Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL Nº 0000279-68.2013.4.03.6124/SP
2013.61.24.000279-5/SP
RELATOR : Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO
APELANTE : L L A D O
ADVOGADO : SP203108 MARCOS AMORIM ROCHA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SP280917 CARLOS ALBERTO DOS RIOS JUNIOR
APELADO(A) : V M A M G
ADVOGADO : SP283436 PRISCILLA CAROLINE ALENCAR RONQUI
APELADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 LUIZ CARLOS DE FREITAS
No. ORIG. : 00002796820134036124 1 Vr JALES/SP

EMENTA

DIREITO INTERNACIONAL. CONVENÇÃO DE HAIA DE 1980. ASPECTOS CIVIS DO SEQUESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS. AÇÃO DE BUSCA, APREENSÃO E RESTITUIÇÃO DE MENOR PROPOSTA PELO GENITOR. ATUAÇÃO DA UNIÃO FEDERAL NA CONDIÇÃO DE ASSISTESTE LITISCONSORCIAL. COMPROVAÇÃO DE EXCEÇÃO PREVISTA PELA CONVENÇÃO. RISCO DE GRAVE PERIGO DE ORDEM FÍSICA OU PSÍQUICA (ARTIGO 13). APELAÇÕES PROVIDAS.
1. A Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980) teve vigência a partir de 01.12.83. No Brasil vigora desde 01.01.00, tendo sido promulgada pelo Decreto 3.413, de 14.04.00, publicado em 17.04.00. Sua finalidade é proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita.
2. É imposta a aplicação da Convenção de Haia de 1980 quando se verificar o deslocamento ilícito de menor de 16 (dezesseis) anos, de seu Estado de origem, onde possui residência habitual, bem como a sua indevida retenção, em outro Estado signatário, incidindo, em tais hipóteses, procedimentos de retorno imediato da criança.
3. Não obstante o Ato tenha esse objetivo, a cooperação promovida entre os Estados Signatários fundamenta-se, sobretudo, na preservação dos direitos do menor, notadamente quanto à sua integridade psicológica, emocional e física.
4. Nos termos do art. 12 da Convenção de Haia nos casos em que tenha decorrido menos de um ano entre a data da transferência ilícita ou retenção indevida e a data de início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde se encontra a criança, seu retorno ao Estado de residência habitual deverá ser imediato e, mesmo se expirado tal prazo, essa restituição deverá ocorrer, salvo, nesta segunda hipótese, o caso de comprovação de encontrar-se o menor integrado ao novo meio.
5. A Convenção prevê diversas hipóteses como exceção para o retorno do menor ao país em que tinha residência habitual: (i) o artigo 12 prevê a adaptação do menor à nova residência, quando o pedido de retorno ocorre após um ano da transferência irregular; (ii) o artigo 13 prevê três situações distintas: (a) quando a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; (b) quando existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável; e (c) a consideração da opinião do menor que já possui grau de maturidade adequada; e (iii) o artigo 20 prevê que o retorno poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
6. Compete à autoridade administrativa ou judicial do local onde se encontra o menor a decisão sobre estas situações, nas quais pode e deve obstar o retorno do menor ao país em que ele tinha residência habitual, mesmo que ilícita tenha sido a transferência ou retenção.
7. Dado o status normativo dos tratados e convenções que versam sobre direitos humanos ou diversos, a interpretação das normas fundadas em tais diplomas deve se dar de forma consentânea com os parâmetros constitucionais, sendo oportuno salientar que as orientações e exceções trazidas pela Convenção de Haia de 1980 se harmonizam com o princípio constitucional da absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes, constante do art. 227 da Constituição Federal.
8. No caso, o conjunto probatório existente nos autos, formado por fotografias, mídias digitais com vídeos de conversas entre a criança e seus genitores e laudos periciais, comprova a existência da exceção prevista no art. 13, letra "b", da Convenção de Haia de 1980, não sendo possível afirmar que a retenção da menor em território brasileiro pela genitora ocorreu de forma ilícita, pois a decisão de afastar da criança do convívio paterno pautou-se pela exposição daquela aos comportamentos inadequados, desrespeitosos, licenciosos e obscenos por parte do genitor, com veementes indícios da ocorrência de abuso sexual, o que justifica a gravidade da situação da criança no âmbito familiar.
9. As provas são harmônicas e suficientes para demonstrar que existe risco grave de a criança, caso seja devolvida à convivência do genitor, no país solicitante, ficar exposta a perigo de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, fica em condição sofrível ou intolerável, em prejuízo a seu bem estar e saúde emocional.
10. Atentando ao aspecto finalístico da Convenção de Haia de 1980, bem como à orientação jurisprudencial acerca do tema, a reforma da sentença é medida que se impõe.
11. Apelações da requerida e do Ministério Público Federal, providas para julgar improcedente a ação, condenando a União Federal nos ônus de sucumbência.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Segunda Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, DAR PROVIMENTO às apelações da requerida LLAO e do Ministério Público Federal, para reformar a r. sentença recorrida e julgar improcedente o pedido de busca, apreensão e restituição da menor LOG, deduzido por VMAMG e pela União Federal, na condição de assistente litisconsorcial. Condenar a União Federal em honorários advocatícios, fixados em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), deixando de condenar o autor VMAMG nas verbas de sucumbência por ser beneficiário da assistência judiciária gratuita (fls. 83). Decidiu, ainda, retirar a restrição imposta sobre o direito de ir e vir da menor LOG para fora dos limites do Município de Ilha Solteira/SP, cientificando-se às Polícias Rodoviárias Federal e Estadual de São Paulo e, após o trânsito em julgado, determinar a devolução, em sendo o caso, dos passaportes da criança à genitora, comunicando-se as autoridades competentes (Superintendência Regional da Polícia Federal/SP e Vara da Infância e da juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo). Por fim, decidiu determinar, o desapensamento e a restituição à origem do processo nº 0000032-53.2014.403.6124, em apenso, com cópia do presente acórdão, para que lá receba o processamento cabível, vez que cabe ao Juízo Estadual competente (local de residência da menor) a decisão acerca do direito de guarda, visitas e pensão, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 07 de novembro de 2017.
SOUZA RIBEIRO
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): LUIZ ALBERTO DE SOUZA RIBEIRO:10073
Nº de Série do Certificado: 10A5160804515019
Data e Hora: 08/11/2017 16:19:21



APELAÇÃO CÍVEL Nº 0000279-68.2013.4.03.6124/SP
2013.61.24.000279-5/SP
RELATOR : Desembargador Federal SOUZA RIBEIRO
APELANTE : L L A D O
ADVOGADO : SP203108 MARCOS AMORIM ROCHA
APELANTE : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : SP280917 CARLOS ALBERTO DOS RIOS JUNIOR
APELADO(A) : V M A M G
ADVOGADO : SP283436 PRISCILLA CAROLINE ALENCAR RONQUI
APELADO(A) : Uniao Federal
ADVOGADO : SP000019 LUIZ CARLOS DE FREITAS
No. ORIG. : 00002796820134036124 1 Vr JALES/SP

RELATÓRIO

O EXCELENTÍSSIMO DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA RIBEIRO (Relator):


Trata-se de ação ordinária, com pedido liminar, ajuizada por Vitor Manuel Antunes Mendes Gamito em 21/03/2013 em face de Luana Leni Ambrósio de Oliveira, objetivando a busca, apreensão e restituição ao país de origem, Portugal, de sua filha menor, Laura de Oliveira Gamito.


O demandante narra, em síntese, que viveu naquele país com a requerida, em união estável, por 12 (doze) anos e desse relacionamento nasceu a filha Laura, aos 06/04/2009. Em meados de 2012 decidiu viajar com a família para o Brasil a fim de visitar familiares da ré, no período de 04 a 28/10/2012, sendo que, a partir de então, sem que desconfiasse, Luana passou a procurar um advogado neste país para viabilizar uma forma de aqui permanecer com a filha menor.


Assim, em 03/10/2012, a requerida ingressou com ação, perante a Justiça Estadual de Ilha Solteira/SP, requerendo o reconhecimento e dissolução de união estável, bem como a guarda definitiva da filha, tendo sido deferida liminar fixando a guarda provisória da menor em favor da genitora, com fundamento exclusivo na hipótese de a criança ter sido vítima de abuso sexual (processo nº 0000032-53.2014.4.03.6124, apensados aos presentes autos).


Sustenta que a requerida planejou de forma ardilosa e arbitrária sua permanência no Brasil com a filha, uma vez que nunca ocorreu o alegado abuso sexual contra a menor. Destacou que a filha tem residência habitual em Portugal e luta por ela na Justiça Portuguesa, por meio de ação de regulação das responsabilidades parentais, tendo ajuizado esta demanda com vistas ao regresso da criança ao seu convívio naquele país, mantendo-a sob sua guarda, até decisão final naquele feito. Requereu, ao final, a intimação da União Federal para atuar como assistente do autor, a procedência da ação, a concessão de liminar e o deferimento da justiça gratuita (fls. 02/14). Juntou à peça vestibular os documentos de fls. 15/80.


Pela decisão de fls. 83/83v foram deferidos ao requerente os benefícios da Assistência Judiciária Gratuita.


A fls. 110/127, a requerida compareceu espontaneamente ao feito e ofereceu sua contestação. Alegou, em preliminar, carência de ação por falta de interesse processual e ilegitimidade do autor para ajuizar esta demanda com fundamento nas previsões contidas na Convenção de Haia de 1980. No mérito, argumentou, em resumo que, de fato, conviveu maritalmente com o autor em Portugal por longos anos, nascendo dessa união, a filha Laura.


