Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 28/01/2019
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0009756-70.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.009756-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
REL. ACÓRDÃO : Desembargador Federal NINO TOLDO
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : APARECIDO LAERTES CALANDRA
ADVOGADO : SP015193 PAULO ALVES ESTEVES e outro(a)
RECORRIDO(A) : DIRCEU GRAVINA
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA falecido(a)
No. ORIG. : 00097567020154036181 1P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO QUE NÃO RECEBEU A DENÚNCIA. IMPUTAÇÃO DE CRIMES A AGENTES ESTATAIS. HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO NO CONTEXTO DO REGIME MILITAR. LEI Nº 6.683/79. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 153. RECURSO DESPROVIDO.
1. O tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/79, já foi amplamente discutido no âmbito do STF, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Tal julgamento assentou a validade da mencionada lei e a impossibilidade de revisitar, em termos jurídico-penais, os atos por ela abarcados, valendo ressaltar que tal decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999.
2. Por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/79.
3. Tramita no STF a ADPF nº 320/DF, sob relatoria do Min. Luiz Fux, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes. Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153. Precedentes.
4. Recurso em sentido estrito não provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, NEGAR PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito, nos termos do voto divergente do Desembargador Federal Nino Toldo, com quem votou o Desembargador Federal José Lunardelli, vencido o Desembargador Federal Relator, Fausto De Sanctis, que dava parcial provimento ao recurso, nos termos do relatório e votos que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.



São Paulo, 06 de novembro de 2018.
NINO TOLDO
Relator para o acórdão


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0009756-70.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.009756-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
REL. ACÓRDÃO : Desembargador Federal NINO TOLDO
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : APARECIDO LAERTES CALANDRA
ADVOGADO : SP015193 PAULO ALVES ESTEVES e outro(a)
RECORRIDO(A) : DIRCEU GRAVINA
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA falecido(a)
No. ORIG. : 00097567020154036181 1P Vr SAO PAULO/SP

VOTO-VISTA

O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO: Pedi vista dos autos para melhor analisar o tema de fundo, de grande relevância e que foi objeto de minucioso voto do e. Relator, Desembargador Federal Fausto De Sanctis, que deu provimento ao recurso em sentido estrito para receber a denúncia oferecida em desfavor dos recorridos APARECIDO LAERTES CALANDRA e DIRCEU GRAVINA.


CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA também havia sido denunciado, mas teve extinta a sua punibilidade em razão do seu falecimento.


Os recorridos foram denunciados porque, conforme relatado, teriam praticado o crime do art. 121, § 2º, I, III e IV, do Código Penal por terem provocado a morte de Carlos Nicolau Danielli por motivo torpe, com emprego de tortura e de recursos que impossibilitaram a defesa da vítima. CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA também teria praticado o crime do art. 4º, alíneas "a", "c" e "h", da Lei nº 4.898/1965, ao ordenar e executar medida privativa de liberdade de Carlos Nicolau Danielli sem observância às formalidades legais e com abuso de poder.


Em extensa e judiciosa sentença, na qual fez detalhada análise histórica, o e. Juiz Federal Alessandro Diaféria rejeitou a denúncia porque, em síntese: i) os fatos imputados aos denunciados foram alcançados pela anistia prevista na Lei nº 6.683, de 28.08.1979; ii) essa anistia foi reafirmada pela Emenda Constitucional nº 26, de 1985, que convocou a assembleia nacional constituinte e resultou na Constituição Federal de 1988; iii) o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153/DF, reafirmou que os efeitos da anistia concedida pela referida Lei nº 6.683/79 não foram afastados pela Constituição Federal de 1988; iv) não cabe cogitar a aplicação retroativa de disposições e diretivas de Direito Internacional que pretendam invalidar, direta ou indiretamente, a aplicação da Lei nº 6.683/79, sob pena de afrontar-se a decisão do STF na ADPF nº 153; v) se há perspectiva de que em outra ADPF (320/DF), o STF reveja o seu posicionamento quanto à lei de anistia, deve aguardar-se tal julgamento, pois o STF é o único órgão judicial que poderia, mesmo que obliquamente, deliberar pela cessação dos efeitos da ADPF nº 153; vi) a adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) deu-se por meio do Decreto nº 678, de 06.11.1992, publicado em 08.11.1992, mais de uma década depois da prática dos fatos narrados na denúncia.

Peço vênia ao e. Relator para negar provimento ao recurso.

Com efeito, o tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/79, já foi amplamente discutido no âmbito do STF, na citada ADPF nº 153, cuja ementa transcrevo:

EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. 1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida.
2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera.
3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão.
4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.
6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido.
7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia.
8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário.
9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988.
10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura.
(ADPF 153/DF, Pleno, maioria, Rel. Min. Eros Grau, j. 29.04.2010, DJe-145 DIVULG 05.08.2010 PUBLIC 06.08.2010, RTJ 216, p. 11)
Não vou estender-me em considerações que seriam repetitivas em relação a tudo o que foi exposto no voto do Ministro Eros Grau e nos dos que o acompanharam. Da mesma forma em relação ao que consta na r. decisão do juízo de primeiro grau.

O que posso acrescentar, em concordância com o quanto exposto na sentença, é que, por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/79. Isso foi destacado, por exemplo, por José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-membro da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição do dia 22.05.2018:

A anistia, entre nós, veio em dois momentos. O primeiro, com a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, negociada entre Petrônio Portela (ministro da Justiça de Ernesto Geisel) e Raymundo Faoro (presidente da OAB Nacional). De um lado, preparando a volta de exilados como Miguel Arraes e Leonel Brizola - e protegendo condenados ou processados pela ditadura; de outro, protegendo os militares por tudo o que fizeram. Duro preço a pagar para permitir a transição. Uma lei imposta pelos militares, claramente para se proteger. Vão-se os anéis.
Mas houve outra, depois, da qual pouco se diz. A Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, votada por um Congresso livre, o mesmo que elegeu Tancredo Neves.
A reprodução do texto, tecnicamente o mesmo, se deveu ao fato de que o episódio grotesco do Riocentro ocorreu em 1981, posteriormente à primeira lei. Os militares exigiam que também aquele episódio fosse coberto por uma anistia.
E tudo se deu no contexto de negociações feitas por Tancredo, antes da posse, para garantir uma transição sem maiores traumas. Dos militares para a oposição civil - e não, como na generalidade dos países, primeiro dos militares para o estamento civil do sistema.

O STF, ao julgar a ADPF nº 153, determinou os rumos de ações que visassem revolver fatos alcançados pela anistia mencionada. Isto porque essa decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999.

Assim é que outras ações propostas pelo MPF com o mesmo objetivo não foram acolhidas no âmbito deste Tribunal, como, por exemplo:

PENAL. PROCESSO PENAL. LEI Nº 6.683/79. ANISTIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DENÚNCIA. REJEIÇÃO.
1. A morte do agente constitui causa de extinção da punibilidade.
2. A anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 foi ampla e geral, alcançando os crimes políticos e eleitorais praticados pelos agentes da repressão, no período compreendido entre 02/09/1961 e 15/08/1979.
3. A Lei nº 6.683/79 foi integrada na nova ordem constitucional de 1988.
4. Em razão da concessão de anistia em relação aos delitos políticos e os conexos com estes, praticados no período compreendido entre 02/09/1961 a 15/08/1979, não há falar em existência material de crime. Ausência de justa causa para a ação penal. Rejeição da denúncia é medida de rigor.
5. Recurso em sentido estrito prejudicado em parte, em razão da morte de agente. Na parte não prejudicada, recurso desprovido.
(RSE 0016351-22.2014.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal Mauricio Kato, j. 07.08.2017, e-DJF3 Judicial 1 18.08.2017)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. REGIME MILITAR. ANISTIA. HOMICÍDIO. OCULTAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CADÁVER. INDÍCIOS DE MATERIALIDADE E AUTORIA. RESTOS MORTAIS NÃO LOCALIZADOS. CRIME PERMANENTE. PRESCRIÇÃO. SUJEIÇÃO DO BRASIL ÀS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO GOMES LUND. DESAPARECIMENTO FORÇADO. CONVENÇÃO AMERICANA E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. DISTINÇÃO. ENTENDIMENTO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA. ADPF 153. COMPATIBILIDADE COM A DECISÃO INTERNACIONAL. 1. Imputação ao réu da prática dos crimes de homicídio duplamente qualificado (CP, art. 121, § 2º, I e IV) e de ocultação de cadáver (CP, art. 211), cometidos quando ocupava o cargo de chefia do DOI-CODI, em setembro de 1975.
2. O Supremo Tribunal Federal já proclamou não somente a validade mas também a abrangência bilateral da Lei n. 6.683, de 28.08.79, conhecida como Lei da Anistia, que se aplica aos delitos cometidos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
3. Não consta que a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha obliterado a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nestes autos, aquela é meramente citada sem que se identifiquem efetivamente seus efeitos para a economia deste processo, isto é, em que medida seus efeitos criam, extinguem ou modificam direitos de caráter processual ou de direito material no que respeita ao regular andamento da ação penal. Em princípio, o juiz goza de independência no âmbito de sua função jurisdicional, cumprindo-lhe aplicar a lei ao caso concreto mediante o exercício de seu entendimento, segundo o Direito. Essa atividade somente é obstruída em decorrência de decisão que tenha a propriedade de substituir ou, de qualquer modo, reformar sua decisão. Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil não afetam esse pressuposto, que de resto é facilmente compreensível. Nem é preciso maiores digressões, pois o fenômeno é, na sua natureza, idêntico ao que ocorre no âmbito das obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito interno. Daí que não há razão, de caráter processual, para não guardar a tradicional reverência ao julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal.
4. Anistia aplicável ao delito de homicídio referido na denúncia.
5. A prática do crime do art. 211 do Código Penal em sua modalidade "destruir" demanda a mesma conclusão atinente ao delito de homicídio, por plenamente incidentes as disposições da Lei n. 6.683, de 28.08.79.
6. A mera natureza permanente do crime de ocultação de cadáver não faz ressurgir a pretensão punitiva. Pois nos crimes permanentes há de subsistir a atividade criminosa ao longo do tempo. A denúncia, contudo, não fundamenta seu pedido condenatório em uma suposta ulterior atividade criminosa que, por si mesma, teria feito surgir (ou, o que dá no mesmo, subsistir) a pretensão punitiva. Daí que aqueles fatos foram efetivamente abrangidos pela anistia.
7. O Código Penal, art. 111, III, diz que, nos crimes permanentes, a prescrição começa a correr "do dia em que cessou a permanência". Assim, subsistindo a tipificação do fato, fenômeno que ocorre por causa da atividade delitiva do agente, resulta evidente que não está a correr o prazo prescricional. Não há referência à atividade criminosa dos agentes posterior à Lei da Anistia que poderia - como se pretende - postergar o início da fluência do prazo prescricional. Contudo, a própria aplicação desse dispositivo fica prejudicada na medida em que, por oura razão, já não há mais pretensão punitiva passível de ser extinta pela prescrição.
8. Recurso não provido.
(RSE 0015754-19.2015.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal André Nekatschalow, j. 50.12.2016, e-DJF3 Judicial 1 15.12.2016)

