Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 20/01/2017
APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010114-89.2012.4.03.6100/SP
2012.61.00.010114-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal MARCELO SARAIVA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : ADRIANA SCORDAMAGLIA e outro(a)
APELADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 LUIZ CARLOS DE FREITAS
APELADO(A) : Estado de Sao Paulo
ADVOGADO : SP088631 LUIZ DUARTE DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00101148920124036100 8 Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. REMESSA OFICIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE SEPARAÇÃO DOS PODERES. DIREITO À SAÚDE. ARTIGOS 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROTEÇÃO À SAÚDE DA CRIANÇA. ARTIGO 4º, DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DETEMINAÇÃO DE TRIAGEM NEONATAL AMPLIADA NA REDE PÚBLICA DE SAÚDE. INCLUSÃO DE EXAMES PARA DIAGNÓTICO DE DOENÇAS. DIREITO À SAÚDE. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DE TODOS OS ENTES DO PODER PÚBLICO. AFASTADA A RESERVA DO POSSÍVEL DIANTE DA EFETIVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. PRELIMINAR DE NULIDADE AFASTADA. REMESSA OFICIAL E APELAÇÃO PROVIDAS.
1 - A Lei da Ação Civil Pública e a Lei da Ação Popular integram o microssistema processual coletivo. Portanto, apesar de a Lei nº 7347/85 não ter expressa previsão acerca da remessa oficial, aplica-se nos casos de improcedência da ação, por analogia, o artigo 19, da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular), uma vez que referida norma deve ser aplicada em todo o microssistema naquilo que for útil aos interesses da sociedade. Nesse sentido é o entendimento sedimentado do E. Superior Tribunal de Justiça. Assim, a r. sentença de improcedência deve ser submetida ao reexame necessário.
2 - O Direito à Saúde encontra-se devidamente previsto como um direito fundamental de na Constituição Federal de 1988, cabendo destacar os artigos 6º, caput, e 196. Quanto ao direito a saúde da criança, o artigo 227 da Constituição Federal, estabelece que é dever do Estado assegura-lo com absoluta prioridade.
3 - O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90) estabelece o princípio do melhor interesse do menor, determinando que é dever do poder público assegurar com absoluta prioridade o direito à saúde da criança.
4 - A Triagem Neonatal é prevista no artigo 10, inciso III, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), sendo regulamentada pela Portaria nº 822/2001, do Ministério da Saúde, a qual estabeleceu a obrigatoriedade de exames aptos a detectar quatro grupos de doenças: Fenilcetonúria, Hipotireoidismo Congênito, Doenças Falciformes e outras Hemoglobinopatias e Fibrose Cística, não prevendo exames para o diagnóstico de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Adrenal Congenita, Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia
5 - Transcorridos mais de dez anos da Portaria supramencionada, foi publicada a Portaria do Ministério da Saúde nº 2829/2012, a qual incluiu na triagem neonatal exames para diagnóstico da Hiperplasia Adrenal Congênita e a Deficiência de Biotinidase. No entanto, mesmo após o grande lapso temporal e depois de já evidenciada a evolução da medicina referente ao diagnóstico de diversas doenças em Triagem Neonatal, não foi incluído na portaria exames para o diagnóstico da Toxoplasmose Adrenal Congênita, Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia.
6 - A Triagem Neonatal Ampliada não se refere à inovação da medicina, pois a rede particular já realiza essa triagem há muito tempo, já existindo aplicação do referido teste há mais de uma década, e alguns Estados como Goiás e Santa Catarina, já realizam exames de referidas doenças na Triagem Neonatal em rede pública (fls. 64/66 e 110/113).
7 - Cabe destacar que mesmo depois de já reconhecida a eficácia, importância e essencialidade da Triagem Neonatal Ampliada o Estado de São Paulo ainda não realiza a Triagem Neonatal de forma devida, o que evidencia a omissão do Estado, afrontando a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao não adotar medidas para o diagnóstico adequado dos recém-nascidos, em flagrante violação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Assim, impõe-se a atuação do Poder Judiciário.
8 - Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.
9 - A reserva do possível não pode ser utilizada como um escudo para a não efetivação das políticas públicas de forma devida, descumprindo preceitos normativos da Constituição Federal.
10 - Tratando-se a saúde de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.
11 - O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça possuem jurisprudência sedimentada no sentido que é possível o controle judicial de políticas públicas, não configurando isso violação a separação de poderes, sendo pelo contrário essencial o controle judicial das escolhas dos administradores, podendo determinar a implementação de políticas públicas já resguardadas na Constituição.
12 - Impõe-se a reforma do julgado para determinar que, solidariamente, a União e o Estado de São Paulo, no prazo de 120 (cento e vinte dias), ampliem a triagem neonatal realizada na rede pública de saúde no estado de São Paulo, para acrescentar exames para o diagnóstico da Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, garantindo atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para as crianças diagnosticadas, devendo determinada obrigação ser incluída nos planos orçamentários dos entes políticos, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais).
13 - Não cabimento de condenação em custas e honorários advocatícios, uma vez que, conforme precedentes do E. Superior Tribunal de Justiça (AgRg no AREsp 21.466/RJ), não cabe condenação do réu ao pagamento de honorários de sucumbência no caso de ação civil pública julgada procedente.
14 - Preliminar de nulidade afastada. Remessa oficial, tida por interposta, e apelação providas.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento à remessa oficial, tida por interposta, e ao recurso de apelação para determinar que, solidariamente, a União e o Estado de São Paulo, no prazo de 120 (cento e vinte dias), implantem o serviço de realização de Triagem Neonatal Ampliada na rede pública de saúde no estado de São Paulo, acrescentando exames para diagnosticar a Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como garantam atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para as crianças diagnosticadas, devendo determinada política pública ser incluída nos planos orçamentários dos entes federados, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais), nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 07 de dezembro de 2016.
MARCELO SARAIVA
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): MARCELO MESQUITA SARAIVA:10071
Nº de Série do Certificado: 7E6C6E9BBD25990F
Data e Hora: 13/12/2016 19:31:00



APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010114-89.2012.4.03.6100/SP
2012.61.00.010114-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal MARCELO SARAIVA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : ADRIANA SCORDAMAGLIA e outro(a)
APELADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 LUIZ CARLOS DE FREITAS
APELADO(A) : Estado de Sao Paulo
ADVOGADO : SP088631 LUIZ DUARTE DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00101148920124036100 8 Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

Trata-se de remessa oficial e recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal, em face de sentença (fls. 528/531) que julgou improcedente a Ação Civil Pública promovida em face da União e do Estado de São Paulo, buscando inclusão na Triagem Neonatal da rede pública de saúde no estado de São Paulo de diagnósticos de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose - 6 - Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas (fls.02/42).

