Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 30/01/2019
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0009503-14.2017.4.03.6181/SP
2017.61.81.009503-9/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : DOUGLAS PEREIRA DANIEL
ADVOGADO : LUCAS CABETTE FABIO (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00095031420174036181 7P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. RECEBIMENTO. IN DUBIO PRO SOCIETATE. APLICABILIDADE. ILICITUDE DAS PROVAS NÃO VERIFICADA. INDÍCIOS SUFICIENTES DA AUTORIA E PROVA DA MATERIALIDADE. PROVIMENTO DO RECURSO.
1. Ao apreciar a denúncia, o juiz deve analisar o seu aspecto formal e a presença das condições genéricas da ação (condições da ação) e as condições específicas (condições de procedibilidade) porventura cabíveis. Em casos duvidosos, a regra geral é de que se instaure a ação penal para, de um lado, não cercear a acusação no exercício de sua função e, de outro, ensejar ao acusado a oportunidade de se defender, mediante a aplicação do princípio in dubio pro societate (TRF da 3a Região, RcCr n. 2002.61.81.003874-0-SP, Rel. Des. Fed. Ramza Tartuce, j. 20.10.03).
2. Não se verifica ofensa a normas constitucionais ou legais a determinar a ilicitude das provas que amparam a denúncia.
3. Há indícios suficientes da autoria e prova da materialidade para recebimento da denúncia pela suposta prática dos crimes dos arts. 331 e 296, §1º, II, ambos do Código Penal.
4. Recurso em sentido estrito provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, dar provimento ao recurso em sentido estrito para receber a denúncia, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 21 de janeiro de 2019.
Andre Nekatschalow
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): ANDRE CUSTODIO NEKATSCHALOW:10050
Nº de Série do Certificado: 11A21704266A748F
Data e Hora: 22/01/2019 12:38:47



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0009503-14.2017.4.03.6181/SP
2017.61.81.009503-9/SP
RELATOR : Desembargador Federal ANDRÉ NEKATSCHALOW
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : DOUGLAS PEREIRA DANIEL
ADVOGADO : LUCAS CABETTE FABIO (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00095031420174036181 7P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra a decisão de fls. 66/67, que rejeitou a denúncia contra Douglas Pereira Daniel pela prática dos crimes do art. 296, § 1º, II, e do art. 331, ambos do Código Penal, com fundamento no art. 395, III, do Código de Processo Penal, por entender que a denúncia está amparada em provas ilícitas.

Alega o Ministério Público Federal, em síntese, o quanto segue:

a) cabe à Guarda Municipal atuar para coibir a prática de delitos no âmbito municipal, podendo utilizar os meios necessários à persecução e constatação do fato criminoso, conforme interpretação teleológica do Estatuto das Guardas Municipais - Lei n. 13.022/14;
b) em que pese o questionamento de dispositivos do Estatuto das Guardas Municipais perante o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI n. 5156, presumem-se válidos, vigentes, eficazes e constitucionais até eventual declaração de inconstitucionalidade;
c) "desta feita, afere-se plenamente válida a abordagem feita pelo Guarda Civil Metropolitano ao denunciado DOUGLAS PEREIRA DANIEL durante patrulhamento de rotina por via pública, por julgar suspeita a atitude do denunciado - de modo que, consequentemente, as provas obtidas em tal ação demonstram-se igualmente legítimas" (fl. 71v.);
d) o denunciado, ao ser abordado por Guardas Municipais na via pública, recusou-se a obedecer às suas ordens, desacatando os agentes por meio das ofensas que proferiu;
e) em seguida, o denunciado apresentou uma carteira preta com o Brasão da República Federativa do Brasil contendo a inscrição "Assessor - Poder Legislativo", intitulando-se Assessor Parlamentar da Câmara Municipal de Caieiras (SP), depois, jogou a carteira no chão e se voltou contra um dos guardas para agredi-lo, momento em que foi contido e algemado;
f) realizadas apurações em sede policial, a Câmara Municipal de Caieiras informou que DOUGLAS não integra seu quadro de servidores;
g) "assim, contrariamente ao que dispôs a ilustre Magistrada na sentença de rejeição da denúncia, em razão da ausência de arbitrariedade na abordagem efetivada pela Guarda Municipal, não há que se falar em licitude na irresignação demonstrada pelo denunciado - o que, noutras palavras, significaria erigir à condição de exercício regular de direitos condutas tipificadas como crimes. (...)" (fl. 71v.) (fls. 69/72).

