D.E. Publicado em 16/08/2019 |
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EMENTA
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar provimento ao Recurso em Sentido Estrito do Ministério Público Federal, para determinar o retorno dos autos à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, a fim de que promova o regular prosseguimento do feito, nos termos do relatório e voto do Desembargador Federal Relator que ficam fazendo parte integrante do presente julgado, com quem votou o Desembargador Federal Paulo Fontes.
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RELATÓRIO
O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:
Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto em face da decisão proferida às fls. 184/185 pelo Exmo. Juiz Federal Edevaldo de Medeiros (1ª Vara Federal de Itapeva/SP), atinente à competência para processar e julgar os fatos apurados nos autos sob epígrafe, nos quais SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA foram denunciados como incursos nas penas do art. 171, § 3º, do Código Penal, por supostamente terem praticado estelionato contra a Caixa Econômica Federal no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida (fls. 171/183).
A decisão recorrida declinou da competência em favor de uma das Varas Especializadas em crime contra o Sistema Financeiro Nacional porquanto os fatos narrados constituiriam, em tese, o delito insculpido no art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986.
Nas razões recursais (fls. 187/202), o Ministério Público Federal sustenta, em breve síntese, que o emprego de expediente fraudulento para encaixar-se nas condições do programa Minha Casa, Minha Vida objetivando induzir e manter em erro a Caixa Econômica Federal caracteriza estelionato para obtenção de benefício social indevido, não se dirigindo a atingir a higidez do sistema financeiro nacional.
As contrarrazões foram apresentadas (fls. 210/211).
A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do Recurso em Sentido Estrito (fls. 219/220-v).
Dispensada a revisão.
É o relatório.
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VOTO
O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:
Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto em face da decisão que declinou da competência em favor de uma das Varas Especializadas em crime contra o Sistema Financeiro Nacional porquanto os fatos narrados constituiriam, em tese, o delito insculpido no art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986.
Nas razões recursais (fls. 187/202), o Ministério Público Federal sustenta, em breve síntese, que o emprego de expediente fraudulento para encaixar-se nas condições do programa Minha Casa, Minha Vida objetivando induzir e manter em erro a Caixa Econômica Federal caracteriza estelionato para obtenção de benefício social indevido, não se dirigindo a atingir a higidez do sistema financeiro nacional.
Com efeito, a denúncia ofertada às fls. 171/183 imputa a SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA o cometimento do delito insculpido no art. 171, § 3º, do Código Penal, por supostamente terem praticado estelionato contra a Caixa Econômica Federal no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida, ao prestarem declarações falsas no cadastramento de beneficiários do amparo assistencial, afirmando não possuírem vínculos de trabalho urbano para obter o financiamento imobiliário subsidiado.
DA POSSIBILIDADE DE CAPITULAÇÃO JURÍDICA DO FATO AB INITIO LITIS PARA O FIM DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA
A fim de se evitar que a inadequada subsunção típica macule a competência do órgão jurisdicional para o conhecimento e para o julgamento da questão trazida à baila, necessário, para tal consecução (fixação da competência), adentrar na análise concernente ao correto enquadramento jurídico do fato narrado nos autos. Nesse sentido:
Com efeito, trata-se de hipótese na qual, excepcionalmente, mostra-se possível ao julgador imiscuir-se na capitulação do delito antes mesmo do momento sentencial, em especial quando a reclassificação implicar em alteração da competência do órgão julgador.
Portanto, plenamente possível aferir a definição jurídica dos fatos constantes da denúncia neste momento para o fim de delimitação da competência do órgão jurisdicional que deverá prosseguir à frente de tal expediente.
DA OBJETIVIDADE JURÍDICA INERENTE AO DELITO DE OBTENÇÃO DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO MEDIANTE FRAUDE A PROGRAMA ASSISTENCIAL
Definir a competência para o deslinde da causa subjacente perpassa pelo enfrentamento do concurso aparente de leis a incidir sobre o mesmo fato, de um lado o estelionato (art. 171, § 3º, do CP) e de outro a fraude na obtenção de financiamento (art. 19 da Lei nº 7.492/1986).
