Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 16/08/2019
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0000229-21.2018.4.03.6139/SP
2018.61.39.000229-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA
: VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA
ADVOGADO : SP280026 LEVI VIEIRA LEITE e outro(a)
No. ORIG. : 00002292120184036139 1 Vr ITAPEVA/SP

EMENTA

PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. SUPOSTA PRÁTICA DE ESTELIONATO MEDIANTE FRAUDE REFERENTE AO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO PROGRAMA MINHA CASA, MINHA VIDA. CONDUTA INERENTE AO DELITO PREVISTO NO ART. 171, § 3º, DO CÓDIGO PENAL. NÃO CONSTATAÇÃO DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO PELA LEI DOS CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL (ART. 19 DA LEI Nº 7.492/1986). INEXISTÊNCIA DE IMPUTAÇÃO DE DOLO DIRIGIDO CONTRA A INTEGFRIDADE DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. IMPUTAÇÃO DE PREJUÍZO CONCRETO PARA O ERÁRIO, NÃO EXIGIDO PELO ART. 19 DA MENCIONADA LEI ESPECIAL. COMPETÊNCIA DE VARA CRIMINAL COMUM.
01. Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto em face da decisão que declinou da competência em favor de uma das Varas Especializadas em crime contra o Sistema Financeiro Nacional porquanto os fatos narrados constituiriam, em tese, o delito insculpido no art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986.
02. Denúncia que imputa o cometimento do delito insculpido no art. 171, § 3º, do Código Penal, pela suposta prática de estelionato contra a Caixa Econômica Federal no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida, ao prestarem, os denunciados, declarações falsas no cadastramento de beneficiários do amparo assistencial, afirmando não possuírem vínculos de trabalho urbano para obter o financiamento imobiliário subsidiado.
03. A fim de se evitar que a inadequada subsunção típica macule a competência do órgão jurisdicional para o conhecimento e para o julgamento da questão trazida à baila, necessário, para tal consecução (fixação da competência), adentrar na análise concernente ao correto enquadramento jurídico do fato narrado nos autos.
04. Definir a competência para o deslinde da causa subjacente perpassa pelo enfrentamento do concurso aparente de leis a incidir sobre o mesmo fato, de um lado o estelionato (art. 171, § 3º, do CP) e de outro a fraude na obtenção de financiamento (art. 19 da Lei nº 7.492/1986), não devendo escapar ao exame da controvérsia a circunstância de que a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional direciona-se a tutelar a credibilidade e a proteção do próprio Sistema Financeiro, a proteção do investidor e do mercado, imprimindo especial objetividade jurídica aos delitos nela tipificados, no cumprimento do escopo de adequar o aparato judicial à complexidade e à especificidade dos crimes de colarinho branco.
05. Na linha do entendimento ora exposto, a consideração de que todo e qualquer financiamento fraudulento ensejaria o comprometimento do Sistema Financeiro Nacional consagraria interpretação legislativa desarrazoada e extrema da definição da competência da Vara Especializada, mostrando-se pertinente a ponderação de que espécie de fraude estaria a Lei nº 7.492/1986 de fato abarcando, haja vista que o art. 19 da Lei nº 7.492/1986 resguarda interesse supra individual, e não simples interesse patrimonial da instituição financeira.
06. Consequentemente, revela-se essencial aferir se o financiamento obtido fraudulentamente possui a qualidade extraordinária de promover orquestração relevante, representando uma ameaça à ordem e a segurança do mercado financeiro, de modo que não haveria a perfeita subsunção dos fatos à norma do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 quando o financiamento perante instituição financeira não se traduzir em uma orquestração hábil a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional (conforme recentemente decidido por unanimidade por esta Eg. Corte: CJ - CONFLITO DE JURISDIÇÃO - 21621 0000441-29.2018.4.03.0000, DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS, TRF3 - QUARTA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:28/02/2019).
