Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 14/08/2019
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0001147-74.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.001147-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAURÍCIO LOPES LIMA
: JOAO THOMAZ
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : HOMERO CESAR MACHADO
: INNOCENCIO FABRICIO DE MATTOS BELTRAO
No. ORIG. : 00011477420104036181 1P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

DIREITO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. IMPUTAÇÃO. HOMICÍDIO. AGENTES ESTATAIS. PERÍODO DA DITADURA MILITAR. LEI DA ANISTIA - LEI Nº 6.683/79. INCIDÊNCIA. REJEIÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. Recurso interposto contra decisão que rejeitou denúncia ajuizada pelo Ministério Público Federal, em que se imputou aos acusados práticas em tese amoldadas ao art. 121 (caput e § 2º, incisos I, III e IV). Homicídio qualificado em tese praticado por agentes da repressão estatal no período da ditadura militar brasileira.
2. Não se pode, hodiernamente, controverter acerca da recepção, com plena normatividade, das disposições da Lei 6.683/79 e da Emenda Constitucional 26/85 (emenda ao texto constitucional de 1967), no que tange à anistia de todos os abarcados pela extensão material e temporal de suas disposições. Isso porque o tema foi objeto de expresso pronunciamento do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153.
3. Tem-se, na Lei nº 6.683/79, texto normativo cujo sentido efetivo é indissociável de um contexto histórico extremamente grave e específico, que a ele se incorpora inclusive para fins de verificação de seu efetivo conteúdo.
4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade, traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970.
5. A narrativa ministerial é de clareza solar: imputa-se aos denunciados prática de crime grave tendo por contexto o próprio exercício da repressão ilegal a pretexto de combater divergências subversivas. Trata-se, pois, da parcela de ex-agentes públicos anistiados em suas práticas originalmente típicas, anistia essa decorrente da Lei nº 6.683/79. O reconhecimento de sua incidência é, pois, obrigatório, devendo ser mantida a decisão recorrida.
6. Rejeição da denúncia mantida. Recurso desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, conhecer do recurso e, no mérito, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Des. Fed. Relator, com quem votou o Des. Fed. Nino Toldo, vencido o Des. Fed. Fausto De Sanctis que lhe dava provimento.



São Paulo, 05 de fevereiro de 2019.
JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal Relator


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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Data e Hora: 06/02/2019 20:05:32



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0001147-74.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.001147-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAURÍCIO LOPES LIMA
: JOAO THOMAZ
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : HOMERO CESAR MACHADO
: INNOCENCIO FABRICIO DE MATTOS BELTRAO
No. ORIG. : 00011477420104036181 1P Vr SAO PAULO/SP

DECLARAÇÃO DE VOTO

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS: Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, com fulcro no artigo 581, incisos I e VIII, do Código de Processo Penal, em face da decisão proferida às fls. 937/961 pelo Juízo Federal da 1ª Vara de São Paulo/SP, que rejeitou a denúncia com fundamento no artigo 395, incisos II e III, do Código de Processo Penal c.c. o artigo 1º e § 1º da Lei n.º 6.683/1979, o artigo 4º, § 1º, da Emenda Constitucional n.º 26/85 e o artigo 10, § 3º, da Lei n.º 9.882/99, em razão da decisão proferida pelo Colendo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADP n.º 153.


Na sessão realizada em 05.02.2019, divergi do voto vencedor para dar provimento ao Recurso em Sentido Estrito, a fim de receber a denúncia em face dos réus INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, HOMERO CÉSAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ.


Passo a expor as razões da divergência.


O Ministério Público Federal denunciou INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, como incurso nas penas do artigo 121, § 2º, incisos I, III e IV e artigo 211, c.c. o artigo 29, todos do Código Penal, bem como HOMERO CÉSAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ como incursos nas penas do artigo 121, § 2º, incisos I, III e IV, c.c. o artigo 29, ambos do Código Penal.


Segundo a denúncia às fls. 904/933, Virgílio Gomes da Silva, conhecido como "Jonas" ou "Borges", em 29.09.1969, foi assassinado pelos denunciados, além de outros agentes já falecidos, por motivo torpe, mediante o emprego de tortura e por meio de recurso que teria impossibilitado a defesa do ofendido.


Nesse sentido, a exordial acusatória destaca à fl. 905 que o homicídio de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ("JONAS" ou "BORGES") foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime. O homicídio foi praticado pelos denunciados foi cometido com o emprego de tortura, consistente na inflicção intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ("JONAS" ou "BORGES"), com o fim de intimidá-lo e dele obter informações. Por fim, a a ação foi executada mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido. Tal recurso consistiu no emprego de emboscada planejada e executada por cerca de quinze agentes do Destacamento de Operações da OBAN - Operação Bandeirante para prender a vítima em sua residência ("aparelho"), situada na Avenida Duque de Caxias, 312, apartamento 23, em São Paulo, sequestra-lo, encapuzá-lo e encaminhá-lo diretamente à sala de torturas da sede do destacamento, local em que permaneceu por cerca de dez horas sofrendo maus tratos que lhe ocasionaram grande debilidade física até a sua morte.


A decisão recorrida rejeitou a denúncia, tendo sustentado que os delitos foram anistiados pela Lei Federal nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, que teria sido declarada compatível com a ordem constitucional de 1988 pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar improcedente, por maioria de votos, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº 153, em sessão plenária de 29.04.2010, nos termos da ementa ora reproduzida:


LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE.

1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida.

2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera.

3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão.

4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.

6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido.

7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia.

8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário.

9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988.

10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura.

(ADPF 153, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-01 PP-00001 RTJ VOL-00216- PP-00011)


Ocorre que referido julgamento não exaure o exame do alcance e da validade da anistia versada na Lei nº 6.683/1979. Além do julgamento de embargos de declaração, onde se questiona a extensão material da anistia aos crimes de homicídio, estupro e tortura, a Corte Suprema ainda apreciará o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320, por meio da qual se propugna a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos crimes de grave violação de direitos humanos cometidos por agentes públicos.



DA INCOMPATIBILIDADE DA ANISTIA E DA PRESCRIÇÃO DE GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS COM RELAÇÃO À CONSTITUIÇÃO DE 1967 E AO DIREITO INTERNACIONAL


Do rol de direitos e garantias fundamentais constantes do artigo 150 da Constituição de 1967, então em vigor por ocasião da Lei de Anistia, vale destacar certos limites que atuam como cláusula inquebrantável de intangibilidade do ser humano, como decorrência do preceito da dignidade da pessoa humana:


§ 11 - Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta. (Redação dada pelo Ato Institucional nº 14, de 1969)

§ 12 - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será Imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal.

§ 13 - Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena.

§ 14 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário.

§ 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.


No caso de crimes praticados por agentes estatais contra a população civil, valendo-se do aparato repressor institucionalizado no escopo de combater subversivos ao regime político-militar, observa-se nítida violação das garantias fundamentais acima transcritas, porquanto transgressores dos mencionados limites da ordem constitucional, os quais tinham o dever de respeitar.


De acordo com os elementos da denúncia, o delito perpetrado pelos denunciados teria como escopo o acobertamento de delitos, que teriam sido perpetrados por verdadeiro Tribunal de Exceção, porquanto realizado sem direito à defesa e sem respeito à integridade física e moral do "acusado", promovido após prisão sem existência da situação de flagrância ou de ordem judicial.


Embora a anistia seja tida como ato soberano estatal, não pode ser propagada com arbítrio desmedido, com abuso do poder de legislar, em desajuste total com o Estado de Direito ao qual deve se amoldar. Antes, encontra-se a ele submissa!


Apagar as consequências de crimes que violam as garantias essenciais mencionadas ou mesmo assentir com a extinção da punibilidade pela inércia estatal é o mesmo que negar-lhes efeito. As garantias fundamentais da dignidade humana seriam inócuas, se fosse permitido ao próprio detentor do poder livrar seus agentes das consequências de tê-las desrespeitado.


Assim, exige-se que o Estado Constitucional submeta-se, sempre, ao conjunto de limites estabelecido pelo Poder Constituinte, dentro dos critérios de legalidade, razoabilidade e proporcionalidade, observando, inclusive na edição de leis, o chamado devido processo legal substantivo.


