faz parte do mínimo existencial.
Cabe igualmente esclarecer que a teoria da reserva do possível, de origem alemã, foi aplicada inicialmente em caso paradigmático referente ao direito de acesso à faculdade de medicina como meio de exercer o direito à liberdade profissional, justificando-se a sua impossibilidade no fundamento de que só se pode exigir do Estado aquilo que for viável dentro dos limites da possibilidade e razoabilidade. Assim, não seria razoável exigir do estado o livre acesso à faculdade de medicina para quem quisesse frequentá-la, pois não seria possível, dada as condições da Alemanha, assegurar o custeio de vagas para todos, de forma ilimitada. Não haveria como universalizar o direito a tanto. Com isso, a Justiça Alemã tratou a reserva do possível como "o que razoavelmente se pode esperar do estado, diante das condições da sociedade".
Todavia, no Brasil essa teoria foi importada de forma deturpada, sendo utilizada de forma desmedida pelo Estado como fundamento para a não efetivação de políticas públicas.
Utilizando o argumento da falta de condições orçamentárias como obstáculo para efetivação de direitos, principalmente sociais, sustentando que caso fosse priorizado determinado direito social seria retirado dinheiro de outras áreas prioritárias, o Estado Brasileiro atua em detrimento de toda a coletividade.
Não se pode importar preceitos do direito comparado sem atentar para o bem estar social que o Estado brasileiro deve assegurar. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de propiciar existência digna. Por esse motivo, o cidadão não pode exigir do Estado prestações supérfluas, já que isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica.
Porém, a situação é completamente diferente no Brasil, onde ainda não são asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna. Nesse caso, qualquer demanda que objetive fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarada como sem razão (supérflua), pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro.
Nesse sentido, Andreas Krell, doutrinador Alemão, critica a utilização da teoria da reserva do possível no Brasil:
É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto àquele do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir.
Porém, aplicando o princípio da reserva do possível de forma modificada, é utilizada por parte da Doutrina Brasileira, e pelo Estado, a tese da decomposição da reserva do possível em: reserva do possível fática e reserva do possível jurídica.
A reserva do possível fática está relacionada à existência de recursos para a realização de direito material. Assim, o problema da reserva do possível fática não é um problema ético e nem jurídico formal, mas sim um problema de ter ou não recursos.
No caso em tela, analisando a razoabilidade e a existência de recursos, percebe-se que é um dever do Estado conferir esse direito a todas as crianças ao nascerem, não tendo o Estado demonstrado de forma clara a inexistência de recursos, ou que os recursos existentes já estavam alocados devidamente para outros direitos fundamentais essenciais.
Por óbvio, a alegação de falta de recursos financeiros, destituída de comprovação, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao ente público na efetivação dos direitos sociais. Esses direitos devem ser respeitados como prioridade absoluta pelo Estado, e não podem ficar relegados indefinidamente ao desamparo e ao descaso público.
A reserva do possível jurídica, por sua vez, refere-se à possibilidade de que os recursos sejam gastos sem infringência do ordenamento jurídico. No caso do Brasil muitos utilizam o argumento da reserva do possível para a não efetivação de um direito social, afirmando que não haveria autorização na lei orçamentaria para que o gasto seja realizado.
No entanto, sujeitar um direito fundamental social à reserva do possível jurídica, à previsão do gasto no orçamento, seria subordinar o direito fundamental, que é contramajoritário, à decisão da maioria política no parlamento. Seria incompatível com a própria lógica da supremacia da constituição e da fortificação dos Direitos Fundamentais.
Cabe ainda destacar que o entendimento da reserva de possível jurídica não é compatível com a compreensão contemporânea de democracia, posto que a democracia não é apenas o governo da maioria, mas depende da coexistência de alguns pressupostos, dentre os quais estaria o acesso a condições materiais mínimas, que por sua vez são asseguradas por direitos sociais. Então, pelo menos em alguma extensão não faz sentido condicionar a tutela dos direitos sociais ao orçamento, por que esse condicionamento se basearia na democracia e a garantia dos direitos também visaria a assegurar a democracia.
Dessa maneira, no que concerne ao mínimo existencial, não faz sentido condicionar a efetivação de direitos sociais à previsão orçamentária.
É certo que existe um espaço para deliberação democrática pelos administradores, mas esse espaço não é infinito, devendo esses atuarem com razoabilidade, principalmente, priorizando a efetivação do mínimo existencial, cabendo ao Judiciário fazer o controle judicial dessas escolhas, principalmente quando implicam na não efetivação de direitos essenciais.
Não se pode admitir a invocação da teoria da reserva do possível, como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias.
