Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 26/09/2017
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0003784-95.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.003784-7/SP
RELATOR : Desembargador Federal WILSON ZAUHY
APELANTE : LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA
ADVOGADO : SP084958 MARIA JOSE CACAPAVA MACHADO e outro(a)
APELADO(A) : Justica Publica
CO-REU : PRESCILA ARAUJO CHAVES
: CARLOS ALEMAN ORTEGA
No. ORIG. : 00037849520104036181 4P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE PESSOAS. ARTIGO 231 CAPUT DO CÓDIGO PENAL. CONDUTA PRATICADA NA VIGÊNCIA DA LEI 11.106/2005. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.344/2016. VIOLÊNCIA, GRAVE AMEAÇA E FRAUDE QUE FIGURAVAM NA FORMA QUALIFICADA DO REVOGADO ARTIGO 231-A DO CP, PASSAM A CONSTITUIR CIRCUSTÂNCIAS ELEMENTARES DO ARTIGO 149-A DO CP. ABOLITIO CRIMINIS CONFIGURADA COM RELAÇÃO À FIGURA SIMPLES DO REVOGADO ARTIGO 231-A DO CP, NA REDAÇÃO DA LEI 11.106/2005.
1. Apelação interposta pela Defesa contra sentença que condenou a ré como incursa no artigo 231, caput, do Código Penal à pena de 03 anos e 04 meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, e pagamento de 13 dias-multa.
2. Os fatos ocorreram em 30/03/2007, e a sentença foi proferida em 24/11/2015. O crime imputado à ré foi o de tráfico internacional de pessoas, previsto no artigo 231, caput, do Código Penal, que à época dos fatos descritos na denúncia vigorava com a redação dada pela Lei 11.106/2005 (antes de sua alteração pela Lei 12.015/2009).
3. Posteriormente à sentença, sobreveio a Lei 13.344/2016 que expressamente revogou os artigos 231 e 231-A do Código Penal e introduziu no mesmo diploma normativo o artigo 149-A, que estabeleceu nova tipologia para o tráfico de pessoas.
4. Houve revogação formal do tipo penal, com a inserção imediata de tipo inovador (alteração topográfica normativa), sem efetiva supressão do fato criminoso, ocorrendo, portanto, continuidade normativo-típica, porém somente em parte.
5. Na vigência da Lei 11.106/2005 o emprego de violência, grave ameaça ou fraude consistia qualificadora das condutas descritas no caput do artigo 231 do Código Penal. Logo, na vigência dessa lei, o entendimento jurisprudencial, inclusive adotado na r.sentença apelada e por este Relator, era amplamente majoritário no sentido de que o consentimento da vítima era irrelevante para a configuração do delito previsto no caput.
6. Contudo, na nova redação do artigo 149-A do CP dada pela Lei 13.344/2016, a violência, a grave ameaça e a fraude - e agora também as figuras da coação e o abuso - estão incluídas como circunstâncias elementares do novo tipo penal, de modo que, se elas não ocorrem, não se configura a tipicidade da conduta. Equivale dizer, especialmente com relação ao crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, de que se cuida nos autos, que uma vez verificada a existência de consentimento válido, sem qualquer vício, resta afastada a tipicidade da conduta.
7. Assim, quanto ao crime de tráfico de pessoas previsto no artigo 231, caput, do CP na redação da Lei 11.106/2005, para o qual o consentimento da vítima era irrelevante penal, ocorreu abolitio criminis. A continuidade normativo-típica ocorreu apenas parcialmente, com relação ao artigo 231 na sua figura qualificada do §2º, com emprego de violência, grave ameaça ou fraude, ou seja, atuações do agente que acarretem vício ao consentimento da vítima.
8. A alteração legislativa interna veio promover no âmbito do Direito Penal uma adequação aos preceitos estabelecidos pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, promulgado pelo Decreto 5.017/2004.
9. A nova legislação amplia o bem jurídico tutelado, que antes era reservado à prostituição, alcançando agora a figura mais abrangente da exploração sexual, além de outras hipóteses anteriormente não previstas (remoção de órgãos, etc), bem como incrementando as descrições das condutas criminalizadas no tipo alternativo misto, de modo a recrudescer o combate a referidos atos.
10. Além dessa ampliação, e também em atendimento ao espírito do Protocolo mencionado, a nova legislação limita a proteção ao bem jurídico tutelado aos casos em que há, de alguma forma, vício de consentimento.
11. A contrario sensu, se o consentimento é válido, ou seja, se ele foi deduzido sem grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, não - ao menos na hipótese de exploração sexual, de que se cuida nos autos - não se configura o crime.
12. No caso dos autos, basta o exame da denúncia para se verificar que não há nenhuma referência a algum tipo de grave ameaça, violência ou fraude, bastando para se concluir pela abolitio criminis. Não bastasse isso, durante a instrução processual, confirmou-se que realmente todas as mulheres que estavam prestes a embarcar para o exterior tinham dado o seu total consentimento, bem como possuíam plena consciência em relação ao propósito da viagem, sendo que uma delas, inclusive, iria pela segunda vez exercer a prostituição na Espanha, agenciada novamente pela corré.
13. Absolvição em razão da ocorrênca de abolitio criminis pela superveniência da Lei 13.344/2016, prejudicada a apelação.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os integrantes da Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, em razão da ocorrênca de abolitio criminis pela superveniência da Lei 13.344/2016, absolver a ré, com fundamento no artigo 386, inciso III do Código de Processo Penal, e julgar prejudicada a apelação, sendo que o Juiz Fed. Conv. Carlos Francisco acompanhou pela conclusão.

