D.E. Publicado em 05/04/2018 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, negar provimento à remessa oficial e à apelação do Estado do Mato Grosso do Sul, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
A SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL DIVA MALERBI (RELATORA): Trata-se de remessa oficial e de apelação interposta pelo Estado do Mato Grosso do Sul, contra a r. sentença de parcial procedência proferia nestes autos de ação civil pública, promovida pelo Parquet FEDERAL, contra os corréus pessoas jurídicas UNIÃO FEDERAL, ESTADO DO MATO GROSSO DO SUL e MUNICÍPIO DE BRASILÂNDIA/MS.
A petição inicial, proposta pelo Ministério Público Federal e distribuída à 1ª Vara Federal de Três Lagoas/MS (fls. 02/29), com pedido de antecipação de tutela, veiculou, em suma; que a língua materna indígena Ofayé esta em vias de extinção; que o desaparecimento da língua acarretaria danos à população indígena, ao país e ao mundo, haja vista que tem peculiaridades semânticas e, por isso, é fonte de estudos linguísticos por cientistas brasileiros e de outros países; que a unidade de ensino local, Escola Municipal Ofaié Iniecheki, conta com apenas uma professora e que o material didático utilizado é a cartilha comum da rede municipal de ensino; afirma que por intervenção do MPF uma única índia ensina, de forma esporádica, a língua Ofayé; aduz que a Escola Municipal Ofaié Iniecheki não ensina a cultura indígena e que deveria ser transformada em Escola Indígena e com isso receber recursos e atenção específicos; pugna pela disponibilização de aulas até a oitava série, uma vez que o ensino é ministrado somente até a quarta série e pela extensão das aulas para o período noturno, bem como pela implantação da educação de jovens e adultos. Ao final, afirma que se essas mudanças não forem implantadas as crianças e os jovens, que podem estudar apenas à noite, por trabalharem no período diurno, acabarão migrando para a cidade e se distanciando ainda mais da cultura de seu povo.
A exordial ressalta que a comunidade indígena Ofayé Xavante por diversas vezes formulou essas reinvindicações e a resposta do Poder Público foi no sentido de que eles mesmos da comunidade é que teriam que elaborar e apresentar o Projeto Político Pedagógico, o Regimento Escolar e o Estatuto Próprio, para viabilizar a conversão da escola municipal em indígena, conforme determina a Deliberação do Conselho Nacional de Educação - Resolução CEB nº 03/99 e Deliberação CEE/MS nº 6767/02 do Conselho Estadual de Educação; aduz o MPF que esses dispositivos contrariam a lei e constituição que atribuem ao Estado e ao Município a oferta de ensino fundamental e médio aos povos indígenas; sustenta que a comunidade indígena deveria ser assessorada pelo Estado e pelo Município na elaboração desse Projeto Pedagógico, do Regimento e do Estatuto.
Os réus foram citados e intimados às fls. 880, 893 e 932.
Manifestaram-se sobre o pedido de antecipação de tutela: O Estado de Mato Grosso do Sul às fls. 881/884; O Município de Brasilândia/MS às fls. 897/900; e a União às fls. 910/920. Réplica do MPF às fls. 1044/1055.
Designada audiência de conciliação às fls. 922/925. Realizada a audiência e concedido para de 120 (cento e vinte) dias para assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta (fl. 941). O MPF informa sobre as tentativas frustradas de conciliação e pede o julgamento da lide (fls. 1140/1141v).
Contestação da União às fls. 985/995, do Estado do Mato Grosso do Sul às fls. 997/1012 e do Município de Brasilândia/MS às fls. 1038/1041.
Tutela antecipada indeferida às fls. 1059/1060. Pedido de reconsideração do MPF às fls. 1067/1077, indeferido às fls. 1101v.
A Fundação Nacional do Índio - FUNAI manifestou seu interesse em integrar no polo ativo da ação às fls. 1086/1088. Pedido deferido às fls. 1101 e 1101v.
