D.E. Publicado em 19/07/2018 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar parcial provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
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RELATÓRIO
O Desembargador Federal Johonsom di Salvo (relator):
Marianna Lively Quintino da Silva (nome social), registrada como Davi Quintino da Silva, propôs ação contra a UNIÃO FEDERAL visando condenar a ré a pagar-lhe indenização por danos morais sofridos com a divulgação indevida da sua imagem através de redes sociais, o que lhe acarretou sofrimentos íntimos.
A parte autora compareceu na manhã de 23/9/2015 ao Quartel de Quitaúna para - junto com um número elevado de adolescentes - regularizar a sua situação diante da ordem constitucional de apresentar-se para o alistamento militar. Consta da inicial que a parte autora "foi vestida conforme a sua identidade de gênero, ou seja, de acordo com o que se reconhece e sente: como mulher" (fls. 8), já que se afirma na condição de transexual. Afirma que durante o tempo em que esteve no recinto militar - e onde obteve a dispensa para o serviço militar - foi fotografada por militares que se achavam acomodados em um plano superior. Sem que soubesse, seu certificado de alistamento militar (fls. 11) - lavrado com seu nome de batismo - também foi fotografado. As fotografias de sua pessoa e de seu documento militar foram veiculadas por meio de whatzzap e de facebook, e a parte autora tornou-se vítima de dor íntima e grande sofrimento, porque passou a ser procurada através de telefonemas para fazer "programas sexuais" e outras grosserias, além de ameaças por sua condição sexual. O Exército instaurou inquérito policial militar/IPM onde se apurou que um capitão que se achava observando os jovens alistandos, em companhia de outros oficiais, bateu as fotografias com seu celular e as compartilhou com outro capitão; este, por sua vez, colocou as fotos na internet. A parte autora pediu indenização pelos percalços sofridos.
A inicial foi contestada e replicada.
Sem mais provas além das que já se achavam nos autos, o feito foi sentenciado (fls. 211-216/vº). Afastadas questões preliminares, a UNIÃO viu-se condenada a suportar indenização por danos morais no valor de R$ 60.000,00, com correção monetária a partir da data da prolação da mesma (30/03/2017) e juros de mora contados da citação (1% ao mês). Foram fixados honorários advocatícios em 10% do proveito econômico a ser obtido pela autora.
Apelação da UNIÃO a fls. 220 e seguintes, onde afirma a ausência de nexo etiológico entre a conduta dos militares e os ditos sofrimentos morais sofridos pela parte autora; aduz ausência de responsabilidade objetiva da ré na espécie. Subsidiariamente, pede a redução do valor da indenização e dos juros fixados em 1%.
Houve contrarrazões.
É o relatório.
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VOTO
A matéria de fundo é totalmente desfavorável à UNIÃO.
A prova trazida aos autos e a ampla admissão da dinâmica dos fatos feita pela própria ré, não deixam dúvidas de que Marianna Lively Quintino da Silva (nome social), registrada como Davi Quintino da Silva, foi fotografada sem autorização nas dependências de uma instalação militar - Quartel de Quitaúna, em Osasco/SP - quando para lá se dirigiu a fim de providenciar seu alistamento militar, ocasião em que obteve dispensa de servir o Exército. Sem seu conhecimento, teve a sua pessoa fotografada pelo capitão Carlos Roberto de Jesus Júnior - que se encontrava de serviço - tendo este militar repassado as duas fotos ao capitão Rômulo Marcondes de França, que então presidia a própria Comissão de Seleção de alistandos. Esse capitão França, por sua vez, sem qualquer licença da pessoa fotografada, divulgou as duas fotos e também o próprio certificado de alistamento militar com dispensa - onde se encontravam todos os dados pessoais da parte autora, inclusive endereço e telefone (fls. 11) - num grupo de whatzzap.
Na contestação apresentada pela ré há referência à motivação do capitão-fotógrafo: noticiar pela internet o comparecimento de um transexual para alistamento militar e "fazer uma piada com um militar seu conhecido" (fls. 161).
Em resumo: o capitão-fotógrafo procedeu com o intuito de fazer piada com a imagem alheia, ou seja, com grosseiro e arrogante animus jocandi.
Sucede que mesmo com a intenção de fazer humorismo - que pode ser muito desagradável - a Constituição prevê que é inviolável a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (inc. X, art. 5º). O Código Civil (art. 20) preconiza que a pessoa pode até proibir a divulgação de sua imagem, o que está correto porque a vida privada da pessoa natural é inviolável (art. 21), ainda mais quando não se trata de pessoa pública ou que se valha de sua imagem para fins profissionais.
Aquele militar, capitão Jesus, - que obviamente estava em serviço dentro de um quartel - não tinha nenhum direito de fotografar qualquer dos adolescentes que comparecia ao Quartel de Quitaúna naquela manhã para cumprir seu dever constitucional; logo, não tinha o direito de fotografar, especificamente, a pessoa adolescente Marianna Lively Quintino da Silva (nome social), registrada como Davi Quintino da Silva. Da mesma maneira, ao receber aquelas fotografias em compartilhamento pelo celular, o capitão França - presidente da Comissão de Seleção de alistandos - não detinha a capacidade de associar às imagens recebidas os dados pessoais de Marianna/Davi (foto do certificado de alistamento militar) de modo a permitir que, pela internet, um número incalculável de pessoas tivesse acesso a tudo.