São Paulo, 19 de setembro de 2017.
MÁRCIO MESQUITA
Juiz Federal Convocado


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): MARCIO SATALINO MESQUITA:10125
Nº de Série do Certificado: 46E37808D2C34E84
Data e Hora: 20/09/2017 19:49:27



APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0003784-95.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.003784-7/SP
RELATOR : Desembargador Federal WILSON ZAUHY
APELANTE : LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA
ADVOGADO : SP084958 MARIA JOSE CACAPAVA MACHADO e outro(a)
APELADO(A) : Justica Publica
CO-REU : PRESCILA ARAUJO CHAVES
: CARLOS ALEMAN ORTEGA
No. ORIG. : 00037849520104036181 4P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

O Ministério Público Federal, em 17/04/2007, com aditamento em 23/04/2007, denunciou PRESCILA ARAUJO CHAVES, brasileira, qualificada nos autos, nascida em 25/04/1960, LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA, brasileira, qualificada nos autos, nascida em 06/09/1979, e CARLOS ALEMÁN ORTEGA, espanhol, qualificado nos autos, nascido em 23/01/1973, pela prática do delito tipificado no artigo 231, caput, do Código Penal. Consta da denúncia e respectivo aditamento:


"Consta dos inclusos autos em epígrafe que no dia 30 de março de 2007, por volta das 16:30h, agentes da Polícia Civil, a fim de averiguar a veracidade de "denúncia anônima" recebida, dirigiram-se à agência de turismo SAMPA TUR, situada nesta capital a Rua Domingos de Morais nº 770 - loja 43, bairro Vila Mariana, onde surpreenderam a denunciada entregando a quatro mulheres, as quais serão abaixo identificadas, passagens aéreas e passaportes para que pudessem viajar para a Espanha, onde exerceriam a prostituição em Casa de Prostituição localizada naquele país, na cidade de Las Palmas, o que ocasionou a prisão em flagrante da denunciada conforme Auto de Prisão em Flagrante de fls. 02 e Boletim de Ocorrência de fls.32/35.

No momento da prisão foram apreendidos bilhetes eletrônicos emitidos através da Agência de Turismo SAMPA em nome de PRESCILA CHAVES saindo de Guarulhos em 03/04/07 com destino a Las Palmas/Espanha (conexão em Paris e Barcelona) - fl. 37/38, bem como em nome de outras garotas que acompanhavam a denunciada na ocasião e que receberiam também seus respectivos bilhetes eletrônicos com saída nas mesmas datas para Tenerife/Espanha, quais sejam: Adriana Jesus (fls. 39/40); Maria Jesus (fls. 41/42); Daniela Barbosa (fls. 43/44). Foram também apreendidos os passaportes (cópia reprográfica fls. 48/55) em nome da denunciada e das garotas aliciadas por ela - Maria Helidiane de Jesus, Daniela Martins Moreira Barboza, Adriana Gomes de Jesus e Nívea Bispo de Souza - com o fim de irem para a Espanha fazer programas.

A "denúncia anônima" que serviu de base para a presente investigação (fls. 07/08) noticia um esquema de tráfico de mulheres para fins de prostituição, onde moças brasileiras estariam sendo recrutadas para trabalhar como prostitutas no exterior, em uma boate situada em Las Palmas/Espanha, chamada "Exita", de propriedade de uma pessoa de nome Carlos, casado com Lílian, esta última filha da denunciada. A "denúncia anônima" fala claramente que a responsável pelo esquema no Brasil é a denunciada, que também cuida de toda movimentação financeira do esquema, juntamente com uma pessoa de nome Ariane, as quais aliciam moças humildes da periferia de São Paulo para a prostituição; esclarece inclusive o funcionamento do esquema dizendo que Carlos, através de Lílian, entra em contato com a denunciada Prescila no Brasil falando que precisa de moças, e, a partir daí a denunciada e Ariane partem em busca de moças, providenciando toda a documentação necessária - passaporte e passagens - para mandarem as moças para a Espanha, através de uma agência de turismo de nome SAMPA TUR, cujo contato seria um funcionário de nome Ricardo, que providencia as passagens.

Além dos depoimentos prestados nos autos e das circunstâncias da prisão em flagrante da denunciada, a confirmar as informações fornecidas através da citada "denúncia anônima", estão os passaportes apreendidos em nome das garotas que acompanhavam a denunciada na Agência SAMPA TUR, bem como os bilhetes eletrônicos emitidos em nome destas e da denunciada com destino a Espanha. Há ainda que se mencionar a arrecadação com a denunciada de 1.250,00 Euros (hum mil duzentos e cinqüenta euros) e R$ 1.450,00 (hum mil quatrocentos e cinqüenta reais), ambos em espécie (fls. 45), havendo com a denunciada dois comprovantes de "Money Order" sendo um deles relativo a uma transferência através de teletransmissão no valor de R$ 4.114,25, datada de 29/03/2007 (um dia antes do flagrante), remetida por Lilian para o filho da denunciada de nome Thiago Chaves da Cunha, que teria, segundo a própria denunciada, apenas emprestado seu CPF para recebimento da transferência.

Os policiais prestaram depoimento às fls. 58 e 59 relatando o ocorrido quando da averiguação das informações fornecidas através da "denúncia anônima", sendo que as garotas que estavam na agência de turismo prestaram depoimento às fls. 60/67, afirmando que trabalhavam no ramo de prostituição e tinham ciência de que iriam para a Espanha para trabalharem lá "fazendo programas", tendo a denunciada dito que o valor do "programa" seria de cento e vinte euros por hora e que metade deste valor deveria ser dado a boate, citando sempre o nome da denunciada como contato no Brasil, e, em alguns momentos fazendo referência a Lílian, filha da denunciada.

Consoante Termos de Depoimento, as garotas eram orientadas a falar as autoridades que estavam indo como turistas ao entrarem em território espanhol; uma das garotas, DANIELA (fls. 62/63), disse que já tinha ido para Espanha para trabalhar como prostituta na "Boate Epicia" no ano anterior, e que quem teria pago sua passagem teria sido Lilian e Carlos, filha e genro da denunciada.