A decisão do próprio Supremo Tribunal Federal brasileiro, acerca de um litígio que envolvia discussão em torno da possibilidade constitucional de o Poder Público impor restrições, ainda que fundadas em lei, destinadas a compelir o contribuinte inadimplente a pagar o tributo e que culminariam, quase sempre, em decorrência do caráter gravoso e indireto da coerção utilizada pelo Estado, por inviabilizar o exercício, pela empresa devedora, de atividade econômica lícita, é enfática ao coibir violações do poder constituído ao substantive due process of law. Desse modo, desautorizada a discricionariedade legislativa porque desvirtuada, assumindo um caráter abusivo, como se verificaria caso a Lei de Anistia apagasse a punibilidade de crimes contra a humanidade, a saber:


RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO (LEI Nº 12.322/2010) - SANÇÕES POLÍTICAS NO DIREITO TRIBUTÁRIO - INADMISSIBILIDADE DA UTILIZAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DE MEIOS GRAVOSOS E INDIRETOS DE COERÇÃO ESTATAL DESTINADOS A COMPELIR O CONTRIBUINTE INADIMPLENTE A PAGAR O TRIBUTO (SÚMULAS 70, 323 E 547 DO STF) - RESTRIÇÕES ESTATAIS, QUE, FUNDADAS EM EXIGÊNCIAS QUE TRANSGRIDEM OS POSTULADOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO, CULMINAM POR INVIABILIZAR, SEM JUSTO FUNDAMENTO, O EXERCÍCIO, PELO SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA, DE ATIVIDADE ECONÔMICA OU PROFISSIONAL LÍCITA - LIMITAÇÕES ARBITRÁRIAS QUE NÃO PODEM SER IMPOSTAS PELO ESTADO AO CONTRIBUINTE EM DÉBITO, SOB PENA DE OFENSA AO "SUBSTANTIVE DUE PROCESS OF LAW" - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE O ESTADO LEGISLAR DE MODO ABUSIVO OU IMODERADO (RTJ 160/140-141 - RTJ 173/807-808 - RTJ 178/22-24) - O PODER DE TRIBUTAR - QUE ENCONTRA LIMITAÇÕES ESSENCIAIS NO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL, INSTITUÍDAS EM FAVOR DO CONTRIBUINTE - "NÃO PODE CHEGAR À DESMEDIDA DO PODER DE DESTRUIR" (MIN. OROSIMBO NONATO, RDA 34/132) - A PRERROGATIVA ESTATAL DE TRIBUTAR TRADUZ PODER CUJO EXERCÍCIO NÃO PODE COMPROMETER A LIBERDADE DE TRABALHO, DE COMÉRCIO E DE INDÚSTRIA DO CONTRIBUINTE - A SIGNIFICAÇÃO TUTELAR, EM NOSSO SISTEMA JURÍDICO, DO "ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE" - DOUTRINA - PRECEDENTES - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.

(...)

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24, v.g.)

(ARE-AgR 915424, Segunda Turma, Min. Rel. CELSO DE MELLO, STF, data de publicação DJE 30/11/2015) (destaquei)


Em seu voto, o Min. Relator traz à colação importante paradigma estabelecido pelo Pleno da Corte Suprema acerca do abuso do poder de legislar, conceito atinente à presente análise:


O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público.

O princípio da proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do 'substantive due process of law' - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.

A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do 'substantive due process of law' (CF, art. 5º, LIV).

Essa cláusula tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo, enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário do legislador.

(RTJ 176/578-580, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)


Nessa ótica, já sob a luz da Carta Constitucional de 1967, a única interpretação viável da Lei nº 6.683/1979, dentro do espírito republicano, da legalidade, do devido processo legal, da moralidade, e, notadamente da dignidade da pessoa humana, passa pela preservação do direito de punir as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos, tornando inadmissíveis a anistia, a prescrição ou qualquer outra medida extintiva da punibilidade que impeça a persecução penal.


E de fato, a Lei nº 6.683/1979 não garante impunidade imoderada, restringindo o alcance da anistia:


Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.


Como se denota do texto normativo, os crimes atingidos pela anistia devem ser políticos, ou conexos com estes, assim entendidos os crimes de qualquer natureza praticados por motivação política. Não abrange graves violações de direitos humanos praticadas por agentes estatais. E a motivação de crimes que não podem ser enquadrados como motivados por política, visto que violadores dos direitos fundamentais da pessoa humana, somente poderia ser averiguada num procedimento próprio que a lei iria disciplinar e acabou não sendo editada.


Vale observar ainda que, ao integrar a anistia à nova ordem jurídica, o artigo 4º da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, ratificou os limites da anistia mediante o emprego de uma expressão mais contida, referindo-se apenas a crimes políticos ou conexos - sem mencionar crimes de qualquer natureza, e, no que se referiu aos agentes estatais vinculou o alcance apenas a atos de exceção, institucionais ou complementares:


Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.

§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais.


Frente a tais considerações, a anistia não pode ser entendida como se abarcasse os crimes de homicídio, tortura, sequestro, etc., praticados por agentes estatais contra dissidentes do regime militar.


Não é só. O parágrafo 35 do artigo 150 da Constituição de 1967 ainda prevê a ampliação do rol de direitos fundamentais mediante a inclusão de outras garantias compatíveis com o regime e os princípios da ordem constitucional:


§ 35 - A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.


Essa dilatação dos direitos fundamentais contempla os princípios e obrigações reconhecidos no plano do direito internacional, no qual se sedimentou a garantia de persecução penal das graves violações de direitos humanos, impondo a irrecusável punibilidade dos crimes de lesa-humanidade, categoria na qual se insere a perseguição sistemática e organizada, empreendida por agentes estatais contra a população civil com o objetivo de combater dissidentes políticos, mediante o cometimento de crimes como prisão ilegal, tortura, execução sumária, desaparecimento forçado.


Oportuna a transcrição de excerto do parecer da Procuradoria Geral da República na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n.º 320, em 28.08.2014 (Procuradoria-Geral da República. Parecer na ADPF n.º 320, in www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=5102145&ipo App=.pdf, acessado em 08.03.2018, onde se veicula minucioso apanhado de enunciações do direito internacional costumeiro, destinadas à proteção dos direitos humanos em matéria de crimes contra a humanidade, primeiramente conceituando e estabelecendo competências para o julgamento desses crimes, e posteriormente com a reprovabilidade de quaisquer obstáculos à punibilidade, inclusive a anistia ou a prescrição:


A reprovação jurídica internacional a tais condutas e a imprescritibilidade da ação penal a elas correspondente está evidenciada pelas seguintes provas do direito costumeiro cogente anterior:

a) Carta do Tribunal Militar Internacional (1945); (54. Agreement for the Prosecution and Punishment of the Major War Criminals of the European Axis, and Charter of the International Military Tribunal. Londres, 8 ago. 1945. Disponível em: , acesso em 27 ago. 2014. O acordo estabelece a competência do tribunal para julgar crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, no art. 6(c): 'nomeadamente, homicídio, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em razões políticas, raciais ou religiosas na execução de ou em conexão com qualquer crime sujeito à jurisdição do Tribunal, estejam ou não em violação ao direito interno do país onde hajam sido perpetrados')

b) Lei do Conselho de Controle no 10 (1945); (55. Nuremberg Trials Final Report Appendix D: Control Council Law No. 10: Punishment of Persons Guilty of War Crimes, Crimes Against Peace and Against Humanity, art. II. Disponível em: < http://avalon.law.yale.edu/imt/imt10.asp="">, acesso em 27 ago. 2014. Segundo o documento: '1. Cada um dos seguintes atos é reconhecido como crime: [...] (c) Crimes contra a Humanidade. Atrocidades e crimes, incluindo mas não se limitando a homicídio, extermínio, escravização, deportação, prisão, tortura, estupro e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, ou persecução baseada em razões políticas, raciais ou religiosas, estejam ou não em violação ao direito interno do país onde hajam sido perpetrados. [...]')

c) Princípios de Direito Internacional reconhecidos na Carta do Tribunal de Nuremberg e nos julgamentos do Tribunal, com comentários (International Law Commission, 1950); (56. Texto adotado pela Comissão de Direito Internacional e submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas como parte do relatório da Comissão. O relatório foi publicado no Yearbook of the International Law Commission, 1950, v. II e está disponível em: < http://bit.ly/juri000l=""> ou , acesso em 27 ago. 2014. 'Princípio VI - Os crimes doravante estabelecidos são puníveis como crimes segundo o Direito Internacional: (a) Crimes contra a paz: [...]. (b) Crimes de guerra: [...]. (c) Crimes contra a humanidade: Homicídio, extermínio, escravização, deportação e outros atos desumanos praticados contra qualquer população civil, ou perseguições baseadas em razões políticas, raciais ou religiosas, quando tais atos sejam praticados ou tais perseguições sejam cometidas na execução de ou em conexão com qualquer crime contra a paz ou qualquer crime de guerra. [...] 124. De acordo com o artigo 6 (c) da Carta, a formulação acima caracteriza como crimes contra a humanidade homicídio, extermínio, escravização etc., cometidos contra 'qualquer' população civil. Isso significa que esses atos podem ser crimes contra a humanidade mesmo se forem cometidos pelo agente contra sua própria população.')

d) Relatório da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) (1954); (57. Report of the International Law Commission Covering the Work of its Sixth Session, 28 July 1954, Official Records of the General Assembly, Ninth Session, Supplement No. 9 (A/2693). Article 2, paragraph 11 (previously paragraph 10), disponível em < http://bit.ly/un000a=""> ou < http://untreaty.un.org/ilc/documentation/english/a_cn4_88.pdf="">, acesso em 27 ago. 2014. Diz o comentário: "Comentário - O texto anteriormente aprovado pela Comissão dizia o que se segue: [...]. Este texto correspondia em substância ao artigo 6, parágrafo (c), da Carta do Tribunal Militar Internacional em Nuremberg. Era, contudo, mais amplo em escopo do que dito parágrafo em dois aspectos: proibia também atos desumanos cometidos por motivos culturais e, ademais, caracterizava como crimes sob o Direito Internacional não apenas atos desumanos cometidos em conexão com crimes contra a paz ou crimes de guerra, conforme definidos naquela Carta, mas também tais atos cometidos em conexão com todas as outras infrações definidas no artigo 2 do anteprojeto de Código. A Comissão decidiu alargar o escopo do parágrafo de forma a tornar a punição dos atos enumerados no parágrafo independente de eles serem ou não cometidos em conexão com outras infrações definidas no anteprojeto de Código. Por outro lado, a fim de não caracterizar qualquer ato desumano cometido por um indivíduo privado como crime internacional, achou-se necessário dispor que tal ato constitui crime internacional apenas se cometido pelo indivíduo privado por instigação ou com a tolerância das autoridades de um Estado.)