Confirmou, também, que a família viajou de férias para o Brasil, em outubro de 2012, afirmando, contudo, que decidiu não retornar com a filha, porque suspeitava da ocorrência de abuso sexual por parte do companheiro em relação à criança, à vista de vários indícios que vinha constatando desde meados de 2012 (junho e julho), sendo inverídica a afirmação do requerente no sentido de que sua permanência em território brasileiro foi resultado de uma trama ardilosa e desmotivada. Argumentou também a inaplicabilidade da Convenção de Haia à hipótese em debate, uma vez que segundo a legislação portuguesa a guarda da criança caberia exclusivamente à genitora. Para comprovar suas alegações juntou aos autos os documentos de fls. 128/442.


A decisão de fls. 451/451v indeferiu a liminar pleiteada, determinando a manifestação do Ministério Público Federal e da União Federal.


A fls. 453/465, a União Federal requereu sua admissão no processo, na condição de assistente litisconsorcial, pugnando pela procedência do pedido de busca, apreensão e restituição da menor Laura de Oliveira Gamito ao Estado de origem, nos termos da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Convenção de Haia), de 25/10/80, aqui promulgada por meio do Decreto nº 3.413, de 14/04/00, considerando ter sido retida ilegalmente em território brasileiro pela genitora, o que restou deferido pela decisão de fls. 721.


Pela petição de fls. 726/727, a União Federal pleiteou que fosse informado ao Juízo da Vara Cível de Ilha Solteira/SP o ajuizamento da presente ação, a fim de que decidisse sobre a suspensão do processo nº 246.01.2012.003273-3 (autos nº 1.466/2012), até julgamento final deste feito.


Manifestou-se o Ministério Público Federal pela decretação de segredo de justiça, intimação das partes para comprovar o teor e a vigência das normas estrangeiras mencionadas e a realização de provas (fls. 728/731).


A decisão de fls. 745/746 decretou segredo de justiça na tramitação do feito e deferiu à requerida o pedido de concessão da justiça gratuita. Rejeitou as preliminares arguidas pela ré, determinou que as partes comprovassem a vigência da legislação estrangeira que invocaram e especificassem as provas que pretendiam produzir, ordenando, por fim, o encaminhamento de cópia da decisão ao Juízo de Direito da Vara Única de Ilha Solteira/SP.


Na sequência, a requerida impugnou a manifestação da União Federal de fls. 453/465, sustentando que o caso não se enquadrava no art. 3º da Convenção de Haia, pois não houve sequestro da criança, tampouco ilicitude na permanência da menor no território brasileiro. Indicou as provas que pretendia produzir a fim de comprovar as alegações de abuso sexual, de adaptação da menor ao meio social em que vive atualmente e de inexistência da prática de alienação parental de sua parte (fls. 753/762).


Em nova manifestação, a ré informou ter obtido os textos dos artigos 1911 do Código Civil Português e 8º da Lei Portuguesa nº 07/2001 em sítios da Internet referentes à legislação portuguesa, não dispondo de outros recursos para comprovar, ou não, a vigência das citadas normas. Aduziu, entretanto, que mesmo que tais dispositivos estivessem derrogados tal fato em nada alterava o direito invocado, uma vez que o autor "não comprovou que era detentor da guarda da criança em Portugal, pré-requisito essencial para a caracterização da retenção ilícita e aplicação da Convenção de Haia ao caso" (fls. 768/770).


Em seguida, o autor requereu a juntada de cópia da legislação portuguesa, a qual segundo ele se encontrava em vigor, em Portugal, desde 2008, e era aplicável ao direito de guarda de filhos advindos de união estável (fls. 778/793).


A União Federal se manifestou, consignando a desnecessidade da comprovação da vigência da legislação estrangeira invocada, nos termos dos arts. 23 e 30 da Convenção de Haia de 1980, requerendo o depoimento pessoal da ré (fls. 801/802).


A fls. 804, o requerente pleiteou a juntada das declarações originais, com firmas reconhecidas, de fls. 805/817.


O Ministério Público Federal, ratificando a manifestação de fls. 722/725v, pugnou pelo prosseguimento do feito (fls. 819v).


A fls. 820 o MM. Juízo a quo determinou que se aguardasse o cumprimento do despacho proferido, naquela data, nos autos do processo nº 0000032-53.2014.403.6124, distribuído por dependência (origem: Justiça Estadual da Ilha Solteira) ao presente feito. Em seguida, foi determinado o apensamento daquele processo aos presentes autos (fls. 834), verificando-se, a partir daí, a tramitação conjunta de ambos os feitos, a despeito de manifestação da União Federal no sentido da suspensão do processo em que se discutia a guarda da menor.


Decisão acerca das provas requeridas pelas partes, com nomeação de peritas judiciais (assistente social e psicóloga) para avaliação psicológica e social quanto ao suposto abuso sexual praticado contra a menor, e também para estabelecer se a criança estava sendo vítima de alienação parental por parte da mãe (fls. 848/841). A União indicou assistente técnico e quesitos a fls. 850/853, o autor, a fls. 859/862 e a requerida, somente quesitos, a fls. 863/865.


Laudo assistencial e psicossocial juntado a fls. 887/903.


A União Federal se manifestou sobre referido laudo e requereu a juntada de parecer da assistente técnica (fls. 917/927), sobrevindo idêntico pleito por parte do autor (fls. 928/933).


Realizada audiência para oitiva de uma testemunha indicada pela requerida (fls. 960/961v), o Parquet Federal comunicou sua ciência acerca do laudo de fls. 880/897 e das manifestações das partes, opinando no sentido de que as peritas respondessem aos quesitos formulados pela ré, pugnando por nova vista após a conclusão da instrução processual (fls. 962).


Laudo psicossocial complementar, com respostas aos quesitos articulados pela requerida, acostado a fls. 974/993.


Manifestações das partes sobre as conclusões periciais iniciais e complementares: fls. 997/999, autor; fls. 1001/1008, parte ré; e fls. 1010/1016, assistente litisconsorcial.


Parecer do Ministério Público Federal, em 1º grau, pela improcedência do pedido de busca e apreensão de menor (fls. 1020/1024).


A fls. 1029/1037, as peritas judiciais apresentaram novo laudo psicossocial complementar, em atenção ao despacho de fls. 961, o qual determinou que a perícia respondesse aos quesitos da ré e também se manifestasse sobre os pareceres dos assistentes técnicos das partes.


Alegações finais do requerente, pugnando pela procedência do pedido (fls. 1040/1050); da requerida, pela improcedência da ação (fls. 1053/1057); e da assistente litisconsorcial, União Federal, pelo deferimento do pleito (fls. 1059/1066).


Pela petição de fls. 1071, a requerida requereu a juntada de cópia de carta rogatória expedida pelo Juízo da Comarca de Lisboa Norte - Portugal, no processo nº 1190/13.8TCLRS, referente à ação de regulação das responsabilidades parentais promovida pelo ora autor (fls. 1072/1117), pugnando pela consideração de seu teor como prova da inaplicabilidade da Convenção de Haia à hipótese dos autos.


A fls. 1124v, o Ministério Público Federal informou estar ciente dos documentos juntados pela ré e reiterou o parecer de fls. 1014/1018, no sentido da improcedência do pedido inicial. Ao fim, pugnou pelo julgamento apenas da ação de busca e apreensão e restituição de menor, suscitando-se conflito de jurisdição em relação à ação ordinária em apenso, relativa à guarda da menor, perante o C. STJ.


Manifestação das partes sobre o documento juntado pela ré (carta rogatória) as fls. 1131/1133 (UF) e 1134/1136 (autor).


A sentença, prolatada em 15/12/2015, julgou parcialmente procedente o pedido, para determinar que a menor Laura de Oliveira Gamito fosse entregue ao genitor, Vítor Manuel Antunes Mendes Gamito, em seu endereço em Portugal, facultando à requerida a apresentação espontânea da criança à Autoridade Central brasileira, assim como acompanhá-la na viagem de regresso àquele país, nos termos explicitados no dispositivo. Deixou de condenar a ré ao pagamento de custas e despesas processuais, por ser beneficiária da gratuidade da justiça (fls. 1144/1150).


A requerida e o Ministério Público Federal ofertaram recurso de apelação. Sem preliminares, pugnaram pela reforma do julgado e total improcedência do pedido (fls. 1169/1181 e 1188/1192).


Ante o recebimento do recurso da ré, apenas do efeito devolutivo (fls. 1183), foram interpostos agravos de instrumentos pela ré e pelo Parquet Federal - AI nºs 2016.03.00.001064-3 e 2016.03.00.001304-8, os quais restaram providos pelas decisões de fls. 1234/1235 e 1236/1237.


Contrarrazões da parte autora ao apelo da requerida, a fls. 1222/1230 e ao recurso do Parquet Federal, a fls. 1243/1253.


A apelação do Ministério Público Federal foi recebida em ambos os efeitos (fls. 1238).


Com contrarrazões da União Federal à apelação do Ministério Público (fls. 1263/1273), subiram os autos a este Tribunal.


Contrarrazões da assistente litisconsorcial (União Federal) ao recurso de Luana/apelante, a fls. 1286/1296.