Em 05 de junho de 2012, o Ministério Público Federal promoveu ação civil pública, com pedido de tutela antecipada, em face da União e do Estado de São Paulo, buscando inclusão, em 90 dias, da Triagem Neonatal Ampliada na rede pública de saúde no Estado de São Paulo.

Em abril de 2010, o ministério Público Federal, em São Paulo, instaurou inquérito Civil para apurar se a rede pública de saúde do Estado oferecia Triagem Neonatal ampliada. O procedimento identifica maior número de doenças (fls.43/45).

Na petição inicial, o autor afirmou que a rede particular e Estados de Góias e Santa Catarina já oferecem triagem ampliada, mas o Estado de São Paulo ainda não implantou procedimento. Sustentou que omissão da União e do Estado em aumentar diagnóstico de doenças enfrenta o Estatuto da Criança e do Adolescente, e coloca em risco o direito à vida, pois o diagnóstico precoce pela triagem neonatal pode reduzir o número de hospitalizações e óbitos, assim como os sintomas das doenças. Assim, ressaltou que o Estado tem o dever de promover o direito a saúde, previsto na constituição.

O pedido de antecipação de tutela foi indeferido (fls. 363/365v).

Após regular processamento do feito foi proferida sentença de improcedência dos pedidos contidos na inicial.

Na decisão afirmou-se que serviços e benefícios da Seguridade Social não podem ser criados ou ampliados sem respectiva fonte de custeio (artigo 195, §5º, da Constituição), Poder Judiciário não pode interferir na política orçamentária do Estado (fls. 528/531). Por fim, afirmou:


"a interpretação e conciliação desses conceitos vagos previstos na constituição, em tema de políticas públicas deve considera-la em sua totalidade, e não às tiras, aos pedaços. A decisão política caberá sempre a Poder Legislativo e ao Poder Executivo. Estes, pelas regras democráticas, têm responsabilidade política pela escolha. Reserva-se ao Poder Judiciário, depois da decisão política, de previsão em lei de política pública e do estabelecimento de sua fonte de custeio total, o controle de legalidade na implantação e execução dessa política". (fls. 530v)

O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação a fls. 534/541, sustentando, preliminarmente, nulidade por cerceamento do direito de produção da prova, pois a sentença foi proferida sem oitiva de testemunhas.

No mérito sustentou que Triagem Neonatal está prevista no artigo 10, inciso III, da Lei nº 8.069/90, regulamentado pela Portaria nº 822/2001 do Ministério da Saúde. Afirmou que, com avanços científicos e tecnológicos, é possível diagnóstico de outras doenças (Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Congênita, Deficiência de G6PD e Galactosemia), em procedimento chamado "Teste do Pezinho Ampliado", não previsto em Portaria do Ministério da Saúde. Afirmou que a rede particular de saúde já adota procedimento mais abrangente para diagnóstico de doenças em Triagem Neonatal e que referido procedimento não é realizado na rede pública de saúde no Estado de São Paulo. Sustentou que, transcorridos mais de 10 anos da edição última Portaria, há omissão do Estado em adotar medidas para diagnóstico adequado de recém-nascido. Investimento no diagnóstico evita gastos futuros em programas de tratamento integral de doenças. Por fim, sustentou que o Poder Judiciário pode determinar a realização de políticas públicas, buscando garantir o mínimo existencial.

A União e o Estado de São Paulo ofereceram contrarrazões ao recurso, respectivamente, a fls. 545/581 e 586/597, ambos requerendo que seja negado provimento ao recurso de apelação, mantendo a sentença em sua integralidade.

O Ministério Público Federal em seu parecer nesta Instância (fls. 606/618) opinou pelo provimento do recurso de apelação, sustentando que o pedido formulado na inicial deve ser julgado procedente.

É o relatório.



MARCELO SARAIVA
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): MARCELO MESQUITA SARAIVA:10071
Nº de Série do Certificado: 7E6C6E9BBD25990F
Data e Hora: 13/12/2016 19:30:56



APELAÇÃO CÍVEL Nº 0010114-89.2012.4.03.6100/SP
2012.61.00.010114-2/SP
RELATOR : Desembargador Federal MARCELO SARAIVA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : ADRIANA SCORDAMAGLIA e outro(a)
APELADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 LUIZ CARLOS DE FREITAS
APELADO(A) : Estado de Sao Paulo
ADVOGADO : SP088631 LUIZ DUARTE DE OLIVEIRA (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00101148920124036100 8 Vr SAO PAULO/SP

VOTO

De início, impende frisar que a Lei da Ação Civil Pública e a Lei da Ação Popular integram o microssistema processual coletivo. Portanto, apesar de a Lei nº 7347/85 não ter expressa previsão acerca da remessa oficial, aplica-se nos casos de improcedência da ação, por analogia, o artigo 19, da Lei nº 4.717/65 (Lei da Ação Popular), uma vez que referida norma deve ser aplicada em todo o microssistema naquilo que for útil aos interesses da sociedade. Nesse sentido é o entendimento sedimentado do E. Superior Tribunal de Justiça.

Desse modo, dou por interposta a remessa oficial, submetendo a r. sentença ao reexame necessário.