(...)

f) Resolução 2202 (Assembleia Geral da ONU, 1966); (59. Disponível em < http://bit.ly/un000b=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/21/ares21.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. O artigo 1 da resolução condena a política de apartheid praticada pelo governo da África do Sul como crime contra a humanidade.)

g) Resolução 2338 (Assembleia Geral da ONU, 1967); (60. Disponível em < http://bit.ly/un000d=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/22/ares22.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. A resolução "reconhece ser necessário e oportuno afirmar no direito internacional, por meio de uma convenção, o princípio segundo o qual não há prescrição penal para crimes de guerra e crimes contra a humanidade" e recomenda que "nenhuma legislação ou outra medida seja tomada que possa ser prejudicial aos objetivos e propósitos de uma convenção sobre a inaplicabilidade de limitações legais a [persecução de] crimes de guerra e crimes contra a humanidade, na pendência da aprovação de uma convenção [sobre o assunto] pela Assembleia Geral". (Destaquei)

h) Resolução 2583 (Assembleia Geral da ONU, 1969); (61. Disponível em < http://bit.ly/un000g=""> ou , acesso em 27 ago. 2014. A resolução convoca todos os Estados da comunidade internacional a adotar as medidas necessárias à completa investigação de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, conforme definidos no art. I da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, bem como à identificação, prisão, extradição e punição de todos os criminosos de guerra e pessoas culpadas por crimes contra a humanidade que ainda não tenham sido processadas ou punidas. (Destaquei)

i) Resolução 2712 (Assembleia Geral da ONU, 1970); (62. Disponível em < http://bit.ly/un000j=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/25/ares25.htm="">, acesso em 27 ago. 2014. A resolução lamenta que numerosas decisões aprovadas pelas Nações Unidas sobre a questão da punição de criminosos de guerra e de pessoas que cometeram crimes contra a humanidade ainda não estavam sendo totalmente cumpridas pelos Estados e expressa profunda preocupação com o fato de que, nas condições atuais, como resultado de guerras de agressão e políticas e práticas de racismo, apartheid, colonialismo e outras ideologias e práticas similares, crimes de guerra e crimes contra a humanidade estavam sendo cometidos em várias partes do mundo. A resolução também convoca os Estados que ainda não tenham aderido à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade a observar estritamente as provisões da Resolução 2583 da Assembleia Geral da ONU.

(...)

k) Princípios de Cooperação Internacional na identificação, prisão, extradição e punição de pessoas condenadas por crimes de guerra e crimes contra a humanidade (Resolução 3074 da Assembleia Geral da ONU, 1973). (64 ONU. Princípios de Cooperação Internacional na Identificação, Prisão, Extradição e Punição de Pessoas Culpadas por Crimes de Guerra e Crimes Contra a Humanidade. Aprovados pela Resolução 3074 da Assembleia Geral em 3 de dezembro de 1973. Estabelece o Princípio 1: Crimes de guerra e crimes contra a humanidade, onde quer que sejam cometidos, devem estar sujeitos a investigação, e as pessoas contra as quais haja prova de que tenham cometido tais crimes devem estar sujeitas a localização, prisão, julgamento e, se julgadas culpadas, a punição." (Destaquei) Disponível em < http://bit.ly/un000m=""> ou < http://www.un.org/documents/ga/res/28/ares28.htm="">, acesso em 27 ago. 2014.) (Destaquei)

(...)

Na Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e de Crimes contra a Humanidade (1968), (65 Aprovada pela Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 2391 (XXIII), de 26 de novembro de 1968. Entrou em vigor no direito internacional em 11 de novembro de 1970. Disponível em < http://www.ohchr.org/documents/professionalinterest/warcrimes.pdf="">, acesso em 27 ago. 2014.) a imprescritibilidade estende-se aos 'crimes contra a humanidade, cometidos em tempo de guerra ou em tempo de paz e definidos como tais no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg de 8 de agosto de 1945 e confirmados pelas Resoluções no 3 e 95 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 13 de fevereiro de 1946 e 11 de dezembro de 1946'. Nota-se, sobretudo a partir dos trabalhos da Comissão de Direito Internacional da ONU da década de 1950 e das resoluções de sua Assembleia Geral em meados dos anos 1960, crescente tendência de dispensar o elemento contextual 'guerra' na definição dos crimes contra a humanidade. Especificamente o uso da expressão 'desaparecimento forçado de pessoas' difundiu-se no plano internacional a partir de milhares de casos de sequestro, homicídio e ocultação de cadáver de militantes políticos contrários a regimes ditatoriais instalados na América Latina.

Um dos primeiros registros internacionais desse nomen juris está na Resolução 33/173, da Assembleia Geral das Nações Unidas (de 20 de dezembro de 1978), sobre pessoas desaparecidas. (66. Disponível em , acesso em 27 ago. 2014.) A resolução, editada um ano antes da lei brasileira de anistia, convoca os Estados a: a) dedicar recursos apropriados à busca de pessoas desaparecidas e à investigação rápida e imparcial dos fatos; b) assegurar que agentes policiais e de segurança e suas organizações sejam passíveis de total responsabilização (fully accountable) pelos atos realizados no exercício de suas funções e especialmente por abusos que possam ter causado o desaparecimento forçado de pessoas e outras violações a direitos humanos; c) assegurar que os direitos humanos de todas as pessoas, inclusive aquelas submetidas a qualquer forma de detenção ou aprisionamento, sejam totalmente respeitados. (Destaquei)


Diante destes imperativos éticos e humanitários do direito internacional - coerentes com as garantias fundamentais da ordem constitucional brasileira então vigente (nos termos do art. 150, § 50, da Constituição de 1967), não prospera a concepção legalista de que o País somente restou obrigado a observar estes preceitos a partir da subscrição de pactos internacionais.


O fato de, apenas após a redemocratização, o Brasil ter aderido a pactos que demandam a punibilidade de crimes de lesa-humanidade (como o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos), não significa que até então o País estava autorizado a anistiar ou a tolerar a prescrição de crimes atrozes, declinando da dignidade da pessoa humana, que já estava esculpida como valor fundamental da humanidade no próprio texto constitucional então vigente.


Portanto, o respeito aos direitos humanos no que tange à persecução dos crimes contra a humanidade deve ser considerado norma imperativa do direito internacional, compromisso do qual o Estado brasileiro não poderia dispor, seja por ato de vontade (anistia) seja por inércia (prescrição), sob pena de subverter a própria ordem constitucional.


Nesse sentido, decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, confirmatória do recebimento da denúncia contra os acusados dos crimes cometidos na ditadura militar contra o Deputado Federal Rubens Paiva:


HABEAS CORPUS - TRANCAMENTO AÇÃO PENAL - HOMICÍDIO - OCULTAÇÃO DE CADÁVER - FRAUDE PROCESSUAL - QUADRILHA ARMADA - SUJEITO ATIVO MILITARES - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL - ART. 109 DA CF/88 ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR - ANISTIA - PRESCRIÇÃO - INOCORRÊNCIA - CRIMES PERMANENTES - CRIMES CONTRA A HUMANIDADE.

I - Hipótese em que a denúncia narra conjunto de fatos que compreendem sequestro, tortura, morte e ocultação de cadáver do Deputado Federal RUBENS BEYRODT PAIVA, praticado por militares em 1971, com o intuito de reprimir opositores ao regime então em vigor;

II - O art. 109 da CF/88 é expresso no sentido de competir à Justiça Federal processar e julgar os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, bem como as causas relativas a direitos humanos, havendo previsão expressa de que "nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal" (§ 5º, do art. 109, da CF/88, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004);

III - O art. 82 do Código de Processo Penal Militar (DL 1002, de 21/10/1969), com a nova redação que lhe deu a Lei nº 9.299/96, ao reconhecer o foro militar como especial e especificar as pessoas que a ele estão sujeitas, exclui de sua apreciação os crimes dolosos contra a vida, praticados por militares contra civil, determinando, em seu § 2º, que nestes casos, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum;

IV - A anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 contempla somente os crimes raticados com fundamento em atos de exceção (Atos Institucionais e Complementares) e não aqueles regrados pela legislação comum;

V - Se a Lei de Anistia não alcançou os militantes armados que se insurgiram contra o governo militar, não pode ser interpretada favoravelmente aqueles que sequestraram, torturaram, mataram e ocultaram corpos pelo simples fato de terem agido em nome da manutenção do regime;

VI - O Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1998, para os fatos posteriores a esse reconhecimento, aí incluídos os que mesmo praticados anteriormente configuram delito permanente, e não se exauriram até a presente data;

VII - "As disposições da Lei de Anistia Brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações

de direitos humanos consagrados na Convenção Americana, ocorridos no Brasil!. (Trecho de sentença proferida pela Corte IDH no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil - 24 de novembro de 2010)

VIII - Inocorrência de prescrição em relação ao delito de ocultação de cadáver, por sua natureza de crime permanente, bem como em relação aos demais, que por sua forma e modo de execução se caracterizam como crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis de acordo com princípios de Direito Internacional;

IX - Ordem denegada.