O STF também reafirmou a autoridade da decisão proferida na ADPF º 153 ao deferir liminares nas Reclamações nºs 18.686/RJ (Rel. Min. Teori Zavascki) e 19.760/SP (Rel. Min. Rosa Weber), suspendendo as ações penais que tramitavam no primeiro grau de jurisdição.

Observo, ainda, que tramita no STF a ADPF nº 320/DF, sob relatoria do Min. Luiz Fux, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes.

Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153.

Observo, apenas para registro, que essa impossibilidade de revisão por outros órgãos judiciários que não o próprio STF foi admitida por José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso, ex-integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição de 19.05.2018, no qual defenderam a revisão da lei de anistia após novas revelações sobre a ditadura militar:

A medida de julgamento dos agentes públicos envolvidos na repressão já havia sido determinada ao Estado brasileiro por meio de decisão de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Ministério Público Federal, evoluindo de sua posição anterior, passou a promover ações objetivando a condenação dos responsáveis.
A recomendação da CNV permanece, portanto, integralmente válida e, no relatório, estão nominadas 377 pessoas comprometidas com os crimes apurados, cerca de metade delas provavelmente ainda vivas. Impõe-se, assim, a promoção do afastamento dos eventuais impedimentos da Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia), aprovada ainda durante a ditadura, para que a atuação do Judiciário possa ter curso.
Isso poderá se dar por via de decisão do Supremo Tribunal Federal, havendo ações aguardando julgamento, ou de deliberação do Congresso Nacional, sendo diversos os projetos nesse sentido.
O fundamental é que a civilização prevaleça sobre a barbárie e o Brasil deixe a condição vergonhosa de ser a única exceção entre os países da América Latina -que, olhando de frente para o seu passado, julgaram os agentes da repressão, promovendo a justiça e a democracia. (negritei)

Posto isso, pedindo vênia ao e. Relator, NEGO PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito.

É o voto.


NINO TOLDO
Relator para o acórdão


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Signatário (a): NINO OLIVEIRA TOLDO:10068
Nº de Série do Certificado: 11A2170626662A49
Data e Hora: 11/01/2019 18:05:57



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0009756-70.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.009756-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : APARECIDO LAERTES CALANDRA
ADVOGADO : SP015193 PAULO ALVES ESTEVES e outro(a)
RECORRIDO(A) : DIRCEU GRAVINA
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
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RELATÓRIO

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:


Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (fls. 101 e 103/138) em face de r. decisão (fls. 73/99), proferida pelo MM. Juízo da 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP e da lavra do Eminente Juiz Federal Alessandro Diaferia, que, com fundamento no art. 395, II e III, do Código de Processo Penal c.c. art. 1º, e seu § 1º, da Lei nº 6.683/1979, art. 4º, § 1º, da Emenda Constitucional nº 26/1985, e, ainda, art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999 (tendo em conta a r. decisão proferida pelo C. Supremo Tribunal Federal no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153), rejeitou a denúncia ofertada pelo Parquet tendo em vista a extinção de punibilidade dos acusados pela superveniência de anistia.


Colhe-se da exordial acusatória colacionada às fls. 39/71 que, no dia 30 de dezembro de 1972, em hora incerta, em contexto de ataque sistemático e generalizado à população civil, em conduta que se iniciou na Rua Tutoia, nº 921, Vila Mariana, na sede do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) em São Paulo, mas cujo local de consumação é incerto, CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, comandante responsável pelo referido Destacamento, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios com DIRCEU GRAVINA e APARECIDO LAERTES CALANDRA, e também com outras pessoas não totalmente identificadas, teriam matado a vítima Carlos Nicolau Danielli por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido.


Ainda de acordo com a exordial, o homicídio de Carlos Nicolau Danielli teria sido cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e para eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, de torturas, de sequestros e de ocultações de cadáver. Ademais, o homicídio em tese perpetrado teria sido cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra a vítima, com o fim de intimidá-la e dela obter informações. A ação teria sido levada a efeito, ainda, mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido, vale dizer, por meio do emprego de um grande número de agentes do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) para sequestrar a vítima, imobilizá-la e mantê-la sob forte vigilância armada.


Narra também a denúncia que CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, na qualidade de comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI), teria agido com abuso de autoridade ao executar e ordenar a prisão de Carlos Nicolau Danielli sem a obediência às formalidades legais, bem como sem comunicar, de imediato, ao juiz competente a medida privativa de liberdade, causando, desta feita, ato lesivo da honra e do patrimônio da vítima.


Desta feita, os fatos anteriormente narrados foram subsumidos da seguinte maneira: (a) em relação ao denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA: art. 121, § 2º, I, III e IV, c.c. art. 29, ambos do Código Penal, e art. 4º, "a", "c" e "h", da Lei nº 4.898/1965; (b) em relação aos denunciados DIRCEU GRAVINA e APARECIDO LAERTES CALANDRA: art. 121, § 2º, I, III e IV, c.c. art. 29, ambos do Código Penal.


Em sua razões recursais, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL pugna pela reforma da r. decisão, com o consequente recebimento da denúncia ofertada, sob os seguintes argumentos:


(a) Os crimes teriam sido praticados por agentes da ditadura militar contra a população brasileira, caracterizando crimes contra a humanidade, sendo que a Lei nº 6.683/1979 não teria validade em face de mencionados delitos por serem estes insuscetíveis de anistia ou de prescrição, inferência obtida por meio da análise de normas cogentes do Direito Internacional costumeiro - ademais, referida legislação, por proclamar uma autoanistia, não seria válida na justa medida em que teria privilegiado aqueles que se encontravam no Poder;


(b) A Corte Interamericana de Direitos Humanos impôs ao Estado Brasileiro o dever de promover a persecução penal dos agentes estatais encarregados dos crimes contra a humanidade sem que a anistia pudesse configurar uma barreira legítima à punibilidade (caso Gomes Lund vs. Brasil - "Guerrilha do Araguaia");


(c) A compatibilidade da Lei nº 6.683/1979 com a Constituição Federal de 1988, afirmada pelo C. Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, não impediria o controle de convencionalidade da anistia em face dos crimes praticados em nome da repressão estatal na ditadura.


Apresentadas contrarrazões (fls. 150/157, 159/166 e 178/201), o r. provimento judicial guerreado foi mantido por seus próprios fundamentos (fl. 207), cabendo destacar que houve a declaração de extinção de punibilidade pelo falecimento do acusado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA (fl. 207). Após, os autos subiram a esta E. Corte.


Colheu-se parecer da Procuradoria Regional da República (fls. 217/227), que opinou pelo provimento do Recurso em Sentido Estrito.


É o relatório.


Dispensada a revisão.


FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0009756-70.2015.4.03.6181/SP
2015.61.81.009756-8/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : APARECIDO LAERTES CALANDRA
ADVOGADO : SP015193 PAULO ALVES ESTEVES e outro(a)
RECORRIDO(A) : DIRCEU GRAVINA
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA falecido(a)
No. ORIG. : 00097567020154036181 1P Vr SAO PAULO/SP

VOTO

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

Trata-se de feito no qual recorre o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL da r. decisão que, com fundamento no art. 395, II e III, do Código de Processo Penal c.c. art. 1º, e seu § 1º, da Lei nº 6.683/1979, art. 4º, § 1º, da Emenda Constitucional nº 26/1985, e, ainda, art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999 (tendo em conta a r. decisão proferida pelo C. Supremo Tribunal Federal no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153), rejeitou a denúncia ofertada tendo em vista a extinção de punibilidade dos acusados pela superveniência de anistia.

Conforme dito em sede de relatório, narra a exordial acusatória que, no dia 30 de dezembro de 1972, em hora incerta, em contexto de ataque sistemático e generalizado à população civil, em conduta que se iniciou na Rua Tutoia, nº 921, Vila Mariana, na sede do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) em São Paulo, mas cujo local de consumação é incerto, CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, comandante responsável pelo referido Destacamento, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios com DIRCEU GRAVINA e APARECIDO LAERTES CALANDRA, e também com outras pessoas não totalmente identificadas, teriam matado a vítima Carlos Nicolau Danielli por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido.

Ainda de acordo com a exordial, o homicídio de Carlos Nicolau Danielli teria sido cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e para eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, de torturas, de sequestros e de ocultações de cadáver. Ademais, o homicídio em tese perpetrado teria sido cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra a vítima, com o fim de intimidá-la e dela obter informações. A ação teria sido levada a efeito, ainda, mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido, vale dizer, por meio do emprego de um grande número de agentes do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) para sequestrar a vítima, imobilizá-la e mantê-la sob forte vigilância armada.