Aqui, a Procuradoria Regional da República, ofertou parecer inicial pela conversão do julgamento em diligência, para determinar a realização de estudo psicossocial no ambiente em que vive o requerente, Portugal, para verificação da plausibilidade das alegações quanto aos riscos físicos ou psíquicos à criança, caso esta retorne ao País no qual mantinha residência habitual, instando-se a autoridade central portuguesa a informar todos e quaisquer antecedentes criminais do autor (fls. 1306/1312).


Entendendo desnecessária a dilação probatória pretendida pelo I. Procurador Regional da República - Dr. Marlon Alberto Wichert, indeferi o pedido e determinei o retorno dos autos ao Órgão Ministerial para, querendo, manifestar-se sobre o mérito (fls. 1313).


Manifestando-se, a D. Procuradora Regional da República - Dra. Rose Santa Rosa, opinou pelo provimento das apelações da requerida e do Ministério Público Federal, a fim de reformar a sentença e julgar improcedente a ação (fls. 1315/1320).


É o relatório.


VOTO

Discute-se neste feito a aplicação da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980), com entrada em vigor em 01/12/1983.


DIGRESSÕES SOBRE A CONVENÇÃO DE HAIA DE 1980


O Brasil depositou o Instrumento de Adesão da referida Convenção em 19/10/1999, passando a mesma a vigorar aqui em 01/01/2000. Foi devidamente promulgado pelo Decreto nº 3.413, de 14/04/00, publicado em 17/04/00.


Tal Convenção teve como finalidade "proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita".


Para melhor elucidação, trago à colação alguns de seus artigos introdutórios:


"Artigo 1. A presente Convenção tem por objetivo:
a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;
b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado Contratante.
Artigo 2. Os Estados contratantes deverão tomar todas as medidas apropriadas que visem assegurar, nos respectivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para tal, deverão recorrer a procedimentos de urgência.
Artigo 3. A transferência ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) tenha havido violação a direito de guarda atribuído a pessoa ou a instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou da sua retenção; e
b) esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou em conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse está-lo sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.
O direito de guarda referido na alínea "a" pode resultar de uma atribuição de pleno direito, de uma decisão judicial ou administrativa ou de um acordo vigente segundo o direito desse Estado.
Artigo 4. A Convenção aplica-se a qualquer criança que tenha residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de guarda ou de visita. A aplicação da Convenção cessa quando a criança atingir a idade de dezesseis anos.
(...)
Artigo 7. As autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respectivos Estados, de forma a assegurar o retorno imediato das crianças e a realizar os demais objetivos da presente Convenção.
(...)
Artigo 8. Qualquer pessoa, instituição ou organismo que julgue que uma criança tenha sido transferida ou retirada em violação a um direito de guarda pode participar o fato à autoridade Central do Estado de residência habitual da criança ou à Autoridade Central de qualquer outro Estado Contratante, para que lhe seja prestada assistência para assegurar o retorno da criança.
(...)
Artigo 12. Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de um ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.
(...)
Artigo 13. Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o retorno da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se oponha a seu retorno provar:
a) que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou
b) que existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável.
A autoridade judicial ou administrativa pode também recursar-se a ordenar o retorno da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu idade e grau de maturidade tais que seja apropriado levar em consideração as suas opiniões sobre o assunto.
Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão tomar em consideração as informações relativas à situação social da criança fornecidas pela Autoridade Central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado de residência habitual da criança.
Artigo 14. Para determinar a ocorrência de uma transferência ou retenção ilícitas nos termos do Artigo 3, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido poderão tomar ciência diretamente do direito e das decisões judiciais ou administrativas, formalmente reconhecidas ou não, no Estado de residência habitual da criança sem ter de recorrer a procedimentos específicos para a comprovação dessa legislação ou para o reconhecimento de decisões estrangeiras que seriam de outra forma aplicáveis.
Artigo 15. As autoridades judiciais ou administrativas de um Estado Contratante podem, antes de ordenar o retorno da criança, solicitar a produção pelo requerente de decisão ou de atestado passado pelas autoridades do Estado de residência habitual da criança comprovando que a transferência ou retenção deu-se de forma ilícita nos termos do Artigo 3º da Convenção, desde que essa decisão ou atestado possam ser obtidas no referido Estado. As autoridades centrais dos Estados Contratantes deverão, na medida do possível, auxiliar os requerentes a obter tal decisão ou atestado.
Artigo 16. Depois de terem sido informados da transferência ou retenção ilícitas de uma criança, nos termos do Artigo 3, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada ou esteja retida não poderão tomar decisões sobre o fundo do direito de guarda sem que fique determinado não estarem reunidas as condições previstas na presente Convenção para o retorno da criança ou sem que haja transcorrido um período razoável de tempo sem que seja apresentado pedido de aplicação da presente Convenção.
Artigo 17. O simples fato de que uma decisão relativa à guarda tenha sido tomada ou seja passível de reconhecimento no Estado requerido não poderá servir de base para justificar a recusa de fazer retornar a criança nos termos desta Convenção, mas as autoridades judiciais ou administrativas do Estado requerido poderão levar em consideração os motivos dessa decisão na aplicação da presente Convenção.
Artigo 18. As disposições deste Capítulo não limitam o poder das autoridades judiciais ou administrativas para ordenar o retorno da criança a qualquer momento.
Artigo 19. Qualquer decisão sobre o retorno da criança, tomada nos termos da presente Convenção, não afetam os fundamentos do direito de guarda.
Artigo 20. O retorno da criança de acordo com as disposições contidas no Artigo 12º poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais."

Em suma, impõe-se a aplicação da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças quando se verificar o deslocamento ilícito de menor de 16 (dezesseis) anos, de seu Estado de origem, onde possui residência habitual, bem como a sua indevida retenção, em outro Estado signatário, incidindo, em tais hipóteses, procedimentos de retorno imediato da criança.


Contudo, não obstante o Ato tenha por escopo assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente (art. 1º), o teor dos artigos supramencionados firmam, com clareza, que há prevalência no interesse da criança sempre que reste comprovado risco grave de o menor, no seu retorno, ficar sujeito a perigos de ordem física ou psíquica, ou de qualquer modo, ficar numa situação intolerável, bem como verificar que este se opõe ao retorno, e que o mesmo já atingiu idade e grau de maturidade para que seja apropriado levar em consideração suas opiniões sobre o assunto (art. 13).


Depreende-se, dessa forma, que a cooperação entre os Estados Signatários foi promovida fundamentando-se na preservação dos direitos do menor, notadamente quanto à sua integridade psicológica, emocional e física.


Nesse sentido, o C. Superior Tribunal de Justiça já se manifestou, assentando que, "tanto o interesse da União na promoção das medidas tendentes ao retorno de crianças ilegalmente retiradas de seu País de origem e residência habitual que ingressaram ilicitamente no Brasil, como a orientação de que em sede de cooperação judiciária direta, não se busca o cumprimento de uma ordem judicial estrangeira simplesmente; a sentença estrangeira constitui um elemento inicial de prova, competindo ao Poder Judiciário Brasileiro verificar, no melhor interesse dos infantes, a viabilidade desse pedido de retorno" (REsp nº 954.877/SC, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, DJe 17/09/2008).


O art. 12 da Convenção de Haia prevê que, nos casos de transferência ilícita ou retenção indevida (art. 3º), e tenha decorrido menos de um ano entre a data de início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde ela encontra-se, o retorno da criança ao Estado de residência habitual deverá ser imediato e, mesmo se expirado aludido período essa restituição deverá ocorrer. Contudo, nesta segunda hipótese, aludida norma excepciona esse retorno da criança, no caso de ficar comprovado se encontrar integrada ao seu novo meio.


Conforme se observa, a intenção do legislador ao fixar o prazo previsto no artigo 12 foi a de impor celeridade na reposição da criança sequestrada ao seu país de residência habitual, in verbis:


"Artigo 12. Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de um ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio.
Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para outro Estado, poderá suspender o processo ou rejeitar o pedido para o retorno da criança".

Para melhor esclarecimento, trago à colação, comentários ao mencionado artigo encontrados no sítio da C. Suprema Corte, os quais enfrentam, com excelência, a questão:


"Comentários: um dos principais objetivos da Convenção é a celeridade para repor à criança seu "status quo" anterior ao da retenção indevida e nesse sentido há que ser encarado com "granus salis" a observação da exceção relativa à integração da criança em novo meio. O que não se pode é permitir que o processo tenha tramitação demorada, de modo a premiar o infrator que, de forma contrária a lei, retirou a criança do seu centro de convivência, que é sua residência habitual.
Um ponto que chama a atenção na leitura desse art. 12 refere-se à fixação do prazo ou tempo-limite de 1 (um) ano, adotado pela Convenção como marco delitimitatório que o juiz ou a autoridade deverá observar para determinação das providências atinentes ao retorno da criança. Esse termo-limite deverá ser obrigatoriamente analisado pelo juiz ou autoridade, antes mesmo de qualquer outro juízo de valor sobre o cabimento do pedido de retorno. Isso porque a constatação de que o pedido se deu antes ou depois do prazo de um ano, contado a partir da subtração, implicará consequências de diversa natureza.
Deverá o juiz ou autoridade, primeiramente, portanto, avaliar se já decorreu ou não o período de 1 (um) ano entre a data da transferência ou retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrara.
Poder-se-á, aqui, tomar emprestado o mesmo raciocínio do Direito Civil quanto ao desforço imediato e considerar como sendo nova ou recente a abdução ocorrida há menos de 1 ano antes do início do procedimento administrativo ou judicial; e velha, aquela que ocorreu há mais de ano e dia antes do início desse processo. A análise desse marco temporal permitirá ao juiz ou autoridade encarregada do caso (pedido de retorno) determinar o retorno imediato da criança. Isso significa que poderá conceder medida liminar, ainda que, a seu critério, sem a oitiva da parte contrária.
Assim, a importância da disposição está na fixação do termo-limite que deverá ser obrigatoriamente analisado pelo juiz ou autoridade, antes de qualquer outro juízo de valor: se a remoção ou retenção indevida é velha ou nova, em relação ao prazo fixado - um ano. Se a remoção ou retenção se deu no período de um ano anterior ao pedido de retorno, o ato é novo e deve ser analisado dentro da própria lógica do Direito Civil, que é a do desforço imediato. Portanto, a urgência é imperativa. Ultrapassado esse tempo-limite de um ano, o retorno ainda poderá ser determinado, mas nesse caso já se abre à parte sequestradora o direito de provar que a criança se encontra adaptada ao seu novo meio.
Antes de um ano, há uma presunção que milita em favor do requisitante: de que não houve ainda tempo hábil para a adaptação da criança. Após esse tempo, não será difícil ao sequestrador demonstrar que a criança já se encontra integrada ao novo ambiente.
Por esse motivo a celeridade no processamento é o elemento mais importante para a eficácia e o sucesso da Convenção. No entanto, dificuldades inúmeras têm sido encontradas pela Autoridade Central do Brasil, que vão desde a demora na localização da criança, em razão tanto da extensão do território brasileiro como da escassez de informações fornecidas pela parte requerente, até a demora no procedimento judicial.
Outra observação pertinente diz respeito à ordem de retorno imediato. No Brasil, trata-se da utilização de medidas cautelares para busca e apreensão de menores ou antecipação de tutela em processos de conhecimento, que tem sido sistematicamente negada por juízes, já que poderia inviabilizar a oitiva da parte brasileira, (suprimir - além de configurar-se como procedimento de extrema violência, principalmente nos casos em que a mãe é a pessoa que retém a criança). É necessário discutir o tema e examinar qual a melhor forma de se proceder ao cumprimento dos dispositivos da Convenção.
A concessão de medidas de natureza cautelar ou de urgência é expressamente prevista na Convenção não apenas neste art. 12 como também no art. 11, onde se lê que "as autoridades judiciais ou administrativas dos Estados contratantes deverão adotar medidas de urgência com vistas ao retorno da criança".
No tocante ao cumprimento das ordens de busca e apreensão de crianças, várias dificuldades têm sido enfrentadas pelas autoridades administrativas e judiciais, em particular com relação à necessidade de apoio por equipes especializadas (psicólogos, assistentes sociais etc), cuja atuação é de extrema importância, mas muitas vezes inviável. Outro ponto importante é o das garantias que podem ser apresentadas pelas autoridades centrais ao juízo para o deferimento da restituição da criança ao país estrangeiro. Cumpre lembrar que a instituição pela AGU de assinatura de Termo de Entrega da criança pelo representante consular no Brasil da Autoridade Central estrangeira não tem sido aceito por alguns países. A negativa baseia-se no argumento de que a assinatura de tal termo por representantes consulares não obriga juízes em outros países a determinarem o retorno da criança ao Brasil no caso de reversão posterior, pela Justiça brasileira, da ordem inicial de restituição ao país de residência habitual. Uma discussão sobre como proceder ao cumprimento de ordens de restituição de crianças a países estrangeiros seria útil e poderia orientar o trabalho feito até o momento pela ACAF e AGU.
As principais reclamações dos Estados contratantes, em relação ao Brasil, referem-se à demora no procedimento judicial. Não é possível que um processo demore três anos, como ocorre em alguns casos, enquanto a Convenção da Haia tem como objetivo justamente promover o rápido retorno do menor ao seu país de residência habitual. Há na ACAF casos que tramitam há mais de dois anos sem que uma decisão tenha sido tomada pelo juiz - e, pior, sem que o menor tenha contato com o parente requerente -, gerando protestos dos países estrangeiros junto ao Ministério das Relações Exteriores do Brasil, e eventualmente, com possibilidade de protesto formal junto à Conferência da Haia.
No entanto, a lentidão na Justiça não é privilégio nosso e há casos em que o Brasil é o requerente e cujo processo judicial também é demorado. Por isso, a tentativa de conciliação que tem sido feita pelo nossa autoridade central é bastante louvável e já registra 30% (trinta por cento) de casos resolvidos pelo método da composição amigável, extrajudicial. Apesar dos resultados positivos obtidos, muitas autoridades centrais estrangeiras não demonstram interesse em tentativas de acordo entre as partes, por entenderem que são medidas protelatórias de decisões judiciais.
Quando a parte tiver advogado contratado, a ACAF pode atuar subsidiariamente com a Interpol na localização da criança, como poderá tentar mediar um retorno voluntário, o que sempre é feito, quando solicitado. Não poderá, no entanto, acompanhar os trâmites judiciais, pois nesses casos a União não é parte no feito. De se ressaltar que o apoio logístico para retornar a criança ao país de origem ficará sob responsabilidade direta do pai, mãe ou seu representante legal quando da decisão de restituição da criança.
Observe-se, por fim, que ainda que o processo demore mais de ano, é possível a restituição, não podendo a parte infratora alegar estar a criança adaptada ao local para onde foi deslocada ou retida, pois entendimento em sentido contrário terminaria por premiar o sequestrador e estimular a prática que o convênio busca vedar.
Ademais, o prazo de um ano somente deveria ser contado a partir da localização da criança, pois é muito frequente que a localização da criança, que, a partir da subtração quase sempre leva uma vida de clandestinidade, muitas vezes demore, ainda mais em um país com as dimensões continentais do Brasil". (Endereço eletrônico: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/convencaoHaiaConteudoTextual/anexo/textoConvencao.pdf).

Assim, caso não tenha extrapolado o prazo de um ano entre a data da retenção indevida e a do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, considera-se uma retenção nova e, consequentemente, a análise do pedido de retorno deve ser feita de forma imediata, podendo o juiz ou a autoridade competente conceder medida liminar, ainda que, a seu critério, sem a oitiva da parte contrária, devendo observar as providências atinentes ao imediato retorno da criança.


A par dessas reflexões, é importante destacar as considerações do Relatório Explicativo da Convenção de Haia de 1980 as quais preceituam a relevância de se considerar a perspectiva da criança acerca do seu retorno ou retenção, nos termos do artigo 13, assegurando-a pela avaliação de suas opiniões sobre o assunto, de forma apropriada com sua idade e grau de maturidade. Possibilitou-se, assim, que o menor, dentro de sua capacidade intelectual, expresse seus próprios interesses na situação em que se encontra (Explanatory Report on the 1980 Hague Child Abduction Convention, de Elise Pérez-Vera, p. 21).


Tal parecer delineia-se com a seguinte ementa do C. Superior Tribunal de Justiça:

"RECURSOS ESPECIAIS. DIREITO INTERNACIONAL E PROCESSUAL CIVIL. DECRETO N. 3.413, DE 14.4.2000. CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO SEQUESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS. MENOR NASCIDO NA ALEMANHA EM 11.3.2004. VISITA AO BRASIL. RECUSA DA GENITORA EM VOLTAR PARA A ALEMANHA. AÇÃO DE BUSCA, APREENSÃO E RESTITUIÇÃO PROPOSTA PELOA UNIÃO. NECESSIDADE DE PROVA PERICIAL. AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA DO MENOR. VIOLAÇÃO DO ART. 330, I, DO CPC CONFIGURADA. RECURSOS PROVIDOS EM PARTE.
- No âmbito internacional, as regras e os costumes devem ser aplicados e interpretados diferentemente, com mais racionalidade e menos apego aos costumes e às normas nacionais, de forma a alcançar um ponto de equilíbrio, suportável para todos os envolvidos nessas novas relações e indispensável para disciplinar os efeitos delas.
- A convenção de Haia, não obstante apresente reprimenda rigorosa ao sequestro internacional de menores com determinação expressa de retorno destes ao país de origem, garante o bem estar e a integridade física e emocional da criança, o que deve ser avaliado de forma criteriosa, fazendo-se necessária a prova pericial psicológica.
Recursos especiais parcialmente providos."
(STJ, REsp nº 1.239.777/PE, Segunda Turma, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, j. 12/04/2012, DJe 19/04/2012)

Não se deve deixar de observar, então, que há diversas hipóteses previstas no próprio texto da Convenção como exceção para o retorno do menor ao país em que tinha residência habitual:


(i) o artigo 12 prevê a adaptação do menor à nova residência, quando o pedido de retorno ocorre após um ano da transferência irregular;


(ii) o artigo 13 prevê três situações distintas: (a) quando a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de guarda na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; (b) quando existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável; e (c) a consideração da opinião do menor que já possui grau de maturidade adequada; e


(iii) o artigo 20 prevê que o retorno poderá ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.


Cumpre à autoridade administrativa ou judicial do local onde se encontra o menor a decisão sobre estas situações, nas quais pode e deve obstar o retorno do menor ao país em que ele tinha residência habitual, mesmo que ilícita tenha sido a transferência ou retenção.