(TRF 2, Habeas Corpus 0104222-36.2014.4.02.0000, Turma Espec. I, Relator Desembargador Federal MESSOD AZULAY NETO, v.u., data de julgamento: 10.07.2014)


Por derradeiro, se o Estado fica cerceado para fins de anistia quanto aos delitos de ofensa aos direitos humanos, obviamente qualquer reconhecimento de extinção de punibilidade pela prescrição resta também coarctado. O decurso do tempo, in casu, funcionaria como uma anistia às avessas, igualmente infundada.


Dessa forma, a punibilidade em relação aos crimes denunciados não foi atingida pela anistia nem pela prescrição, não havendo fundamento, no Estado de Direito, para a sua legitimação, quer no passado, quer no presente, quer no futuro.



DA PRESENÇA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL

Para que a persecução penal possa ser instaurada e também para que possa ter continuidade no decorrer de um processo-crime, faz-se necessária a presença de justa causa para a ação penal consistente em elementos que evidenciem a materialidade delitiva, bem como indícios de quem seria o autor do ilícito penal. Trata-se de aspecto que visa evitar a instauração de relação processual que, por si só, já possui o condão de macular a dignidade da pessoa humana e, desta feita, para evitar tal ofensa, imperiosa a presença de um mínimo lastro probatório a possibilitar a legítima atuação estatal. Dentro desse contexto, dispõe o art. 395, III, do Código de Processo Penal, que a denúncia ou a queixa será rejeitada quando faltar justa causa para o exercício da ação penal, o que se corporifica pela ausência de substrato probatório mínimo no sentido de comprovar a materialidade delitiva e a autoria da infração penal.


Destaque-se que a jurisprudência atual do C. Supremo Tribunal Federal tem analisado a justa causa, dividindo-a em 03 (três) aspectos que necessariamente devem concorrer no caso concreto para que seja válida a existência de processo penal em trâmite contra determinado acusado: (a) tipicidade, (b) punibilidade e (c) viabilidade - nesse diapasão, a justa causa exigiria, para o recebimento da inicial acusatória, para a instauração de relação processual e para o processamento propriamente dito da ação penal, a adequação da conduta a um dado tipo penal, conduta esta que deve ser punível (vale dizer, não deve haver qualquer causa extintiva da punibilidade do agente) e deve haver um mínimo probatório a indicar quem seria o autor do fato típico. Nesse sentido:


AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE (ART. 215 DO CÓDIGO PENAL). EXTINÇÃO ANÔMOLA DA AÇÃO PENAL. QUESTÕES DE MÉRITO QUE DEVEM SER DECIDIDAS PELO JUIZ NATURAL DA CAUSA. PRECEDENTES. 1. A justa causa é exigência legal para o recebimento da denúncia, instauração e processamento da ação penal, nos termos do artigo 395, III, do Código de Processo Penal, e consubstancia-se pela somatória de três componentes essenciais: (a) TIPICIDADE (adequação de uma conduta fática a um tipo penal); (b) PUNIBILIDADE (além de típica, a conduta precisa ser punível, ou seja, não existir quaisquer das causas extintivas da punibilidade); e (c) VIABILIDADE (existência de fundados indícios de autoria). 2. Esses três componentes estão presentes na denúncia ofertada pelo Ministério Público, que, nos termos do artigo 41 do CPP, apontou a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e a classificação do crime. 3. A análise das questões fáticas suscitadas pela defesa, de forma a infirmar o entendimento da instância ordinária, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, providência incompatível com esta via processual. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(HC 144343 AgR, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 25/08/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017)


Importante consignar que a rejeição da peça acusatória (ou mesmo a absolvição sumária do acusado) com base na inexistência de justa causa para a ação penal impõe que o julgador tenha formado sua convicção de maneira absoluta nesse sentido na justa medida em que defenestra a persecução penal antes do momento adequado à formação da culpa (qual seja, a instrução do processo-crime). Apesar de se exigir a não instauração de relação processual sem um lastro mínimo probatório (nos termos anteriormente tecidos), há que ser ressaltado que prevalece na fase do recebimento da denúncia (e também quando da aplicação das hipóteses de absolvição sumária, uma vez que o art. 397 do Código de Processo Penal, aduz que somente haverá a absolvição sumária do acusado quando for manifesta a existência de causa excludente da ilicitude do fato ou de causa excludente da culpabilidade do agente ou quando o fato narrado evidentemente não constitui crime) o princípio do in dubio pro societate de modo que o magistrado deve sopesar essa exigência de lastro mínimo probatório imposto pelo ordenamento jurídico pátrio a ponto de não inviabilizar o jus accusationis estatal a perquirir prova plena da ocorrência de infração penal (tanto sob o aspecto da materialidade como sob o aspecto da autoria) - a respeito do exposto, vide a ementa que segue:


PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. ESTELIONATO MAJORADO, QUADRILHA OU BANDO, FALSIDADE IDEOLÓGICA E PREVARICAÇÃO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. EXCEPCIONALIDADE NA VIA DO WRIT. DENÚNCIA QUE PREENCHE OS REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP. CARÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE DOLO. REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. ABSORÇÃO DOS CRIMES DE FALSIDADE IDEOLÓGICA PELO ESTELIONATO. TEMA NÃO DEBATIDO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. INDEVIDA SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, NÃO PROVIDO. (...) 2. A rejeição da denúncia e a absolvição sumária do agente, por colocarem termo à persecução penal antes mesmo da formação da culpa, exigem que o julgador tenha convicção absoluta acerca da inexistência de justa causa para a ação penal. 3. Embora não se admita a instauração de processos temerários e levianos ou despidos de qualquer sustentáculo probatório, nessa fase processual deve ser privilegiado o princípio do in dubio pro societate. De igual modo, não se pode admitir que o julgador, em juízo de admissibilidade da acusação, termine por cercear o jus accusationis do Estado, salvo se manifestamente demonstrada a carência de justa causa para o exercício da ação penal. 4. A denúncia deve ser analisada de acordo com os requisitos exigidos pelos arts. 41 do Código de Processo Penal e 5º, LV, da CF/1988. Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o exercício da ampla defesa e do contraditório pelo réu. (...)

(STJ, RHC 40.260/AM, Rel. Min. RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 12/09/2017, DJe 22/09/2017)


Não é por outro motivo que se pacificou o entendimento em nossos C. Tribunais Superiores, bem como nesta E. Corte Regional, no sentido de que o ato judicial que recebe a denúncia ou a queixa, por configurar decisão interlocutória (e não sentença), não demanda exaustiva fundamentação (até mesmo para que não haja a antecipação da fase de julgamento para antes sequer da instrução processual judicial), cabendo salientar que o ditame insculpido no art. 93, IX, da Constituição Federal, de exigir profunda exposição dos motivos pelos quais o juiz está tomando esta ou aquela decisão, somente teria incidência em sede da prolação de sentença penal (condenatória ou absolutória) - nesse sentido:


PROCESSUAL PENAL E PENAL: HABEAS CORPUS. ARTIGO 334-A, §1º, IV DO CP. DENÚNCIA. APTIDÃO. REQUISITOS PREVISTOS NO ARTIGO 41 DO CPP SATISFEITOS. RESPOSTA À ACUSAÇÃO. DECISÃO FUNDAMENTADA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. QUESTÕES QUE SE CONFUNDEM COM O MÉRITO. ORDEM DENEGADA. (...) IX - No momento do recebimento da denúncia ou da análise da resposta à acusação, o Juízo não está obrigado a manifestar-se de forma exauriente e conclusiva acerca das teses apresentadas pela defesa, evitando-se, assim, o julgamento da demanda anteriormente à devida instrução processual (...)

(TRF3, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, HC - HABEAS CORPUS - 71222 - 0002937-65.2017.4.03.0000, Rel. DES. FED. CECILIA MELLO, julgado em 27/06/2017, e-DJF3 Judicial 1 DATA:06/07/2017)


Dentro desse contexto, analisando os elementos coligidos nesta relação processual, reputo caracterizada a justa causa da presente ação penal, uma vez que presentes tanto elementos aptos a indicar a materialidade delitiva como indícios de autoria dos crimes perpetrados, sem prejuízo de consignar que os fatos narrados na inicial acusatória se subsomem ao correspondente tipo penal, ausente qualquer causa apta a extinguir a punibilidade dos agentes.


No tocante à materialidade do crime de homicídio qualificado, a denúncia consignou às fls. 919/921 o seguinte:


A materialidade do crime de homicídio qualificado pela tortura, pelo motivo torpe e pelo emprego de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido, além da ocultação de cadáver está fartamente demonstrada: a) pelos depoimentos das pessoas que estiveram presas no Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI), na época dos fatos, acima mencionados, pela carta dos presos políticos enviada à OAB no ano de 1975, narrando a tortura sofrida por VIRGÌLIO, terem presenciado os vestígios de sua morte, bem como terem sido informados pelos próprios agentes estatais do padecimento da vítima;

b) pelos depoimentos dos familiares de VIRGÍLIO à Comissão da Verdade;

c) pela Requisição de Exame cadavérico do corpo da vítima, em 30 de setembro de 1969, mencionando tratar-se do corpo de um "DESCONHECIDO" n.º 4059/69, e

d) pelo Laudo de Exame de Corpo de Delito, realizado também no dia 30 de setembro de 1969, e elaborado pelos peritos ROBERTO ANDRADE MAGALHÃES e PAULO AUGUSTO DE QUEIROZ ROCHA, apontando como causa da morte desse "DESCONHECIDO" n.º 4059/69" "traumatismo crânio-encefálico (fratura de crânio)", narrando as diversas lesões sofridas em todo o corpo examinado.