Assim, passo a analisar as alegações invocadas no apelo, bem como a remessa oficial.

Destaque-se que o Ministério Público Federal, ora apelante, requer a modificação da sentença proferida pelo juiz a quo que julgou improcedente os pedidos formulados em ação civil pública.

Preliminarmente, sustenta a nulidade por cerceamento do direito de produção da prova, pois a sentença foi proferida sem oitiva de testemunhas. No mérito, requer a inclusão na triagem neonatal da rede pública de saúde no estado de São Paulo de diagnóstico de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como o atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas.

Afirma que devido aos avanços científicos e tecnológicos já é possível diagnosticar essas doenças através do "Teste do Pezinho Ampliado". Por fim, sustenta que o Poder judiciário pode determinar a realização de políticas públicas, buscando garantir o mínimo existencial.

Passo a examinar a preliminar de nulidade.


Da inexistência de nulidade


Primeiramente, não merece acolhimento a alegação do apelante de nulidade por violação ao direito de produção de prova.

Analisando-se os autos, principalmente o pedido do autor e as provas documentais existentes, é possível constatar que a produção de prova testemunhal não era necessária para o julgamento da lide, uma vez que os documentos acostados aos autos são suficientes para análise da demanda.

Como bem afirmado pelo r. Juízo a quo, a questão a ser resolvida trata-se de questão eminentemente de direito, referente ao direito de realização no serviço público de saúde no estado de São Paulo de "triagem neonatal ampliada", possibilitando o diagnóstico precoce de diversas doenças.

O artigo 130, do Código de Processo Civil de 1973, conferia ao juiz a possibilidade de avaliar a necessidade da prova, e de indeferir as diligências inúteis ou meramente protelatórias, de modo que, caso a prova testemunhal fosse efetivamente necessária para o deslinde da questão, poderia até o Magistrado ter ordenado sua realização, independentemente de requerimento.

Na hipótese, inexiste o apontado cerceamento do direito de produção de provas, porquanto a parte recorrente reuniu todos os documentos necessários para o julgamento da demanda.

Portanto, afasto a preliminar de nulidade e passo ao exame do mérito.


Do Mérito


Inicialmente, cumpre destacar que a Triagem Neonatal é prevista no artigo 10, inciso III, da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Essa foi regulamentada pela Portaria nº 822/2001, do Ministério da Saúde, a qual estabeleceu a obrigatoriedade de exames aptos a detectar quatro grupos de doenças: Fenilcetonúria, Hipotireoidismo Congênito, Doenças Falciformes e outras Hemoglobinopatias e Fibrose Cística, não prevendo exames para o diagnóstico de Hiperplasia Adrenal Congênita, Deficiência de Biotinidase, Toxoplasmose Adrenal Congênita, Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia.

Cabe mencionar que após o ajuizamento desta Ação Civil Pública, transcorridos mais de dez anos da Portaria supramencionada, foi publicada a Portaria do Ministério da Saúde nº 2829/2012, a qual incluiu, na triagem neonatal, a realização de exames para o diagnóstico da Hiperplasia Adrenal Congênita e a Deficiência de Biotinidase.

No entanto, mesmo após o grande lapso temporal e depois de já evidenciada a evolução da medicina referente ao diagnóstico de diversas doenças em Triagem Neonatal, não foi incluída na Portaria a realização dos exames para o diagnóstico da Toxoplasmose Adrenal Congênita, Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia.

Insta frisar, inclusive ressaltando a importância e a essencialidade da triagem neonatal na modalidade ampliada, que, através de pesquisa na Internet, foi possível ter conhecimento da existência de um projeto de Lei nº 1303/2015, tramitando na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, que trata da realização do Teste de Triagem Neonatal, na modalidade ampliada, em Espectromia de Massa em Tandem (EIM), em crianças nascidas nos hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde da rede pública do Estado de São Paulo. Todavia, o projeto está pronto para ordem do dia desde março de 2016, encontrando-se paralisado nesse estágio.

Ressalte-se que a Triagem Neonatal Ampliada não se refere à inovação da Medicina, pois a rede particular já realiza essa triagem há muito tempo, já existindo aplicação do referido teste há mais de uma década, e alguns Estados, como Goiás e Santa Catarina, já realizam os exames de referidas doenças na Triagem Neonatal em rede pública (fls. 64/66 e 110/113).

Mesmo assim depois de já reconhecida a eficácia, importância e essencialidade da Triagem Neonatal Ampliada, o Estado de São Paulo ainda não realiza a Triagem Neonatal de forma devida, o que evidencia a omissão do Estado, afrontando a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao não adotar medidas para o diagnóstico adequado dos recém-nascidos, em clara violação, por isso, à dignidade da pessoa humana.

Destaque-se que a Toxoplasmose é uma infecção produzida por um parasita intracelular que pode causar doenças graves e lesões neurológicas irreversíveis no feto (fls. 269). A Toxoplasmose Congênita compromete frequentemente o Sistema Nervoso Central e o olho, podendo ocorrer hidrocefalia (fls. 270). Há protocolo clínico para tratamento da doença (fl. 271), sendo que o tratamento tardio pode causar sequelas irreversíveis, especialmente oculares e para o Sistema Nervoso Central (fl. 272).

A deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) interfere na manutenção da estabilidade dos eritrócitos. A deficiência dessa enzima favorece a ruptura da membrana dos glóbulos vermelhos, levando à anemia hemolítica (fl. 139). O tratamento da referida anemia é importante, na medida em que possibilita o controle de crises agudas, visando assegurar quantidade suficiente de oxigênio para os tecidos e glóbulos vermelhos (fls. 140).

A Galactosemia é "um erro inato do metabolismo dos carboidratos relacionados à deficiência enzimática na rota da metabolização da galactose, que passa a ter níveis circulantes elevados, tóxicos principalmente para o fígado, cérebro e olhos" (fl. 112). As manifestações dessa doença iniciam na primeira ou segunda semana de vida e o diagnóstico prévio é relevante, pois a falta de tratamento precoce pode ocasionar óbito (fl. 112).