Continua expondo a denúncia que CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA, na qualidade de comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI), teria agido com abuso de autoridade ao executar e ordenar a prisão de Carlos Nicolau Danielli sem a obediência às formalidades legais, bem como sem comunicar, de imediato, ao juiz competente a medida privativa de liberdade, causando, desta feita, ato lesivo da honra e do patrimônio da vítima.

Desta feita, os fatos anteriormente narrados foram subsumidos da seguinte maneira: (a) em relação ao denunciado CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA: art. 121, § 2º, I, III e IV, c.c. art. 29, ambos do Código Penal, e art. 4º, "a", "c" e "h", da Lei nº 4.898/1965; (b) em relação aos denunciados DIRCEU GRAVINA e APARECIDO LAERTES CALANDRA: art. 121, § 2º, I, III e IV, c.c. art. 29, ambos do Código Penal.

O r. provimento judicial recorrido, rejeitando a denúncia, sustentou que o delito teria sido anistiado pela Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, lei esta declarada compatível com a Ordem Constitucional de 1988 pelo C. Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 em 29 de abril de 2010 - a propósito, segue a ementa de referido julgado:

LEI N. 6.683/79, A CHAMADA 'LEI DE ANISTIA'. ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E 'AUTO-ANISTIA'. INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE.
1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida. 2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. Conceito e definição de 'crime político' pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos 'os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política'; podem ser de 'qualquer natureza', mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que 'se procurou', segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, 'se procurou' [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que '[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos' praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura (ADPF 153, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-01 PP-00001 RTJ VOL-00216- PP-00011).

Todavia, o tema ora em comento, de evidente complexidade e de imbricada solução na justa medida em que encontra ressonância tanto no âmbito do ordenamento jurídico interno como na senda dos tratados e das convenções internacionais assinadas e ratificadas pela República Federativa do Brasil, não pode e não deve ficar adstrito exclusivamente à análise de constitucionalidade levada a efeito pelo C. Supremo Tribunal Federal no espectro da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, sendo imperiosa a ampliação do debate para matizes outras que, por certo, permeiam e irradiam luzes à efetiva compreensão da questão dos crimes perpetrados por agentes estatais no último período ditatorial vivido pela sociedade brasileira.

DOS NOVOS PARADIGMAS INCIDENTES EM SEDE DE CONTROLE DA VALIDADE DA NORMA - SUBMISSÃO DA NORMA JURÍDICA A JUÍZO DE VALIDADE LEVADO A EFEITO TENDO COMO BASE TANTO A CONSTITUIÇÃO FEDERAL COMO TRATADOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

O Poder Constituinte Originário (também chamado de Inicial ou Inaugural), de titularidade popular (visão democrática) e exercitado por parcela eleita pelo povo (membros que compõem a Assembleia Constituinte), tem por função criar a norma fundamental de uma sociedade, vale dizer, dispor acerca dos elementos que deverão figurar na nova ordem insculpida no texto de uma Constituição Federal, rompendo por completo com a ordem jurídica anterior. Importante ser dito que referido Poder possui como características básicas ser inicial, autônomo, ilimitado juridicamente, incondicionado e soberano na tomada de suas decisões.

Diz-se inicial na justa medida em que funda novo ordenamento jurídico, não mais devendo respeito ao pretérito; por sua vez, é autônomo por ter a liberdade de estruturar o novel texto constitucional da maneira que aqueles que têm o mister de compor a Assembleia Constituinte bem entender; é ilimitado juridicamente, pois não guarda relação em razão de matéria e de disciplinamento de dado instituto jurídico com o que estabelecido outrora pelo então Poder Constituinte Originário que fixou os ditames da norma constitucional que se quer superar; por fim, é incondicionado e soberano na tomada de suas decisões, uma vez que não deve se submeter a manifestações volitivas anteriores.

Tendo como base os aspectos anteriormente indicados (com especial destaque para a autonomia e para a incondicionalidade do Poder Constituinte Originário), espraiando interesse para os meandros do controle de constitucionalidade de uma norma, emerge o Princípio da Supremacia da Constituição, cuja essência se assenta na ideia da pirâmide normativa kelseniana segundo a qual a Carta Magna seria o cume de mencionada pirâmide, irradiando efeitos para todas as demais normas jurídicas (legais e infralegais) constantes dos patamares situados abaixo do texto constitucional. Nesse diapasão, percebe-se o papel fundamental que a Constituição possui dentro do ordenamento jurídico na justa medida em que vincula os atos infraconstitucionais e infralegais a necessariamente satisfazer regras procedimentais e de conteúdo previstas no Texto Supremo, tudo a permitir o desempenho de eventual controle de constitucionalidade.

A propósito, José Afonso da Silva, comentando o Princípio da Supremacia da Constituição, afirma que:

(...) A constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às demais normas jurídicas (...) resulta da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurídica de um país, no sentido de que as normas de grau inferior somente valerão se forem compatíveis com as normas de grau superior, que é a constituição. As que não forem compatíveis com ela são inválidas, pois a incompatibilidade vertical resolve-se em favor das normas de grau mais elevado, que funcionam como fundamento de validade das inferiores (...) (in Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edição revista. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1992, págs. 47 e 49).

Destaque-se que a imposição de adequação das normas em face do que prevê a Constituição decorre da premissa de que esta foi fruto do Poder Constituinte Originário (que detém as características indicadas anteriormente, em especial ser inicial e incondicionado) e repercute justamente no controle de constitucionalidade, que tem por missão expurgar do sistema jurídico vigente preceitos normativos que estão em desacordo com o que a Carta Magna dispõe, seja porque editados em inobservância a regras procedimentais (tais como competência e forma, gerando inconstitucionalidade formal), seja porque veiculados sem respeitar postulados básicos do Estado de Direito (como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana, levando ao reconhecimento de uma inconstitucionalidade material ou substancial).

Vide, a título ilustrativo, os magistérios de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (primeira citação) e de Marcelo Novelino (segunda citação) ao comentar o Postulado da Supremacia da Constituição:

(...) O conflito de leis com a Constituição encontrará solução na prevalência desta, justamente por ser a Carta Magna produto do poder constituinte originário, ela própria elevando-se à condição de obra suprema, que inicia o ordenamento jurídico, impondo-se, por isso, ao diploma inferior com ela inconciliável. De acordo com a doutrina clássica, por isso mesmo, o ato contrário à Constituição sofre de nulidade absoluta (...) (in Curso de Direito Constitucional. 2ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, págs. 202/203).
(...) A supremacia da constituição decorre da idéia de superioridade do poder constituinte, o que faz com que sua obra esteja situada no ápice da pirâmide normativa, servindo de fundamento de validade de todos os demais atos jurídicos. No plano dogmático e positivo, a superioridade constitucional se traduz no estabelecimento de forma (competência, procedimentos ...) e do conteúdo dos atos normativos infraconstitucionais que, na hipótese de inobservância dos critérios constitucionalmente estabelecidos, serão submetidos ao controle de constitucionalidade (...) (in Direito Constitucional para Concursos. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, pág. 85).

Saliente-se que o C. Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, decide os casos sob sua apreciação invocando o postulado ora em comento com o desiderato de fazer prevalecer no caso concreto as normas constitucionais, notadamente os direitos e garantias fundamentais - apenas a título ilustrativo, podem ser citados o MS 25.668 (Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-3-06, DJ de 4-8-06) e a ADI 1.480-MC (Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-9-97, DJ de 18-5-01). Vale, ademais, trazer excertos de dois julgados da C. Corte Suprema:

(...) O princípio da supremacia da Constituição é o objetivo das ações de fiscalização abstrata de constitucionalidade, havendo de nortear a exegese. (...) (ADI 3.682, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-5-07, DJ de 6-9-07) - destaque nosso.
(...) A constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos (...) (ADI 293, voto do Min. Celso Mello, julgamento em 6-6-90, DJ de16-4-93) - destaque nosso.

Sem prejuízo do exposto e concorrendo com a importância que deve ser creditada ao postulado que reza a supremacia do texto constitucional (nos termos anteriormente vertidos), o controle de validade de uma norma, atualmente, também deve ser executado tendo como supedâneo os tratados e as convenções internacionais assinadas e ratificadas pela República Federativa do Brasil, constatação esta passível de ser inferida da própria jurisprudência do C. Supremo Tribunal Federal a partir do relevante leading case retratado no RE 466.343 no qual apreciada a possibilidade de prisão civil do depositário infiel à luz do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos).

Com efeito, até o julgamento do RE 466.343, o C. Supremo Tribunal Federal ostentava posicionamento no sentido de que qualquer tratado internacional (independentemente do tema nele versado) teria força normativa, ao ser introduzido no ordenamento pátrio, de lei ordinária, o que se estenderia, inclusive, aos diplomas internacionais atinentes a direitos humanos (como, por exemplo, o Pacto de São José da Costa Rica). A propósito, importante ser dito que tal orientação foi originariamente declarada em um julgamento proferido no ano de 1977, no bojo do RE 80004, no qual debatida a força normativa ostentada pela Convenção de Genebra (que previa uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias) em cotejo com o Decreto-Lei nº 427, de 22 de janeiro de 1969, oportunidade em que o então Relator, Min. Xavier de Albuquerque, com ressonância no Tribunal Pleno, sufragou que (...) embora a Convenção de Genebra que previu uma Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do país (...) - segue a ementa do precedente ora em comento:

CONVENÇÃO DE GENEBRA, LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS - AVAL APOSTO A NOTA PROMISSÓRIA NÃO REGISTRADA NO PRAZO LEGAL - IMPOSSIBILIDADE DE SER O AVALISTA ACIONADO, MESMO PELAS VIAS ORDINÁRIAS. VALIDADE DO DECRETO-LEI Nº 427, DE 22.01.1969. EMBORA A CONVENÇÃO DE GENEBRA QUE PREVIU UMA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS TENHA APLICABILIDADE NO DIREITO INTERNO BRASILEIRO, NÃO SE SOBREPÕE ELA ÀS LEIS DO PAÍS, DISSO DECORRENDO A CONSTITUCIONALIDADE E CONSEQUENTE VALIDADE DO DEC-LEI Nº 427/69, QUE INSTITUI O REGISTRO OBRIGATÓRIO DA NOTA PROMISSÓRIA EM REPARTIÇÃO FAZENDÁRIA, SOB PENA DE NULIDADE DO TÍTULO. SENDO O AVAL UM INSTITUTO DO DIREITO CAMBIÁRIO, INEXISTENTE SERÁ ELE SE RECONHECIDA A NULIDADE DO TÍTULO CAMBIAL A QUE FOI APOSTO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO (RE 80004, Rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, Tribunal Pleno, julgado em 01/06/1977, DJ 29-12-1977 PP-09433 EMENT VOL-01083-04 PP-00915 RTJ VOL-00083-03 PP-00809) - destaque nosso.