Sobreveio a r. sentença (fls. 1163/1169) que julgou parcialmente procedente o pedido, na forma do dispositivo abaixo transcrito, em seus trechos essenciais:
[...] |
Diante da fundamentação exposta, extingo o processo, com julgamento de mérito, com fulcro no inciso I do artigo 269 do Código de Processo Civil, julgamento parcialmente procedente o pedido para condenar: |
a. o Estado de Mato Grosso do Sul a proceder ao resgate escrito e imediato da língua Ofayé para sua permanente preservação, por meio de linguistas a serem contratados para tanto, trabalho que deverá ser iniciado no prazo máximo de 60 (sessenta) dias. Ficará a cargo da União prestar, através do setor especializado, o apoio técnico e financeiro que se faça preciso; |
b. o Estado de Mato Grosso do Sul e o Município de Brasilândia, este último em regime de colaboração, à elaboração, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, por meio de suas Secretarias de Educação, por consulta às reivindicações do povo Ofayé e segundo as normas aplicáveis à espécie, o Projeto Político Pedagógico e o Regimento Interno da futura "Escola Indígena Ofayé Ineicheki", os quais deverão ser, imediatamente após a sua elaboração, levados á apreciação da comunidade indígena, que os aprovará, modificará ou rejeitará de acordo com a representatividade por eles adotada; |
b1. Em caso de aprovação ou modificação aprovada, proceder-se-á ao pedido de autorização de funcionamento junto ao Conselho Estadual de educação, bem como se providenciará toda a documentação exigida pelo art. 20 da Deliberação CEE/MS nº 6.767/02. Ficará a cargo da União prestar, através do setor especializado, o apoio técnico e financeiro que se faça preciso. Em caso de rejeição, formular-se-á, no prazo de 90 (noventa) dias, novo projeto ou regimento, atendendo às manifestações da comunidade, sendo posteriormente novamente submetido à apreciação da Comunidade Ofayé; e |
c. o Estado de Mato Grosso do Sul à contratação de dois professores da Comunidade Ofayé, que se habilitarem, para ensinarem a língua materna na escola indígena, nos termos dos arts. 210, § 2º, da Constituição Federal, art. 79, § 2º, inc. II, e 32, §3º, ambos da Lei nº 9.394/96, art. 28 do Decreto nº 5.051/04 e o arts. 3º, inc. V, e art. 40, "caput", da Deliberação CEE/MS nº 6.767/02, bem como a sua devida formação, ainda que a serviço e concomitantemente a sua própria escolarização, para ministrar aulas na escola indígena. |
Diante do pedido de antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional (fls. 1.067/1.077) e a sua postergação para apreciação por ocasião da prolação da sentença (fls. 1.101), e considerando o direito ora reconhecido e o risco iminente da morte da língua e da cultura do povo Ofayé-Xavante, com fulcro na autorização contida no "caput" e parágrafos 4º e 5º do artigo 461 do Código de Processo Civil, concedo a antecipação dos efeitos da tutela para fins específicos de resgatar de forma escrita e imediata a língua Ofayé, nos termos do item "a" do dispositivo, sob pena de multa diária fixada no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), em caso de descumprimento. |
Sem condenação em honorários. |
Custas na forma da lei. |
Esta sentença está sujeita ao duplo grau de jurisdição obrigatório. Com o decurso dos prazos para recursos voluntários, remetam-se os autos ao e. Tribunal Regional Federal da 3ª Região, com as homenagens de estilo. |
[...] |
(os destaques são do original) |
Interposta Apelação do Estado do Mato Grosso do Sul (fls. 1173/1197), na qual argumenta, em resumo, o seguinte: sustenta a ilegitimidade passiva do Estado por se tratar de escola municipal - competência do município, prestação de serviço concorrente - e de promoção e supervisão de ensino prestado à comunidade indígena, matéria da competência exclusiva da União, nos termos da Lei nº 9.394, de 1996; afirma que a transformação da escola municipal em indígena depende de manifestação da comunidade interessada e de representação da FUNAI e salienta que não consta dos autos esses documentos; aduz que não tem prova inequívoca da vontade da comunidade indígena na transformação dessa escola e que não pode o MPF decidir arbitrariamente sobre esse assunto; sustenta