Os documentos juntados aos autos mostram a importância do diagnóstico precoce em triagem neonatal das referidas doenças, cujo exame para a constatação não possui caráter experimental, eis que já possui eficácia comprovada. Esse diagnóstico pela triagem neonatal pode reduzir o número de hospitalizações e óbitos, assim como as inúmeras consequências das doenças.

Portanto, a realização da triagem neonatal ampliada visa, sem sombra de dúvida, à efetivação do direito à saúde e à preservação do direito à vida digna.

Cabe enfatizar que a Constituição Federal de 1988 inovou na proteção dos direitos sociais, entre eles o direito à saúde, estabelecendo-o como um direito de todos.

Vale dizer, o direito público subjetivo à saúde traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, cabendo ao Poder Público (federal, estadual ou municipal) zelar pela sua integridade, a quem incumbe formular e implementar políticas sociais e econômicas que visem a garantir a plena consecução dos objetivos na Constituição da República.

A Carta de 1988 estabeleceu em seu artigo 6º o direito a saúde como um direito social fundamental, bem como estabeleceu, ainda, em seu artigo 196:


Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Portanto, o direito à saúde, além de qualificar-se como um direito fundamental inerente a todas as pessoas, representa consequência indissociável do direito à vida. Desse modo, o Poder Público não pode mostrar-se indiferente à efetivação do direito à saúde, principalmente quando sua inércia envolve crianças, sob pena de incorrer em censurável comportamento inconstitucional.

A Doutrina e a Jurisprudência brasileiras muito se dedicam acerca da interpretação do artigo 196 da Constituição Federal, existindo diversos entendimentos acerca do tema. Referidos posicionamentos buscam definir em que medida o direito à saúde se traduz como um direito a prestações positivas do estado, passível de ser tutelado pelo Poder Judiciário.

Ainda referente ao direito à saúde, especificamente no que concerne aos direitos das crianças, a Norma Fundamental também erigiu em seu artigo 227, o direito à saúde com absoluta prioridade, do seguinte modo:


Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil;

Cabe, bem assim, destacar o princípio do melhor interesse do menor previsto no artigo 4º da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do adolescente), o qual estabelece:


Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Logo, diante da ênfase dada à saúde das crianças pelo poder constituinte originário e pelos legisladores, não há dúvidas que deve ser assegurada a plena efetivação desse direito.

Pertinente destacar, ainda, que a Constituição, ao dispor sobre o direito à saúde, não se limitou aos aspectos de natureza curativa, porquanto estabelece que as políticas públicas devam ser amplas no sentido de garantir tratamentos curativos e a profilaxia de doenças.

Vale frisar que a tutela da saúde possui diversas interconexões com a proteção de outros direitos fundamentais, também objeto de proteção constitucional, como aqueles correspondentes à vida, ao trabalho, à moradia, à proteção da família, das crianças e adolescentes, aos idosos, reforçando a tese de inter-relação entre eles.

Saliente-se, outrossim, que os direitos sociais fundamentais estabelecidos na Constituição Federal precisam ser plenamente efetivados através das políticas públicas, zelando o Poder Público pelo bem estar geral da população.

Como bem destacado pelo doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet:


Para além da sua condição de direito fundamental, a proteção da saúde implica deveres fundamentais, o que decorre já da dicção do artigo 196 da CF: "[a] saúde é direito de todos e dever do Estado [...]",impondo precipuamente ao poder público a obrigação de efetivar tal direito. Na condição de típica hipótese de direito-dever, os deveres fundamentais guardam relação com as posições jurídicas pelas quais se efetiva o direito à saúde, podendo-se falar - sem prejuízo de outras concretizações - num dever de proteção à saúde, individual e pública (dimensão defensiva), facilmente identificado em normas penais e normas de vigilância sanitária; assim como num dever de promoção da saúde (dimensão prestacional em sentido amplo), especialmente vigente no âmbito das normas e políticas públicas de regulamentação e organização do SUS. Além disso, importa sublinhar que também os particulares (pessoas físicas e jurídicas) possuem, para além de um dever geral de respeito, até mesmo deveres específicos em relação à saúde de terceiros e mesmo em relação à própria saúde, quando for o caso.
(In Comentários à Constituição do Brasil, ed. Saraiva, São Paulo, 2014, 1ª ed., 2ª tiragem, p. 1932).

As divergências acerca da efetivação desse direito decorrem principalmente de sua natureza prestacional e da aplicação do que se conceituou como reserva do possível e mínimo existencial.

Ao analisar a demanda, fica claro que, ao contrário do afirmado pelo MM. Juiz Federal a quo, não é possível aplicar indiscriminadamente a teoria da reserva do possível à execução de políticas públicas referentes ao direito à saúde, uma vez que esse faz parte do mínimo existencial.

Cabe igualmente esclarecer que a teoria da reserva do possível, de origem alemã, foi aplicada inicialmente em caso paradigmático referente ao direito de acesso à faculdade de medicina como meio de exercer o direito à liberdade profissional, justificando-se a sua impossibilidade no fundamento de que só se pode exigir do Estado aquilo que for viável dentro dos limites da possibilidade e razoabilidade. Assim, não seria razoável exigir do estado o livre acesso à faculdade de medicina para quem quisesse frequentá-la, pois não seria possível, dada as condições da Alemanha, assegurar o custeio de vagas para todos, de forma ilimitada. Não haveria como universalizar o direito a tanto. Com isso, a Justiça Alemã tratou a reserva do possível como "o que razoavelmente se pode esperar do estado, diante das condições da sociedade".

Todavia, no Brasil essa teoria foi importada de forma deturpada, sendo utilizada de forma desmedida pelo Estado como fundamento para a não efetivação de políticas públicas.

Utilizando o argumento da falta de condições orçamentárias como obstáculo para efetivação de direitos, principalmente sociais, sustentando que caso fosse priorizado determinado direito social seria retirado dinheiro de outras áreas prioritárias, o Estado Brasileiro atua em detrimento de toda a coletividade.