Todavia, o posicionamento anteriormente indicado restou alterado pelo C. Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento do RE 466.343, no qual deduzida questão constitucional afeta à sapiência se ainda teria cabimento no sistema jurídico pátrio a prisão civil do depositário infiel.

A fim de que seja compreensível a controvérsia então debatida, importante ser ressaltado que a Constituição Federal, em seu art. 5º, LXVII, apenas permite a prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel (Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel), o que motivou a edição de diversas leis materializando o encarceramento do inadimplente no contrato de depósito (ainda que, para tanto, houvesse a transmutação do negócio jurídico originariamente celebrado para contrato de depósito por mera ficção jurídica para fins de ser possível o emprego da prisão como meio coercitivo ao cumprimento da obrigação - cite-se, por exemplo, situação afeta à alienação fiduciária em garantia). Em conflito à norma constitucional, verifica-se que a República Federativa do Brasil é signatária do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), que expressamente aduz ser possível tão somente a prisão civil do devedor de alimentos.

Diante do conflito normativo relatado, a aplicação da então jurisprudência consolidada na C. Corte Suprema apontaria para solução no sentido de que, tendo o tratado internacional (ainda que de direitos humanos) mera força normativa de legislação ordinária, não haveria qualquer fundamento a permitir a conclusão de que seria defeso no país a prisão do depositário infiel (haja vista que sua possibilidade encontra-se plasmada no Texto Constitucional, que deve ser respeitado a teor do Princípio da Supremacia Constitucional).

Entretanto, revisitando o tema, inclusive ante a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, que introduziu o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, ao lado das disposições originalmente elencadas nos §§ 1º e 2º de mencionado preceito (§ 1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. § 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais), entendeu por bem o C. Supremo Tribunal Federal adotar posicionamento segundo o qual, acaso o tratado internacional de direitos humanos não tenha sido aprovado nos mesmos moldes do que um Projeto de Emenda Constitucional (votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros), hipótese em que teria força normativa equivalente à norma oriunda do Poder Constituinte Derivado Reformador, a norma de direito internacional com tal conteúdo possuiria status supralegal em decorrência da relevante matéria discutida e debatida no cenário internacional e objeto de ratificação e de aprovação no país.

Tal novel tratamento conferido aos tratados internacionais de direitos humanos (não internacionalizados nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal) restou chancelado exatamente na apreciação da possibilidade de prisão do depositário infiel no contexto conflituoso anteriormente descrito (Texto Magno de 1988 X Pacto de São José da Costa Rica) quando da apreciação do RE 466.343, restando reafirmado no julgamento do RE 349.703 - a propósito, seguem as ementas dos precedentes mencionados:

PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito (RE 466343, Rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165) - destaque nosso.
PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM FACE DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS. INTERPRETAÇÃO DA PARTE FINAL DO INCISO LXVII DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988. POSIÇÃO HIERÁRQUICO-NORMATIVA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO. Desde a adesão do Brasil, sem qualquer reserva, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7), ambos no ano de 1992, não há mais base legal para prisão civil do depositário infiel, pois o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão. Assim ocorreu com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-Lei n° 911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei n° 10.406/2002). ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. DECRETO-LEI N° 911/69. EQUIPAÇÃO DO DEVEDOR-FIDUCIANTE AO DEPOSITÁRIO. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR-FIDUCIANTE EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A prisão civil do devedor-fiduciante no âmbito do contrato de alienação fiduciária em garantia viola o princípio da proporcionalidade, visto que: a) o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito, de forma que a prisão civil, como medida extrema de coerção do devedor inadimplente, não passa no exame da proporcionalidade como proibição de excesso, em sua tríplice configuração: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito; e b) o Decreto-Lei n° 911/69, ao instituir uma ficção jurídica, equiparando o devedor-fiduciante ao depositário, para todos os efeitos previstos nas leis civis e penais, criou uma figura atípica de depósito, transbordando os limites do conteúdo semântico da expressão 'depositário infiel' insculpida no art. 5º, inciso LXVII, da Constituição e, dessa forma, desfigurando o instituto do depósito em sua conformação constitucional, o que perfaz a violação ao princípio da reserva legal proporcional. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E NÃO PROVIDO (RE 349703, Rel. Min. CARLOS BRITTO, Rel. p/ Acórdão Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675) - destaque nosso.
Portanto, a partir de 03 de dezembro de 2008 (data de realização da sessão de julgamento dos recursos anteriormente transcritos) e ante o reconhecimento pelo C. Supremo Tribunal Federal da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos (não aprovados com o quórum qualificado do § 3º do art. 5º da Constituição Federal), a visão tradicional do ordenamento jurídico materializada pela pirâmide normativa kelseniana (Constituição no topo; patamar intermediário das leis; e patamar subalterno dos atos infralegais) restou alterada pela introdução da faixa atinente a tratados internacionais de direitos humanos (exatamente entre o topo da pirâmide ocupada pela Constituição e o patamar das leis internas).

Dentro de tal contexto, a aferição de compatibilidade de uma lei editada pelo Parlamento, nos dias atuais, passa por dois estágios de verificação: (a) o primeiro deles em face da Constituição Federal tendo como base a ideia regente contida no Princípio da Supremacia da Constituição (cabendo ressaltar que, acaso a lei não esteja de acordo com o Texto Magno, padecerá de vício que a tornará inconstitucional, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto material) e (b) o segundo deles à luz dos tratados internacionais de direitos humanos cuja natureza jurídica seja supralegal (como ocorre, por exemplo, com o Pacto de São José da Costa Rica), sendo imperioso destacar que eventual incompatibilidade levará ao reconhecimento da existência de vício de inconvencionalidade.

A propósito, confira-se monografia intitulada "CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DAS LEIS: Novo Paradigma em sede de Controle de Constitucionalidade", apresentada por Fernando Capello Calazans em 2009 junto ao Curso de Especialização em Direito Constitucional vinculado à Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL, ao Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP e à Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes - REDE LFG.

Em outras palavras, atualmente o ato legislativo deve retirar seu fundamento de validade tanto da Constituição Federal (sendo, assim, compatível com ela, sob pena de ser inconstitucional) como dos tratados internacionais de direitos humanos não introduzidos ao ordenamento jurídico sob o pálio do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal (porque hierarquicamente superior no contexto elucidativo da Pirâmide de Kelsen sob pena de ser inconvencional).

DA SUBMISSÃO DA LEI DE ANISTIA (LEI Nº 6.683, DE 28 DE AGOSTO DE 1979) A JUÍZO DE VALIDADE LEVADO A EFEITO TENDO COMO BASE TANTO A CONSTITUIÇÃO COMO TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

Firmadas as premissas teóricas anteriormente sustentadas, cumpre submeter a Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979) a juízo de validade tanto em face da Constituição Federal como dos tratados internacionais de direitos humanos.

(a) Do juízo de validade da Lei de Anistia à luz da Constituição Federal de 1988

Conforme dito no início desse voto, o C. Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a Lei de Anistia quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Todavia, importante ser asseverado que referido precedente não teve o condão de exaurir o exame do alcance e da validade da anistia versada na Lei nº 6.683/1979 na justa medida em que resta pendente de enfretamento embargos de declaração nos quais se questiona a extensão material da anistia aos crimes de homicídio, de estupro e de tortura. Ademais, a C. Corte Suprema ainda deverá apreciar o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320 na qual se propugna a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos crimes de grave violação de direitos humanos cometidos por agentes públicos.

Dentro de tal contexto, depreende-se que o decidido pelo C. Supremo Tribunal Federal, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, que possui eficácia erga omnes e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário (nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.882/1999: A decisão terá eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público), não colmatou todas as possibilidades de enfrentamento do tema a permitir novas ponderações a incidir sobre a validade da Lei nº 6.683/1979.

Adentrando ao caso retratado nos autos, nota-se que a denúncia ofertada nesta relação processual penal (fls. 39/71) sustenta justamente, na linha do pugnado e do ainda pendente de deliberação na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, que os fatos tratar-se-iam de crimes contra a humanidade, insuscetíveis de anistia ou de prescrição, bem como protesta contra a validade da Lei nº 6.683/1979 por caracterizar-se como hipótese de autoanistia (privilegiando aqueles que se encontravam no Poder) sem se descurar da mácula aos princípios da dignidade da pessoa humana e republicano (dentre outros), que possuem densidade normativa tal a permitir que se recaia juízo de valor sobre suas previsões.

Desta feita, sob o enfoque ora em comento, qual seja, da validade da Lei de Anistia à luz da Constituição Federal de 1988, nota-se que o tema não restou inteiramente enfrentado pelo C. Supremo Tribunal Federal, de modo que a deliberação acerca do recebimento (ou não) da denúncia ofertada pelo Parquet federal neste expediente não possui o condão de ofender ou de desafiar o que restou sufragado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153.