Observa-se, ainda, que, dado o status normativo dos tratados e convenções que versam sobre direitos humanos ou diversos, a interpretação das normas fundadas em tais diplomas deve se dar de forma consentânea com os parâmetros constitucionais. E, assim, é salutar anotar que as orientações e exceções trazidas pela Convenção de Haia de 1980 coadunam-se com o princípio constitucional da absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes, inserto no artigo 227 da Constituição Federal.


DO CASO CONCRETO


Feita a explanação das relevantes normas da Convenção aludida, passo à análise de sua interpretação ao caso concreto.


DO ALEGADO PELO AUTOR


O autor, Vitor Manuel, alega que viveu em união estável com Luana Leni Ambrósio, em Portugal, por 12 anos, havendo desse relacionamento a filha Laura de Oliveira Gamito, nascida em 06/04/2009.


Relatou que a família viajou para o Brasil em férias, no período de 04 a 28/10/2012 (sic), porém, a ex-companheira decidiu permanecer em território brasileiro e, de forma ardilosa, reteve consigo a filha menor, uma vez que, no dia anterior à viagem (03/10), ingressou com ação de reconhecimento e dissolução de união estável e guarda definitiva de menor, obtendo liminar que lhe concedeu a guarda provisória da criança.


Argumentou que a família sempre residiu em Portugal, sendo ilícita a retenção de sua filha no Brasil, pois a decisão da requerida de mantê-la em território nacional não contou com sua autorização, de tal forma que a conduta praticada por Luana se amolda ao disposto no art. 3º da Convenção de Haia de 1980.


DAS ALEGAÇÕES DA PARTE RÉ


Luana, por sua vez, afirmou que, de fato viveu maritalmente com o autor, em Portugal, desde o ano 2000, nascendo dessa união a menor Laura. Confirmou, também, que a família viajou para o Brasil, para férias no período indicado pelo requerente. Entretanto, decidiu aqui permanecer, tendo, inclusive ajuizado ação com vistas a separar-se do companheiro e obter a guarda da filha, porque, desde meados daquele ano (junho e julho/2012), suspeitava da prática de abuso sexual por parte do autor contra a menor, não havendo, portanto, ilicitude na retenção da filha em solo brasileiro. Aduziu, também, a inaplicabilidade da Convenção de Haia ao caso, pois, segundo a legislação portuguesa, a guarda dos filhos, em se tratando de união de fato, cabe à genitora, o que resta comprovado, inclusive, diante do ajuizamento, pelo autor, de ação para regulação de responsabilidades parentais perante a Justiça Portuguesa.


DA APLICAÇÃO DA NORMA


Cabe verificar, inicialmente, se a menor Laura de Oliveira Gamito tinha residência habitual em Portugal, país de onde foi transferida, e também se Vítor Manuel, ora autor, detinha poder de guarda sobre ela, a fim de constatar a hipótese contida no art. 3º da Convenção de Haia, a ensejar determinação judicial no sentido de sua restituição àquela Nação.


Pois bem. Autor e ré não discordaram quanto ao fato de terem convivido maritalmente por 12 (doze) anos em Portugal país onde se conheceram e passaram a viver juntos, sob o mesmo teto, como se casados fossem, conforme se infere das declarações da ré, no documento acostado a fls. 41: "Imigrei para Portugal em fevereiro de 2000, conheci Vítor em maio do mesmo ano, começamos a namorar, nunca conheci mais nenhum homem desde que estou aqui. No princípio ele se mostrou um homem carinhoso, amável e gentil, fomos viver juntos em setembro deste mesmo ano, (...)".


Por outro lado, consta dos autos que Laura de Oliveira Gamito, nasceu naquele país, em 06/04/2009 (fls. 20 e 490), tendo sido também registrada no Consulado Geral do Brasil em Lisboa (fls. 189), como brasileira nata, possuindo, assim, dupla cidadania, portuguesa e brasileira.


Em sua defesa, a requerida afirma serem incontroversos os fatos alegados pelo autor em sua inicial, no tocante à convivência marital, ao nascimento da filha, à viagem de férias da família e ao ajuizamento da demanda perante a Justiça Estadual. Dessa forma, não remanesce dúvida quanto ao fato de que a menor Laura tinha, até outubro/2012, residência habitual em Portugal.


Quanto à violação ao direito de guarda do autor, elemento caracterizador da alegada ilicitude da conduta da requerida em reter a filha no Brasil, de acordo com a lei vigente em Portugal, aplica-se aos genitores não casados, que vivam em união estável, o mesmo regime de responsabilidades parentais referentes aos filhos de genitores casados. Estabelece, ainda, referida norma que, na constância da sociedade conjugal, o exercício do pátrio poder, bem como de todos os direitos relacionados aos filhos são compartilhados entre os genitores, em igualdade de condições.


A propósito, transcrevo a seguir os artigos do Código Civil português, com a redação dada pela Lei n º 61/2008, de 31/10 (copia juntada a fls. 790/791), relacionados ao tema em discussão:


"ARTIGO 1911.º - Filiação estabelecida quanto a ambos os genitores que vivem em condições análogas às dos cônjuges
1. Quando a filiação se encontre estabelecida relativamente a ambos os progenitores e estes vivam em condições análogas às dos cônjuges, aplica-se ao exercício das responsabilidades parentais o disposto nos artigos 1901.º a 1904.º
2. No caso de cessação da convivência entre os progenitores, são aplicáveis as disposições dos artigos 1905.º a 1908.º

Os arts. 1901 e 1902, do mencionado estatuto civil, por sua vez, dispõem que:


"ARTIGO 1901.º - Responsabilidades parentais na constância do matrimônio
1. Na constância do matrimônio, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os pais.
2. Os pais exercem as responsabilidades parentais de comum acordo e, se este faltar em questões de particular importância, qualquer deles pode recorrer ao tribunal, que tentará a conciliação.
3. Se a conciliação referida no número anterior não for possível, o tribunal ouvirá o filho, antes de decidir, salvo quando circunstâncias ponderosas o desaconselharem.
ARTIGO 1902.º - Actos praticados por um dos pais
1. Se um dos pais praticar acto que integre o exercício das responsabilidades parentais, presume-se que age de acordo com o outro, salvo quando a lei expressamente exija o consentimento de ambos os progenitores ou se trate de acto de particular importância; a falta de acordo não é oponível a terceiro de boa fé.
2. O terceiro deve recursar-se a intervir no acto praticado por um dos progenitores quando, nos termos do número anterior, não se presuma o acordo do outro ou quando conheça a oposição deste."

Dessa forma, à luz da lei civil portuguesa, a despeito de ambos os pais, que vivam maritalmente, sob o mesmo teto, deterem o pátrio poder, exercendo, em igualdade de condições, o direito de guarda dos filhos, determinados atos a eles respeitantes não podem ser exercidos unilateralmente, sobretudo quando a lei exigir expressamente o consentimento de ambos os progenitores, ou quando se tratar de ato de particular importância em relação à criança.


E, nos termos do art. 5º, alínea "a", da Convenção de Haia de 1980, o direito de guarda, compreende os direitos relativos aos cuidados com a pessoa da criança e, em particular, com o direito de decidir o lugar de sua residência.


Ora, no caso, o autor e a requerida viviam em Portugal, como marido e mulher, sob o mesmo teto, até viajarem de férias para o Brasil em outubro de 2012 e, nos moldes da legislação vigente naquele país, compartilhavam a guarda da filha, exercendo, ambos, o poder parental.


Por outro lado, verifica-se que a viagem de férias da família para o Brasil se deu de comum acordo entre os conviventes e, desse modo, a transferência da menor para este país ocorreu de forma lícita.


Contudo, a decisão de Luana (requerida) de aqui permanecer, mantendo consigo a filha, sem autorização do pai, em desrespeito ao seu direito de guarda, caracterizaria, a princípio, a hipótese de retenção ilícita da menina, nos termos do art. 3º da Convenção de Haia de 1980, pois, a teor do Código Civil português, a criança não poderia permanecer em território brasileiro com a mãe, sem o consentimento do genitor.


De outro turno, constata-se que a parte ré e a filha menor deveriam retornar após o período de férias, no dia 25/10/2012 - data da chegada a Portugal (fls. 21), e o procedimento administrativo perante a Autoridade Central brasileira com vistas ao regresso da criança àquele país teve início em fevereiro de 2013 (fls. 466/490), tendo ocorrido o ajuizamento da presente ação em 21/03/2013 (fls. 02).


Ou seja, nesta situação houve o transcurso de apenas três meses entre a data de início da retenção da menor e o início do processo perante a autoridade administrativa brasileira, o que, num primeiro momento, e à luz do disposto na primeira parte do art. 12 da Convenção de Haia ("Quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3 e tenha decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança.") ensejaria a determinação de imediata restituição da criança ao país de origem, independentemente da análise do cabimento do pedido de regresso.


Saliente-se que, o fato de a requerida ter obtido na Justiça Estadual uma decisão que lhe concedeu a guarda provisória da filha no âmbito do processo nº 0000032-53.2014.4.03.6124, em apenso, não tem o condão de legitimar a retenção da menina no país, visto que o objeto de discussão deste feito é o pedido de restituição da menor a Portugal, com base na Convenção de Haia, da qual o Brasil é um dos Estados signatários, não podendo, aludida decisão, por si só, justificar eventual manifestação contrária ao regresso da criança, nos termos dos arts. 16 e 17 do aludido texto legal, detendo esta demanda natureza prejudicial em relação a eventual discussão sobre a guarda da menor.