que somente 16 (dezesseis) pessoas falam a língua Ofayé, que o povo Ofayé é agressivo e não permite a entrada de estranhos na comunidade o que inviabiliza a implantação da escola; alega afronta à ordem orçamentária e infringência ao princípio da separação dos poderes e do pacto federativo; ressalta a autonomia do ente público em aplicar os recursos alocados para a educação onde perceber maior necessidade e que, ao interferir nos programas de assistência social, o Poder Judiciário interfere em sua execução frustrando o empenho da Administração Pública em garantir o mínimo social, à medida que privilegia um cidadão em detrimento da população em geral; sustenta que o trabalho linguístico determinado na alínea "a" da r. sentença já esta em andamento e que a própria FUNAI entende desnecessário o início de novos trabalhos, o que inviabilizaria a condenação do Estado e alega impossibilidade de atender à determinação judicial; informa que não é possível elaborar o Projeto Político Pedagógico e o Regimento Interno em 60 (sessenta) dias e que não existe no povo Ofayé ninguém em condições técnicas de criticar o projeto; salienta a dificuldade em contratar professores para lecionar a língua Ofayé na própria comunidade e fora dela; alega que o prazo para execução da sentença é exíguo em face da multa diária fixada, e requer o afastamento da multa, por entender exorbitante, ou a redução do seu valor para no máximo R$ 100,00 (cem reais) dia; ao final requer o aumento de todos os prazos para cumprimento da decisão antecipatória e da r. sentença para 1 (um) ano; e pugna pela condenação dos autores ao pagamento de honorários advocatícios e custas.
Recurso recebido apenas no efeito devolutivo (fl. 1206).
Contrarrazões do MPF às fls. 1211/1216, ratificadas pela FUNAI à fl. 1219.
Vieram os autos a esta Egrégia Corte Regional.
O Ministério Público Federal, com atribuição nesta instância, manifestou-se pelo conhecimento e pelo não provimento da apelação (fls. 1222/1234).
É o relatório.
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VOTO
A SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL DIVA MALERBI (RELATORA): cinge-se a controvérsia em apurar a responsabilidade e competência da União, do Estado de Mato Grosso do Sul e do Município de Brasilândia/MS, para transformar a Escola Municipal existente na comunidade indígena Ofayé Xavante, em Escola Indígena, garantindo que a língua materna Ofayé não desapareça, bem como que os membros daquela comunidade tenham acesso, pelo menos, à educação básica, nos termos da lei.
O Estado do Mato Grosso do Sul sustenta, em preliminar, ilegitimidade passiva, por entender que, em se tratando de escola municipal, não cabe a ele Estado promover a alteração requerida na inicial. Aduz ainda, que a questão envolve promoção e supervisão de ensino prestado à comunidade indígena e que isso seria da competência exclusiva da União, nos termos da Lei nº 9.394, de 1996.
A Escola Municipal Ofaié Iniecheki, sobre a qual recai o pedido de transformação em Escola Indígena, ministra aulas referentes ao ensino fundamental regular até a quarta séria, portanto, é uma escola integrante do ensino fundamental.
A exordial justifica esse pedido de transformação alegando que, da forma como está, ou seja, como Escola Municipal, não existe foco na cultura indígena e, tampouco, na língua materna dos Ofayé, haja vista que o material didático utilizado é o mesmo adotado nas demais escolas do município. Portanto, essa transformação, nada mais é do que uma questão de reorganização do sistema de ensino naquela municipalidade, em face da peculiaridade da presença da comunidade indígena Ofayé Xavante.
Além disso, a inicial salienta o risco de desaparecimento da língua Ofayé, uma vez que são poucos e raros os membros da própria comunidade indígena que ainda têm condições de ensiná-la.
Vale ressaltar, inicialmente, que a Constituição Federal garante a todos o direito à educação e à cultura (art. 205 e 215), fixa a competência dos Estados para atuarem, prioritariamente, no ensino fundamental e médio (§ 3º do art. 211) e organiza os sistemas de ensino, que devem ser promovidos em regime de colaboração entre todos os entes federados (art. 211).