(b) Do juízo de validade da Lei de Anistia à luz da Constituição de 1967 (então vigente quando da edição do ato normativo em exame)

A Constituição de 1967 (então em vigor quando da edição da Lei nº 6.683/1979) trazia, em seu art. 150, um rol de direitos e de garantias fundamentais que serviam para proteger o cidadão da atuação estatal, objetivando a imposição de limites na atuação dos Poderes como cláusula inquebrantável de intangibilidade do ser humano como corolário da dignidade da pessoa humana - a propósito, de rigor a transcrição de alguns dos parágrafos do indicado art. 150 (vez que pertinentes ao desvendo do caso ora em julgamento):

§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta.
§ 12 - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal.
§ 13 - Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena.
§ 14 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário.
§ 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.

O § 35 do art. 150 da Constituição de 1967 ainda previa a possibilidade de ampliação do rol de direitos fundamentais por meio da inclusão de outras garantias compatíveis com o regime e os princípios da ordem constitucional, o que tem o condão de denotar a importância da matéria (direitos e garantias fundamentais) e o grau de respeito que todos (inclusive o Estado) deveriam ter com o ser humano - a propósito: § 35 - A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.

Desta feita, verifica-se, na senda dos crimes praticados por agentes estatais contra a população civil valendo-se, para tanto, do aparato repressor institucionalizado no escopo de combater subversivos ao regime político-militar, nítida violação das garantias fundamentais acima transcritas porquanto os atos estatais levados a efeito mostraram-se como transgressores dos limites insculpidos na Ordem Constitucional vigente, cabendo destacar que era pressuposto que os representantes do Estado se portassem de modo a respeitar o direito posto.

Nessa ótica, já sob o enfoque da Carta de 1967, a única interpretação viável da Lei nº 6.683/1979, dentro do espírito republicano, da legalidade, do devido processo legal, da moralidade e, notadamente, da dignidade da pessoa humana, passa pela preservação do direito de punir as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos, tornando inadmissíveis a anistia, a prescrição ou qualquer outra medida extintiva da punibilidade que impeça a persecução penal, justamente porque a Constituição então em vigor ao tempo de edição da mencionada lei não se compaginava e nem tolerava a prática estatal de violência que se instaurou no decorrer do regime ditatorial.

Ressalte-se, outrossim, tendo como base o ora exposto, que, de fato, a Lei nº 6.683/1979 não garantiu impunidade imoderada, restringindo o alcance da anistia, conforme é possível ser inferido de seu art. 1º: É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado). § 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. § 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

Como se nota do texto normativo acima transcrito, os crimes atingidos pela anistia deveriam ser aqueles qualificados como políticos, ou conexos com estes, assim entendidos os delitos de qualquer natureza praticados por motivação política. Desta feita, a disposição legal em tela não teve o condão de abranger graves violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais (hipótese retratada nos autos), de modo que, até mesmo à luz do art. 1º em comento, possível se mostra adentrar aos requisitos necessários ao recebimento da exordial acusatória apresentada neste feito ante a não abrangência da anistia aos fatos relatados.

Vale observar, ademais, que, ao integrar a anistia à nova ordem jurídica que se avizinhava em decorrência do processo de abertura política, o art. 4º da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, ratificou os limites da anistia mediante o emprego de expressão mais contida, referindo-se apenas a crimes políticos ou conexos - sem mencionar crimes de qualquer natureza - e, ao se reportar aos agentes estatais, vinculou o alcance do expediente apenas a atos de exceção, institucionais ou complementares - a propósito: É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares. § 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.

Frente a tais considerações, agora tecidas tendo como base os preceitos insculpidos na Constituição de 1967 (então vigente ao tempo da edição da Lei nº 6.683/1979), o cometimento dos crimes levados a efeito pelo aparato institucional contra os opositores do regime prevalente naquele momento histórico vai de encontro com os direitos e as garantias deferidas ao cidadão, razão pela qual a anistia não pode ser compreendida a abarcar graves violações de direitos humanos (como, por exemplo, as ocorrentes no bojo do cometimento de crimes de homicídio, de lesão corporal, de tortura, de sequestro etc. praticados por agentes estatais contra dissidentes do regime militar - caso dos autos).

(c) Do juízo de validade da Lei de Anistia à luz dos tratados internacionais de direitos humanos - aplicação do entendimento que confere status supralegal a tais expedientes

Adentrando agora no juízo de validade que deve ser feito à Lei de Anistia tendo como base os tratados internacionais de direitos humanos e partindo da premissa anteriormente estatuída de que referidos atos normativos possuem atualmente status de normas supralegais (entendimento sufragado pelo C. Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento dos RE's 466.343 e 349.703), nota-se a ausência de compatibilidade da Lei nº 6.683/1979 com diversas convenções afetas ao tema de direitos humanos, o que chancela sua inconvencionalidade no âmbito de aferição que tem por pressuposto a nova conformação da pirâmide normativa kelseniana.

Oportuna, para o fim a que ora se sustenta de inconvencionalidade da Lei de Anistia, a transcrição de parte do parecer ofertado pela Procuradoria-Geral da República na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, em 28 de agosto de 2014 (in www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=5102145&ipoApp=.pdf acessado em 08 de março de 2018), no qual se veicula minucioso apanhado de enunciações do Direito Internacional costumeiro destinadas à proteção dos direitos humanos em matéria de crimes contra a humanidade, primeiramente conceituando e estabelecendo competências para o julgamento desses crimes e posteriormente assentando a reprovabilidade de quaisquer obstáculos à punibilidade, inclusive a anistia ou a prescrição, a fim de demonstrar a cabal incompatibilidade do ato anistiador com os parâmetros internacionais incidentes na matéria:
(...) A reprovação jurídica internacional a tais condutas e a imprescritibilidade da ação penal a elas correspondente está evidenciada pelas seguintes provas do direito costumeiro cogente anterior: a) Carta do Tribunal Militar Internacional (1945); (54. Agreement for the Prosecution and Punishment of the Major War Criminals of the European Axis, and Charter of the International Military Tribunal. Londres, 8 ago. 1945. Disponível em: , acesso em 27 ago. 2014. O acordo estabelece a competência do tribunal para julgar crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, no art. 6(c): 'nomeadamente, homicídio, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em razões políticas, raciais ou religiosas na execução de ou em conexão com qualquer crime sujeito à jurisdição do Tribunal, estejam ou não em violação ao direito interno do país onde hajam sido perpetrados') b) Lei do Conselho de Controle no 10 (1945); (55. Nuremberg Trials Final Report Appendix D: Control Council Law No. 10: Punishment of Persons Guilty of War Crimes, Crimes Against Peace and Against Humanity, art. II. Disponível em: < http://avalon.law.yale.edu/imt/imt10.asp="">, acesso em 27 ago. 2014. Segundo o documento: '1. Cada um dos seguintes atos é reconhecido como crime: [...] (c) Crimes contra a Humanidade. Atrocidades e crimes, incluindo mas não se limitando a homicídio, extermínio, escravização, deportação, prisão, tortura, estupro e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, ou persecução baseada em razões políticas, raciais ou religiosas, estejam ou não em violação ao direito interno do país onde hajam sido perpetrados. [...]') c) Princípios de Direito Internacional reconhecidos na Carta do Tribunal de Nuremberg e nos julgamentos do Tribunal, com comentários (International Law Commission, 1950); (56. Texto adotado pela Comissão de Direito Internacional e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas como parte do relatório da Comissão. O relatório foi publicado no Yearbook of the International Law Commission, 1950, v. II e está disponível em: < http://bit.ly/juri000l=""> ou , acesso em 27 ago. 2014. 'Princípio VI - Os crimes doravante estabelecidos são puníveis como crimes segundo o Direito Internacional: (a) Crimes contra a paz: [...]. (b) Crimes de guerra: [...]. (c) Crimes contra a humanidade: Homicídio, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos praticados contra qualquer população civil, ou perseguições baseadas em razões políticas, raciais ou religiosas, quando tais atos sejam praticados ou tais perseguições sejam cometidas na execução de ou em conexão com qualquer crime contra a paz ou qualquer crime de guerra. [...] 124. De acordo com o artigo 6 (c) da Carta, a formulação acima caracteriza como crimes contra a humanidade homicídio, extermínio, escravização etc., cometidos contra 'qualquer' população civil. Isso significa que esses atos podem ser crimes contra a humanidade mesmo se forem cometidos pelo agente contra sua própria população.') d) Relatório da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) (1954); (57. Report of the International Law Commission Covering the Work of its Sixth Session, 28 July 1954, Official Records of the General Assembly, Ninth Session, Supplement No. 9 (A/2693). Article 2, paragraph 11 (previously paragraph 10), disponível em < http://bit.ly/un000a=""> ou < http://untreaty.un.org/ilc/documentation/english/a_cn4_88.pdf="">, acesso em 27 ago. 2014. Diz o comentário: "Comentário - O texto anteriormente aprovado pela Comissão dizia o que se segue: [...]. Este texto correspondia em substância ao artigo 6, parágrafo (c), da Carta do Tribunal Militar Internacional em Nuremberg. Era, contudo, mais amplo em escopo do que dito parágrafo em dois aspectos: proibia também atos desumanos cometidos por motivos culturais e, ademais, caracterizava como crimes sob o Direito Internacional não apenas atos desumanos cometidos em conexão com crimes contra a paz ou crimes de guerra, conforme definidos naquela Carta, mas também tais atos cometidos em conexão com todas as outras infrações definidas no artigo 2 do anteprojeto de Código. A Comissão decidiu alargar o escopo do parágrafo de forma a tornar a punição dos atos enumerados no parágrafo independente de eles serem ou não cometidos em conexão com outras infrações definidas no anteprojeto de Código. Por outro lado, a fim de não caracterizar qualquer ato desumano cometido por um indivíduo privado como crime internacional, achou-se necessário dispor que tal ato constitui crime internacional apenas se cometido pelo indivíduo privado por instigação ou com a tolerância das autoridades de um Estado.) (...) f) Resolução 2202 (Assembleia Geral da ONU, 1966); (59. Disponível em < http://bit.ly/un000b=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/21/ares21.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. O artigo 1 da resolução condena a política de apartheid praticada pelo governo da África do Sul como crime contra a humanidade.) g) Resolução 2338 (Assembleia Geral da ONU, 1967); (60. Disponível em < http://bit.ly/un000d=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/22/ares22.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. A resolução 'reconhece ser necessário e oportuno afirmar no direito internacional, por meio de uma convenção, o princípio segundo o qual não há prescrição penal para crimes de guerra e crimes contra a humanidade' e recomenda que 'nenhuma legislação ou outra medida seja tomada que possa ser prejudicial aos objetivos e propósitos de uma convenção sobre a inaplicabilidade de limitações legais a [persecução de] crimes de guerra e crimes contra a humanidade, na pendência da aprovação de uma convenção [sobre o assunto] pela Assembleia Geral'. h) Resolução 2583 (Assembleia Geral da ONU, 1969); (61. Disponível em < http://bit.ly/un000g=""> ou , acesso em 27 ago. 2014. A resolução convoca todos os Estados da comunidade internacional a adotar as medidas necessárias à completa investigação de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, conforme definidos no art. I da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, bem como à identificação, prisão, extradição e punição de todos os criminosos de guerra e pessoas culpadas por crimes contra a humanidade que ainda não tenham sido processadas ou punidas. i) Resolução 2712 (Assembleia Geral da ONU, 1970); (62. Disponível em < http://bit.ly/un000j=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/25/ares25.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. A resolução lamenta que numerosas decisões aprovadas pelas Nações Unidas sobre a questão da punição de criminosos de guerra e de pessoas que cometeram crimes contra a humanidade ainda não estavam sendo totalmente cumpridas pelos Estados e expressa profunda preocupação com o fato de que, nas condições atuais, como resultado de guerras de agressão e políticas e práticas de racismo, apartheid, colonialismo e outras ideologias e práticas similares, crimes de guerra e crimes contra a humanidade estavam sendo cometidos em várias partes do mundo. A resolução também convoca os Estados que ainda não tenham aderido à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade a observar estritamente as provisões da Resolução 2583 da Assembleia Geral da ONU. (...) k) Princípios de Cooperação Internacional na identificação, prisão, extradição e punição de pessoas condenadas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade (Resolução 3074 da Assembleia Geral da ONU, 1973). (64 ONU. Princípios de Cooperação Internacional na Identificação, Prisão, Extradição e Punição de Pessoas Culpadas por Crimes de Guerra e Crimes Contra a Humanidade. Aprovados pela Resolução 3074 da Assembleia Geral em 3 de dezembro de 1973. Estabelece o Princípio 1: Crimes de guerra e crimes contra a humanidade, onde quer que sejam cometidos, devem estar sujeitos a investigação, e as pessoas contra as quais haja prova de que tenham cometido tais crimes devem estar sujeitas a localização, prisão, julgamento e, se julgadas culpadas, a punição.' Disponível em < http://bit.ly/un000m=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/28/ares28.htm="">, acesso em 27 ago. 2014.) (...) Na Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e de Crimes contra a Humanidade (1968), (65 Aprovada pela Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 2391 (XXIII), de 26 de novembro de 1968. Entrou em vigor no direito internacional em 11 de novembro de 1970. Disponível em < http://www.ohchr.org/documents/professionalinterest/warcrimes.pdf="">, acesso em 27 ago. 2014.) a imprescritibilidade estende-se aos 'crimes contra a humanidade, cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz e definidos como tais no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e confirmados pelas Resoluções no 3 e 95 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 1946'. Nota-se, sobretudo a partir dos trabalhos da Comissão de Direito Internacional da ONU da década de 1950 e das resoluções de sua Assembleia Geral em meados dos anos 1960, crescente tendência de dispensar o elemento contextual 'guerra' na definição dos crimes contra a humanidade. Especificamente o uso da expressão 'desaparecimento forçado de pessoas' difundiu-se no plano internacional a partir de milhares de casos de sequestro, homicídio e ocultação de cadáver de militantes políticos contrários a regimes ditatoriais instalados na América Latina. Um dos primeiros registros internacionais desse nomen juris está na Resolução 33/173, da Assembleia Geral das Nações Unidas (de 20 de dezembro de 1978), sobre pessoas desaparecidas. (66. Disponível em , acesso em 27 ago. 2014.) A resolução, editada um ano antes da lei brasileira de anistia, convoca os Estados a: a) dedicar recursos apropriados à busca de pessoas desaparecidas e à investigação rápida e imparcial dos fatos; b) assegurar que agentes policiais e de segurança e suas organizações sejam passíveis de total responsabilização (fully accountable) pelos atos realizados no exercício de suas funções e especialmente por abusos que possam ter causado o desaparecimento forçado de pessoas e outras violações a direitos humanos; c) assegurar que os direitos humanos de todas as pessoas, inclusive aquelas submetidas a qualquer forma de detenção ou aprisionamento, sejam totalmente respeitados. (...) - destaque nosso.