Todavia, importa ressaltar que, não obstante o intento do Convênio em questão seja assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer um dos Estados contratantes ou que neles se encontrem retidas indevidamente, nos termos de seu art. 1º, seu princípio fundamental assenta-se no interesse superior da criança, e, enquanto norma de garantia, sua observância é obrigatória, devendo sempre prevalecer.


Nessa esteira, a cooperação entre os Estados Signatários há se estar fundamentada na preservação dos direitos do menor, dentre os quais se destacam sua integridade física, psicológica e emocional.


À vista de tal parâmetro, conclui-se que a execução do sistema de retorno imediato da criança abduzida ao seu país de origem, conforme previsto na Convenção, deve ser condicionado à verificação da existência ou não das exceções descritas tanto no próprio art. 12, quanto no art. 13 da referida norma legal, podendo, em tais casos, o retorno ser recusado pelo juiz, ainda que não tenha sido ultrapassado o prazo previsto no artigo 12.


Com efeito, no caso dos autos, conforme alegações da requerida, sua decisão de permanecer no Brasil, em outubro de 2012, pautou-se no fato de que com o decorrer do tempo o companheiro se mostrou um homem truculento, violento, agressivo e promíscuo, e, além disso, a causa principal, ela passou a suspeitar de abuso sexual em relação à filha, pois, em abril daquele ano, a criança se queixou de dor na região vulvar e em julho confidenciou à mãe que o pai a havia molestado, voltando a reclamar de dor na mesma região e apresentar corrimento em agosto de 2012.


Tais fatos, aliás, embasaram primeiramente a ação de reconhecimento e dissolução de união estável e guarda definitiva de menor, com pedido de liminar de guarda provisória, ajuizada pela ré perante a Vara Única de Ilha Solteira/SP, objeto do processo nº 0000032-53.2014.403.6124 (nº de origem 246.01.2012.003273-3), apensado a estes autos, e também foram expostos em sua resposta ao ofício da Autoridade Central brasileira (fls. 500v/503).


Deveras, em sua defesa, a requerida alegou que:


"(...)
Primeiro, conforme alegado pela ré na petição relativa à ação de reconhecimento e dissolução de união estável acostada a estes autos (fl. 24 item m), a suspeita de abuso sexual decorreu dos seguintes fatos: o autor tinha o hábito de permanecer de cuecas dentro de casa mexendo nos órgãos genitais; sem que a requerente tivesse perguntado, a criança comentou com a mãe que o "papai tem um pipi muito grande"; a mãe, assustada, perguntou se o pai havia mostrado o pipi a ela, e ela respondeu que sim; em certa ocasião a mãe entrou repentinamente na sala e surpreendeu o autor se masturbando na vista da criança; algum tempo depois a criança apresentou corrimento vaginal amarelo e com mau cheiro e, levada ao pediatra (fl. 53 dos autos 1466/12) foi constatada infecção que foi tratada (fls. 54 dos autos 1466/12), depois disso a criança passou a rejeitar o pai, não querendo seu colo e nem beijá-lo.
(...)." (grifos no original)

Para demonstração de tais fatos, Luana apresentou fotografias, mídias digitais com gravações de vídeos, documentos e declarações de testemunhas (fls. 129, 155/178, 364/370, 395/397, 405, 406, 408/409, 417, 763, 766, 767 e 961) dos quais se vislumbram indícios de exposição da menor a comportamentos e situações incomuns, vexatórias e causadoras de perplexidade, como adiante se verá.


Por primeiro, o prontuário médico de atendimento da menor Laura, em hospital de Portugal, comprova que a menina de fato já não usava fraldas durante o dia, desde os três anos de idade (consulta de 26/03/2012), porém, em 18/04/12 foi atendida com sintomas diversos, dentre elas, dor na região vulvar, e, em 10/08, apresentava corrimento vulvar, ocasião em que lhe foi receitado o uso do creme "Lefitem" para a zona íntima feminina (fls. 364/370), demonstrando que, de fato, a criança passou por tratamento médico em decorrência da mencionada enfermidade.


De outro turno, nas declarações escritas (fls. 395 e 408/409), prestadas pelas testemunhas Janilse Santos de Oliveira e Marcelina Máximo Rangel, estas relatam que, desde meados de 2012, tinham conhecimento das suspeitas de Luana sobre o alegado molestamento da criança pelo genitor.


Nesse sentido, Janilse Santos de Oliveira informou que (fls. 395):


"(...) em meados de 2012, muito envergonhada e em prantos, a amiga lhe confidenciou que desconfiava que seu companheiro VITOR MANUEL ANTUNES MENDES GAMITO estava abusando sexualmente da filha do casal, a criança LAURA DE OLIVEIRA GAMITO, e lhe pediu ajuda. A desconfiança fundava-se nos seguintes fatos: que presenciou o pai masturbando-se na presença da criança; que alguns dias depois a criança apresentou corrimento vaginal escuro e de mau cheiro e, levada ao médico, foi tratada com medicamentos de uso vaginal; que a criança chorava quando a mãe aplicava os remédios e que contou à mãe que o papai fez mal ao "pipi" dela (órgão genital feminino em Portugal). (...)"

Marcelina Máximo Rangel, por sua vez, declarou em relação a tais fatos, o quanto segue (fls. 408/409):


"(...)
Em junho do ano passado, a Luana estava desesperada e aflita porque notou que o marido não respeitava a filha, disse-me que o Sr. anda pela casa em cuecas, a tocar-se intimamente nas cuecas ao pé da menina, procurava-a para ter relações sexuais a frente da filha, coisa que ela fazia questão de chamar a atenção dele e inclusive tinha que ser ríspida com ele para ele parar, a Luana nunca permitiu que tal facto acontecesse na presença da filha para a proteger. O Sr. lhe respondia que não era nada demais, e queria estar a vontade na própria casa e ela Luana estava imaginando coisas.
No dia 21 de Junho do ano passado, quando cheguei do trabalho por volta das 17hs, Luana me telefonou, estava muito zangada com a falta de respeito do Sr., para com a filha, disse-me que tinha ido buscar Laurinha na escola e estavam no parquinho, e que nem sentia vontade de voltar para casa.
(...)
No início de Julho um dia Luana me ligou no meio da manhã muito aflita, muito confusa num desespero muito grande e me contou que na noite anterior, chegou a casa, cuidou da janta da menina, arrumou as coisas e foi tomar banho deixando a filha e o marido pela casa, de repente ela ouviu a Laura gritando e dizendo "não papai dói, assim não papai, dói" e de repente a menina aparece correndo e chorando na casa de banho com o pai logo atrás.
Eu disse-lhe: - leva a menina ao médico, e pede para fazer exames, daí me contou que a Larinha estava com um corrimento escuro e fétido e que as Srªs da creche já lhe tinham alertado para esse problema. Quando voltei a falar com a Luana ela medisse que a médica nem examinou a Laura e nem pediu exames, só passou uns cremes para menina.
Ficamos uns dias sem nos falar e um dia a Luana me liga chorando dizendo: - "Fui Levar minha filha na casa de banho em casa, ela olhou para onde o pai estava na cozinha, e disse muito baixinho: - Mamãe vou te contar um segredo, o papai tem uma pilinha muito grande, e perguntei - mas filha! O papai te mostrou a pilinha, a menina respondeu - sim mamãe duas vezes". A luana me disse isso tudo em prantos, quase sem conseguir falar e também falou que sempre que ia fazer a higiene da filha e passar os cremes vaginais que a médica receitou na menina, ela reclamava que doía muito, chorava e era um custo fazer o tratamento. (...)
Em agosto viajei para Angola e só falei com a Luana por internet e ela desabafou comigo me contando o seguinte: que tinha perguntado para filha: - "filha quem fez mal ao pipi da minha princesa, e ela respondeu: o papai. E noutro dia a mesma, assim foi durante alguns dias, ela sempre respondeu: o papai". Ai ela viu que realmente a filha não estava mentindo e nem inventando. Mas ainda veio o pior, em Agosto foi busca-la na escola, e foi para a frente da igreja com ela brincar, e então preguntou: - "filha mamãe pode te fazer uma pergunta?, ela respondeu sim mamãe, o papai mexeu no seu pipi? Ela respondeu: sim mamãe, com que o papai mexeu no seu pipi? Ela respondeu com a pilinha".
(...)."

Dos vídeos gravados nos DVD's juntados aos autos, é possível colher, além do comportamento inadequado, imprudente, desrespeitoso e, até mesmo libidinoso e obsceno do autor, a lembrança desagradável que Laura guarda de situações e atitudes que o genitor teria praticado, posto que, em mais de uma ocasião a criança remete a esses fatos em conversas com o genitor via Skype, e também com a genitora.


Na mídia juntada a fls. 129, referente a uma das gravações das conversas entre Laura e o genitor pela Internet (em 16/04/2013), com acompanhamento da requerida, há uma altercação desta com o autor, em razão de assuntos relacionados à filha do casal - médicos, escola e ausência da menina em dia de visita pelo Skype. No referido diálogo, Vítor indaga à Luana sobre a ausência da criança em um determinado dia que aconteceria a conversa pela Internet, em que a requerida afirma que "enquanto tiver a guarda eu autorizo a saída dela de casa", ao que o autor responde, "você faz de tudo para a menina ser órfã, mas não é". Luana continua, "não fizeste o que fizeste?" e o requerente afirma, "talvez ela vai ser órfã é de mãe, mas de pai não é ainda". E, Luana, finaliza, "só se vieres aqui me matar".