A Lei nº 10.172, de 2001, ao aprovar o Plano Nacional de Educação, deixa claro que a educação deve ser uma atividade desenvolvida sempre em cooperação pelos entes da federação, União, Estados, Distrito Federal e Municípios e reforça a necessidade de se garantir às comunidades indígenas uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue e, dada as peculiaridades regionais, passou a responsabilidade e manutenção das escolas indígenas para os Estados da Federação, em conjunto com o Ministério da Educação, retirando da FUNAI essa incumbência executiva (item 9. Educação Indígena).
Na hipótese que ora se analisa, o que requer a inicial é justamente a implantação de uma Escola Indígena de ensino fundamental, competência do Estado, para garantir o acesso à educação e garantir a manutenção da língua materna daquela comunidade indígena, matéria de competência de todos os entes da federação, ai incluídos os Estados Federados.
Portanto, não há que se falar em ilegitimidade passiva do Estado do Mato Grosso do Sul, quando o assunto é a implantação de Escola Indígena em uma das municipalidades que o compõe, para garantir o direito à educação fundamental especifica e a preservação da cultura daquela comunidade. Afasto a preliminar de ilegitimidade passiva.
No mérito, sustenta o apelante que a transformação da Escola Municipal em Escola Indígena depende de requerimento da comunidade interessada e de representação da FUNAI e que não existe nos autos prova dessas providências.
O documento de fl. 520, assinado pelo cacique José de Souza é a manifestação que reflete o interesse da comunidade indígena Ofayé Xavante em possuir uma oferta de educação na forma das necessidades características dos povos indígenas. Exigir dos membros de uma comunidade como a Ofayé Xavante que leia os regulamentos expedidos pelo Ministério da Justiça e pelo MEC antes de fazer uma reinvindicação seria ultrapassar todos os limites do razoável.
Além disso, a norma citada pelo apelante (parágrafo único do art. 2º da portaria Interministerial MJ/MEC nº 559, de 1991), afirma que a transformação pode ser feita apenas com a anuência da comunidade indígena, ou seja, o próprio poder público, disposto e interessado em cumprir com o seu dever de proteger os povos indígenas e sua cultura, pode propor essa transformação e apenas consultar a comunidade indígena para saber de seu interesse, de suas necessidades e peculiaridades.
No que se refere à representação da FUNAI nesse sentido, o documento de fls. 1086/1088, supre essa exigência, ao tempo em que contem expressa manifestação daquela autarquia em "acompanhar as ações e serviços destinados a educação diferenciada para os povos indígenas; (Decreto n. 7.056, art. 2º. VI), em favor da etnia Ofayé-Xavante, pelos meios que lhes são pertinentes", até porque, o interesse da FUNAI foi no sentido de integrar o polo ativo da ação, justamente para garantir, em conjunto com o autor principal, a transformação requerida.
Assim, não há que se cogitar a alegada ausência de pressuposto básico para a transformação da Escola Municipal Ofaié Iniecheki, em Escola Indígena Ofaié Iniecheki, tampouco a ausência de prova inequívoca da vontade daquela comunidade indígena para que essa mudança ocorra.
Aduz o apelante que poucas são as pessoas que falam a língua Ofayé e que teriam condições de ensiná-la, e que isso, somado ao fato de que aquela comunicada não permite que pessoas estranhas ingressem no local sem permissão, pois, segundo o recorrente, trata-se de um povo agressivo e de difícil aproximação, impossibilita o Estado do Mato Grosso do Sul em "empreender qualquer atividade com vista a cumprir o determinado na sentença".
Essa alegação do recorrente confirma a necessidade de intervenção estatal para evitar a extinção da língua Ofayé, pois, cada dia sem a propagação da língua na comunidade Ofayé Xavante reforça o risco de sua extinção.
É evidente que o estado precisa de permissão para adentrar na comunidade Ofayé Xavante e é assim que deve ser. Isso faz parte do respeito à cultura e aos costumes daquela comunidade indígena, que tem seus hábitos e valores culturais assim como temos os nossos. Não é de se esperar que os deveres e obrigações do Poder Público sejam fáceis. Os desafios são grandes e estão aí para serem vencidos.