Diante destes imperativos éticos e humanitários previstos no Direito Internacional - coerentes, aliás, com as garantias fundamentais da ordem constitucional brasileira então vigente (nos termos do art. 150, § 35, da Constituição de 1967), não prosperam ilações no sentido de que a República Federativa do Brasil somente restou obrigada a observar tais preceitos a partir da subscrição dos respectivos pactos internacionais.

Na realidade, o fato de apenas após a redemocratização o Brasil ter aderido a tratados que exigem a punibilidade de crimes de lesa-humanidade (como o Estatuto de Roma, instituidor do Tribunal Penal Internacional, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos) não significa que até então estava o país autorizado a anistiar ou a tolerar a prescrição de crimes atrozes, declinando da dignidade da pessoa humana, que já encontrava previsão como valor constitucional no âmbito da Ordem Econômica e Social da Constituição de 1967 (art. 157, II: A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios: (...) II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana (...)).

Nesse contexto, cumpre trazer à baila novamente o precedente firmado pelo C. Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 349.703 (Rel. Min. CARLOS BRITTO, Rel. p/ Acórdão Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104 DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-04 PP-00675), oportunidade em que restou assentado que a compatibilidade exigida do ordenamento interno com tratados internacionais de direitos humanos deve ocorrer ainda que a norma interna tenha sido editada quando não existente ou não aprovada a convenção - em outras palavras, (...) o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão (...) - destaque nosso.

Assim, de acordo com o precedente em comento, que analisou, conforme dito anteriormente, a possibilidade de prisão civil do depositário infiel de acordo com o Decreto-Lei nº 911/1969 à luz do Pacto de São José da Costa Rica, depreende-se ser indiferente que a sobrevinda de normativa internacional tenha ocorrido muitos anos após a edição do diploma interno - mesmo diante da questão temporal em comento, ainda assim a lei interna anterior deverá ser analisada com base no tratado internacional de direitos humanos editado em momento futuro, o que sufraga o juízo de valor que se está a realizar da Lei de Anistia com base no status supralegal de tratado internacional de direitos humanos que somente veio ao cenário internacional em momento ulterior.

E é justamente em razão da incompatibilidade dos preceitos elencados na Lei de Anistia brasileira em face do Pacto de São José da Costa Rica que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso Gomes Lund ("Guerrilha do Araguaia"), fixou a responsabilidade do Estado Brasileiro em promover a persecução penal contra os acusados de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar brasileira. Colhe-se do estabelecido pela Corte em tela quando da exaração de sua r. decisão:

(...) 3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. (...) 9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença (...).

Em julgamento realizado em 04 de julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao apreciar caso em que envolvida a morte do jornalista Vladimir Herzog encontrado falecido nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), novamente asseverou que a República Federativa do Brasil tem o dever, de acordo com as normas internacionais de direitos humanos, de identificar e de punir os responsáveis pelo passamento - muito pertinente a transcrição de excerto extraído da r. decisão então proferida:

(...) A Corte julga oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela jurisprudência internacional e nacional, segundo a qual aqueles devem acatar suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda). Como já salientou esta Corte, e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de ordem interna, descumprir obrigações internacionais (...).

E, nesse contexto, em cumprimento às determinações da Corte Interamericana (que remontam a 2010 - Caso Gomes Lund - "Guerrilha do Araguaia"), o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL promoveu o ajuizamento de ações penais referentes aos crimes praticados por agentes estatais no contexto do regime militar, sendo uma delas a que está ora sendo objeto deste voto.

Portanto, levando em consideração a submissão da Lei de Anistia ao controle de convencionalidade (a teor do anteriormente exposto), bem como o reconhecimento de responsabilidade do Estado brasileiro em promover a persecução penal contra os acusados de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar brasileira, mostra-se imperativo assentar que o respeito aos direitos humanos deve ser considerado como norma cogente e inafastável do Direito Internacional, respeito este do qual o Estado brasileiro não poderia dispor, seja por ato de vontade (anistia), seja por inércia (prescrição), sob pena de subverter sua própria ordem constitucional ou os tratados e as convenções internacionais assinados em matéria de direitos humanos.

ALGUMAS OUTRAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEI DE ANISTIA

Consulta aos apontamentos relativos ao processo legislativo que ensejou a aprovação da Lei nº 6.683/1979 dá conta de que o ato legislativo em tela foi aprovado por 50,61% dos votos então proferidos, vale dizer, 206 parlamentares vinculados ao então partido da situação - ARENA - manifestaram-se favoravelmente à sua aprovação ao passo que 201 membros do MDB externaram posicionamento no sentido do refutamento de seu texto - portanto, a aprovação da Lei de Anistia decorreu de apertadíssima maioria, que se refletia apenas em 05 votos. Cumpre salientar, ademais, que o Congresso Nacional daquele contexto era formado por membros eleitos e por membros não eleitos (estes indicados por um colégio eleitoral no qual a ARENA - partido da situação, frise-se - era o predominante).