Não se pode importar preceitos do direito comparado sem atentar para o bem estar social que o Estado brasileiro deve assegurar. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de propiciar existência digna. Por esse motivo, o cidadão não pode exigir do Estado prestações supérfluas, já que isso escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica.

Porém, a situação é completamente diferente no Brasil, onde ainda não são asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna. Nesse caso, qualquer demanda que objetive fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarada como sem razão (supérflua), pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro.

Nesse sentido, Andreas Krell, doutrinador Alemão, critica a utilização da teoria da reserva do possível no Brasil:


Devemos nos lembrar de que os integrantes do sistema jurídico Alemão não desenvolveram seus posicionamentos para com os direitos sociais num Estado de permanente crise social e milhões de cidadãos socialmente excluídos. Na Alemanha - como nos países centrais - não há um grande contingente de pessoas que não acham vagas nos hospitais mal equipados da rede pública; não há necessidade de organizar a produção básica a milhões de indivíduos para evitar a subnutrição ou morte; não há altos números de crianças e jovens fora da escola; não há pessoas que não conseguem sobreviver fisicamente com o montante pecuniário e assistência social que recebem, etc (KRELL, Andreas J. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os descaminhos de um direito constitucional "comparado". Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 2002, p. 108/109)

É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto àquele do mínimo existencial. Somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir.

Porém, aplicando o princípio da reserva do possível de forma modificada, é utilizada por parte da Doutrina Brasileira, e pelo Estado, a tese da decomposição da reserva do possível em: reserva do possível fática e reserva do possível jurídica.

A reserva do possível fática está relacionada à existência de recursos para a realização de direito material. Assim, o problema da reserva do possível fática não é um problema ético e nem jurídico formal, mas sim um problema de ter ou não recursos.

No caso em tela, analisando a razoabilidade e a existência de recursos, percebe-se que é um dever do Estado conferir esse direito a todas as crianças ao nascerem, não tendo o Estado demonstrado de forma clara a inexistência de recursos, ou que os recursos existentes já estavam alocados devidamente para outros direitos fundamentais essenciais.

Por óbvio, a alegação de falta de recursos financeiros, destituída de comprovação, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao ente público na efetivação dos direitos sociais. Esses direitos devem ser respeitados como prioridade absoluta pelo Estado, e não podem ficar relegados indefinidamente ao desamparo e ao descaso público.

A reserva do possível jurídica, por sua vez, refere-se à possibilidade de que os recursos sejam gastos sem infringência do ordenamento jurídico. No caso do Brasil muitos utilizam o argumento da reserva do possível para a não efetivação de um direito social, afirmando que não haveria autorização na lei orçamentaria para que o gasto seja realizado.

No entanto, sujeitar um direito fundamental social à reserva do possível jurídica, à previsão do gasto no orçamento, seria subordinar o direito fundamental, que é contramajoritário, à decisão da maioria política no parlamento. Seria incompatível com a própria lógica da supremacia da constituição e da fortificação dos Direitos Fundamentais.

Cabe ainda destacar que o entendimento da reserva de possível jurídica não é compatível com a compreensão contemporânea de democracia, posto que a democracia não é apenas o governo da maioria, mas depende da coexistência de alguns pressupostos, dentre os quais estaria o acesso a condições materiais mínimas, que por sua vez são asseguradas por direitos sociais. Então, pelo menos em alguma extensão não faz sentido condicionar a tutela dos direitos sociais ao orçamento, por que esse condicionamento se basearia na democracia e a garantia dos direitos também visaria a assegurar a democracia.

Dessa maneira, no que concerne ao mínimo existencial, não faz sentido condicionar a efetivação de direitos sociais à previsão orçamentária.

É certo que existe um espaço para deliberação democrática pelos administradores, mas esse espaço não é infinito, devendo esses atuarem com razoabilidade, principalmente, priorizando a efetivação do mínimo existencial, cabendo ao Judiciário fazer o controle judicial dessas escolhas, principalmente quando implicam na não efetivação de direitos essenciais.

Não se pode admitir a invocação da teoria da reserva do possível, como escudo para o Estado se escusar do cumprimento de suas obrigações prioritárias.

Como bem defendido por Ana Paulo Barcellos e Ricardo Lobo Torres, os direitos fundamentais relacionados ao mínimo existencial não podem se subordinar à discricionariedade do administrador, senão vejamos:

Note-se que em um Estado democrático e pluralista é conveniente que seja assim, já que há diversas concepções da dignidade que poderão ser implementadas de acordo com a vontade popular manifestada a cada eleição. Nenhuma delas, todavia, poderá deixar de estar comprometida com essas condições elementares, necessárias à existência humana (mínimo existencial), sob pena de violação de sua dignidade que, além de fundamento e fim da ordem jurídica, é pressuposto da igualdade real de todos os homens e da própria democracia. A identificação desse núcleo, associado ao conceito de mínimo existencial, é igualmente um meio de lidar com outra dificuldade nessa seara: o problema dos custos, ao qual se fará referência adiante. Em suma, e já aplicando a discussão ao tema da saúde: as prestações que fazem parte do mínimo existencial - sem o qual restará violado o núcleo da dignidade da pessoa humana, compromisso fundamental do Estado brasileiro - são oponíveis e exigíveis dos poderes públicos constituídos.
(...)
A diferença em relação ao mínimo existencial está em que, em relação a este, o Judiciário pode praticar um ato específico: determinar concretamente o fornecimento da prestação de saúde com fundamento na Constituição e independentemente de existir uma ação específica da Administração ou do Legislativo nesse sentido.
(...) compete ao Judiciário, portanto, determinar o fornecimento do mínimo existencial independentemente de qualquer outra coisa, como decorrência das normas constitucionais sobre a dignidade humana e sobre a saúde. (BARCELLOS, Ana Paula. O direito a prestações de saúde: complexidades, mínimo existencial e o valor das abordagens coletiva e abstrata. In: Revista da Defensoria Pública de São Paulo. Ano 1 - n. 1 - jul./dez. 2008. Edição Especial Temática Sobre o Direito à Saúde. p.140/141).
A proteção positiva do mínimo existencial não se encontra sob a reserva do possível, pois sua fruição não depende do orçamento nem de políticas públicas, ao contrário do que acontece com os direitos sociais. Em outras palavras, o Judiciário pode determinar a entrega das prestações positivas, eis que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discricionariedade da Administração ou do Legislativo, mas se compreendem nas garantias institucionais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na organização de estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas, escolas primárias, etc.). (TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária.  In: SARLET, Ingo Wolfgang. TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos fundamentais, orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 81-82).