O Estado tem o dever de intervir para garantir o direito da comunidade Ofayé Xavante, que já se manifestou favoravelmente à essas transformações e como afirma a FUNAI à fl. 1088, "a comunidade indígena Ofayé-Xavante deverá ser formalmente ouvida pelas autoridades envolvidas na prestação do serviço, a respeito da instalação da escola indígena, em cumprimento ao disposto na Convenção 169, da OIT, que preconiza a consulta livre, prévia e informada (art. 6º, I, "a") às comunidades indígenas, sempre que alguma política pública lhes diga respeito".
Diante disso, não há que se falar em impossibilidade de cumprimento da determinação contida na r. sentença.
Sustenta o recorrente que a r. sentença afronta a ordem orçamentária e infringe aos princípios da separação dos poderes e do pacto federativo.
As fontes orçamentárias para a educação e a manutenção das escolas públicas estão previstas nas leis específicas (a exemplo do art. 68 e seguintes da Lei nº 9.394, de 1996), assim como também está determinada em lei própria, como já mencionado, o dever de garantir a especificidade da educação das comunidades indígenas.
De fato, como afirma o recorrente, a Administração Pública, ao destinar os recursos de que dispõe, deve estabelecer prioridades em razão do interesse público e da maior necessidade de sua atuação em uma área específica, observadas as necessidades mais evidentes da população local (fl. 1187).
No entanto, a ausência de políticas públicas direcionadas ao atendimento dessas necessidades eminentes, como é a hipótese de garantia do direito à educação a comunidade indígena Ofayé Xavante, que inclusive corre o risco de, por falta dessa providência, ver a sua língua materna e sua cultura extintas, configura omissão do Estado.
Assim, a decisão judicial em apresso, ao determinar a transformação da escola já existente em escola indígena, ou seja, a adequação da grade curricular para atender às especiais necessidades da comunidade indígena que atende, sob o fundamento de que esse é o caminho para se evitar a extinção da língua e da cultura Ofayé Xavante, não fere o principio da independência entre os poderes, tampouco afronta a ordem orçamentária, haja vista tratar-se de obrigação constitucionalmente estabelecida e que é dever intransponível do Estado.
De igual modo, em especial quando o assunto é a educação, a colaboração e a obrigação concorrente dos entes da federação, para garantir o exercício desse direito, tanto no que se refere à promoção, manutenção e desenvolvimento do ensino, quanto ao custeio da educação, não afronta, ao contrário, reforça o pacto federativo.
Em razão de sua natureza, o não cumprimento das políticas públicas constitucionalmente fixadas e voltadas à garantia do exercício dessa espécie de direito individual indisponível, por parte de qualquer desses entes da federação, como já foi dito, configura omissão.
Assim, a decisão judicial que determina ao Poder Público que cumpra com essa obrigação, também não afronta o pacto federativo, pois se trata de encargo político-jurídico estabelecido constitucionalmente e que deve ser implantado, em face do postulado que rege o nosso ordenamento jurídico que é o princípio da dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido os acórdãos:
CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FORNECIMENTO DE ÁGUA POTÁVEL A ALDEIAS INDÍGENAS. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. NÃO OCORRÊNCIA. PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA E À SAÚDE. |
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III - Ademais, na inteligência jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, a cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito á proteção integral da criança e do adolescente, o direito á saúde, o direito à assistência social, o direito á moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. |
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(ARE 639337 - Ministro CELSO DE MELLO - SEGUNDA TURMA - Julgamento em 23/08/2011 - Pulicado no DJe 177, divulgado em 14/09/20011) |
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AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CAR~ENCIA DE PROFESSORES. UNIDADES DE ENSINO PÚBLICO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. ARTS. 205, 208, IV, E 211, PARÁGRAFO 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. |
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Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional. |
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(RE 594018 - Ministro EROS GRAU - SEGUNDA TURMA - Julgamento em 23/06/2009 - Publicado no DJe nº 148, divulgado em 06/08/2009) |
Afirma o Estado do Mato Grosso do Sul que o trabalho linguístico determinado na r. sentença já está em andamento e que a própria FUNAI entende desnecessário o início de novos estudos.