Desta forma, mostra-se falacioso o argumento propalado segundo o qual a Lei de Anistia teria sido um bem costurado "acordo social" manifestado pela sociedade da época no sentido de apaziguar os ânimos e permitir que o país caminhasse para uma abertura política tranquila. Na realidade, referida Lei decorreu de uma diminuta margem de aprovação em um contexto em que os parlamentares envolvidos no processo legislativo não representavam efetivamente a sociedade brasileira na justa medida em que parcela daqueles cargos estava sendo ocupada por pessoas indicadas pelo próprio regime militar, razão pela qual não se pode concluir no sentido de que houve um debate social acerca da necessidade de aprovação de uma Lei de Anistia nem que a Lei em si é fruto da vontade soberanamente manifestada pelo povo brasileiro.

Sem prejuízo do exposto, importante ser rememorado que o poder de legislar, de cunho eminentemente constitucional, nunca pode (o que prevalece até os dias atuais) ser exercido de maneira abusiva ou imoderada sob pena de afronta ao devido processo legal legislativo substancial (ou substantive due process of law) manifestado em mácula a postulados inerentes à razoabilidade e à proporcionalidade. Isso porque o exercício de atividade legiferante deve respeitar preceitos fundamentais (razoabilidade e proporcionalidade) que se baseiam em diretrizes que vedam os excessos normativos ou que imponham irrazoáveis consequências aos particulares ou ao Poder Público.

Importante ser dito que o C. Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar a aplicação do devido processo legal legislativo substancial em face de ato emanado do Poder Legislativo que impunha restrições destinadas a compelir pessoa jurídica inadimplente a pagar tributo e que culminavam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício pela empresa devedora de atividade econômica lícita, tendo assentado entendimento no sentido de ser desautorizada a discricionariedade legislativa empregada pois relevadora de um caráter abusivo - a propósito:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010) - SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO - INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF) - RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA - LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO 'SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW' - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 - RTJ 173/807-808 - RTJ 178/22-24) - O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE - 'NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR' (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132) - A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE - A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO 'ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE' - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. (...) Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do 'substantive due process of law' (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.) (...) (ARE-AgR 915424, Segunda Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, data de publicação DJE 30/11/2015) - destaque nosso.

Ressalte-se que o Eminente Ministro Relator do ARE-AgR 915424 (cuja ementa encontra-se transcrita acima) trouxe à colação, em seu voto, importante paradigma estabelecido pelo próprio Tribunal Pleno da C. Corte Suprema acerca do reconhecimento do abuso do poder de legislar:

(...) O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do 'substantive due process of law' - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do 'substantive due process of law' (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador (...) (RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).

No contexto ora em comento, vislumbra-se que a Lei da Anistia ofende frontalmente o substantive due process of law pois corporifica abuso do poder de legislar (analisado à luz da proporcionalidade e da razoabilidade) ao tentar "apagar" juridicamente as consequências de crimes de lesa-humanidade que violam garantias fundamentais presentes na Constituição de 1967 (vigente ao tempo da edição da Lei nº 6.683/1979), na Constituição de 1988 (com a qual a Lei nº 6.683/1979 deve ser compatível para que ocorra o fenômeno da recepção) e nos tratados internacionais de direitos humanos aprovados e internalizados pela República Federativa do Brasil (cuja compatibilidade com a Lei nº 6.683/1979 pode ser levada a efeito conforme já decidido pelo C. Supremo Tribunal Federal e mencionado ao longo deste voto).

Em outras palavras, as garantias fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana seriam inócuas acaso fosse permitido ao próprio detentor de parcela do Poder popular (referência ao Poder Legislativo) livrar os agentes estatais das consequências decorrentes do seu desrespeito. Por princípio, exige-se sempre que o Estado Constitucional submeta-se ao conjunto de limites estabelecido pelo Poder Constituinte Originário (congregador da vontade soberana popular) dentro dos critérios de legalidade, de razoabilidade e de proporcionalidade, observando, inclusive na edição de leis, o chamado devido processo legal substantivo.

CONCLUSÃO - POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA PUNIBILIDADE DE AGENTES ESTATAIS POR CRIMES DE LESA-HUMANIDADE COMETIDOS DURANTE A VIGÊNCIA DO ÚLTIMO PERÍODO DE EXCEÇÃO NO BRASIL

Por todos os argumentos anteriormente tecidos, nota-se que a punibilidade em relação aos crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes estatais durante a vigência do último período de exceção no Brasil não foi atingida pela anistia proclamada pela Lei nº 6.683/1979, não havendo fundamento, no Estado de Direito, para a legitimação da anistia, quer no passado, quer no presente, quer no futuro. Consequentemente, mostra-se necessária a análise da presença de justa causa para a instauração da persecução penal nos termos em que versada na denúncia ofertada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL nesta senda.

DA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL

Para que a persecução penal possa ser instaurada e também para que possa ter continuidade no decorrer de um processo-crime, faz-se necessária a presença de justa causa para a ação penal consistente em elementos que evidenciem a materialidade delitiva, bem como indícios de quem seria o autor do ilícito penal. Trata-se de aspecto que visa evitar a instauração de relação processual que, por si só, já possui o condão de macular a dignidade da pessoa humana e, desta feita, para evitar tal ofensa, imperiosa a presença de um mínimo lastro probatório a possibilitar a legítima atuação estatal. Dentro desse contexto, dispõe o art. 395, III, do Código de Processo Penal, que a denúncia ou a queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal, o que se corporifica pela ausência de substrato probatório mínimo no sentido de comprovar a materialidade delitiva e a autoria da infração penal.


Destaque-se que a jurisprudência atual do C. Supremo Tribunal Federal tem analisado a justa causa, dividindo-a em 03 (três) aspectos que necessariamente devem concorrer no caso concreto para que seja válida a existência de processo penal em trâmite contra determinado acusado: (a) tipicidade, (b) punibilidade e (c) viabilidade - nesse diapasão, a justa causa exigiria, para o recebimento da inicial acusatória, para a instauração de relação processual e para o processamento propriamente dito da ação penal, a adequação da conduta a um dado tipo penal, conduta esta que deve ser punível (vale dizer, não deve haver qualquer causa extintiva da punibilidade do agente) e deve haver um mínimo probatório a indicar quem seria o autor do fato típico. Nesse sentido:


AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE (ART. 215 DO CÓDIGO PENAL). EXTINÇÃO ANÔMOLA DA AÇÃO PENAL. QUESTÕES DE MÉRITO QUE DEVEM SER DECIDIDAS PELO JUIZ NATURAL DA CAUSA. PRECEDENTES. 1. A justa causa é exigência legal para o recebimento da denúncia, instauração e processamento da ação penal, nos termos do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, e consubstancia-se pela somatória de três componentes essenciais: (a) TIPICIDADE (adequação de uma conduta fática a um tipo penal); (b) PUNIBILIDADE (além de típica, a conduta precisa ser punível, ou seja, não existir quaisquer das causas extintivas da punibilidade); e (c) VIABILIDADE (existência de fundados indícios de autoria). 2. Esses três componentes estão presentes na denúncia ofertada pelo Ministério Público, que, nos termos do artigo 41 do CPP, apontou a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e a classificação do crime. 3. A análise das questões fáticas suscitadas pela defesa, de forma a infirmar o entendimento da instância ordinária, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, providência incompatível com esta via processual. 4. Agravo regimental a que se nega provimento (HC 144343 AgR, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 25/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017) - destaque nosso.

Importante consignar que a rejeição da peça acusatória (ou mesmo a absolvição sumária do acusado) com base na inexistência de justa causa para a ação penal impõe que o julgador tenha formado sua convicção de maneira absoluta nesse sentido na justa medida em que defenestra a persecução penal antes do momento adequado à formação da culpa (qual seja, a instrução do processo-crime). Apesar de se exigir a não instauração de relação processual sem um lastro mínimo probatório (nos termos anteriormente tecidos), há que ser ressaltado que prevalece na fase do recebimento da denúncia (e também quando da aplicação das hipóteses de absolvição sumária, uma vez que o art. 397 do Código de Processo Penal aduz que somente haverá a absolvição sumária do acusado quando for manifesta a existência de causa excludente da ilicitude do fato ou de causa excludente da culpabilidade do agente ou quando o fato narrado evidentemente não constitui crime) o princípio do in dubio pro societate de modo que o magistrado deve sopesar essa exigência de lastro mínimo probatório imposto pelo ordenamento jurídico pátrio a ponto de não inviabilizar o jus accusationis estatal a perquirir prova plena da ocorrência de infração penal (tanto sob o aspecto da materialidade como sob o aspecto da autoria) - a respeito do exposto, vide a ementa que segue:


PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO MAJORADO, QUADRILHA OU BANDO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E PREVARICAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE NA VIA DO WRIT. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. CARÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOLO. REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. ABSORÇÃO DOS CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA PELO ESTELIONATO. TEMA NÃO DEBATIDO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INDEVIDA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. (...) 2. A rejeição da denúncia e a absolvição sumária do agente, por colocarem termo à persecução penal antes mesmo da formação da culpa, exigem que o julgador tenha convicção absoluta acerca da inexistência de justa causa para a ação penal. 3. Embora não se admita a instauração de processos temerários e levianos ou despidos de qualquer sustentáculo probatório, nessa fase processual deve ser privilegiado o princípio do in dubio pro societate. De igual modo, não se pode admitir que o julgador, em juízo de admissibilidade da acusação, termine por cercear o jus accusationis do Estado, salvo se manifestamente demonstrada a carência de justa causa para o exercício da ação penal. 4. A denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do Código de Processo Penal e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o exercício da ampla defesa e do contraditório pelo réu. (...) (STJ, RHC 40.260/AM, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 22/09/2017) - destaque nosso.