07. Adentrando ao caso dos autos, não se vislumbra dos fatos narrados na denúncia referida a necessária e efetiva mácula ao Sistema Financeiro Nacional a ensejar o reconhecimento da competência de Vara Especializada em combate a crime contra o Sistema Financeiro Nacional na justa medida em que o crédito tomado da Caixa Econômica Federal - CEF, ainda que no bojo do programa Minha Casa, Minha Vida, não possui o condão de sequer minimamente chacoalhar as bases de nosso Sistema Financeiro, além de, importante frisar, a denúncia não descrever nenhuma circunstância fática apreciável sob este aspecto, razão pela qual cinge-se o caso a um estelionato comum praticado contra a Caixa, nos termos do art. 171, § 3º, do Código Penal.
08. Além disto, o dolo do agente que, passando-se por pessoa necessitada, obtém acesso indevido ao financiamento habitacional pelo programa Minha Casa, Minha Vida, seja por sua condição social, como pelos valores envolvidos e ainda pela baixa complexidade do artifício ou ardil, contrasta enormemente com o elemento subjetivo característico dos crimes de colarinho branco comumente verificados na esfera de proteção do bem jurídico tutelado pela Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, não se fazendo presente qualquer intenção de atentar contra a integridade e credibilidade dos agentes ou das instituições do sistema. Diversamente, resta visível que sobressai da conduta narrada na denúncia tão somente a suposta vontade de burlar as regras de concessão de benefício assistencial.
09. Além das notas distintivas declinadas acima, a presença do prejuízo ao erário enquanto resultado economicamente visível, com a destinação de recursos para indivíduo que não faria jus ao amparo assistencial de moradia, vem a ser mais uma característica que torna claro o enquadramento dos fatos sob exame à tipificação legal do estelionato comum, pois a obtenção de financiamento mediante fraude é considerada crime formal, não pressupondo o resultado lesivo, eis que busca proteger a confiabilidade do sistema (valor imaterial).
10. A sonegação informação relevante para enquadrar-se nos requisitos legais de acesso ao programa assistencial Minha Casa, Minha Vida, ocasiona um prejuízo concreto no tocante ao direcionamento dos recursos públicos para atender à população que realmente necessitaria do benefício, subtraindo do poder público a capacidade de atender outra pessoa no lugar do agente fraudador. Inclusive, nos moldes em que o programa assistencial é estruturado, o beneficiário pode ser contemplado não apenas com taxas de juros privilegiadas, mas também com subvenções governamentais, obtendo parte dos recursos empregados na aquisição do imóvel disponibilizados diretamente pelo governo, de sorte que o aspecto de haver a imputação de um prejuízo concreto é relevantíssimo, mostrando-se determinante para o enquadramento da conduta denunciada nos termos do art. 171, § 3º, do Código Penal.
11. Consequentemente ao exposto, a competência para processar e julgar a presente causa recai sob a jurisdição criminal comum do juízo federal de 1º grau, devendo os autos retornarem à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, para o regular prosseguimento do feito.
12. Recurso em Sentido Estrito provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar provimento ao Recurso em Sentido Estrito do Ministério Público Federal, para determinar o retorno dos autos à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, a fim de que promova o regular prosseguimento do feito, nos termos do relatório e voto do Desembargador Federal Relator que ficam fazendo parte integrante do presente julgado, com quem votou o Desembargador Federal Paulo Fontes.