O legislador constituinte garantiu não apenas o exercício dos direitos culturais como também a proteção das manifestações culturais indígenas, aqui incluída a língua materna desses povos. Tanto é assim, que o § 3º do art. 32 da Lei nº 9.394, de 1996, determina que o ensino fundamental será ministrado em língua portuguesa e assegura que, na hipótese das comunidades indígenas, não apenas as suas respectivas línguas maternas farão parte da grade curricular, como também devem ser observados os seus próprios e peculiares processos de aprendizagem.
Assim, se já existe um trabalho nesse sentido em andamento, que seja informado e submetido ao juízo os detalhes desse estudo, o estágio em que se encontra e o provável prazo para conclusão, o que não invalida a determinação judicial de sua elaboração.
No que se refere ao prazo de 60 (sessenta) dias estabelecido na r. sentença para a elaboração do projeto Político Pedagógico e o Regimento Interno que viabilizam a transformação da Escola Municipal em Escola Indígena, o Estado de Mato Grosso do Sul demonstrou, nos documentos de fls. que possui condições de cumprir essa determinação judicial dentro do prazo estabelecido, haja vista que não será a primeira vez que trata desse assunto.
O Decreto Estadual nº 10.734, de 2002, do Estado do Mato Grosso do Sul, que criou o Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul e a Escola Indígena, bem como o Plano Estadual de Educação do Mato Grosso do Sul, instituído pela Lei nº 2.791, de 2003, tratam exatamente da garantia pelo Estado dos direitos à educação das comunidades indígenas daquela unidade da federação, e determina o respeito e a rigorosa observação de suas peculiaridades, bem como o ensino ministrado nas línguas maternas dessas comunidades, com o objetivo de preservar e resgatar a cultura de cada etnia.
Além disso, a educação escolar indígena não é novidade para o Estado do Mato Grosso do Sul (fls. 175 - composição do Comitê de Educação Escolar Indígena e fls. 184/188 - Relação de Escolas com extensões em áreas indígenas), que conta com técnicos na área de Gestão em Processos de Educação Escolar Indígena/SED/MS, que, aliás, vêm assessorando diversas comunidades indígenas na elaboração da documentação necessária para a regularização de suas respectivas Escolas, conforme se observa do Ofício nº 608, de 24/10/2003, do Senhor Superintende de Politicas de Educação do Estado do Mato Grosso do Sul (fls. 216/220).
Assim, fica demonstrada a capacidade técnica do Estado do Mato Grosso do Sul para minutar os projetos exigidos por lei, discuti-los com comunidade indígena e assim dar início ao processo de transformação da Escola Municipal Ofayé Iniecheki em Escola Indígena, não havendo, portanto, necessidade de aumento dos prazos fixados na r. sentença para o cumprimento de suas determinações.
Ademais, O Estado contará com a colaboração do Munícipio de Brasilândia, que conhece a comunidade Ofayé Xavante e com a UNIÃO/FUNAI, que detém a expertise para lidar com os povos indígenas e disponibilizará recursos humanos, materiais e financeiros para tanto.
No que se refere à fixação de multa diária é perfeitamente cabível para compelir a parte requerida a cumprir a determinação judicial contida na sentença. O valor arbitrado pelo juiz levou em consideração a gravidade do fato, ou seja, o risco de extinção da língua da comunidade indígena Ofayé Xavante. Portanto, em face da observância do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, mantenho a multa aplicada.
Ante o exposto, nego provimento à remessa oficial e à apelação do Estado do Mato Grosso do Sul. Mantida a r. sentença por seus próprios fundamentos.
É como voto.
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VOTO
Com o máximo respeito a eminente Relatora, ouso divergir de S. Exª para reformar a r. sentença.
Não cabe ao Estado de Mato Grosso do Sul proceder ao resgate escrito e imediato da língua Ofayé para sua permanente preservação, por meio de linguistas a serem contratados para tanto; não cabe ao Estado de Mato Grosso do Sul a contratação de dois professores da Comunidade Ofayé, que se habilitarem, para ensinar a língua materna na escola indígena. Não cabe ao Estado de Mato Grosso do Sul e o Município de Brasilândia formular o Projeto Político Pedagógico e o Regimento Interno da futura "Escola Indígena Ofayé Ineicheki", submetendo-o á apreciação da comunidade indígena, que os aprovará, modificará ou rejeitará de acordo com a representatividade por eles adotada. Não cabe à União formular suporte econômico ou material para tudo isso.