Tão sério é o respeito que se deve ter para com a imagem das pessoas, que há muito tempo o STF já teve ensejo de afirmar que "Para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5º, X" (RE nº 215.984 / RJ, 2ª Turma, rel. Min. Carlos Veloso, j. 04/06/2002).
Dessa sorte, Marianna Lively Quintino da Silva (nome social), registrada como Davi Quintino da Silva, poderia pedir indenização mesmo que não tivesse sofrido qualquer insulto de terceiros, ou que tivesse sido convidada para "programas" sexuais por indivíduos abestalhados.
Ou seja, mesmo que a parte autora não tivesse sofrido concretamente qualquer desgosto, é óbvio que, em razão da divulgação de sua imagem obtida sem seu consentimento na rede mundial de computadores, poderia pedir indenização. Sua imagem pertence a Marianna Lively Quintino da Silva (nome social), registrada como Davi Quintino da Silva. A essa pessoa natural cabe autorizar a divulgação, ou negá-la, conforme queira ou não ser conhecida. Só isso. Não pode qualquer outro obter fotografias, sem sua autorização, e postá-las em redes sociais.
A responsabilidade pela indenização em princípio é de quem fotografou e inseriu no ambiente virtual a imagem não autorizada ou prejudicial; sucede que, no caso dos autos, quem assim procedeu foram militares do Exército que se achavam em serviço no quartel a que a vítima necessitou comparecer por força da Constituição e da lei; mais grave: um desses militares era justamente o presidente da Comissão de Alistamento a que a Marianna/Davi precisou se submeter e por isso era o agente público incumbido da seriedade dos atos de alistamento.
Faz parte da ética militar: respeitar a pessoa humana (art. 28, III, Estatuto dos Militares), ser discreto em suas atitudes (art. 28, IX), observar as normas da boa educação (art. 28, XIV), zelar pelo bom nome das Forças Armadas e de cada um de seus integrantes, obedecendo e fazendo obedecer aos preceitos da ética militar (art. 28, XIX).
A dupla de capitães que fotografou Marianna/Davi e seu documento, lançando-os nas redes sociais, descumpriu todos os preceitos. Na verdade, são transgressores, tal como consta do art. 42 do Estatuto dos Militares, na medida em que amesquinharam um direito alheio constitucionalmente assegurado, fazendo-o na condição de capitães do Exército Nacional.
É o que basta para que incida na espécie o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, compelindo a UNIÃO a responder pelos atos comissivos de dois de seus agentes que se achavam no exercício da função militar e ofenderam pessoa que exercia um dever cívico-constitucional.
O nexo causal é manifesto, entre a conduta dos oficiais e a divulgação indevida da imagem da vítima.
O fato do inquérito policial militar/IPM ter sido arquivado a pedido do Ministério Público Militar, na espécie, não interfere na jurisdição cível, porque aquele arquivamento não produz coisa julgada e, ao contrário do que supõe a UNIÃO, o arquivamento deu-se com efeitos apenas para a instância penal porque ali não se identificou a tipicidade penal; ademais foi naquele expediente investigativo que restou bem provada a autoria das fotos e a divulgação delas, atribuída já naquela esfera de investigação aos dois capitães.
Esses fundamentos aderem aos da r. sentença.
O quantum da indenização foi dosado modicamente; poderia até ser maior, no caso; mas não houve recurso. De toda sorte, justifica-o a extensão da indevida divulgação de imagens e documento pessoal não pode sequer ser medida, pois alcançou número incalculável de usuários da internet. Além disso, na época, lesou-se pessoa adolescente, a quem deve ser assegurado o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (ECA, art. 3º), devendo ser-lhe preservada a imagem e a identidade (art. 17), sendo dever de todos protegê-los contra tratamento vexatório ou constrangedor (art. 18), justamente o oposto do que foi tributado à parte autora pelos capitães Jesus e França.
A quantia não provoca transtorno aos cofres públicos e serve para os fins preventivos que informam as reprimendas.
Há erro na sentença quanto ao termo inicial dos juros de mora (Súmula 54/STJ), mas o ponto não foi objeto de apelo da parte autora.
A UNIÃO tem razão apenas em um aspecto: quanto aos juros moratórios; por serem incidentes sobre condenação oriundas de relação jurídica não tributária, devem ser observados os critérios fixados pela legislação infraconstitucional, notadamente os índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança, conforme dispõe o art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09.
Só nesse ponto o apelo merece procedência.
A motivação aqui expendida é o quantum satis para os fins da Lei nº 13.655/2018.
Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO à apelação.
É como voto.
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Data e Hora: | 10/07/2018 13:53:13 |