Outra garota, de nome NÍVEA, em seu depoimento (fls. 64/65) falou que chegou ao nome da denunciada e de Arine (constante da denúncia anônima), através de sua colega de profissão de nome Daniela, tendo sido combinado com a denunciada que apanhariam as passagens aéreas com esta última em uma agência denominada SAMPA TUR, acrescentando que viajariam com a denunciada e sua filha Lilian. Por fim, a outra garota que acompanhava a denunciada, MARIA HELIDIANE, disse que conheceu PRESCILA em uma casa noturna e esta lhe propôs ir para a Espanha, sendo descontado posteriormente o valor da passagem através de programas, afirmou ainda que a denunciada é quem acompanhava tudo até a chegada na Espanha, sendo a responsável pela operação até o embarque e locação da casa (fls. 66/67).

Em declarações prestadas pela denunciada às fls. 69/70, esta confirmou que se encontrava naquela data acompanhada das garotas de programa MARIA HELIDIANE, ADRIANA DE JESUS, NIVEA DE SOUZA e DANIELA BARBOSA, na Agência de Turismo SAMPA, e que no momento da abordagem portava a quantia de 1.250,00 Euros e R$ 1.450,00, remetido pela sua filha LILIAN HELENA CHAVES CUNHA, residente em Las Palmas/Espanha, através de Teletransmissão para uma conta emprestada de seu filho THIAGO CHAVES DA CUNHA. Afirmou que iria trabalhar na Casa de Programa de propriedade de seu genro, localizada em Las Palmas, sendo que as garotas - acima nominadas - também trabalhariam na Casa Ecita; descreveu ainda o horário e forma de faturamento dos programas. Declarou que era apenas agenciadora, e que desta vez iria para trabalhar de segunda a sábado, com um faturamento médio no mês de 15.000,00 euros (fls. 69/70); porém, apesar de ter prestado tais declarações voluntariamente, em momento posterior, provavelmente por sugestão de seu advogado, disse que somente falaria em juízo (fls. 72).

Por fim, foi ouvida em sede policial a sócia-proprietária da Agência SAMPA TUR, MARINA DAVID, afirmando que estava em sua agência quando quatro mulheres chegaram, acompanhadas por homens que diziam ser seus esposos, dizendo que esperavam por uma mulher que lhes daria suas passagens aéreas; não estava presente no momento da detenção das mulheres, mas ficou sabendo através de seu funcionário RICARDO que as passagens foram pagas em dinheiro, esclarecendo que após a detenção de PRESCILA o telefone da agência tocou e tratava-se de LILIAN, filha da denunciada, querendo falar com o funcionário RICARDO, porém desligou o telefone e logo em seguida recebeu outro telefonema de um indivíduo que não se identificou e lhe falou para "tomar cuidado com a boca" (fls. 82/83).

Assim, ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL denuncia PRESCILA ARAUJO CHAVES como incursa nas penas do art. 231, caput, c.c. art.231, § 3º, ambos do Código Penal, requerendo que, recebida e autuada esta, seja a denunciada citada para interrogatório e acompanhamento do presente feito, dando-se o regular prosseguimento ao mesmo de acordo com as normas processuais penais, ouvindo-se as testemunhas abaixo arroladas durante a instrução criminal, até ulterior condenação.".

"O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, através da Procuradora da República que esta subscreve, em atenção ao r. despacho de fls. 105, vem respeitosamente perante V.Exa. apresentar o presente ADITAMENTO À DENÚNCIA, esta oferecida às fls. 02/08, para incluir no polo passivo CARLOS DE TAL e LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA, pelos motivos de fato e de direito a seguir expostos.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ofereceu denúncia em face de PRESCILA ARAUJO CHAVES, c/c art.23l, § 3º, do Código Penal, eis que, no dia 30/03/2007, a fim de verificar a veracidade de denúncia anônima a respeito de um suposto esquema de tráfico de mulheres, policiais civis dirigiram-se a agência de turismo SAMPA TUR, e prenderam em flagrante a denunciada, com passaportes e bilhetes de viagem com destino a Espanha, em nome dela e de outras mulheres que se encontravam com esta na citada agência de turismo, as quais, aliciadas pela denunciada, iriam para o exterior para trabalhar como prostitutas em uma Boate chamada "EXITA LAS PALMAS", situada na cidade de Las Palmas, na Espanha.

Segundo consta da denúncia anônima (fls.15/16), a responsável pelo esquema no Brasil seria a denunciada PRESCILA, sendo que a boate na qual as moças brasileiras aliciadas por PRESCILA iriam trabalhar chamava-se EXITA LAS PALMAS, localizada em Las Palmas/Espanha, cujo proprietário seria Carlos, casado com Lílian, esta última filha da denunciada, também envolvidos no esquema, como se extrai de alguns trechos da "denúncia anônima" abaixo transcritos:

"(...) A Boate de nome Exita Las Palmas, cujo proprietário de nome Carlos, conhecido como `Boss`, esta recrutando moças brasileiras para se prostituírem em sua boate na Espanha. Carlos é casado com uma brasileira de nome Lílian que faz o contato com as moças aqui no Brasil."

"(...) O esquema funciona da seguinte forma, Carlos, através de Lílian, entra em contato com Priscila aqui no Brasil, e diz que está precisando de moças, a partir daí Priscila e Ariane saem em busca das moças após realizarem o recrutamento, elas providenciam toda a documentação necessária para mandarem as moças para a Espanha, arrumam o passaporte, compram as passagens, providenciam o que for necessário para que as moças cheguem à Espanha."

"(...) O proprietário chama-se Carlos e casado com uma brasileira de nome Lílian Helena Chaves da Cunha, filha de Priscila que alicia as moças aqui no Brasil, juntamente com tal de Ariane."