Nesse sentido, o Laudo assinado por ROBERTO ANDRADE MAGALHÃES e PAULO AUGUSTO DE QUEIROZ ROCHA descreve escoriações em todo o rosto, braços, joelhos, punho direito e, ainda, equimoses no tórax e abdômen, hematomas intensos na mão direita e na polpa escrotal. Internamente registraram hematoma intenso e extenso na calota craniana, fratura completa com afundamento do osso frontal, hematomas em toda a superfície do encéfalo, hematoma intenso no tecido subcutâneo e muscular da décima à décima-primeira costelas esquerdas, fratura completa da oitava, nona e décima costelas direitas. A morte, que concluem ter sido em consequência de traumatismo crânio-encefálico, causado por instrumento contundente, não teria sido causada por tortura, como fizerem questão de registrar os legistas, homologando, dessa forma, a versão oficial.

Assim, os documentos e depoimentos obtidos demonstram que as versões oficiais dos fatos, no sentido de que VIRGÍLIO teria se evadido ou reagido à prisão a bala serem completamente falsas, resta evidente que este morreu em decorrência das torturas sofridas e que seu cadáver foi ocultado até os dias de hoje para encobrir as causas da morte.

Em resumo, pelos elementos de prova coligidos, resta inequívoca a ocorrência do crime de homicídio triplamente qualificado em face de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, que, preso e muito debilitado, foi vítima de intensas sessões de tortura que deram causa à sua morte, em 29 de setembro de 1969. Ademais, houve o emprego de um grande número de agentes da OBAN para capturar e torturar a vítima.

Não bastasse, o homicídio de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime.

Além disso, a morte de VIRGÍLIO se deu como medida de legítima punição por sua firme atuação em Grupos Táticos Armados - GTA's, formados por integrantes da ALN- Ação Libertadora Nacional, liderada por Carlos Marighella, em oposição ao regime autoritário que vigorava desde 1964. Por fim, o homicídio praticado pelos denunciados foi cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra VIRGILIO.

Os elementos colhidos também não deixam dúvidas de que o homicídio praticado pelos denunciados foi cometido com o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ("JONAS" ou "BORGES"), com o fim de intimidá-lo, obter informações e causar-lhe a morte.

Por fim, comprovou-se que a ação foi executada mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido consistente em emboscada planejada e executada por cerca de quinze agentes do Destacamento de Operações da OBAN - Operação Bandeirante para prender a vítima em sua residência, de forma clandestina, ausentes as formalidades legais previstas à época.


Os elementos de materialidade do crime de ocultação de cadáver, podem ser sintetizados conforme consignado à fl. 921 da denúncia:


Já a materialidade delitiva do crime de ocultação de cadáver resta evidenciada, não só pelos documentos supramencionados, como também pelos seguintes elementos:

a)folha de papel, escrito á mão, que o caso não deveria ser informado, evidenciando o sigilo acerca daquela morte;

b)informação elaborada pela Divisão de Identificação Civil e Criminal, no sentido de que o "DESCONHECIDO" n.º 4059/69" fora identificado como sendo VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, ocasião em que foi anexada à informação a fotografia do cadáver da vítima e cópias fotográficas das respectivas individuais datiloscópicas;

c)relatório das Forças Armadas com informações sobre desaparecidos políticos, entregues em 1993 ao então ministro da Justiça Maurício Corrêa, pp. 16, 50 e 1000, informando que VIRGÍLIO era dado como desaparecido;

d)conclusões constantes do "Relatório sobre os trabalhos de localização e identificação de despojos de desaparecidos políticos nos Cemitérios de Perus e Vila Formosa", demonstrando a realização de reformas nos locais com vistas a impossibilitar a localização e identificação das ossadas ali enterradas, entre elas, presumivelmente a da vítima, bem como pela informação da Divisão de Perícias do Instituto Nacional de Criminalística emitida em 15 de agosto de 2012, afirmando que "foram exumados 31 restos mortais das sepulturas de nº 924 a 929, e, após realização de exames preliminares, em 26 casos foi excluída a possibilidade de os restos mortais serem de VIRGÍLIO.


Em relação à autoria do denunciado INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, a exordial acusatória dispõe às fls. 925/927 que:


A responsabilidade do denunciado INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, tanto pelo crime de homicídio acima descrito, quanto pelo de ocultação de cadáver, é inequívoca.

O denunciado, subordinado a WALDIR COELHO, era, ao seu lado, chefe da chamada Operação Bandeirante - OBAN. Nesta qualidade, INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO era um dos responsáveis por emitir as ordens aos demais agentes que lá estavam lotados. Sua tarefa era extrair o maior número de informações dos presos políticos que eram contrários ao regime militar e que lá eram simultaneamente interrogados e torturados, muitas vezes até a morte.

Sob a chefia do denunciado, em conjunto com WALDIR COELHO (falecido), a OBAN tornou-se uma triste referência na prática de prisões ilegais, torturas, homicídios, desaparecimento forçados e ocultações de cadáveres.

Pois bem. Em 29 de setembro de 1969, ou seja, na data da morte de VIRGILIO, o denunciado INOCÊNCIO ocupava o cargo de major chefe da OBAN e participou efetivamente das torturas praticadas em face deste e de, pelo menos, outros seis presos no mesmo contexto: Ilda Gomes da Silva, Isabel Maria Gomes da Silva, Francisco Gomes da Silva, Paulo de Tarso Venceslau, Manoel Cyrilo de Oliveira Neto, Celso Antunes Horta e Antônio Carlos Fon, como destacado nos depoimentos acima mencionados e nos que serão transcritos a seguir, como afirmado, por este último, com absoluta certeza, em depoimento prestado à Comissão Estadual da Verdade em 21/03/2013.

Ademais, na qualidade de chefe da OBAN à época dos fatos, o denunciado tinha o pleno domínio do fato penalmente típico, pois era responsável pela estrutura de poder na qual VIRGILIO fora torturado e morte. Pelo mesmo motivo, também não se olvida que, diante da morte da vítima nas circunstâncias acima narradas, o major INOCÊNCIO era o maior interessado em ocultar o corpo da vítima, com vistas a evitar qualquer sorte de punição caso as causas da morte viessem à tona.

Com efeito, a estrutura hierárquica e disciplinada prevalecente à época da Ditadura Militar demonstra que as ordens eram emanadas das autoridades superiores e cumpridas pelos subordinados. O denunciado INOCÊNCIO, no presente caso, mesmo que não tivesse executado qualquer dos verbos do tipo penal descrito no artigo 121 do CP, era quem detinha o poder de decidir e ordenar a prática delituosa, tendo poder para definir quando, como e se a conduta seria realizada.

Não apenas em razão da posição que ocupava e pelo seu conhecimento sobre o contexto no qual o órgão que comandava encontrava-se inserido, é certo afirmar que INOCÊNCIO tinha autoridade direta e imediata sobre os agentes responsáveis pela prática das torturas e homicídio de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA e possuía pleno domínio sobre os fatos praticados.

Portanto, INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO é autor do crime de homicídio triplamente qualificado da vítima VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, uma vez que tinha conhecimento dos fatos criminosos praticados dentro da OBAN, sendo certo que o delito foi praticado por seus subordinados diretos e pela estrutura de poder por ele gerenciada e controlada.

Pelos mesmos motivos, não há como negar ser de seu maior interesse a ocultação do cadáver de VIRGÍLIO, motivo pelo qual, obviamente, tal fato ocorreu também sob o seu comando e ciência. O cargo que INOCÊNCIO ocupava o coloca na posição de mandante do crime de ocultação de cadáver, razão pela qual também deverá responder por este delito.

Assim, agindo o denunciado INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO praticou os delitos previstos no artigo 121, § 2º, I, III e IV e 211, ambos do Código Penal.


De outro giro, a denúncia ao discorrer sobre a autoria dos corréus HOMERO CÉSAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ consignou o seguinte:


A autoria dos crimes de homicídio qualificado também está devidamente comprovada em relação aos denunciados HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ.

Com efeito, os capitães HOMERO CESAR MACHADO e MAURÍCIO LOPES LIMA, e JOÃO THOMAZ, militar reformado do Governo do Estado de São Paulo foram designados para atuar na Operação Bandeirantes - OBAN e atuaram nas equipes de interrogatório, que, sob tortura habitual, colhiam os depoimentos dos presos. ´

É indubitável que os três denunciados, agindo em conluio e sob o comando do denunciado INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, torturaram a vítima e mataram-na.

Isso porque identificou-se que, ao menos em parte do período em que atuaram na OBAN, HOMERO e MAURÍCIO chefiaram equipes de tortura ("interrogatório"), e delas participava JOÃO THOMAZ, enquanto INOCÊNCIO respondia pela chefia do destacamento, imediatamente abaixo do Major WALDIR COELHO (já falecido).