Tudo o que lhes foi ordenado afronta a discricionariedade (legítima) assegurada na formulação da política pública educacional, não havendo espaço para "ativismo" ministerial ou judicial nesse campo específico.
Os poderes públicos oferecem a educação de 1º e 2º graus conforme o que podem decidir e custear, não sendo possível que o Juiz decida o que devam estudar as crianças, sejam indígenas ou não.
Aliás, NÃO CABE ao Ministério Público Federal ajuizar o que será melhor ou pior para o aprendizado dos indígenas - que, na espécie, parecem ser agressivos e infensos a tratativas, como dito pelo Estado do Mato Grosso do Sul - como não lhe cabe alvitrar, por exemplo, que as escolas públicas ofereçam obrigatoriamente aulas de Latim com o propósito de salvar nossa língua "mater" de ser tida como "língua morta" (embora não extinta) no Brasil.
A extinção de idiomas e dialetos é uma realidade da existência humana na Terra. Por exemplo, já se perderam os seguintes idiomas: acadiano - anglo-saxão (inglês arcaico, desaparecido após o séc. XII) - eslavônico - prussina antigo (desapareceu no séc. XVII) - canaanita - córnico (desaparecida na Cornualha em 1777) - gaulês (desapareceu no séc. VI) - gótico (sumiu no séc. X) - hitita (extinta em 1.100 A.C) - livônio (línga falada na Letônia e extinta em 2013) - manx (Irlanda, desparecido em 1974) - nórdico antigo (língua do povo viking, extinta no séc. XIV) - tapes (falado pelos índios que viviam ao redor da Lagoa dos Patos/RS), etc.
É claro que não se deseja o desaparecimento da língua indígena Ofayé Ineicheki - uma dentre as 1.500 línguas indígenas faladas no Brasil por volta do Descobrimento - mas me parece certo que a manutenção da mesma não pode ser imposta como uma política pública, mesmo porque, convenhamos, o pequeno município de Brasilândia e o Estado do Mato Grosso do Sul podem ter - a critério deles - outras prioridades.
Em resumo: o currículo escolar eleito pelo Poder Público não deve ser sindicado pelo Judiciário ou do MPF, exceto se as matérias incitarem a violência, o racismo, a intolerância, a ofensa à democracia, etc.
É certo que pode haver uma oferta de educação diferenciada na forma das necessidades características dos povos indígenas, mas não é possível obrigar os poderes públicos a fornecer tal educação na forma e no modo entendidos pelo MPF e pelo Juízo.
Todas as línguas indígenas brasileiras estão ameaçadas de extinção em algum grau, conforme diz o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas; mas os expertos insistem que a defesa dos territórios tradicionais dos povos indígenas é a principal forma de preservar sua língua; sendo assim, não será com uma escola municipal em Brasilândia que se garantirá a preservação da língua indígena Ofayé Ineicheki, que os estudiosos dizem tratar-se de uma língua difícil de entender corretamente, e mais ainda de falar (opinião de CURT NIMUENDAJÚ, A propos des indiens Kukura du Rio Verde (Brésil), "in" Journal de la Societé de Americanistes, Nouvelle Série, tome XXIV, Paris, obra traduzida do francês por Hilda Zimmermann e Cristina Vigiano, 1932, e referida em https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%ADngua_ofai%C3%A9).
Ora, se o vetusto especialista afirma ser uma língua difícil de falar e entender, pergunta-se: aonde o Município vai arrumar professores dessa língua ? Não estará a sentença atribuindo ao ente público um dever diabólico, um trabalho de Sísifo ?
Por fim, como não parte - pelo menos hoje - do Município de Brasilândia qualquer atividade para destruir a língua indígena falada por apenas 69 pessoas (em 2016), não pode caber a ele o ônus de mantê-la viva.
Ante o exposto, voto por DAR PROVIMENTO A APELAÇÃO E A REMESSA OFICIAL.
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