Como bem defendido por Ana Paulo Barcellos e Ricardo Lobo Torres, os direitos fundamentais relacionados ao mínimo existencial não podem se subordinar à discricionariedade do administrador, senão vejamos:
Portanto, ficou evidente que o mínimo existencial está relacionado à garantia de condições materiais básicas de vida. Referida garantia é necessária em si, além de ser instrumento para a realização da democracia e da autonomia.
Ressalte-se que o direito a saúde é um direito fundamental incluso no conceito de mínimo existencial. O mínimo existencial está no núcleo da dignidade da pessoa humana, a qual só se efetiva se o ser humano possuir bens mínimos para uma sobrevivência digna. Assim, o mínimo existencial se faz necessário para a efetiva dignidade da pessoa humana, em torno da qual gravitam os direitos fundamentais.
A pretensão em exame está relacionada a necessidades humanas básicas e os apelados em nenhum momento trouxeram argumentos suficientes para a não concessão da tutela pleiteada.
No caso em tela, a tutela pretendida jamais representa um direito de apenas parte da população em detrimento de outros, mas um direito a saúde e vida digna de todos aqueles que nascem no estado de São Paulo todos os dias. Através dos exames realizados na "Triagem Neonatal Ampliada" é possível um melhor planejamento da vida e tratamento, garantindo a dignidade da pessoa humana.
Deve-se destacar que no que concerne à aplicação dos direitos fundamentais vigora a proibição da proteção deficiente, ou seja, o dever do estado de efetivar de forma devida.
Assim, quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais. Não adianta um direito ser garantido pela Constituição se não fosse possível garantir a efetivação desse direito.
No que se refere ao direito à saúde, a atuação do Poder Judiciário encontra fundamento por ser esse direito indispensável à dignidade da pessoa humana, integrante do mínimo existencial.
Alguns alegam que a intervenção do Poder Judiciário, determinando a implementação de políticas públicas diante da omissão do Estado fere a separação dos poderes.
Porém, esse argumento não se sustenta, pois não há ofensa ao princípio da separação dos poderes. Isso porque a concretização dos direitos sociais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão "controlador" da atividade administrativa.
Como afirmou o MM. Juiz a quo é certo que a decisão política caberá sempre ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo. Contudo, quando os direitos fundamentais não estiverem sendo tutelados da forma devida, não se pode permitir que a efetivação destes direitos fiquem submetidos à mera discricionariedade do administrador público, cabendo assim a intervenção do Poder Judiciário determinando a implementação de políticas públicas.
Deve-se esclarecer que nenhum poder é ilimitado, e todos devem ser suscetíveis de controle, já que todo aquele que exerce poder de forma ilimitada tende a abusar dele, violando deveres estabelecidos constitucionalmente.
Seria distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.
Impende ressaltar que o C. Supremo Tribunal Federal e o E. Superior Tribunal de Justiça reconhecem que, em casos excepcionais, é possível o controle judicial de políticas públicas, não configurando isso violação a separação de poderes, sendo, pelo contrário, essencial ao controle judicial das escolhas dos administradores, até mesmo para ser determinada a implementação de políticas públicas já resguardadas na Constituição.
Nesse sentido destaco julgados do C. Supremo Tribunal Federal e do E. Superior Tribunal de Justiça:
Diante do exposto, fica evidente que o Poder Judiciário não pode definir políticas públicas, mas pode determinar a implementação de políticas públicas já fundamentadas na Constituição Federal para resguardar direitos fundamentais essenciais diante da omissão do poder legislativo ou do executivo.
De fato, no caso em análise, resta claro que o direito à saúde, principalmente das crianças recém-nascidas, não está sendo devidamente resguardado, sendo imprescindível a intervenção judicial.
Impossibilitar a intervenção, e afirmar que o estabelecido no artigo 196 da CF/88 seria apenas uma diretriz a ser seguida pelo administrador, seria o equivalente a negar a força normativa da Constituição. A norma não pode ser apenas uma promessa. O dispositivo constitucional é claro ao estabelecer o dever fundamental de prestação da saúde por parte do Estado.
Recorde-se que a Constituição Federal estabelece a competência comum dos entes da federação para cuidar da saúde no artigo 23, inciso II, existindo obrigação solidária e subsidiária entre eles. Isso ressalta a importância da tutela a esse direito e a responsabilidade solidária da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios na efetivação do direito a saúde, sendo este o entendimento sedimentado pelos Tribunais Superiores (Precedentes E. Supremo Tribunal Federal: RE 195192, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 22/02/2000, DJ 31-03-2000; RE 855178 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 05/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015; RE 933857 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 16/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-048 DIVULG 14-03-2016 PUBLIC 15-03-2016).