No caso de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, os quatro agentes participaram das violências e, em outros casos, às vezes, havia a participação de alguns deles em concurso ou isoladamente. Nesse sentido, o Relatório da Presidência da República (Direito à Memória e à Verdade), segundo o qual:

(...)

Além disso, a Revista Veja publicou, em 21 de fevereiro de 1979, matéria narrando a tortura e a morte de VIRGÍLIO:

(...)

A narrativa acima tem lastro nas denúncias realizadas à Justiça Militar, ainda durante a ditadura militar, pelo ex-preso político Celso Antunes Horta, no já mencionado depoimento prestado à Auditoria Militar, o qual já foi acima mencionado e consta dos autos do processo nº 207/69, integrante do acervo do Projeto Brasil Nunca Mais. A declaração de Celso foi nos seguintes termos:

(...)

Também comprovam a autoria dos denunciados o que foi narrado pelos presos políticos na carta enviada ao então presidente do Conselho Federal da OAB, já referida. Transcreve-se, aqui, a descrição episódio relacionado a VIRGÍLIO, identificando alguns dos autores, entre os quais o denunciado:

(...)

Confirmando a autoria dos acusados, temos ainda os depoimentos de Antonio Carlos Fon e Celso Antunes Horta à Comissão Estadual da Verdade. Na ocasião, Antonio Carlos Fon declarou o seguinte:

(...)

Na mesma oportunidade, Celso Antunes Horta afirmou:

(...)

Por fim, os acusados também foram identificados como autores de torturas em face de outros militantes políticos na mesma época e mesmo contexto. Veja-se que todos eles ainda tiveram participação nas torturas praticadas em face de diversos outros militantes, como detalhado na inicial da Ação Civil Pública (fls. 353/426) proposta em desfavor de todos eles.

Os depoimentos que evidenciam todas essas autuações estão transcritos na referida inicial e deixo de transcrevê-los aqui como medida de economia, fazendo eles parte integrante desta denúncia.

Portanto, os elementos constantes dos autos demonstram que os denunciados atuavam na OBAN, sob as ordens do denunciado INOCÊNCIO e foram os responsáveis pela tortura praticada em face de VIRGILIO, atuando diretamente na morte da vítima.

Destaque-se, ademais, que os denunciados agiram com o intuito de levar a vítima à morte, ao tortura-la de forma incessante e brutal, por longas horas. Ora, a intensidade das torturas e a sua continuidade não deixam dúvidas de que almejavam a morte de VIRGÍLIO.

Não sendo isso suficiente, recorde-se que o extenso número de registros custodiados nos Arquivos Públicos do Estado e Nacional não deixa dúvidas de que os dois principais órgãos encarregados da repressão política no Estado de São Paulo- a OBAN e o DOPS - não apenas tinham prévio conhecimento da identidade e das atividades armadas de VIRGÍLIO , como também estavam fortemente empenhados em persegui-lo e mata-lo.

Destarte, os denunciados HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ, agindo previamente conluiados e sob a ordem do denunciado INOCÊNCIO, praticaram os delitos previstos no artigo 121, § 2º, I, III e IV, do Código Penal.


Destarte, tendo restado demonstrada a materialidade delitiva e existindo indícios suficientes da autoria, conforme os elementos de prova coligidos pelo Ministério Público Federal e descritos na exordial, é de ser recebida a denúncia em face de INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ.



DISPOSITIVO


Ante o exposto, voto por DAR PROVIMENTO ao Recurso em Sentido Estrito do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, para receber a denúncia em relação aos corréus INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ, nos termos anteriormente expendidos.


É o voto.


FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0001147-74.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.001147-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAURÍCIO LOPES LIMA
: JOAO THOMAZ
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : HOMERO CESAR MACHADO
: INNOCENCIO FABRICIO DE MATTOS BELTRAO
No. ORIG. : 00011477420104036181 1P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:


Trata-se de recurso em sentido estrito, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão de fls. 937/961, por meio da qual foi rejeitada denuncia ajuizada originalmente pelo órgão recorrente em desfavor de Inocêncio Fabrício de Matos Beltrão, Homero Cesar Machado, Maurício Lopes Lima e João Thomaz.


O conteúdo da exordial acusatória (fls. 903/933) foi bem sintetizado na decisão recorrida, que cito (fls. 937/938):


"Trata-se de denúncia ofertada, aos 25/11/2015 (fls. 903/933), pelo Ministério Público Federal em face de INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, como incursos nas penas do artigo 121, §2º, incisos I, III e IV e artigo 211, combinado com o artigo 29, todos do Código Penal e HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ, como incursos nas penas do artigo 121, §2º, incisos I, III e IV, combinado com o artigo 29, ambos do Código Penal.
De acordo com a exordial, em síntese, na data de 29/09/1969, por volta das 22h30min, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, na Rua Tutóia, 1.100, Vila Mariana, na sede do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) em São Paulo, os denunciados HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ, capitães chefes das equipes de interrogatório, com o auxílio de outros agentes, todos já falecidos (Dalmo Lucio Muniz Cirillo, Francisco Antônio Coutinho e Silva, Octávio Gonçalves Moreira Junior, Paulo Bordini, Raul Nogueira Lima, Maurício José de Freitas, Paulo Rosa, e um agente de policia federal de alcunha 'Americo' ou 'Americano'), todos sob o comando do denunciado Major INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, este imediatamente subordinado ao também já falecido major Waldir Coelho, responsável pelo referido destacamento, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios entre si, e também com outras pessoas não identificadas, mataram a vítima VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, conhecido como 'JONAS' ou 'BORGES', por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido.
O homicídio de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ('JONAS' ou 'BORGES') foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime.
Afirma ainda a peça acusatória que o homicídio praticado pelos acusados foi cometido mediante o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra a vítima, com o fim de intimidá-lo e dele obter informações.
Por fim, a ação foi executada mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido. Tal recurso consistiu no emprego de emboscada planejada e executada por um grande número de agentes, cerca de quinze - do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) para, após, prender a vítima em sua residência, situada na Av. Duque de Caxias, 312, apto. 23, SP/SP, sequestrá-la, encapuzá-la e encaminhá-la para a sede do destacamento, local em que permaneceu por cerca de dez horas sofrendo torturas que lhe ocasionaram grande debilidade física culminando em sua morte.
Ainda dentro do mesmo contexto de ataques sistemático e generalizado, descreve a peça vestibular que, desde o dia 29/09/1979 até a presente data, nesta cidade de SP/SP, o denunciado Major INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, na qualidade de chefe da OBAN, agindo com a cooperação de médicos legistas já falecidos: Orlando José Bastos Brandão, Roberto Andrade Magalhães e Paulo Augusto de Queiroz Rocha, ocultou o cadáver da vítima VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ('JONAS' ou 'BORGES').
Alega a peça inicial acusatória que o ataque era particularmente dirigido contra opositores do regime, o que ocasionou o desaparecimento oficial de 136 pessoas, dentre elas a vítima acima destacada (VIRGÍLIO GOMES DA SILVA - também chamado de 'JONAS' ou 'BORGES')".

Após a distribuição da inicial acusatória, sobreveio a sua rejeição (fls. 937/961). Argumentou o juiz a quo que os fatos objeto da denúncia teriam sido objeto de anistia concedida pela Lei nº 6.683/79, de forma que estaria a punibilidade extinta, nos termos do art. 107, II, do Código Penal. A denúncia foi rejeitada com base no art. 395, incisos II e III do Código de Processo Penal, "combinado com o artigo 1º, da Lei n. 6.683/79, 1º do artigo 4º da Emenda Constitucional n. 26/85, e ainda o 3º do artigo 10 da Lei n. 9.882/99, tendo em conta a decisão proferida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153".


O Ministério Público Federal interpôs recurso em sentido estrito contra a decisão (fl. 963). Nas razões recursais (fls. 963v/976v), argumenta-se, em síntese, que o crime não estaria acobertado pelo manto da Lei nº 6.683/79 ou abrangido pela decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153/DF, porquanto estariam configurados in casu os caracteres de crimes de lesa-humanidade, conforme elementos expostos na peça. Afirma o caráter cogente das normas de direito internacional em matérias de crimes contra a humanidade e proteção aos direitos humanos. "Destarte, os crimes de lesa-humanidade, em razão da interpretação consolidada pelo jus cogens, são ontologicamente imprescritíveis e insuscetíveis de anistia. Trata-se de atributo essencial (...)" (fl. 965v). Além disso, aduz-se que, no caso Gomes Lund vs. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou o dever do Estado brasileiro de investigar e responsabilizar na esfera criminal os agentes de Estado envolvidos no aparato de repressão e assassinato de militantes políticos dissidentes do regime então vigente. Requer, assim, o provimento do recurso em sentido estrito, determinando-se o recebimento da denúncia e prosseguimento da ação penal.


A punibilidade de Homero Cesar Machado foi declarada extinta, em razão de seu falecimento (fls. 1007). Por meio da mesma decisão, determinou-se a instauração de incidente de insanidade mental do réu João Thomaz, nos termos do art. 149 e seguintes do Código de Processo Penal.


O réu Inocêncio Fabrício de Mattos Beltrão também teve sua punibilidade extinta em razão de seu falecimento (fls. 1023).


O réu Maurício Lopes Lima foi citado por edital (fls. 1038) e, representado pela Defensoria Pública da União, apresentou contrarrazões a fls. 1039/1036, pugnando pela rejeição do recurso.