A defesa apresentou contrarrazões (fls. 91/105).

A decisão recorrida foi mantida (fl. 106).

O Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Sergei Medeiros Araújo, manifestou-se "a) pela declaração de incompetência da Justiça Federal para o julgamento do crime de desacato, bem como pela extração de cópias dos autos e remessa para a Justiça Estadual para apuração do referido delito; b) pelo provimento do recurso, para que seja recebida a denúncia contra o acusado DOUGLAS PEREIRA DANIELA, para a apuração da prática do delito previsto no art. 296, §1º, II, do CP" (fl. 115) (fls. 109/116).

Dispensada a revisão, nos termos regimentais.

É o relatório.


VOTO

Denúncia. Recebimento. In dubio pro societate. Aplicabilidade. O juiz, ao apreciar a denúncia, deve analisar o seu aspecto formal e a presença das condições genéricas da ação (condições da ação) e as condições específicas (condições de procedibilidade) porventura cabíveis:


Pode o Magistrado rejeitar a denúncia ou queixa. Para tanto, deve atentar para o aspecto formal da peça vestibular da ação penal e para as condições genéricas da ação, e, se for o caso, para eventual condição específica, nos termos do art. 43 do CPP.
(TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Processo penal, 25a ed., São Paulo, Saraiva, 2003, v. 1, p. 530)

Em casos duvidosos, a regra geral é de que se instaure a ação penal para, de um lado, não cercear a acusação no exercício de sua função e, de outro, ensejar ao acusado a oportunidade de se defender, mediante a aplicação do princípio in dubio pro societate:


PROCESSO PENAL - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - REJEIÇÃO DA DENÚNCIA - ARTIGO 43, INCISO III DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - MATERIALIDADE DELITIVA COMPROVADA - INDÍCIOS DE AUTORIA - DENÚNCIA RECEBIDA - RECURSO PROVIDO - DECISÃO REFORMADA.
(...)
4. É sabido que, na fase do recebimento da denúncia, o principio jurídico 'in dubio pro societate' deve prevalecer, devendo-se verificar a procedência da acusação e a presença de causas excludentes de antijuridicidade ou de punibilidade no decorrer da ação penal. Outra providência, ou seja, a rejeição da denúncia, representa, na verdade, uma antecipação do juízo de mérito, e o cerceamento do direito de acusação do Órgão Ministerial (...).
(TRF da 3a Região, RcCr n. 2002.61.81.003874-0-SP, Rel. Des. Fed. Ramza Tartuce, j. 20.10.03)

Do caso dos autos. O Ministério Público Federal denunciou Douglas Pereira Daniel pela prática dos crimes do art. 296, §1º, II, e do art. 331, ambos do Código Penal, nos seguintes termos:


Em 13.07.2016, por volta de 11h11, na Rua dos Cravos, 176, Jardim Boa Vista, Caieiras/SP, DOUGLAS PEREIRA DANIEL, de forma livre e consciente, fez uso indevido de símbolo identificador de órgãos e entidades da Administração Pública Federal, a saber, o Brasão da República Federativa do Brasil, e, também de forma livre e consciente, desacatou Guardas Civis daquele Município no exercício de suas funções.
Na data e local supracitados, DOUGLAS PEREIRA DANIEL, ao ser abordado por guardas municipais na via pública, negou-se a obedecer as ordens dos guardas, e dirigiu-se ao Guarda Civil DAVID CANDIDO DE BRITO, bem como aos demais integrantes da equipe, com as palavras "eu não respeito Guarda Municipal, vocês não são porra nenhuma, só obedeço PM".
Em seguida, o denunciado sacou uma carteira preta com o Brasão da República Federativa do Brasil e a escrita de "Assessor - Poder Legislativo" (laudo a fls. 48 e carteira em envelope plástico a ele fixado), e passou a dizer que era Assessor Parlamentar da Câmara Municipal de Caieiras. Na sequência, DOUGLAS jogou tal carteira no chão e continuou insultando os guardas, chegando a se projetar contra um deles para agredi-lo, no que foi contido e algemado.
A Câmara Municipal de Caieiras informou que DOUGLAS não pertence ao quadro de servidores daquele Poder Legislativo (fls. 10).
Segundo determina o artigo 26 da Lei nº 5.700/71, com a redação dada pela Lei nº 8.421/92, o Brasão de Armas Nacionais é de uso obrigatório no palácio da Presidência da República e na residência do presidente da República, nos edifícios sede dos ministérios, nas casas do Congresso Nacional, no Supremo Tribunal Federal, nos tribunais superiores, nos tribunais federais de recursos, nas prefeituras e câmaras municipais, na frontaria dos edifícios das repartições públicas federais, nos quartéis das forças federais de terra, mar e ar e das polícias militares e corpos de bombeiros militares, nos seus armamentos, bem como nas fortalezas e nos navios de guerra, na frontaria ou no salão principal das escolas públicas e nos papéis de expediente, nos convites e nas publicações oficiais de nível federal.
Dessa forma, DOUGLAS PEREIRA DANIEL desacatou Guardas Civis do Município de Caieiras, que estava no exercício de suas funções, e fez uso indevido de símbolo oficial identificador de órgãos da Administração Pública. (fls. 62/63)

A decisão que rejeitou a denúncia está fundamentada do seguinte modo:


A denúncia deve ser rejeitada, pois há ilicitude de todo o arcabouço probatório em que se baseia.
O artigo 240, § 2º do Código de Processo Penal prevê as hipóteses em que pode ocorrer busca pessoal sem mandado judicial:
(...)
As regras gerais sobre atuação das guardas municipais encontram-se na Lei 13022/2014. O texto legal prevê expressamente que compete às guardas municipais "proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município". Além disso, as guardas municipais devem seguir princípios de "proteção dos direitos humanos fundamentais, do exercício da cidadania e das liberdades públicas" e "compromisso com a evolução social da comunidade" (artigos 2º e 3º).
O guarda municipal David Candido de Brito declarou perante a autoridade policial que "realizava patrulhamento de rotina pelo logradouro supra, quando visualizou dois indivíduos em atitude suspeita pela via pública. De imediato iniciou a abordagem de tais indivíduos, e desde o início da abordagem o indivíduo identificado como DOUGLAS PEREIRA DANIEL negou-se a obedecer as ordens dos Guardas." (fls. 03).
A testemunha Max Emanuel Curti Gomes narrou que "caminhava pela rua com seu amigo Douglas, quando em determinado momento chegou uma guarnição da Guarda Municipal que os abordou, ordenando que ambos parassem de caminhar e colocassem as mãos na cabeça. Informa que Douglas começou a discutir com os Guardas e se negou às ordens dadas..." (fls. 05).
O relato do guarda municipal não traz qualquer informação sobre comportamento de DOUGLAS que indicasse conduta voltada à lesão do patrimônio municipal, bem jurídico objeto de proteção da função de guarda municipal. DOUGLAS sequer possui registro de antecedentes que pudessem justificar eventual risco de reiteração de lesão ao patrimônio público (fls. 22).
Além de não haver indicação concreta de fato que tenha motivado a abordagem, o relato da testemunha Max aponta que houve conduta arbitrária e sem amparo legal, talvez motivada por simples implicância com a aparência ou a postura de DOUGLAS.
Ressalte-se que nem mesmo a polícia militar, que tem atribuição constitucional de realizar atividade de "polícia ostensiva e a preservação da ordem pública" (artigo 144, 5º, da CF), detém autorização para abordagem imotivada de indivíduos que transitam na via pública. O Código de Processo Penal é categórico sobre a necessidade de "fundados indícios" de ocultação de arma de fogo ou bens ilícitos relacionados no artigo 240.
Assim, não havendo qualquer justificativa para abordagem, não há ilicitude na irresignação daquele que se vê vítima de conduta arbitrária de agentes estatais. E sendo ilícita a abordagem, são ilícitas todas as provas eventualmente obtidas na busca pessoal realizada sem amparo na ordem jurídica, nos termos do artigo 157, do Código de Processo Penal, in verbis:
"Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais."
Ante o exposto, com fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal, REJEITO A DENÚNCIA oferecida em desfavor de DOUGLAS PEREIRA DANIEL, por entender que são ilícitas a abordagem e a busca pessoal que culminou com a apreensão da carteira que supostamente estava em poder de DOUGLAS.
Não há que se falar em condenação em custas.
Oficie-se à Corregedoria da Guarda Municipal de Caieiras para apuração de eventual responsabilidade dos guardas municipais que participaram da abordagem. (...). (fls. 66/67)