O endereço da boate é citado na denúncia anônima como sendo Rua Jeneral Vives, 57, Pq. Santa Catalina - Las Palmas de Grancaria - Espanha.

Além da menção na notícia anônima dos nomes dos ora denunciados como diretamente envolvidos no esquema de aliciamento e saída de mulheres para trabalhar como prostitutas no exterior, figurando PRESCILA como a principal aliciadora e contato de sua filha LILIAN e seu genro CARLOS, estes residentes no exterior e donos da boate EXITA (ou ECITA) LAS Palmas, onde as mesmas iriam exercer a prostituição, há ainda que se mencionar os depoimentos prestados pelas mulheres que acompanhavam PRESCILA no momento do flagrante nos quais há expressa citação aos nomes de LILIAN e CARLOS.

Com efeito, observe-se trechos dos depoimentos prestados em sede policial pelas mulheres aliciadas por PRESCILA e que embarcariam para a Espanha com o objetivo de exercerem a prostituição:

"Que, a depoente conhecia DIANNA (garota de programa) que falou que afilha de DONA PRISCILLA, de nome LILIAN, tinha um jeito de mandar garotas para o exterior, onde iriam fazer programas. A depoente acredita que os Euros são mandados da Espanha através de Lilian. (...)" - depoimento fls. 68/69 - ADRIANA GOMES DE JESUS

"Que, ele (indivíduo de nome ANGELO) deu a depoente o telefone de LILIAN, sendo que tiveram contatos por telefone e ela explicou como era a casa lá na Espanha, a qual falou que a casa era boa, que forneciam comida, disse das roupas que deveriam levar para lá. Que, com relação a PRSICILLA, que é mãe de LILIAN ela dá uma força para ela. (...) Que quem pagou a passagem aérea foi a LILIAN e CARLOS esposo dela, Gerente da Casa denominada EPICITA que pagaram a passagem aérea, sendo que eles mandaram 300 Euros e quando lá chegou trabalhou, pagando o valor da passagem... (...) Que na primeira viagem a depoente foi para o Aeroporto com duas amigas, que iriam fazer programa lá na Espanha e na chegada quem as foi pegar foi a LILIAN e seu esposo CARLOS e do aeroporto foram direto para a Boate Epicita. (...) Que a depoente recebeu orientação de LILIAN para dizer que estava lá de férias e se falasse se estava lá para fazer programa seria deportada. A depoente esclarece que LILIAN na Espanha tem endereço na Rua General Vives, 57 - I piso - Botão Vermelho." - Depoimento de DANIELA MARTINS MOREIRA BARBOZA - fl. 70

"A depoente informa que o passaporte tirou no mês de janeiro e por sua conta e que iria viajar com Dona Priscila e LILIAN sua filha e ainda uma outra garota que aceitou ir para a Espanha e que sabia perfeitamente que estava indo para trabalhar como prostituta" - Depoimento de NOVEA BISPO SOUZA - fls.72

Até mesmo a denunciada PRESCILA informou em suas declarações de fls. 77/78 que a Casa onde as garotas iriam trabalhar era de propriedade de seu genro, o ora denunciado CARLOS, sendo que recebia, através da conta de seu filho THIAGO, importância em Euros remetidas por sua filha LILIAN, também denunciada, provavelmente para financiar as despesas com documentos e passagens das garotas que iriam trabalhar como prostitutas na Boate de CARLOS. Ressalvou que o "as passagens era reserva pelo Gerente da Casa de programa JOSE NICOLAS HERNANDEZ MORALEZ.

Assim, ante o exposto, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL adita a denúncia para nela incluir CARLOS DE TAL e sua esposa LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA, residentes no exterior e endereço comercial declinado acima, pela prática do crime tipificado no art. 231, caput, do Código Penal, requerendo-se o recebimento do presente ADITAMENTO nas formas e termos legais.

Nesta oportunidade, retifica o MPF a capitulação legal constante da denúncia de fls. 02/07, tendo em vista O advento da Lei 11.106/2005, que revogou o § 3º do art.231 do Código Penal.

Por fim, melhor esclarecendo o item "3" da cota de oferecimento de denúncia (fl. 103) procedeu o MPF ao ADITAMENTO da presente denúncia em relação a CARLOS e LILIAN, como visto acima, eis que com relação a eles já se encontra demonstrada a materialidade delitiva e há indícios suficientes de autoria; porém, com relação a outros nomes que aparecem na "denúncia anônima" de fls. 15/16, bem como nos depoimentos colhidos em sede policial e declarações de PRESCILA (fls. 68/78 e 90/91), tais como o nome do gerente da Casa e Boate ECITA ou EXITA, José Nicolas Hernandez Morales, ou do funcionário da Agência de Turismo SAMPA TUR, Ricardo de Tal, ou ainda da outra suposta aliciadora de mulheres para fins de prostituição no exterior, que trabalharia junto com PRESCILA, Ariane, apesar de haver no momento indícios de seu envolvimentos nos fatos narrados, este ainda não se mostram suficientes para justificar o oferecimento de denúncia em face dos mesmos, o que poderá vir a acontecer durante a instrução criminal, com as oitivas a serem realizadas, o que justificaria um novo aditamento a denúncia.".


A denúncia, e seu aditamento, foram recebidos em 24/04/2007 (fls. 112).


Aos 23/03/2010 (fls. 779) foi determinado o desmembramento da ação em relação à corré LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA, dada a expectativa de expedição de nova carta rogatória para sua citação e interrogatório, o que geraria excessivo atraso na tramitação do processo em relação aos demais corréus, sendo originados os presentes autos, de nº 0003784-95.2010.4.03.6181 (2010.61.81.003784-7), somente em relação à corré LILIAN.