No DVD acostado a fls. 405, no arquivo intitulado "laura com 2", a criança está sendo filmada, provavelmente pela genitora, tentando dar seus primeiros passos. Na mesma cena, mais acima no vídeo, o autor está sentado (meio recostado) em um sofá, aparentemente de cuecas, com a braguilha aberta, manipulando seus órgãos genitais, sem se importar com a presença da filha pequena e com a gravação em curso, o que demonstra, no mínimo, que não mantinha nenhuma reserva quanto a seus hábitos sexuais e corrobora a alegação da ré de que ele se masturbava na frente da criança.


Na mesma mídia existem vários arquivos de conversas realizadas entre o autor e a filha, via Skype, dos quais se observa a resistência da criança em se relacionar com o genitor, havendo, até mesmo, manifestação de irritação, indiferença e expressa recusa daquela em falar com o pai, com destaque para o registro em que a própria Laura manifesta o motivo para não querer falar com o autor.


Veja-se que no arquivo "Dezembro 2012 026", consta gravação de conversa entre Luana e Laura, em que a requerida está tentando saber por qual motivo a criança não quer falar com o pai: Luana pergunta por duas vezes à criança, "quer falar comigo? quer falar comigo?". Sem resposta, ela insiste, "quer conversar com a mamãe? quer desabafar com a mamãe? quer contar porque você não que conversar com o papa?" Laura, então responde afirmativamente com a cabeça e diz: "tô dizendo que sim!" A requerida responde: "então diz por que você não quer falar com ele". Laura afirma: "porque tô zangada com ele". Luana indaga: "Tá zangada com ele?" Laura diz novamente: "Tô". Luana pergunta: Porque? O que ele te fez?" Laura diz: "Ele mexeu no meu pipi". Luana pergunta: "Com o que ele mexeu no seu pipi?". Laura desconversa e passa a mexer na câmera, encerrando-se a gravação. (obs.: segundo a contestação "pipi" é a palavra que designa o órgão genital feminino em Portugal)


No vídeo gravado no DVD juntado a fls. 417 (conversa entre o requerente e Laura no dia 14/02/2013), embora o genitor estivesse acompanhado de um amiguinho de Laura, chamado Simão (aparentemente, uma vez que na imagem do monitor ele não aparece, havendo, apenas menção à presença do garoto), a menina começa dizendo ao pai, "eu não quero falar com você", e o tempo todo da conversação, Vítor tenta falar com a filha e obter respostas, mas ela não responde e o ignora.


Na gravação Laura esta lanchando e, em determinado momento, o pai pergunta se ela quer ir ao cavalinho com ele. A criança se assusta e sai da frente da câmera. A mãe a chama, ela responde que está no sofá e não quer falar, ao que Luana responde que é para ir lá dizer e a menina insiste que não quer falar e alega "mas ele fez dodói no meu pipi" repetindo, "ele não pode ver o meu pipi". Luana pergunta: "porque filha?" e a criança responde: "porque ele vai mexer".


O autor continua tentando chamar a atenção da filha, até que ela lhe diz "eu não quero falar com você agora, por que você fez dodói no meu pipi". Vitor então diz a Luana: "É, ela tá do teu lado agora". Luana responde: "Olha, eu nem vou lhe dizer nada, eu nem vou lhe dizer nada, Vítor, nada! Tá bem! É melhor essa conversa hoje acabar aqui." Laura fica de frente para a câmera e fala para a mãe: "mamãe, mamãe, oh! Conta que ele... que ele fez mal no meu pipi, conta. Conta que ele fez mal no meu pipi".


No que tange à prova pericial produzida nos autos, observa-se que, embora o laudo assistencial e psicossocial, datado de 05/09/2014 (fls. 886/902, complementado a fls. 974/993 e 1029/1037), seja inconclusivo quanto à efetiva ocorrência de abuso sexual contra a menor, atestou, contudo, que Laura demonstrou, em uma das visitas realizadas pelo pai, via Skype, não ter com ele nenhuma afinidade, esquivando-se em manter qualquer conversação, comportando-se, inclusive com irritação e estresse diante da insistência daquele nesse contato. Veja-se, a propósito, o destaque a esse respeito constante do corpo do laudo (fls. 890):


"(...)
Na sexta-feira como ficou marcado a visita do pai Senhor Vítor pelo Skype com a filha às 19 horas para apreciação. No horário marcado, o telefone tocou, quando a Senhora Luana atendeu e disse: "já estamos esperando, já está ligado Vítor (sic), o mesmo pediu para falar com a filha, e automaticamente a Senhora Luana passou o telefone, que quando ela atendeu, quase não respondia, e quando falava dizia "fala, eu não quero falar" (sic) e desligava o telefone. O Skype ficou ligado por mais ou menos 30 a 40 minutos, a criança Laura ficou em frente o notebook, só brincando com canetinhas coloridas e conversando com a mãe, e não dava atenção para o pai, e às vezes chegava se esconder para não conversar com ele. Depois de algum tempo, a criança não quis mais ficar no local, e sua mãe pediu para que então ela se despedisse do pai, mas Laura já estressada pela persistência e irritada começou a chorar e desligou o computador.
(...)."

Além disso, das respostas aos quesitos formulados pelas partes, quanto ao tema do abuso sexual, fica claro que a expert não abordou o assunto diretamente com a criança, mas, apenas com a requerida, porém, é possível observar que Laura evita a figura paterna até mesmo nas brincadeiras, não nutrindo, em relação a ele, laços de confiança e familiaridade próprias da relação pai e filha. Nesse aspecto, salientou a perita judicial, ao responder às indagações (fls. 892/902 e 975/993):


"(...)
3 - Averiguar (na escola e com parentes, se possível de ambos os pais) se houve constatação de mudança de comportamento repentino da criança a época em que a mãe afirma ter flagrado o abuso, ou em outra época.
Resposta: Segundo a mãe a criança se tornou ansiosa depois do ocorrido e não gostava muito da aproximação do pai.
(...)
6 - A criança sabe contar sobre o suposto abuso sexual ou nas entrevistas conjuntas, procura olhar para a genitora em busca de ser "lembrada" do que aconteceu. A criança nas atividades Lúdicas (sic) esquiva da figura paterna não gosta de falar do pai.
Resposta: Não questionei a criança sobre o abuso, mas nas atividades lúdicas ela se esquiva da figura paterna.
(...)
14 - Levantar como é manejado quando a criança manifesta (se pode manifestar) o desejo de comunicar com o genitor.
Resposta: Segundo a mãe Sr.ª Luana, a filha nunca fez esse pedido e como foi observada a criança não gosta de comunicar-se com o pai. Laura não demonstra nenhuma emoção em relação ao pai, sugerindo distância de sentimentos. (grifos no original)
(...)
a) Estabelecendo como parâmetro uma relação entre pai e filha harmoniosa e pautada no amor, o comportamento arredio da criança em relação ao pai pode ser considerado normal? Esclarecer a Resposta.
R: Quando se fala em comportamento humano o conceito de normalidade se torna muito amplo, mas o comportamento da criança não alude ser habitual. O normal é a criança se sentir segura com o pai, mãe e cuidadores. Detectar desconfortos emocionais em crianças não é tão simples quanto perceber os de ordem física, mas crianças emitem sinais que revelam que algo está fora dos padrões. Cada criança é um mundo e não existem estratégias universais eficazes para todas. Mas não conseguir dormir, ficar calado demais e ter atitudes de recusa são indícios de que algo não vai bem. Muitas vezes esse comportamento são (sic) reflexos de problemas ocorridos, mas o que foi observado é a criança Laura não tem o mesmo comportamento com a mãe, avós e os amiguinhos da escola (...). Laura não é uma criança triste, apática ou insegura, não tem atraso no seu desenvolvimento, não tem dificuldade de compreensão e aprendizagem, interage e brinca em grupos, gosta da escola e é uma criança inteligente. É notório de que Laura em todos os momento (sic) observados teve sim um comportamento apartado com o pai. Como a criança não tem maturidade emocional para lidar com problemas emocionais tais comportamentos podem ser justificados pelos mesmos.
b) Se a resposta ao item a for "comportamento anormal", esclarecer se entre as prováveis causas do comportamento arredio da criança em relação ao pai pode estar à (sic) prática de abuso sexual.
R. O que foi bem analisado é que a criança tem uma relação arredia com o pai, e que a Srª. Luana não foi contraditória no seu testemunho. Pode estar relacionado, amostras nos arquivos a criança fala para o pai "você fez dodói no meu pipi", (segundo a mãe o termo "pipi" é como se usa em Portugal para vagina, e pilhinha para pênis), mas como já foi falado afirmar e comprovar algo sobre abuso sexual é complexo mesmo porque não se teve prova concreta, tem o testemunho da mãe, salientando que foi muito observado e pesquisado sobre possíveis contradições, mas isso não ocorreu, a Srª. Luana demonstrou ser uma mulher íntegra. Tem a fala e comportamento arredio de Laura, advertindo que a fala da criança não deve ser desprezada, salientando a suma importância diante das considerações ora trazida (sic) à baila sempre ser priorizada a proteção e integridade da criança.
(...)
d)
A queixa de abuso sexual denunciada pela criança à mãe e verbalizada diretamente ao pai no arquivo CIMGO 534 merece credibilidade? Crianças nesta faixa etária costumam mentir sobre sexo? Quaisquer que sejam as respostas, esclarecer as razões.
Resposta: "Nos crimes contra a dignidade sexual, quase sempre às escondidas, distante de testemunhas presenciais, a palavra da vítima assume especial relevância. No entanto, é preciso que esteja em harmonia com o conjunto probatório coligido aos autos". Foi verbalizado a partir do 09h01min minutos e segundos, a criança diz - "Ele não pode ver meu pipi, porque ele vai mexer," (SIC) em seguida entra discussões entre pai/mãe, e a criança se esconde dentro do guarda-roupas, quando sai percebe-se que a criança está assustada com as discussões e chega próximo ao computador e diz brava "Eu não quero falar com você porque você fez dodói no meu pipi". Existe sim um período da vida da criança onde fantasia e realidade se misturam até aproximadamente os seis anos ela vai construindo as histórias e seus argumentos naturalmente usando suas vivências, mas também sua imaginação. Por um outro lado criança não consegue sustentar por muito tempo à (sic) mesma história. Não podemos ter a confiança de nomear o que à (sic) criança diz é mentira, e é de suma importante (sic) não desprezar tal fala. As dificuldades de se fazer o diagnóstico de abuso a sexual em crianças de baixa idade, não existindo, como na maioria dos casos, evidências físicas, não é fácil, mas não podemos esquecer que ouve (sic) vários sinais inclusive o fato da criança se sujeitar por tal constrangimento de um "corrimento e mal cheiroso" como foi denunciado e observado não só pela mãe mas por professoras da escolinha onde a criança permanecia nesta ocasião, declaração feita pela mãe e vista nos autos, algo não é comum acontecer com crianças.(...)
(...)
f) O comportamento e verbalizações da criança registradas nas gravações das conversas com o pai especificamente nos arquivos CIMGO 285 e CIMGO 534 podem ser consideradas indicadores de que ela foi vítima de abuso sexual? Qualquer que seja a resposta, esclarecer rezões.
Resposta: Pode sim ser indicadores do abuso, pela citação da criança quando fala pro (sic) pai - "você fez dodói no meu pipi" (...), esses e outros sinais que a mãe nos relatou como Sr. Vítor achar normal assistir vídeos pornográficos perto da filha. Que tipo de pai deixaria e acharia normal, os filhos assistirem filme pornô?