Portanto, ficou evidente que o mínimo existencial está relacionado à garantia de condições materiais básicas de vida. Referida garantia é necessária em si, além de ser instrumento para a realização da democracia e da autonomia.

Ressalte-se que o direito a saúde é um direito fundamental incluso no conceito de mínimo existencial. O mínimo existencial está no núcleo da dignidade da pessoa humana, a qual só se efetiva se o ser humano possuir bens mínimos para uma sobrevivência digna. Assim, o mínimo existencial se faz necessário para a efetiva dignidade da pessoa humana, em torno da qual gravitam os direitos fundamentais.

A pretensão em exame está relacionada a necessidades humanas básicas e os apelados em nenhum momento trouxeram argumentos suficientes para a não concessão da tutela pleiteada.

No caso em tela, a tutela pretendida jamais representa um direito de apenas parte da população em detrimento de outros, mas um direito a saúde e vida digna de todos aqueles que nascem no estado de São Paulo todos os dias. Através dos exames realizados na "Triagem Neonatal Ampliada" é possível um melhor planejamento da vida e tratamento, garantindo a dignidade da pessoa humana.

Deve-se destacar que no que concerne à aplicação dos direitos fundamentais vigora a proibição da proteção deficiente, ou seja, o dever do estado de efetivar de forma devida.

Assim, quando o não desenvolvimento de políticas públicas acarretar grave vulneração a direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, é cabível a intervenção do Poder Judiciário como forma de implementar os valores constitucionais. Não adianta um direito ser garantido pela Constituição se não fosse possível garantir a efetivação desse direito.

No que se refere ao direito à saúde, a atuação do Poder Judiciário encontra fundamento por ser esse direito indispensável à dignidade da pessoa humana, integrante do mínimo existencial.

Alguns alegam que a intervenção do Poder Judiciário, determinando a implementação de políticas públicas diante da omissão do Estado fere a separação dos poderes.

Porém, esse argumento não se sustenta, pois não há ofensa ao princípio da separação dos poderes. Isso porque a concretização dos direitos sociais não pode ficar condicionada à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão "controlador" da atividade administrativa.

Como afirmou o MM. Juiz a quo é certo que a decisão política caberá sempre ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo. Contudo, quando os direitos fundamentais não estiverem sendo tutelados da forma devida, não se pode permitir que a efetivação destes direitos fiquem submetidos à mera discricionariedade do administrador público, cabendo assim a intervenção do Poder Judiciário determinando a implementação de políticas públicas.

Deve-se esclarecer que nenhum poder é ilimitado, e todos devem ser suscetíveis de controle, já que todo aquele que exerce poder de forma ilimitada tende a abusar dele, violando deveres estabelecidos constitucionalmente.

Seria distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.

Impende ressaltar que o C. Supremo Tribunal Federal e o E. Superior Tribunal de Justiça reconhecem que, em casos excepcionais, é possível o controle judicial de políticas públicas, não configurando isso violação a separação de poderes, sendo, pelo contrário, essencial ao controle judicial das escolhas dos administradores, até mesmo para ser determinada a implementação de políticas públicas já resguardadas na Constituição.

Nesse sentido destaco julgados do C. Supremo Tribunal Federal e do E. Superior Tribunal de Justiça:


E M E N T A: DEFENSORIA PÚBLICA - DIREITO DAS PESSOAS NECESSITADAS AO ATENDIMENTO INTEGRAL, NA COMARCA EM QUE RESIDEM, PELA DEFENSORIA PÚBLICA - PRERROGATIVA FUNDAMENTAL COMPROMETIDA POR RAZÕES ADMINISTRATIVAS QUE IMPÕEM, ÀS PESSOAS CARENTES, NO CASO, A NECESSIDADE DE CUSTOSO DESLOCAMENTO PARA COMARCA PRÓXIMA ONDE A DEFENSORIA PÚBLICA SE ACHA MAIS BEM ESTRUTURADA - ÔNUS FINANCEIRO, RESULTANTE DESSE DESLOCAMENTO, QUE NÃO PODE, NEM DEVE, SER SUPORTADO PELA POPULAÇÃO DESASSISTIDA - IMPRESCINDIBILIDADE DE O ESTADO PROVER A DEFENSORIA PÚBLICA LOCAL COM MELHOR ESTRUTURA ADMINISTRATIVA - MEDIDA QUE SE IMPÕE PARA CONFERIR EFETIVIDADE À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL INSCRITA NO ART. 5º, INCISO LXXIV, DA LEI FUNDAMENTAL DA REPÚBLICA - OMISSÃO ESTATAL QUE COMPROMETE E FRUSTRA DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PESSOAS NECESSITADAS - SITUAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE INTOLERÁVEL - O RECONHECIMENTO, EM FAVOR DE POPULAÇÕES CARENTES E DESASSISTIDAS, POSTAS À MARGEM DO SISTEMA JURÍDICO, DO "DIREITO A TER DIREITOS" COMO PRESSUPOSTO DE ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS - INTERVENÇÃO JURISDICIONAL CONCRETIZADORA DE PROGRAMA CONSTITUCIONAL DESTINADO A VIABILIZAR O ACESSO DOS NECESSITADOS À ORIENTAÇÃO JURÍDICA INTEGRAL E À ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITAS (CF, ART. 5º, INCISO LXXIV, E ART. 134) - LEGITIMIDADE DESSA ATUAÇÃO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS - O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS INSTITUÍDAS PELA CONSTITUIÇÃO E NÃO EFETIVADAS PELO PODER PÚBLICO - A FÓRMULA DA RESERVA DO POSSÍVEL NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS CUSTOS DOS DIREITOS: IMPOSSIBILIDADE DE SUA INVOCAÇÃO PARA LEGITIMAR O INJUSTO INADIMPLEMENTO DE DEVERES ESTATAIS DE PRESTAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE IMPOSTOS AO ESTADO - A TEORIA DA "RESTRIÇÃO DAS RESTRIÇÕES" (OU DA "LIMITAÇÃO DAS LIMITAÇÕES") - CONTROLE JURISDICIONAL DE LEGITIMIDADE SOBRE A OMISSÃO DO ESTADO: ATIVIDADE DE FISCALIZAÇÃO JUDICIAL QUE SE JUSTIFICA PELA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DE CERTOS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS (PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL, PROTEÇÃO AO MÍNIMO EXISTENCIAL, VEDAÇÃO DA PROTEÇÃO INSUFICIENTE E PROIBIÇÃO DE EXCESSO) - DOUTRINA - PRECEDENTES - A FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA E A ESSENCIALIDADE DESSA INSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.(RE 763667 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/10/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-246 DIVULG 12-12-2013 PUBLIC 13-12-2013)
E M E N T A: CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - SENTENÇA QUE OBRIGA O MUNICÍPIO DE SÃO PAULO A MATRICULAR CRIANÇAS EM UNIDADES DE ENSINO INFANTIL PRÓXIMAS DE SUA RESIDÊNCIA OU DO ENDEREÇO DE TRABALHO DE SEUS RESPONSÁVEIS LEGAIS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA POR CRIANÇA NÃO ATENDIDA - LEGITIMIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DAS "ASTREINTES" CONTRA O PODER PÚBLICO - DOUTRINA - JURISPRUDÊNCIA - OBRIGAÇÃO ESTATAL DE RESPEITAR OS DIREITOS DAS CRIANÇAS - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO DADA PELA EC Nº 53/2006) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO - INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES - PROTEÇÃO JUDICIAL DE DIREITOS SOCIAIS, ESCASSEZ DE RECURSOS E A QUESTÃO DAS "ESCOLHAS TRÁGICAS" - RESERVA DO POSSÍVEL, MÍNIMO EXISTENCIAL, DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL - PRETENDIDA EXONERAÇÃO DO ENCARGO CONSTITUCIONAL POR EFEITO DE SUPERVENIÊNCIA DE NOVA REALIDADE FÁTICA - QUESTÃO QUE SEQUER FOI SUSCITADA NAS RAZÕES DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO -PRINCÍPIO "JURA NOVIT CURIA" - INVOCAÇÃO EM SEDE DE APELO EXTREMO - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. POLÍTICAS PÚBLICAS, OMISSÃO ESTATAL INJUSTIFICÁVEL E INTERVENÇÃO CONCRETIZADORA DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE EDUCAÇÃO INFANTIL: POSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças até 5 (cinco) anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inércia estatal em adimplir as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. - A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À "RESERVA DO POSSÍVEL" E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS "ESCOLHAS TRÁGICAS". - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras "escolhas trágicas", em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de "mínimo existencial", que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados. LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS "ASTREINTES". - Inexiste obstáculo jurídico-processual à utilização, contra entidades de direito público, da multa cominatória prevista no § 5º do art. 461 do CPC. A "astreinte" - que se reveste de função coercitiva - tem por finalidade específica compelir, legitimamente, o devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito, tal como definido no ato sentencial. Doutrina. Jurisprudência.(ARE 639337 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125)
ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS - DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MANIFESTA NECESSIDADE. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DE TODOS OS ENTES DO PODER PÚBLICO. NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL. NÃO HÁ OFENSA À SÚMULA 126/STJ.
1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.
2. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.
3. In casu, não há impedimento jurídico para que a ação, que visa a assegurar o fornecimento de medicamentos, seja dirigida contra o Município, tendo em vista a consolidada jurisprudência do STJ: "o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros" (REsp 771.537/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005).
4. Apesar de o acórdão ter fundamento constitucional, o recorrido interpôs corretamente o Recurso Extraordinário para impugnar tal matéria. Portanto, não há falar em incidência da Súmula 126/STF.
5. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no REsp 1107511/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/11/2013, DJe 06/12/2013)

Diante do exposto, fica evidente que o Poder Judiciário não pode definir políticas públicas, mas pode determinar a implementação de políticas públicas já fundamentadas na Constituição Federal para resguardar direitos fundamentais essenciais diante da omissão do poder legislativo ou do executivo.

De fato, no caso em análise, resta claro que o direito à saúde, principalmente das crianças recém-nascidas, não está sendo devidamente resguardado, sendo imprescindível a intervenção judicial.

Impossibilitar a intervenção, e afirmar que o estabelecido no artigo 196 da CF/88 seria apenas uma diretriz a ser seguida pelo administrador, seria o equivalente a negar a força normativa da Constituição. A norma não pode ser apenas uma promessa. O dispositivo constitucional é claro ao estabelecer o dever fundamental de prestação da saúde por parte do Estado.

Recorde-se que a Constituição Federal estabelece a competência comum dos entes da federação para cuidar da saúde no artigo 23, inciso II, existindo obrigação solidária e subsidiária entre eles. Isso ressalta a importância da tutela a esse direito e a responsabilidade solidária da União, dos Estados, Distrito Federal e dos Municípios na efetivação do direito a saúde, sendo este o entendimento sedimentado pelos Tribunais Superiores (Precedentes E. Supremo Tribunal Federal: RE 195192, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 22/02/2000, DJ 31-03-2000; RE 855178 RG, Relator(a): Min. LUIZ FUX, julgado em 05/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-050 DIVULG 13-03-2015 PUBLIC 16-03-2015; RE 933857 AgR, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 16/02/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-048 DIVULG 14-03-2016 PUBLIC 15-03-2016).