Com efeito, o tipo penal invocado pela decisão recorrida como adequado aos fatos ora retratados (art. 19 da Lei nº 7.492/1986) criminaliza a conduta de obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira, o que, de fato, importaria na atribuição da competência para processar e julgar o feito a uma das varas especializadas no combate a delitos financeiros. Contudo, não deve escapar ao exame da controvérsia a circunstância de que a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1996) direciona-se a tutelar a credibilidade e a proteção do próprio Sistema Financeiro, a proteção do investidor e do mercado, imprimindo especial objetividade jurídica aos delitos nela tipificados - objetividade jurídica largamente reconhecida pela jurisprudência dos Tribunais Superiores (a exemplo do RESP - RECURSO ESPECIAL - 706871 2004.01.69368-0, CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA: 02/08/2010).
Vale relembrar, nesse sentido, o quanto afirmado pelo Min. Ayres Brito no julgamento da Ação Penal nº 470/STF: A objetividade jurídica do crime contra o sistema financeiro nacional é a credibilidade das instituições financeiras. No mesmo sentido o STJ: A Lei 7.492/1996 busca a preservação das instituições públicas e privadas que compõe o sistema financeiro, de modo a viabilizar a transparência, a licitude, a boa-fé, a segurança e a veracidade que devem reger as relações entre estas e aplicadores, poupadores, segurados e consorciados. O objeto jurídico tutelado é a garantia da solvência das instituições e a credibilidade dos agentes do sistema (CC 91.162/SP, 3ª Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves, v.u., DJ 02.09.2009).
Inclusive, deve-se ter presente que a própria introdução legislativa de um diploma normativo destinado a combater a criminalidade econômica dirigida contra o Sistema Financeiro Nacional cumpre o escopo de adequar o aparato judicial à complexidade e à especificidade dos crimes de colarinho branco, justificando um tratamento específico da ordem jurídica penal, conforme visualizam Jorge de Figueiredo Dias e Costa Andrade:
Na linha do entendimento ora exposto, a consideração de que todo e qualquer financiamento fraudulento ensejaria o comprometimento do Sistema Financeiro Nacional consagraria interpretação legislativa desarrazoada e extrema da definição da competência da Vara Especializada, mostrando-se pertinente a ponderação de que espécie de fraude estaria a Lei nº 7.492/1986 de fato abarcando.
No sentido de detectar que o tipo penal do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 resguarda o Sistema Financeiro Nacional, interesse supra individual, e não simples interesse patrimonial da instituição financeira, vale atentar para os ensinamentos de Rodolfo Tigre Maia ao sustentar que:
A este respeito, inclusive, em recente pronunciamento da 4ª Seção deste Eg. Tribunal Regional Federal da 3ª Região na sede de conflito negativo de competência entre Vara Federal Comum e Vara Federal Especializada no Combate a Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, esta Corte estabeleceu o entendimento, por unanimidade, de que deve existir, no contexto da prática delitiva, risco sistêmico para que o julgamento da fraude na obtenção de financiamento seja de competência da Vara Especializada:
Sob a ótica ora retratada, a caracterização do crime contra o sistema financeiro nacional não dependeria exclusivamente da qualidade de um dos sujeitos da relação negocial, ou seja, inserir-se no rol das instituições financeiras ou a estas equiparadas (art. 1º da Lei nº 7.492/1986), mas ograu de impacto e a relevância da fraude frente ao Sistema Financeiro Nacional.
A simples obtenção de financiamento de maneira fraudulenta não possui a qualidade intrínseca de lesar ou abalar o Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade, uma vez que a concessão do crédito encontra-se normalmente balizada pelo risco calculado, digerido pelo mercado e pouco consistente. Não lhe é inerente sequer o risco potencial a ele.
Consequentemente, revela-se essencial aferir se o financiamento obtido fraudulentamente possui a qualidade extraordinária de promover orquestração relevante, representando uma ameaça à ordem e a segurança do mercado financeiro, de modo que não haveria a perfeita subsunção dos fatos à norma do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 quando o financiamento perante instituição financeira não se traduzir em uma orquestração hábil a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional.