Ainda no que diz respeito à tutela do direito à saúde, é incontestável que além da necessidade de se distribuírem recursos naturalmente por meio de critérios distributivos, a própria evolução da medicina impõe um viés programático do direito a saúde, posto que sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico, devendo o Estado acompanhar essa evolução. A burocracia administrativa não pode justificar um atraso de mais de uma década, prejudicando aqueles que dependem da rede pública.
E mesmo no que concerne às medidas preventivas na área da saúde, estas devem ser prioritárias, conforme estabelece o artigo 198, inciso II, da Constituição Federal. Destaque-se que o acesso à saúde deve ser promovido de maneira universal e igualitária, sem privilégios ou preconceitos de qualquer espécie, sendo essencial a efetivação desse direito para resguardar uma vida digna.
A situação em análise revela clara afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial e à garantia constitucional de que o Poder Público deverá respeitar o direito a saúde e ao desenvolvimento sadio da criança, conforme o princípio da máxima proteção da criança e do adolescente.
Por conseguinte, tratando-se de direito essencial, não existe empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, haja vista que não houve comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da União e do Estado.
Nesses casos, vale dizer, não é possível ao Poder Público invocar a discricionariedade administrativa de maneira a se escusar em adotar a mencionada política pública, porquanto não lhe resta avaliar a oportunidade e conveniência a tanto, antes deve implementá-la norteado pelo princípio da eficiência, introduzido pela Emenda Constitucional nº 19.
Destaque-se que de nenhuma forma o judiciário quer se antecipar aos Gestores do Sistema Único de Saúde, porém de leva-los a adotar as medidas pertinentes diante de sua morosidade. É dever do Judiciário nesse caso zelar pela efetivação dos direitos.
Ressalte-se, bem assim, que a ampliação do exame de triagem neonatal poderá constituir uma contribuição expressiva para o progresso da Saúde Pública, sem representar, no entanto, um acréscimo relevante nas despesas do setor. Ao contrário, os benefícios proporcionados pelo diagnóstico e tratamento precoces das moléstias possibilitará uma racionalização dos gastos públicos com a assistência médico-hospitalar e com o tratamento integral da doença.
Logo, impõe-se a reforma da sentença guerreada, para determinar que a União e o Estado de São Paulo, solidariamente, incluam na Triagem Neonatal, realizada na rede pública no Estado de São Paulo, exames para o diagnóstico de Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas.
Assim, fixo o prazo de 120 (cento e vinte dias) para o cumprimento da obrigação, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais), para cada um daqueles réus, ora apelados, conforme previsto no artigo 11, da Lei nº 7437/85 e artigo 497, do Novo Código de Processo Civil de 2015.
Quanto ao pagamento de despesas e custas processuais, deixo de fixar condenação aos apelados, uma vez que deve ser aplicado ao processo o art. 18 da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), o qual não se limita à parte autora.
Cabe destacar o que estabelece o artigo 18 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85):
Ressalte-se que a Ação Civil Pública destina-se a tutelar interesses superiores da comunidade. Nesse aspecto, também, se assemelha à ação popular (CF, art. 5º, LXXIII e Lei 4.717/65).
O regime diferenciado quanto à sucumbência das ações coletivas tem fundamento constitucional e objetiva incentivar, ou ao menos não desestimular, o uso das demandas coletivas de defesa do interesse público e social, uma vez que o pagamento dos honorários poderia ser um obstáculo adicional à propositura destas ações.
Logo, por força das normas constitucionais (art. 5º, LXXIII e LXXVII) e do art. 18 da Lei 7.347/85, aplica-se a isenção das verbas sucumbenciais na Ação Civil Pública.
Nesse contexto, cumpre ressaltar que a 1ª Seção do E. Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido do descabimento da condenação dos réus ao pagamento de honorários de sucumbência no caso de ação civil pública julgada procedente.
Por critério de simetria, obsta-se que a parte autora da ação civil pública, cuja condenação em honorários advocatícios se restringe à litigância de má-fé, se beneficie com a percepção de verba honorária quando for vencedora na demanda.
Nesse sentido, transcrevo o seguinte aresto:
Assim, não é cabível a condenação dos apelados em custas processuais e honorários advocatícios.
Ante o exposto, afasto a preliminar, e dou provimento à remessa oficial, tida por interposta, e ao recurso de apelação para condenar, solidariamente, a União e o Estado de São Paulo a implantar serviço de realização de Triagem Neonatal ampliada na rede pública de saúde no estado de São Paulo, acrescentando na Triagem exames para o diagnóstico de Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como fornecer atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas, devendo determinada política pública ser incluída nos planos orçamentários dos entes políticos. Fixo o prazo de 120 dias para o cumprimento da obrigação, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais).
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