Ainda no que diz respeito à tutela do direito à saúde, é incontestável que além da necessidade de se distribuírem recursos naturalmente por meio de critérios distributivos, a própria evolução da medicina impõe um viés programático do direito a saúde, posto que sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico, devendo o Estado acompanhar essa evolução. A burocracia administrativa não pode justificar um atraso de mais de uma década, prejudicando aqueles que dependem da rede pública.

E mesmo no que concerne às medidas preventivas na área da saúde, estas devem ser prioritárias, conforme estabelece o artigo 198, inciso II, da Constituição Federal. Destaque-se que o acesso à saúde deve ser promovido de maneira universal e igualitária, sem privilégios ou preconceitos de qualquer espécie, sendo essencial a efetivação desse direito para resguardar uma vida digna.

A situação em análise revela clara afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial e à garantia constitucional de que o Poder Público deverá respeitar o direito a saúde e ao desenvolvimento sadio da criança, conforme o princípio da máxima proteção da criança e do adolescente.

Por conseguinte, tratando-se de direito essencial, não existe empecilho jurídico para que o Judiciário determine a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, haja vista que não houve comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da União e do Estado.

Nesses casos, vale dizer, não é possível ao Poder Público invocar a discricionariedade administrativa de maneira a se escusar em adotar a mencionada política pública, porquanto não lhe resta avaliar a oportunidade e conveniência a tanto, antes deve implementá-la norteado pelo princípio da eficiência, introduzido pela Emenda Constitucional nº 19.

Destaque-se que de nenhuma forma o judiciário quer se antecipar aos Gestores do Sistema Único de Saúde, porém de leva-los a adotar as medidas pertinentes diante de sua morosidade. É dever do Judiciário nesse caso zelar pela efetivação dos direitos.

Ressalte-se, bem assim, que a ampliação do exame de triagem neonatal poderá constituir uma contribuição expressiva para o progresso da Saúde Pública, sem representar, no entanto, um acréscimo relevante nas despesas do setor. Ao contrário, os benefícios proporcionados pelo diagnóstico e tratamento precoces das moléstias possibilitará uma racionalização dos gastos públicos com a assistência médico-hospitalar e com o tratamento integral da doença.

Logo, impõe-se a reforma da sentença guerreada, para determinar que a União e o Estado de São Paulo, solidariamente, incluam na Triagem Neonatal, realizada na rede pública no Estado de São Paulo, exames para o diagnóstico de Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas.

Assim, fixo o prazo de 120 (cento e vinte dias) para o cumprimento da obrigação, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais), para cada um daqueles réus, ora apelados, conforme previsto no artigo 11, da Lei nº 7437/85 e artigo 497, do Novo Código de Processo Civil de 2015.

Quanto ao pagamento de despesas e custas processuais, deixo de fixar condenação aos apelados, uma vez que deve ser aplicado ao processo o art. 18 da Lei de Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), o qual não se limita à parte autora.

Cabe destacar o que estabelece o artigo 18 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85):


Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas, nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de advogado, custas e despesas processuais.

Ressalte-se que a Ação Civil Pública destina-se a tutelar interesses superiores da comunidade. Nesse aspecto, também, se assemelha à ação popular (CF, art. 5º, LXXIII e Lei 4.717/65).

O regime diferenciado quanto à sucumbência das ações coletivas tem fundamento constitucional e objetiva incentivar, ou ao menos não desestimular, o uso das demandas coletivas de defesa do interesse público e social, uma vez que o pagamento dos honorários poderia ser um obstáculo adicional à propositura destas ações.

Logo, por força das normas constitucionais (art. 5º, LXXIII e LXXVII) e do art. 18 da Lei 7.347/85, aplica-se a isenção das verbas sucumbenciais na Ação Civil Pública.

Nesse contexto, cumpre ressaltar que a 1ª Seção do E. Superior Tribunal de Justiça firmou seu entendimento no sentido do descabimento da condenação dos réus ao pagamento de honorários de sucumbência no caso de ação civil pública julgada procedente.

Por critério de simetria, obsta-se que a parte autora da ação civil pública, cuja condenação em honorários advocatícios se restringe à litigância de má-fé, se beneficie com a percepção de verba honorária quando for vencedora na demanda.

Nesse sentido, transcrevo o seguinte aresto:


PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS EM FAVOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE.
1. A jurisprudência da Primeira Seção deste Superior Tribunal é firme no sentido de que, por critério de absoluta simetria, no bojo de ação civil pública não cabe a condenação da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios em favor do Ministério Público.
Precedente: EREsp 895530/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 26/08/2009, DJe 18/12/2009.
2. Agravo regimental não provido. (grifo nosso)
(AgRg no AREsp 21.466/RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/08/2013, DJe 22/08/2013)

Assim, não é cabível a condenação dos apelados em custas processuais e honorários advocatícios.

Ante o exposto, afasto a preliminar, e dou provimento à remessa oficial, tida por interposta, e ao recurso de apelação para condenar, solidariamente, a União e o Estado de São Paulo a implantar serviço de realização de Triagem Neonatal ampliada na rede pública de saúde no estado de São Paulo, acrescentando na Triagem exames para o diagnóstico de Toxoplasmose Congênita, Deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD) e Galactosemia, bem como fornecer atendimento médico interdisciplinar, medicamentos e eventuais cirurgias corretivas para crianças diagnosticadas, devendo determinada política pública ser incluída nos planos orçamentários dos entes políticos. Fixo o prazo de 120 dias para o cumprimento da obrigação, sob pena de multa diária no valor de R$5.000,00 (cinco mil reais).


MARCELO SARAIVA
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): MARCELO MESQUITA SARAIVA:10071
Nº de Série do Certificado: 7E6C6E9BBD25990F
Data e Hora: 13/12/2016 19:31:03