Processado o feito, sobreveio sentença (fls. 1303/1313), publicada em 24/11/2015 (fls. 1314). Consignou a MM. Juíza:

"Diante de todo o exposto, JULGO PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal descrita na denúncia para CONDENAR a ré LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA, qualificada nos autos, como incursa nas penas do artigo 231, caput do Código Penal.

Passo à dosimetria da pena.

1ª fase - Circunstâncias Judiciais

Na análise do artigo 59 do CP, merecem registro as seguintes circunstâncias judiciais:

A) culpabilidade: conforme é cediço, a culpabilidade está ligada à intensidade do dolo ou grau de culpa do agente, tendo em vista a existência de um plus de censurabilidade e reprovação social da conduta praticada, que poderia ser evitada. A frieza do agente e a premeditação, por exemplo, são características a serem examinadas nessa oportunidade. No caso em tela, a culpabilidade é extremamente acentuada, pois a ré possuía papel relevante na organização da atividade criminosa revelada através da chamada "Operação Harém", uma vez que além de aliciar pessoas e as incentivar a praticar a prostituição no exterior, ainda gerenciava a casa e instruía as garotas a passarem "disfarçadamente" pela imigração espanhola. Ainda, apesar de não comprovada a fraude, o

que poderia ensejar a forma qualificada do delito, restou comprovado abuso por parte da ré em relação às garotas, que eram submetidas a jornadas longas de trabalho (aproximadamente 15 horas!), com pagamentos divididos em 50% com a "casa":

"NIVEA BISPO DE SOUSA declarou em Juízo que poderia voltar ao Brasil, mas primeiro trabalhar para pagar as passagens e despesas de sua ida à Espanha (mídia audiovisual de fl. 989). Ainda, afirmou em sede policial saber que o horário de trabalho era das 14:00 às 05:00 horas, e o programa custava cerca de 100 euros (...), fls. 78/79.

ADRIANA GOMES DE JESUS declarou que os programas custavam 120 euros a hora, sendo metade da casa e metade da depoente (...) os programas se iniciam as 14:00 horas da tarde até as 5:00 do dia seguinte (...) (fls. 74/75).

DANIELA MARTINS MOREIRA BARBOZA disse que os programas eram cobrados da seguinte forma: na primeira hora ganha-se 100 euros, dos quais 40 ficam para a casa. Quando o programa é de meia hora, metade fica para a casa. LÍLIAN instrui as moças a dizerem na imigração espanhola que estão no país em férias, a fim de evitar deportação (fls. 76/77).

MARIA HELIDIANE GOMES DE JESUS disse saber do fato que deveria dividir metade do dinheiro ganhado com a casa, além de reembolsar as despesas da passagem aérea, no valor de R$ 3.236,42 reais (...) (fls. 80/81)". Grifos nossos.

Ora, promover a saída de garotas do Brasil para fazê-las exercer a prostituição por quinze horas diárias, dividindo a METADE de seus ganhos certamente revela a intensidade dolosa muito exacerbada da ré, a qual sequer se importava com a dignidade das moças, conquanto isso lhe proporcionasse lucro. Assim, a culpabilidade ser significativamente valorada em seu desfavor;

B) antecedentes: Trata-se de requisito objetivo, que impede qualquer análise subjetiva do julgador, nada havendo que desabone a ré;

C) conduta social e da personalidade: nada digno de nota foi constatado, além do desvio que o levou à prática delitiva;

D) motivo: tendo sido o crime praticado com o fim de auferir vantagem econômica, a presente circunstância também deve ser valorada em prejuízo da acusada, mormente porque antes da edição da lei nº 12.015, de 07/08/2009 o tipo peral não fazia qualquer distinção em relação à aplicação da pena de multa em razão de cometimento do crime com fins de lucro. Assim, não há falar se em motivo ínsito ao tipo, ou em bis in idem;

E) circunstâncias e conseqüências: As circunstâncias e consequências do crime não prejudicam a ré;

F) comportamento da vítima: o comportamento das vítimas em nada influenciou no cometimento do delito.

Assim, considerando as penas abstratamente cominadas no preceito secundário do artigo 231, "caput", do Código Penal Brasileiro entre os patamares de 3 a 8 anos de reclusão e multa, na redação da lei n. 11.106/05, fixo a pena-base em 05 (cinco) anos de reclusão e 16 (dezesseis) dias multa;

2ª fase - Circunstâncias atenuantes e agravantes

Na segunda fase de aplicação da pena, não há circunstâncias agravantes ou atenuantes a serem consideradas.

3ª fase - Causas de diminuição e causas de aumento

Não há causas de aumento a incidirem na espécie, sendo de rigor a aplicação da causa prevista no artigo 14, inciso II do Código Penal, relativa à tentativa.

Isso porque, a execução do crime foi iniciada e apenas não se consumou por circunstâncias alheias à vontade da agente. Assim, considerando o patamar de diminuição legal de um a dois terços, e o grau de diminuição decorrente da maior ou menor proximidade da consumação do crime, deve ser incidir a fração de metade na espécie. Isso porque a ré não praticou TODOS os atos que lhe cabiam para o efetivo exercício da prostituição pelas vítimas, mas praticou tudo o que era possível fazer no Brasil. Com a chegada do vôo na Espanha, ainda seria necessária a entrada regular, o encaminhamento à casa e a efetiva atividade das garotas, tendo sido o iter criminis cumprido substancialmente, na metade.

Assim, reduzo a pena pela metade, fixando-a em 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de reclusão e 10 (dez) dias multa.

O valor de cada dia-multa será de 1/30 do salário mínimo vigente, pois não se apurou condição econômica privilegiada do acusado.