Acresça-se que o demandante, que inclusive já foi condenado, em Portugal, pela prática de crimes de falsificação de documento e burla qualificada (fls. 155/178), se limitou a negar os fatos declinados pela requerida, trazendo aos autos apenas declarações escritas de sua filha, sua ex-mulher e duas irmãs de Luana (fls. 805/817), as quais somente aludem ao modo como ele se relacionava com a requerida durante a convivência naquele país, e também ao seu jeito rude de falar, não sendo suficientes para afastar os elementos probatórios coligidos aos autos e que corroboram as alegações da requerida, sendo tampouco aptas a tornar inócuas as ilações constantes da avaliação psicossocial.


Aliás, cabe salientar, neste ponto, algumas considerações e conclusões periciais no sentido de que, nos eventos contra a dignidade sexual, quase sempre ocorrido às escondidas, sem testemunhas presenciais, a palavra da vítima deve ser levada em consideração quando em harmonia com o restante da prova carreada aos autos. A perícia destaca o desconforto emocional de Laura ao falar com o genitor. Ressalta que a lembrança da criança acerca do fato que relata à mãe e também ao pai pode, sim, indicar a ocorrência de abuso, principalmente porque, tem o testemunho da requerida que, em momento algum, incorreu em contradição, e pondera ser difícil para a criança sustentar por muito tempo a mesma história, sendo de suma importância não desprezar a fala da menina.


Nesse contexto, o conjunto probatório existente nos autos, conquanto não demonstre, de forma cabal, que houve abuso sexual no sentido estrito da expressão - pressupõe a existência de contato sexual físico -, aponta claramente para a exposição de Laura, então com apenas 03 (três) anos de idade, a um comportamento inadequado, desrespeitoso e até mesmo licencioso e obsceno por parte do autor, o que acarreta, no mínimo, receio quanto à segurança de seu retorno à convivência paterna, em Portugal.


Nessa esteira, entendo restar comprovada a exceção prevista no art. 13, letra "b", da Convenção de Haia de 1980, não sendo possível, portanto, afirmar que a retenção de Laura de Oliveira Gamito em território brasileiro ocorreu de forma ilícita, uma vez que a decisão da requerida em permanecer no Brasil, mantendo consigo a filha menor deu-se em razão da gravidade da situação a que a criança estaria exposta se continuasse na convivência do genitor em Portugal.


Saliente-se que, embora o art. 13, alínea "b", da Convenção de Haia consubstancie uma exceção, é a regra que melhor protege a criança, uma vez que, pertencendo ela a um grupo social extremamente vulnerável, a interpretação desse dispositivo lhe é mais favorável e apto a conduzir o acesso à proteção de seus direitos fundamentais, de forma a assegurar a prioridade de seus interesses.


Importante afastar, ainda, a interpretação equivocada no sentido de que a exceção contida no aludido artigo 13, letra "b", da Convenção de Haia de 1980, deve ser provada de forma totalmente incontestável tentando adjetivar tal exceção como "excepcionalíssima", a ser utilizada sem exame do extenso conjunto de leis que contêm proteção geral e regional dos direitos humanos, bem assim da nossa Constituição Federal.


Enfim, a exposição de crianças de pequena idade a situações graves de exposição a condutas imorais e/ou comportamentos sexuais inadequados e pervertidos por parte de um dos genitores, como a descrita nestes autos, havendo, inclusive, lembrança da menor envolvida acerca do ocorrido, notoriamente é causadora de graves transtornos psicológicos e emocionais, com decorrentes desajustes sociais à criança que podem ser levados ao longo de toda sua vida, com consequências prejudiciais ao seu convício social e à própria sociedade em geral.


Assim, as provas constantes do feito são harmônicas e suficientes no sentido de demonstrar que existe, sim, um risco grave de Laura, caso retorne ao país de origem, ficar exposta a perigo de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, ficar em condição sofrível ou intolerável, sendo sua permanência no Brasil, com sua genitora, ora apelante, a situação que melhor atende seus superiores interesses e protege seus direitos fundamentais.


Acresça-se que a alegação do autor no sentido de que a menor estaria sendo vítima de alienação parental por parte da genitora não restou comprovada, tendo sido conclusiva a prova pericial nesse aspecto (fls. 887/903). A propósito, cito parte das "Impressões Técnicas" emitidas pela perita quanto a aludido tópico:


"(...)
Mediante o estudo social realizado junto à (...) Sr.ª Luana Leni Ambrósio de Oliveira e sua filha Laura de Oliveira Gamito, podemos constatar que a mesma não fez qualquer imposição de informações, ou o afastamento da filha do genitor. Como também não desfavoreceu a convivência com a filha, mesmo porque com a observação da visita por Skype, podemos observar que a genitora não dificultou contato da criança com o genitor.
(...)."

Aliás, colhe-se das respostas aos quesitos formulados pelas partes, que Laura não é vítima de abuso emocional, não vivencia situação de conflito de lealdade e também não vem sofrendo influência negativa, por parte da mãe, quanto à visão e lembrança que guarda a respeito do pai. Assim sendo, inexistem elementos que possam embasar a tese do autor, de modo que entendo desnecessárias maiores digressões acerca desse tema.


Anote-se, por fim, que diante da configuração e acolhimento da exceção prevista no art. 13, letra "b", da Convenção de Haia de 1980, para afastar a ilicitude da conduta da requerida ao reter a filha Laura em território brasileiro, desde outubro de 2012, é despicienda a análise acerca da integração da menor no seu novo meio (exceção prevista no art. 12, da Convenção), para resolução da controvérsia, o que sequer seria aplicável ao caso diante do lapso menor de um ano entre a retenção da menor e o ajuizamento da ação.


DISPOSITIVO


Ante o exposto, DOU PROVIMENTO às apelações de Luana Leni Ambrósio de Oliveira e do Ministério Público Federal, para reformar a r. sentença recorrida e julgar improcedente o pedido de busca, apreensão e restituição de menor deduzido por Vítor Manuel Antunes Mendes Gamito e pela União Federal, na condição de assistente litisconsorcial. Condeno a União Federal ao pagamento de honorários advocatícios fixados em R$ 5.000,00 (cinco mil reais), deixando de condenar o autor nas verbas sucumbenciais por ser beneficiário da assistência judiciária gratuita, deferida a fls. 83/83v.


Retiro a restrição imposta sobre o direito de ir e vir de Laura de Oliveira Gamito para fora dos limites do Município de Ilha Solteira/SP, cientificando-se às Polícias Rodoviárias Federal e Estadual de São Paulo e determino, após o trânsito em julgado, a devolução, em sendo o caso, dos passaportes da criança à genitora, comunicando-se as autoridades competentes (Superintendência Regional da Polícia Federal/SP e Vara da Infância e da juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo).


Determino, por fim, o desapensamento e a restituição à origem do processo nº 0000032-53.2014.403.6124, em apenso, com cópia do presente acórdão, para que lá receba o processamento cabível, vez que cabe ao Juízo Estadual competente (local de residência da menor) a decisão acerca do direito de guarda, visitas e pensão.


É o voto.


SOUZA RIBEIRO
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): LUIZ ALBERTO DE SOUZA RIBEIRO:10073
Nº de Série do Certificado: 10A5160804515019
Data e Hora: 08/11/2017 16:19:18