Pugna a acusação pelo recebimento da denúncia.

Assiste-lhe razão.

Não se verifica ofensa a normas constitucionais ou legais a determinar a ilicitude das provas que amparam a denúncia.

Conforme se verifica do auto de prisão em flagrante, em patrulhamento de rotina, Guardas Municipais procederam à abordagem de Douglas Pereira Daniel, que estava acompanhado de Max Emanuel Curti Gomes, por "atitude suspeita pela via pública" (fl. 3). De imediato, Douglas Pereira Daniel recusou-se a obedecer às ordens dos Guardas Municipais (fls. 3/8).

Com efeito, o Código de Processo Penal dispõe sobre a possiblidade de realização de busca pessoal, independente de mandado, quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida, objetos ou papéis que constituam corpo de delito (CPP, art. 244).

Note-se que a busca é motivada pela suspeita. Os depoimentos colhidos no momento do flagrante, por si só, não indicam atitude arbitrária da Guarda Municipal em patrulhamento de rotina.

Outrossim, a denúncia preenche os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. Há indícios suficientes da autoria e prova da materialidade para recebimento da denúncia pela suposta prática dos crimes dos arts. 331 e 296, §1º, II, ambos do Código Penal.

Segundo relato de David Candido de Brito, Guarda Municipal que conduziu o flagrante, foram proferidos impropérios por Douglas Pereira Daniel contra os Guardas Municipais, em razão do exercício da função. Na sequência, Douglas Pereira Daniel teria se apresentado como Assessor Parlamentar da Câmara Municipal de Caieiras, apresentando uma carteira preta com o Brasão da República Federativa do Brasil e com a inscrição "Assessor - Poder Legislativo" (fl. 3).

A carteira com o Brasão da República foi apreendida (fls. 48/49).

A Câmara Municipal de Caieiras informou que Douglas Pereira Daniel não integra seu quadro de servidores (fl. 10).

Ressalte-se que, no início da ação penal, incide o princípio in dubio pro societate, a determinar o recebimento da denúncia em casos duvidosos, de modo que o esclarecimento dos fatos ocorra durante a instrução criminal, com observância do devido processo legal.

Em que pese a manifestação da Procuradoria Regional da República acerca da incompetência da Justiça Federal para o processo de julgamento do crime de desacato, tem-se que a conexão instrumental recomenda o julgamento conjunto dos delitos (CP, art. 76, III).

De acordo com a Súmula n. 709 do Supremo Tribunal Federal, o provimento de recurso em sentido estrito interposto contra a decisão que rejeita a denúncia importa no seu recebimento.

Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito para receber a denúncia.

É o voto.


Andre Nekatschalow
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): ANDRE CUSTODIO NEKATSCHALOW:10050
Nº de Série do Certificado: 11A21704266A748F
Data e Hora: 22/01/2019 12:38:50