Reconheço, ainda, a existência do concurso formal de crimes, pois a ré promovia a saída de quatro moças ao exterior. Tal fato estava devidamente descrito no aditamento à denúncia, tendo a ré se defendido corretamente da referida imputação. Assim, em atendimento ao princípio da correlação, aumento a pena em 1/3 por força do artigo 70 do Código Penal, em se tratando de quatro pessoas, fixando-a definitivamente em 03 (três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão e 13(treze) dias multa.

Fixo, ainda, o regime inicial semi-aberto nos termos do art. 33, caput e §2º, "b", do Código Penal.

Na espécie não estão presentes os requisitos do art. 44 e seguintes do CP para se determinar a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. Isso porque as circunstâncias judiciais narradas indicam não ser a substituição da pena a medida socialmente recomendável à ré, a qual deve cumprir a pena privativa de liberdade estipulada.

A pena de multa deverá ser aplicada independentemente do disposto acerca do cumprimento das penas restritivas de direitos.

Tratando-se de ré primária, a qual respondeu ao processo em liberdade, inexistindo pressupostos para a decretação da prisão preventiva, concedo-lhe o direito de apelar em liberdade.

Condeno a ré ao pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 804 do Código de Processo Penal c.c. a Lei nº 9.289/96.

Providências após o trânsito em julgado:

1) Expeçam-se Guias de Execução para o juízo competente.

2) Lance-se o nome da ré no rol dos culpados.

3) Oficiem-se aos órgãos responsáveis pelas estatísticas criminais (IIRGD e INI), assim como ao TER e à INTERPOL, haja vista tratar-se de residente fora do país.

4) Intime-se a ré, via Carta Rogatória para o pagamento das custas processuais, nos termos da lei e, se for verificada a inadimplência, oficie-se à Procuradoria da Fazenda Nacional para adoção das providências pertinentes.".


Apela a corré LILIAN (fls. 1322/1327). Sustenta:

- Insuficiência de provas de materialidade e autoria, o que implicaria a absolvição da ré;

- Fixação da pena no mínimo legal, com aplicação do redutor de 2/3 (dois terços) em razão de se tratar de crime tentado, a aplicação de aumento de apenas 1/6 (um sexto) em razão do concurso formal, a fixação do regime inicial de cumprimento em aberto, bem como a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.


Contrarrazões do MPF (fls. 1330/1336), pugnando pelo desprovimento da apelação da ré LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA.


A Procuradoria Regional da República, nesta instância (fls. 1342/1347 vº), opinou pelo improvimento do recurso defensivo.


É o relatório.


À revisão.


MÁRCIO MESQUITA
Juiz Federal Convocado


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): MARCIO SATALINO MESQUITA:10125
Nº de Série do Certificado: 46E37808D2C34E84
Data e Hora: 20/09/2017 19:49:20



APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0003784-95.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.003784-7/SP
RELATOR : Desembargador Federal WILSON ZAUHY
APELANTE : LILIAN HELENA CHAVES DA CUNHA
ADVOGADO : SP084958 MARIA JOSE CACAPAVA MACHADO e outro(a)
APELADO(A) : Justica Publica
CO-REU : PRESCILA ARAUJO CHAVES
: CARLOS ALEMAN ORTEGA
No. ORIG. : 00037849520104036181 4P Vr SAO PAULO/SP

VOTO

O Juiz Federal Convocado MÁRCIO MESQUITA (Relator):


Preliminarmente, observo ser necessária a análise da repercussão, ao caso dos autos, da superveniência da Lei 13.344, de 06/20/2016, publicada em 07/10/2016,e que nos termos de seu artigo 17, entrou em vigor quarenta e cinco dias após a publicação.

Com efeito, segundo a denúncia, os fatos ocorreram em 30/03/2007. E a sentença foi proferida em 24/11/2015.

O crime imputado à ré foi o de tráfico internacional de pessoas, previsto no artigo 231, caput, do Código Penal, que como bem anotado pela sentença, à época dos fatos descritos na denúncia vigorava com a redação dada pela Lei 11.106/2005 (antes de sua alteração pela Lei 12.015/2009):

Tráfico internacional de pessoas

Art. 231. Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º - Se ocorre qualquer das hipóteses do § 1º do art. 227:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 11.106, de 2005)

§ 2º Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude, a pena é de reclusão, de 5 (cinco) a 12 (doze) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

Tráfico interno de pessoas

§ 3º - Se o crime é cometido com o fim de lucro, aplica-se também multa.


Contudo, posteriormente à sentença, sobreveio a Lei 13.344/2016 que expressamente revogou os artigos 231 e 231-A do Código Penal e introduziu no mesmo diploma normativo o artigo 149-A, que estabeleceu nova tipologia para o tráfico de pessoas:

Tráfico de pessoas

Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:

I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;

II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;

III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;

IV - adoção ilegal; ou

V - exploração sexual.

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§1º A pena é aumentada de um terço até a metade se:

I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;

II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;

III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou

IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.

§2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.

Houve, nesse caso, revogação formal do tipo penal, com a inserção imediata de tipo inovador (alteração topográfica normativa), sem efetiva supressão do fato criminoso, ocorrendo, portanto, continuidade normativo-típica, porém somente em parte, como se verá a seguir.

As condutas mais abrangentes de "promover", "intermediar" ou "facilitar" a saída de pessoa para exercer a prostituição no estrangeiro estão incluídas agora nas condutas mais específicas de "agenciar", "aliciar", "recrutar", "transportar", "comprar", "alojar" e "acolher" pessoas para fins de exploração sexual (artigo 149, caput, c.c. seu inciso V e §1º, inciso IV).

Na vigência da Lei 11.106/2005 o emprego de violência, grave ameaça ou fraude consistia qualificadora das condutas descritas no caput do artigo 231 do Código Penal. Logo, na vigência dessa lei, o entendimento jurisprudencial, inclusive adotado na r.sentença apelada e por este Relator, era amplamente majoritário no sentido de que o consentimento da vítima era irrelevante para a configuração do delito previsto no caput, v.g.: (ACR 00011889820114013000, Des.Fed. Tourinho Neto, TRF1 - 3ª T, e-DJF1 05/04/2013 p. 291.)