A Procuradoria Regional da República se manifestou pelo provimento do recurso em sentido estrito (fls. 1065/1075).

É o relatório.


Dispensada a revisão, nos termos regimentais.







JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0001147-74.2010.4.03.6181/SP
2010.61.81.001147-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : MAURÍCIO LOPES LIMA
: JOAO THOMAZ
ADVOGADO : SP197789 ANTONIO ROVERSI JUNIOR (Int.Pessoal)
: SP0000DPU DEFENSORIA PUBLICA DA UNIAO (Int.Pessoal)
EXTINTA A PUNIBILIDADE : HOMERO CESAR MACHADO
: INNOCENCIO FABRICIO DE MATTOS BELTRAO
No. ORIG. : 00011477420104036181 1P Vr SAO PAULO/SP

VOTO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:


Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso, e passo ao seu exame.


Trata-se de recurso em sentido estrito, interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão de fls. 937/961, por meio da qual foi rejeitada denuncia ajuizada originalmente pelo órgão recorrente em desfavor de Inocêncio Fabrício de Matos Beltrão, Homero Cesar Machado, Maurício Lopes Lima e João Thomaz.


A controvérsia delimita-se na possibilidade de prosseguimento da ação penal no caso concreto. A denúncia foi bem descrita na decisão recorrida, que colaciono a seguir (fls. 937/938):


"De acordo com a exordial, em síntese, na data de 29/09/1969, por volta das 22h30min, em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil, na Rua Tutóia, 1.100, Vila Mariana, na sede do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) em São Paulo, os denunciados HOMERO CESAR MACHADO, MAURÍCIO LOPES LIMA e JOÃO THOMAZ, capitães chefes das equipes de interrogatório, com o auxílio de outros agentes, todos já falecidos (Dalmo Lucio Muniz Cirillo, Francisco Antônio Coutinho e Silva, Octávio Gonçalves Moreira Junior, Paulo Bordini, Raul Nogueira Lima, Maurício José de Freitas, Paulo Rosa, e um agente de policia federal de alcunha 'Americo' ou 'Americano'), todos sob o comando do denunciado Major INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, este imediatamente subordinado ao também já falecido major Waldir Coelho, responsável pelo referido destacamento, de maneira consciente e voluntária, agindo em concurso e unidade de desígnios entre si, e também com outras pessoas não identificadas, mataram a vítima VIRGÍLIO GOMES DA SILVA, conhecido como 'JONAS' ou 'BORGES', por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido.
O homicídio de VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ('JONAS' ou 'BORGES') foi cometido por motivo torpe, consistente na busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime.
Afirma ainda a peça acusatória que o homicídio praticado pelos acusados foi cometido mediante o emprego de tortura, consistente na inflição intencional de sofrimentos físicos e mentais agudos contra a vítima, com o fim de intimidá-lo e dele obter informações.
Por fim, a ação foi executada mediante recurso que tornou impossível a defesa do ofendido. Tal recurso consistiu no emprego de emboscada planejada e executada por um grande número de agentes, cerca de quinze - do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI) para, após, prender a vítima em sua residência, situada na Av. Duque de Caxias, 312, apto. 23, SP/SP, sequestrá-la, encapuzá-la e encaminhá-la para a sede do destacamento, local em que permaneceu por cerca de dez horas sofrendo torturas que lhe ocasionaram grande debilidade física culminando em sua morte.
Ainda dentro do mesmo contexto de ataques sistemático e generalizado, descreve a peça vestibular que, desde o dia 29/09/1979 até a presente data, nesta cidade de SP/SP, o denunciado Major INOCÊNCIO FABRÍCIO DE MATOS BELTRÃO, na qualidade de chefe da OBAN, agindo com a cooperação de médicos legistas já falecidos: Orlando José Bastos Brandão, Roberto Andrade Magalhães e Paulo Augusto de Queiroz Rocha, ocultou o cadáver da vítima VIRGÍLIO GOMES DA SILVA ('JONAS' ou 'BORGES').
Alega a peça inicial acusatória que o ataque era particularmente dirigido contra opositores do regime, o que ocasionou o desaparecimento oficial de 136 pessoas, dentre elas a vítima acima destacada (VIRGÍLIO GOMES DA SILVA - também chamado de 'JONAS' ou 'BORGES')".

Observo que a denúncia é clara e preenche os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal, além de haver elementos iniciais que revelam a existência de lastro probatório mínimo.

Discute-se a incidência, no caso concreto, das disposições do art. 1º da Lei 6.683/79, conhecida como Lei da Anistia, cujo texto transcrevo:


"Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal."

Parte-se da premissa de que não se pode, hodiernamente, controverter acerca da recepção, com plena normatividade, das disposições da Lei nº 6.683/79 e da Emenda Constitucional nº 26/85 (emenda ao texto constitucional de 1967), no que tange à anistia de todos os crimes abarcados pela extensão material e temporal de suas disposições. Isso porque o tema foi objeto de expresso pronunciamento do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, relator o Ministro Eros Grau. No julgado, firmou-se, com efeito vinculante, a decisão de que os precitados enunciados veiculadores de anistia a agentes estatais e combatentes contrários ao regime instaurado em 1964 foram recepcionados pela Ordem Constitucional inaugurada em 05 de outubro de 1988.


Transcrevo a ementa do precedente da Suprema Corte:


LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE. 1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida. 2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera. 3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. 4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. 5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. 6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. 7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia. 8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. 9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988. 10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura.

Como fica claro a partir da leitura do extrato do aresto, foi assentada a plena validade da Lei nº 6.683/79 e de suas disposições. Posto isso, analiso o ato normativo em questão e sua aplicação ao contexto concreto.


Tem-se, na Lei nº 6.683/79, texto normativo cujo sentido efetivo é indissociável de um contexto histórico extremamente grave e específico, que a ele se incorpora inclusive para fins de verificação de seu efetivo conteúdo.


Trata-se, bem se sabe, da chamada "Lei de Anistia", a qual foi anunciada como medida para o perdão e a exclusão, para efeitos penais, de todos os atos políticos ou "conexos" (entendida essa expressão em sentido amplo e pouco técnico, no sentido de "relacionados"), no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 - ou seja, dos dias que antecederam a posse do Presidente João Goulart até o período imediatamente anterior à promulgação da própria Anistia, compreendendo mais de quinze anos do regime de exceção, além do período anterior já referido.


A intenção, conforme expresso pelos atores políticos e sociais envolvidos em sua promulgação, era conferir anistia "ampla, geral e irrestrita", formulação abrangente que foi tema de franca defesa por entidades e setores da sociedade. Embora houvesse, e ainda possa haver, controvérsia política sobre a correção de se estender os efeitos de anistia a todos os atos, inclusive os praticados por membros do aparato repressivo do Estado brasileiro de então, é patente que foi essa a opção legislativa ao se dar a ampla abrangência que se vê no texto do art. 1º da Lei nº 6.683/79.


Cuida-se de opção política, vertida em comando jurídico (de validade indiscutível, ante o decidido na ADPF 153), e que traduz um processo de passagem de ordens jurídicas e regimes, processo este em que se optou pelo caminho da concórdia, da negociação e da continuidade das instituições. Não me refiro, obviamente, a práticas incabíveis ou abomináveis em uma democracia respeitadora de direitos humanos, mas a um arcabouço institucional básico, e a uma solução que se afigurasse possível e aceitável para o maior número de setores da sociedade e do Estado.


Não olvido os questionamentos de ordem histórica acerca do nível de forças política, física e econômica de cada um dos setores envolvidos (em especial do regime que ajudou a patrocinar a lei em questão e seu aparato econômico e armado). Eles, porém, não têm o condão de invalidar ou tirar o valor do núcleo histórico da anistia como processo amplo e negociado. Pensar o inverso implicaria retirar parcela relevante da legitimidade da própria Constituição de 1988, convocada já nos estertores do regime militar, mas ainda sob negociação e etapa de transição das quais participaram ativamente os líderes políticos que comandavam a República (bastando lembrar que senadores conhecido como "biônicos" - porquanto indicados pelo regime - participaram do próprio processo de elaboração da Carta Cidadã). Implicaria, também, desconsiderar a manutenção desse grande pacto conciliatório - ou de despenalização e descriminalização dos crimes políticos e "conexos" do período - mesmo após a mudança do panorama político e do "jogo de forças" depois do implemento da democracia e de alterações diversas no cenário nacional. Implicaria, outrossim, negar o apoio efetivo que diversas entidades da maior relevância e sem qualquer ligação ou interesse conectado ao regime de então conferiram ao conceito de anistia ampla, geral e irrestrita como abarcadora de crimes cometidos por pessoas em todas as condições, dos membros da luta política e armada contra o regime de exceção aos agentes do aparato de repressão patrocinado ou diretamente organizado pelo Estado brasileiro sob o mesmo regime.