Não é por outro motivo que se pacificou o entendimento em nossos C. Tribunais Superiores, bem como nesta E. Corte Regional, no sentido de que o ato judicial que recebe a denúncia ou a queixa, por configurar decisão interlocutória (e não sentença), não demanda exaustiva fundamentação (até mesmo para que não haja a antecipação da fase de julgamento para antes sequer da instrução processual judicial), cabendo salientar que o ditame insculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal, de exigir profunda exposição dos motivos pelos quais o juiz está tomando esta ou aquela decisão, somente teria incidência em sede da prolação de sentença penal (condenatória ou absolutória) - nesse sentido:


PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DESNECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO PROFUNDA OU EXAURIENTE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. WRIT NÃO CONHECIDO. (...) 2. A decisão que recebe a denúncia (art. 396 do Código de Processo Penal) e aquela que rejeita o pedido de absolvição sumária (art. 397 do CPP) não demandam motivação exauriente, considerando a natureza interlocutória de tais manifestações judiciais, sob pena de indevida antecipação do juízo de mérito, que somente poderá ser proferido após o desfecho da instrução criminal, com a observância das regras processuais e das garantias da ampla defesa e do contraditório. 3. No caso dos autos, em que pese a sucinta fundamentação, o Juízo singular afastou as teses defensivas suscitadas na resposta à acusação, pois entendeu, naquele momento processual, ausentes as hipóteses de absolvição sumária do acusado, pela atipicidade do fato ou pela existência de causa excludente da ilicitude do fato ou da culpabilidade, bem como de extinção da punibilidade, nos termos do art. 397 do CPP. 4. Conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou-se o entendimento da inexigibilidade de fundamentação complexa no recebimento da denúncia, em virtude de sua natureza interlocutória, não se equiparando à decisão judicial a que se refere o art. 93, IX, da Constituição Federal. (...) (STJ, HC 320.452/MS, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 17/08/2017, DJe 28/08/2017) - destaque nosso.
PROCESSUAL PENAL E PENAL: HABEAS CORPUS. ARTIGO 334-A, §1º, IV DO CP. DENÚNCIA. APTIDÃO. REQUISITOS PREVISTOS NO ARTIGO 41 DO CPP SATISFEITOS. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. QUESTÕES QUE SE CONFUNDEM COM O MÉRITO. ORDEM DENEGADA. (...) IX - No momento do recebimento da denúncia ou da análise da resposta à acusação, o Juízo não está obrigado a manifestar-se de forma exauriente e conclusiva acerca das teses apresentadas pela defesa, evitando-se, assim, o julgamento da demanda anteriormente à devida instrução processual (...) (TRF3, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, HC - HABEAS CORPUS - 71222 - 0002937-65.2017.4.03.0000, Rel. DES. FED. CECILIA MELLO, julgado em 27/06/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:06/07/2017) - destaque nosso.

DO CASO CONCRETO - ANÁLISE DA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL


Firmadas as premissas anteriormente expostas acerca da necessidade da presença de justa causa para a deflagração da persecução penal, cumpre perquirir sua existência nos elementos coligidos aos autos ainda na fase investigativa (que se procedeu por meio da instauração de Procedimento Investigatório Criminal a cargo do órgão acusador). Ressalte-se, por oportuno, que tal análise não incidirá sobre fatos imputáveis à pessoa de CARLOS ALBERTO BRILHANTE USTRA na justa medida em que restou extinta sua punibilidade em razão de seu óbito (fl. 207).


Com efeito, compulsando os autos, verifica-se a presença de elementos concernentes à materialidade delitiva alocados no Procedimento Investigatório Criminal - PIC nº 1.34.001.007761/2011-18, consistentes em: apuração levada a efeito pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (fls. 10/11 de indicado PIC); documento elaborado no bojo do Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (fls. 12/14 de indicado PIC); certidão de óbito da vítima (fl. 127 de indicado PIC); documentos oriundos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (fls. 128/155 de indicado PIC); ofício emitido pelo Ministério da Justiça - Arquivo Geral (fls. 157/181 de indicado PIC); ofício exarado pela Presidência da República - Secretaria de Direitos Humanos - Gabinete da Ministra - Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (fls. 185/188 de indicado PIC); ofício encaminhado pelo Arquivo Nacional - Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal (fls. 191/193 de indicado PIC); ofício oriundo do Arquivo Público do Estado de São Paulo - Casa Civil - Governo do Estado de São Paulo (fls. 208/209 de indicado PIC); termo de declarações prestado por Emile Halti (fls. 262/263 de indicado PIC); termo de declarações prestado por Bechara Halti (fls. 264/265 de indicado PIC); termo de declarações prestado por Maria Amélia de Almeida Teles (fls. 266/269 de indicado PIC); termo de declarações prestado por Cesar Augusto Teles (fls. 271/273 de indicado PIC); e termo de declarações prestado por Crimeia Alice Schmidt de Almeida (fls. 275/279 de indicado PIC), todos a indicar a submissão da vítima CARLOS NICOLAU DANIELLI a ofensas a sua integridade física e moral a culminar em seu falecimento.


Por sua vez, no que tange aos necessários indícios de autoria, a questão merece ser cindida de acordo com cada um dos denunciados:


(a) Em relação ao acusado APARECIDO LAERTES CALANDRA, compulsando os autos, nota-se a presença de indícios de autoria a recair sobre sua pessoa tendo em vista a menção ao seu nome como sendo um dos militares que teria atuado quando da detenção da vítima Carlos Nicolau Danielli e lhe infligido intensa e contínua tortura - a propósito, vide o documento intitulado Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (fls. 12/14 de indicado PIC nº 1.34.001.007761/2011-18).


(b) Em relação ao acusado DIRCEU GRAVINA, a análise detida dos autos não permite concluir por sua participação nos fatos declinados na exordial acusatória a que foi feita menção no decorrer desse voto (especificamente, passamento da vítima Carlos Nicolau Danielli) à míngua de qualquer referência a imbricar sua pessoa no farto conjunto probatório amealhado ao longo dos diversos cadernos processuais que compõem esse feito - a propósito e muito elucidativo, vide, apenas a título exemplificativo, o documento intitulado Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (fls. 12/14 de indicado PIC nº 1.34.001.007761/2011-18), no qual há a menção dos agentes estatais que teriam torturado e matado a vítima mencionada sem, entretanto, conter qualquer referência à pessoa de DIRCEU GRAVINA (sequer por meio da indicação de seus apelidos: "Jesus Cristo" ou "JC") como participante daqueles expedientes.


Consigne-se, por oportuno, a existência de menção a indicado acusado (DIRCEU GRAVINA - apelido: "Jesus Cristo" ou "JC") em passagens dos autos (relativas às pessoas que foram presas juntamente com a vítima Carlos Nicolau Danielli), porém tais momentos não se referem especificamente a fatos sofridos pela vítima indicada quando de sua detenção pelo aparelhamento estatal de repressão no período de exceção (sequer há o declínio do nome de DIRCEU ou de seus apelidos como atuante nas inflições sofridas pela vítima Carlos).


Nesse contexto, importante ser destacado que a atribuição de autoria contida na denúncia ofertada pelo Ministério Público Federal ao acusado DIRCEU GRAVINA decorre de suposição fundada em silogismo: (a) a vítima Carlos teria sido torturada pelas "Equipes A, B e C" (premissa maior); (b) o acusado em tela seria participante da "Equipe A" de torturadores (premissa menor); (c) a vítima Carlos teria sido torturada e morta pelo acusado Dirceu (conclusão). Todavia, impossível a formação de relação processual penal por meio de inferência silogística como a declinada, devendo haver para o recebimento de uma denúncia, conforme dito anteriormente, a existência de provas a corroborar a presença de indícios de autoria contra o denunciado, o que não se vislumbra nesse caso concreto.


Na realidade, a imputação de fatos a referido acusado no bojo desta senda mostra-se muito mais vinculada à sua "fama pretérita" (tal qual esmiuçada na denúncia) do que propriamente na evidência de ter atuado contra a vítima Carlos, denotando a presença de um Direito Penal do autor (ao arrepio da necessidade de responsabilização por dolo ou por culpa na ideia prevalente de Direito Penal do fato), razão pela qual impossível o recebimento da exordial contra sua pessoa.


CONCLUSÃO


Pelos argumentos anteriormente tecidos, presentes os requisitos que ensejam o reconhecimento de justa causa para a persecução penal apenas em relação ao acusado APARECIDO LAERTES CALANDRA, haja vista a existência de materialidade delitiva e de indícios de autoria, bem como a subsunção dos fatos, em tese, ao tipo penal no qual foi denunciado (art. 121, § 2º, I, III e IV, c.c. art. 29, ambos do Código Penal) e a ausência de causa extintiva da punibilidade empregável à espécie.


De rigor, portanto, dar parcial provimento ao Recurso em Sentido Estrito manejado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL para receber a denúncia ofertada apenas em relação ao acusado APARECIDO LAERTES CALANDRA, determinando o retorno dos autos à origem para regular prosseguimento - como corolário, deve incidir na espécie o entendimento sufragado na Súm. 709/STF (Salvo quando nula a decisão de primeiro grau, o acórdão que provê o recurso contra a rejeição da denúncia vale, desde logo, pelo recebimento dela), de modo que este r. provimento judicial colegiado tem o condão de valer como recebimento da denúncia. Mantida a rejeição da denúncia ofertada em face do acusado DIRCEU GRAVINA.


Consigne-se, por fim, que o entendimento anteriormente declinado não se compagina com ilações de que determinadas vidas seriam mais importantes do que outras - na realidade, a persecução penal estatal deve ter por objeto tanto as graves violações de direitos humanos levadas a efeito por agentes do Poder Público quanto àquelas perpetradas por terceiros que se mostravam contrários ideologicamente com o então regime em vigor.


DISPOSITIVO


Ante o exposto, voto por DAR PARCIAL PROVIMENTO ao Recurso em Sentido Estrito manejado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (apenas para receber a denúncia ofertada em relação ao acusado APARECIDO LAERTES CALANDRA, determinando o retorno dos autos à origem para regular prosseguimento), nos termos anteriormente expendidos.



FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


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