Adentrando ao caso dos autos, não se vislumbra dos fatos narrados na denúncia referida a necessária e efetiva mácula ao Sistema Financeiro Nacional a ensejar o reconhecimento da competência de Vara Especializada em combate a crime contra o Sistema Financeiro Nacional na justa medida em que o crédito tomado da Caixa Econômica Federal - CEF, ainda que no bojo do programa Minha Casa, Minha Vida, não possui o condão de sequer minimamente chacoalhar as bases de nosso Sistema Financeiro, além de, importante frisar, a denúncia não descrever nenhuma circunstância fática apreciável sob este aspecto, razão pela qual cinge-se o caso a um estelionato comum praticado contra a Caixa, nos termos do art. 171, § 3º, do Código Penal.
Nada obstante os argumentos acima considerados, que já bastariam para o afastamento da competência da Vara Especializada para processar e julgar a obtenção fraudulenta de financiamento imobiliário pelo programa Minha Casa, Minha Vida por quem não preencha os requisitos legais, há ainda outros fundamentos que implicam na caracterização como estelionato em detrimento de sua tipificação como obtenção fraudulenta de financiamento contra o Sistema Financeiro Nacional.
Análise do elemento subjetivo na definição do tipo penal
A avaliação do dolo do agente (compreensível pela narrativa fática descrita na denúncia, sem adentrar ao mérito da causa ou à verificação de sua ocorrência in casu), enquanto elemento estruturante do tipo penal, também contribui solidamente para alicerçar a conclusão de que o caso reclama a incidência, em tese, do delito insculpido no 171, § 3º, do Código Penal.
O dolo do agente que, passando-se por pessoa necessitada, obtém acesso indevido ao financiamento habitacional pelo programa Minha Casa, Minha Vida, seja por sua condição social, como pelos valores envolvidos e ainda pela baixa complexidade do artifício ou ardil, contrasta enormemente com o elemento subjetivo característico dos crimes de colarinho branco comumente verificados na esfera de proteção do bem jurídico tutelado pela Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, não se fazendo presente qualquer intenção de atentar contra a integridade e credibilidade dos agentes ou das instituições do sistema. Diversamente, resta visível que sobressai da conduta narrada na denúncia tão somente a suposta vontade de burlar as regras de concessão de benefício assistencial.
Além das notas distintivas declinadas acima, a presença do prejuízo ao erário com a destinação de recursos para indivíduo que não faria jus ao amparo assistencial de moradia vem a ser mais uma característica que torna claro o enquadramento dos fatos sob exame à tipificação legal do estelionato comum.
Com efeito, a obtenção de financiamento mediante fraude é crime nitidamente formal (v. RESP - RECURSO ESPECIAL - 706871 2004.01.69368-0, CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA:02/08/2010), cuja configuração não pressupõe um resultado lesivo economicamente apreciável (comportaria, inclusive, um resultado benéfico para o mutuário e também a própria instituição concedente do empréstimo, mas que atentasse fraudulentamente contra o sistema financeiro), podendo atingir a confiabilidade no sistema (valor imaterial). Por outro lado, o estelionato é crime material, exigindo o resultado lesivo economicamente visível como elemento integrante do tipo.
No caso, sonegar informação relevante para enquadrar-se nos requisitos legais de acesso ao programa assistencial Minha Casa, Minha Vida, ocasiona um prejuízo concreto no tocante ao direcionamento dos recursos públicos para atender à população que realmente necessitaria do benefício, subtraindo do poder público a capacidade de atender outra pessoa no lugar do agente fraudador.
Inclusive, nos moldes em que o programa assistencial é estruturado, o beneficiário pode ser contemplado não apenas com taxas de juros privilegiadas, mas também com subvenções governamentais, obtendo parte dos recursos empregados na aquisição do imóvel disponibilizados diretamente pelo governo.
O aspecto de haver a imputação de um prejuízo concreto é relevantíssimo, mostrando-se determinante para o enquadramento da conduta denunciada nos termos do art. 171, § 3º, do Código Penal.
Consequentemente, a competência para processar e julgar a presente causa recai sob a jurisdição criminal comum do juízo federal de 1º grau, devendo os autos retornarem à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, para o regular prosseguimento do feito.
DISPOSITIVO
Ante o exposto, voto por DAR PROVIMENTO ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal, para determinar o retorno dos autos à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, a fim de que promova o regular prosseguimento do feito, nos termos anteriormente expendidos.
Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por: | |
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Data e Hora: | 09/08/2019 14:16:29 |