Contudo, na nova redação do artigo 149-A do CP dada pela Lei 13.344/2016, a violência, a grave ameaça e a fraude - e agora também as figuras da coação e o abuso - estão incluídas como circunstâncias elementares do novo tipo penal, de modo que, se elas não ocorrem, não se configura a tipicidade da conduta.

Equivale dizer, especialmente com relação ao crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, de que se cuida nos autos, que uma vez verificada a existência de consentimento válido, sem qualquer vício, resta afastada a tipicidade da conduta.

Embora a Lei 13.344/2016 seja recente e não tenha este Relator logrado encontrar precedentes jurisprudenciais sobre a questão aqui colocada, já há diversas manifestações doutrinárias nesse sentido:


(...) Enquanto nos crimes dos artigos 231 e 231-A a violência ou fraude atuava como majorante, no crime de tráfico de pessoas passa a fazer parte do próprio tipo penal. Se o dissentimento é requisito do crime, o consentimento válido do ofendido exclui a tipicidade da conduta (não atuando como causa supralegal de exclusão da ilicitude). (...).

(CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Lei de Tráfico de Pessoas traz avanços e causa perplexidade. in http://www.conjur.com.br/2016-out-11/academia-policia-lei-trafico-pessoas-traz-avancos-causa-perplexidade)

(...) Outro fator interessante de ser analisado é o consentimento do ofendido e se este exclui o crime. Antes da lei 13.344/2016, o emprego das violências (física e moral) ou fraude servia como majorante de pena. Nessa ordem, a maioria da doutrina lecionava que o consentimento da vítima era irrelevante. Com o advento da nova lei, o legislador modificou essas condutas de lugar, que saíram do rol das majorantes para a execução alternativa do crime de tráfico de pessoas, ou seja, sem violência, coação, fraude ou abuso não há que se falar em crime. Diante desse novo cenário, quando existe a figura do consentimento válido da pessoa, a tipicidade fica excluída. (...).

(ALMEIDA, Vinicius Margato de. Tráfico de Pessoas e a Lei 13.344/2016. in https://margato10.jusbrasil.com.br/artigos/474235018/trafico-de-pessoas-e-a-lei-13344-2016).

(...) 46-H. Novo crime: trata-se de tipo penal incriminador inédito em nossa (da maneira como redigido), intitulado tráfico de pessoas, instituído pela Lei 13.344, de 6 de outubro de 2016, para entrar em vigor 45 dias após sua publicação. A mesma lei revogou os arts. 231 e 231-A, que tratavam do tráfico internacional e interno de para fins sexuais. Finalmente, uma lei mais racional e bem equilibrada do que criando tipos penais novos. Temos criticado em nossas obras, incluindo a monografia Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas, que o referido tráfico não se concentra apenas no campo sexual, abrangendo um contingente muito maior e mais amplo. Portanto, os arts. 231 e 231-A eram, de fato, vetustos. Alias, nasceram envelhecidos e mal redigidos. Precisavam mesmo de um reparo completo, o que foi feito diante da criação do art. 149-A, cuja pretensão punitiva é tão abrangente quanto necessária. O tráfico de pessoas dá-se em todas as hipóteses descritas nos cinco incisos do novel artigo, além do que também criticávamos o uso do termo prostituição, como meta do traficante e da vítima. Foi alterado para a forma correta: exploração sexual. Nem sempre a prostituição é uma modalidade de exploração, tendo em vista a liberdade sexual das pessoas, quando adultas e praticantes de atos sexuais consentidos. Ademais, a prostituição individualizada não é crime, no Brasil, de modo que muitas mulheres (e homens) seguem para o exterior justamente com esse propósito, e não são vítimas de traficante algum. Em suma, a alteração é bem-vinda e, em nosso entendimento, quanto à parte penal, tecnicamente bem feita.

(...)

46-R. Exploração sexual: finalmente, o legislador acordou e refez o seu entendimento para o sentido correto, em nossa visão. As antigas figuras de tráfico de pessoas (arts. 231 e 231-A, revogados) envolviam a finalidade de exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual, dando a entender que a prostituição seria, sempre uma maneira de explorar o ser humano. Em nossa monografia Prostituição, lenocínio e tráfico de pessoas, buscamos demonstrar o atraso desse ponto de vista, tendo em vista que inexiste a autoexploração, o que ocorre no tocante a vários profissionais do sexo adultos, ganhando a vida pelo contato sexual com quem se disponha a pagar certa quantia. Sob outro prisma, afirmar que todo agenciador da prostituição deve ser punido é outro retardo, pois esse agenciador pode perfeitamente ser benéfico ao profissional do sexo, retirando-o das ruas para abrigá-lo em local específico. Falar, hoje em dia, em "casa de prostituição" como figura delituosa é uma hipocrisia, pois o comércio sexual se dá em vários locais, a olhos vistos, seja em uma casa especial para tanto, seja em locais denominados motéis, hotéis, bares etc. A Lei 13.344/2016 merece aplauso nesse prisma, pois já se estão debatendo a legalização e a regulamentação da atividade sexual de maiores de idade, quando não há violência, ameaça ou fraude. Em suma, a finalidade de exploração sexual - sem menção à prostituição - é muito mais abrangente e pode, em certas situações, até envolver a prostituição. Tudo depende do modo como esta é exercida, da idade do profissional do sexo e do seu consentimento. Explorar significa tirar proveito de algo ou enganar alguém para obter algo. Unindo esse verbo com a atividade sexual, visualiza-se o quadro de tirar proveito da sexualidade alheia, valendo-se de qualquer meio constrangedor, ou enganar alguém para atingir as práticas sexuais com lucro. Explora-se sexualmente outrem, a partir do momento em que este é ludibriado para qualquer relação sexual ou quando o ofendido propicia lucro somente a terceiro, em virtude de sua atividade sexual. A expressão exploração sexual difere de violência sexual. Logo, o estuprador não é um explorador sexual. Por outro lado, exploração sexual não tem o mesmo sentido de satisfação sexual. Portanto, a relação sexual, em busca do prazer, entre pessoa maior de 18 anos com pessoa menor de 18 anos não configura exploração sexual. (...)".

(NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17ª Ed. Ed. Forense. 2017. Pp. 892 e 896) (grifos nossos)

Assim, quanto ao crime de tráfico de pessoas previsto no artigo 231, caput, do CP na redação da Lei 11.106/2005, para o qual o consentimento da vítima era irrelevante penal, ocorreu abolitio criminis.

Note-se que a continuidade normativo-típica ocorreu apenas parcialmente, com relação ao artigo 231 na sua figura qualificada do §2º, que é a facilitação, intermediação, promoção de entrada de pessoa ou saída para o exterior para exercer a prostituição desde que com emprego de violência, grave ameaça ou fraude, ou seja, atuações do agente que acarretem vício ao consentimento da vítima.

Observo que essa conclusão é coerente com o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, promulgado pelo Decreto 5.017, de 12 de março de 2004.

Essa alteração legislativa interna veio promover no âmbito do Direito Penal uma adequação aos preceitos estabelecidos pelo Tratado Internacional que o Brasil firmou e internalizou à legislação pátria por meio do decreto citado.

A nova legislação amplia o bem jurídico tutelado, que antes era reservado à prostituição, alcançando agora a figura mais abrangente da exploração sexual, além de outras hipóteses anteriormente não previstas (remoção de órgãos, etc), bem como incrementando as descrições das condutas criminalizadas no tipo alternativo misto, de modo a recrudescer o combate a referidos atos.

Mas, além dessa ampliação, e também em atendimento ao espírito do Protocolo mencionado, a nova legislação limita a proteção ao bem jurídico tutelado aos casos em que há, de alguma forma, vício de consentimento. Confiram-se disposições de referido protocolo:

(...) Artigo 3

Definições

Para efeitos do presente Protocolo:

a) A expressão "tráfico de pessoas" significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;

b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a);(...).


A contrario sensu, se o consentimento é válido, ou seja, se ele foi deduzido sem grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, não - ao menos na hipótese de exploração sexual, de que se cuida nos autos - não se configura o crime.

No caso dos autos, basta o exame da denúncia para se verificar que não há nenhuma referência a algum tipo de grave ameaça, violência ou fraude. Ou seja, só o exame dos termos da denúncia já bastaria para se concluir pela abolitio criminis com relação à conduta nela descrita:

Os policiais prestaram depoimento às fls.58 e 59 relatando o ocorrido quando da averiguação das informações fornecidas através da "denúncia anônima", sendo que as garotas que estavam na agência de turismo prestaram depoimento às fls.60/67, afirmando que trabalhavam no ramo de prostituição e tinham ciência de que iriam para a Espanha para trabalharem lá "fazendo programas", tendo a denunciada dito que o valor do "programa" seria de cento e vinte euros por hora e que metade deste valor deveria ser dado a boate, citando sempre o nome da denunciada como contato no Brasil, e, em alguns momentos fazendo referência a Lílian, filha da denunciada.

Consoante Termos de Depoimento, as garotas eram orientadas a falar às autoridades que estavam indo como turistas ao entrarem em território espanhol, uma das garotas, DANIELA (fls.62/63), disse que já tinha ido para Espanha para trabalhar como prostituta na "Boate Epicia" no ano anterior, e que quem teria pago sua passagem teria sido Lilian e Carlos, filha e genro da denunciada.

Outra garota, de nome NÍVEA, em seu depoimento (fls.64/65) falou que chegou ao nome da denunciada e de Arine (constante da denúncia anônima), através de sua colega de profissão de nome Daniela, tendo sido combinado com a denunciada que apanhariam as passagens aéreas com esta última em uma agência denominada SAMPA TUR, acrescentando que viajariam com a denunciada e sua filha Lilian. Por fim, a outra garota que acompanhava a denunciada, MARIA HELIDIANE, disse que conheceu PRESCILA em uma casa noturna e esta lhe propôs ir para a Espanha, sendo descontado posteriormente o valor da passagem através de programas, afirmou ainda que a denunciada é quem acompanhava tudo até a chegada na Espanha, sendo a responsável pela operação até o embarque e locação da casa (fls.66/67).".


Não bastasse a ausência de descrição, na denúncia, de qualquer violência, ameaça ou fraude, durante a instrução processual, confirmou-se que realmente todas as mulheres que estavam prestes a embarcar para o exterior tinham dado o seu total consentimento, bem como possuíam plena consciência em relação ao propósito da viagem, sendo que uma delas, inclusive, iria pela segunda vez exercer a prostituição na Espanha, agenciada novamente pela corré PRESCILA.

Tanto assim é que a r.sentença apelada - proferida, repita-se, antes da vigência da Lei 13.444/2016 - adota expressamente a tese da irrelevância do consentimento das vítimas, no caso concreto, para configuração do crime.


Pelo exposto, em razão da ocorrênca de abolitio criminis pela superveniência da Lei 13.344/2016, absolvo a ré, com fundamento no artigo 386, inciso III do Código de Processo Penal, e julgo prejudicada a apelação.


MÁRCIO MESQUITA
Juiz Federal Convocado


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): MARCIO SATALINO MESQUITA:10125
Nº de Série do Certificado: 46E37808D2C34E84
Data e Hora: 20/09/2017 19:49:24