Quanto a este último ponto, saliente-se a participação relevante de entidades como o Movimento Feminino pela Anistia, o Comitê Brasileiro de Anistia, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Ordem dos Advogados do Brasil, bem como sindicatos e entidades estudantis. A manifestação formal da Ordem com relação ao tema da aprovação da Lei de Anistia foi realizada mediante a lavra de parecer pelo então Conselheiro José Paulo Sepúlveda Pertence, posteriormente Ministro de brilhante trajetória no Supremo Tribunal Federal e jurista insuspeito de qualquer ligação com forças contrárias à redemocratização ou à implantação de ordenamento respeitador de direitos e pluralista. As severas críticas do parecer não recaíram sobre a extensão positiva da anistia, mas sobre as manobras do governo de então para limitá-la em certos aspectos, como se nota na redação original dos artigos 2º e 3º da Lei 6.683/79, e do art. 1º, § 2º, do mesmo estatuto. Apontou o relator do parecer a inconsistência de se excluírem determinadas categorias da anistia, seja ante o caráter objetivo que esta deveria ter, seja diante de seus objetivos maiores, bem como por se tratarem (as limitações) de tentativa de discriminar jovens que se insurgiram no auge das práticas bárbaras impostas pelo aparato estatal do final da década de 1960 e início da década de 1970.


Cito parágrafos do parecer de Pertence, aprovado pelo Conselho Federal da Ordem sob a presidência de Seabra Fagundes, que tornam clara a leitura tida já à época quanto à abrangência que teria e deveria ter a anistia:


"Ora, não há objeção retórica que possa obscurecer que a amplitude, com a qual o mencionado § 1º definiu, como conexos nos crimes políticas, os crimes de qualquer natureza com eles relacionados, tem o único sentido de prodigalizar a anistia aos homicídios, violências e arbitrariedades policiais de toda a sorte, perpetrados nos desvãos da repressão política.
Aliás, não é sem propósito indagar se não será a preocupação de anistiar as violências do regime o que explica que, do benefício, se tenham excluído apenas os já condenados pelos crimes de oposição violenta. Com a relativa liberdade de imprensa que já se alcançou, não há dúvida, como acentua a justificação do projeto, que, se tivessem continuidade, os processos contra os não condenados iriam "traumatizar a sociedade com o conhecimento de eventos que devem ser sepultados em nome da paz": entre eles, em primeiro lugar, os relativos à institucionalização da tortura aos presos políticos.
[...]
Nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia.
De outro lado, de tal modo a violência da repressão política foi tolerada - quando não estimulada, em certos períodos, pelos altos escalões do Poder - que uma eventual persecução penal dos seus executores materiais poderá vir a ganhar certo colorido de farisaísmo.
Não é preciso acentuar, de seu turno, que a extensão da anistia aos abusos da repressão terá efeitos meramente penais, não elidindo a responsabilidade civil do Estado, deles decorrentes.
Se assim se chega, no entanto, a impor à sociedade civil a anistia da tortura oficial - em nome do esquecimento do passado para aplainar o caminho do futuro Estado de Direito - não é admissível que o ódio repressivo continue a manter no cárcere umas poucas dezenas de moços, a que a insensatez da luta armada pareceu, em anos de desespero, a única alternativa para a alienação política a que a nação fora reduzida."

Lideranças políticas opositoras do regime militar se expressaram na mesma linha na sessão da Câmara dos Deputados comemorativa do 10º aniversário da Lei de Anistia, em 1989. Deputados como Haroldo Lima, deputado do Partido Comunista do Brasil, preso pelas forças de exceção, saudaram a anistia como conquista histórica no processo de redemocratização do país, havendo críticas às limitações que o governo de então foi capaz de impor ao projeto, mas não à extensão do art. 1º e de seu parágrafo 1º. Nessa senda foram pronunciamentos como os dos deputados Sigmaringa Seixas (do Partido dos Trabalhadores) e Artur da Távola (do Partido da Social Democracia Brasileira). Citem-se, também de maneira exemplificativa, as palavras do deputado socialista José Carlos Sabóia, constantes dos anais da sessão comemorativa em questão (Diário do Congresso Nacional de 31 de agosto de 1989, p. 8.860):


"A Lei da Anistia, resultado da primeira luta política bem-sucedida contra a ditadura de 1964, foi naquele momento a medida institucional de inauguração do processo de transição. "Lento, gradual mas seguro", ou "com firmeza, mas sem açodamento", nas palavras dos Presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo, a Lei da Anistia foi a resposta oficial às pressões organizadas da sociedade civil que se reuniram nos Comitês de Anistia. Naquele momento, com quinze anos de total ausência de direitos políticos e de cidadania democrática, as pressões pela mudança do regime teriam de ser canalizadas de algum modo. A anistia galvanizava todas as discussões no País como condição primeira de estabelecimento do Estado de Direito. O restabelecimento do império da lei era reivindicação unânime de todas as correntes ideológicas.
'Desarmamento dos espíritos', estes eram os termos usados para o que se dizia ser uma concessão. Não foi uma concessão: a anistia foi a primeira conquista do mais longo processo de transição política já visto no País."

Por fim, lembro que Jânio de Freitas, expoente do jornalismo brasileiro e profissional sem qualquer relação com o regime de exceção, saudou o 10º aniversário da Lei de Anistia em texto de refinada pena no qual destaca, inclusive, a importância do general João Baptista Figueiredo para que a corrente militar favorável à concessão de uma anistia ampla saísse vitoriosa no interior do próprio regime, o que, somado à intensa luta da sociedade civil, gerou o projeto de lei que resultou na Lei de Anistia.


Faço apanhado histórico que, diante da complexidade do tema, é extremamente breve e auxiliado por exemplos de manifestações de atores relevantes - todos contrários ao regime militar - acerca da natureza da anistia e de sua conformação.


A Lei de Anistia, por tudo que expus e pelo contexto histórico de conhecimento geral, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade, traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970.


Reitero: pode haver controvérsia teórica ou política acerca de ter sido a melhor das soluções para a Nação; não, todavia, de ter sido essa a solução concertada, aprovada e incorporada ao ordenamento brasileiro, não cabendo ao Poder Judiciário ou a outros órgãos não legislativos excluir ou desconsiderar aquilo que um enunciado normativo de claro caráter amplo e geral, abarcador das mais diversas situações criminosas praticadas no contexto da defesa da ditadura ou do combate a ela, impõe. É esse o sentido histórico e teleológico atribuíveis ao comando descriminalizador do art. 1º, caput e § 1º, da Lei nº 6.683/79.


É tal, igualmente, o sentido dado pela Suprema Corte às disposições da Lei de Anistia, no já referido julgado com efeitos erga omnes e eficácia vinculante, nos termos do art. 102, §§ 1º e 2º, da Constituição da República. Diga-se, ainda em termos gerais, ser cristalino que a Lei de Anistia se volta inclusive para o "esquecimento" - exclusivamente do ponto de vista penal, esclareça-se - de fatos gravíssimos, praticados em um contexto de repressão generalizada às dissidências populares, artísticas e políticas ao regime militar. A simples observação dos itens 3 e 4 da ementa transcrita acima são didáticos a respeito.


De resto, é evidente que um dos escopos da anistia em questão foi assentar a impossibilidade de persecução penal dos fatos típicos praticados por tais agentes no precitado contexto. Hipótese contrária não apenas ignoraria todos os registros e aspectos históricos da época (a exemplos dos trazidos supra), como também a própria moldura semântica da Lei nº 6.683/79, que claramente não traz em si limitação no que se refere a graves crimes praticados por agentes do aparato repressor de Estado. Nesse sentido, creio que o vocábulo "todos" (Lei nº 6.683/79, art. 1º, caput), limitado apenas pelas exceções do art. 1º, § 2º, do estatuto em questão, seja autoexplicativo em sua abrangente literalidade.


Portanto, estando bem fixado que o Supremo Tribunal Federal inequivocamente assentou a validade da Lei de Anistia e a impossibilidade de revisitar em termos jurídico-penais os atos por ela abarcados, analiso se a denúncia traduz hipótese concreta dessa natureza.


A leitura da preambular acusatória torna certo que se trata de imputação de prática de crimes cometidos com razão política em um contexto de repressão geral às dissidências ao regime ditatorial. Os acusados teriam assassinado, em ato de terrorismo de Estado, a vítima Virgílio Gomes da Silva, "por motivo torpe, com o emprego de tortura e por meio de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido" (fl. 937v). O homicídio teria ocorrido em 29 de setembro de 1969. O motivo torpe seria a "busca pela preservação do poder usurpado em 1964, mediante violência e uso do aparato estatal para reprimir e eliminar opositores do regime e garantir a impunidade dos autores de homicídios, torturas, sequestros e ocultações de cadáver" (fl. 937v). A narrativa ministerial é de clareza solar: imputa-se aos denunciados prática de crime grave tendo por contexto o próprio exercício da repressão ilegal a pretexto de combater divergências subversivas. Trata-se, pois, da parcela de agentes públicos anistiados em suas práticas originalmente típicas, anistia essa decorrente da Lei nº 6.683/79.


Desse modo, e inexistindo na denúncia atos que não estejam abarcados pelas disposições da Lei nº 6.683/79, deve ser negado provimento ao recurso em sentido estrito do Ministério Público Federal, rejeitando o recebimento da denúncia, nos termos da decisão de primeiro grau.


Por fim, anoto que julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca de crimes permanentes em tese cometidos por agentes da repressão no Brasil no período da ditadura militar não poderia se sobrepor a uma disposição legal que retira o caráter criminoso dos fatos e que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como integralmente recepcionada pela atual ordem constitucional pátria.


Ante o exposto, conheço do recurso em sentido estrito e, no mérito, nego-lhe provimento.


É como voto.


JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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