São Paulo, 08 de agosto de 2019.
FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): FAUSTO MARTIN DE SANCTIS:10066
Nº de Série do Certificado: 11A217042046CDD3
Data e Hora: 09/08/2019 14:16:32



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0000229-21.2018.4.03.6139/SP
2018.61.39.000229-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA
: VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA
ADVOGADO : SP280026 LEVI VIEIRA LEITE e outro(a)
No. ORIG. : 00002292120184036139 1 Vr ITAPEVA/SP

RELATÓRIO

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto em face da decisão proferida às fls. 184/185 pelo Exmo. Juiz Federal Edevaldo de Medeiros (1ª Vara Federal de Itapeva/SP), atinente à competência para processar e julgar os fatos apurados nos autos sob epígrafe, nos quais SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA foram denunciados como incursos nas penas do art. 171, § 3º, do Código Penal, por supostamente terem praticado estelionato contra a Caixa Econômica Federal no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida (fls. 171/183).

A decisão recorrida declinou da competência em favor de uma das Varas Especializadas em crime contra o Sistema Financeiro Nacional porquanto os fatos narrados constituiriam, em tese, o delito insculpido no art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986.

Nas razões recursais (fls. 187/202), o Ministério Público Federal sustenta, em breve síntese, que o emprego de expediente fraudulento para encaixar-se nas condições do programa Minha Casa, Minha Vida objetivando induzir e manter em erro a Caixa Econômica Federal caracteriza estelionato para obtenção de benefício social indevido, não se dirigindo a atingir a higidez do sistema financeiro nacional.

As contrarrazões foram apresentadas (fls. 210/211).

A Procuradoria Regional da República opinou pelo provimento do Recurso em Sentido Estrito (fls. 219/220-v).

Dispensada a revisão.

É o relatório.

FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): FAUSTO MARTIN DE SANCTIS:10066
Nº de Série do Certificado: 11A217042046CDD3
Data e Hora: 09/08/2019 14:16:26



RECURSO EM SENTIDO ESTRITO Nº 0000229-21.2018.4.03.6139/SP
2018.61.39.000229-4/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
RECORRENTE : Justica Publica
RECORRIDO(A) : SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA
: VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA
ADVOGADO : SP280026 LEVI VIEIRA LEITE e outro(a)
No. ORIG. : 00002292120184036139 1 Vr ITAPEVA/SP

VOTO

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

Trata-se de Recurso em Sentido Estrito interposto em face da decisão que declinou da competência em favor de uma das Varas Especializadas em crime contra o Sistema Financeiro Nacional porquanto os fatos narrados constituiriam, em tese, o delito insculpido no art. 19, parágrafo único, da Lei nº 7.492/1986.

Nas razões recursais (fls. 187/202), o Ministério Público Federal sustenta, em breve síntese, que o emprego de expediente fraudulento para encaixar-se nas condições do programa Minha Casa, Minha Vida objetivando induzir e manter em erro a Caixa Econômica Federal caracteriza estelionato para obtenção de benefício social indevido, não se dirigindo a atingir a higidez do sistema financeiro nacional.

Com efeito, a denúncia ofertada às fls. 171/183 imputa a SILVANA APARECIDA DE CARVALHO ALMEIDA e VALDECIR FRANCISCO DE ALMEIDA o cometimento do delito insculpido no art. 171, § 3º, do Código Penal, por supostamente terem praticado estelionato contra a Caixa Econômica Federal no âmbito do programa Minha Casa, Minha Vida, ao prestarem declarações falsas no cadastramento de beneficiários do amparo assistencial, afirmando não possuírem vínculos de trabalho urbano para obter o financiamento imobiliário subsidiado.

DA POSSIBILIDADE DE CAPITULAÇÃO JURÍDICA DO FATO AB INITIO LITIS PARA O FIM DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA

A fim de se evitar que a inadequada subsunção típica macule a competência do órgão jurisdicional para o conhecimento e para o julgamento da questão trazida à baila, necessário, para tal consecução (fixação da competência), adentrar na análise concernente ao correto enquadramento jurídico do fato narrado nos autos. Nesse sentido:

PROCESSUAL PENAL E PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL, ORDINÁRIO OU DE REVISÃO CRIMINAL. EMENDATIO LIBELLI. DIREITOS PROCESSUAIS OU MATERIAIS. TEMAS DE ORDEM PÚBLICA. DECISÃO POSSÍVEL EM QUALQUER FASE DO PROCESSO. FUNDAMENTAÇÃO COM EXAME DA CORRETA ADEQUAÇÃO TÍPICA. LEGALIDADE. ANULAÇÃO DA DECISÃO FAVORÁVEL À DEFESA SEM RECURSO ACUSATÓRIO. REFORMATIO IN PEJUS. OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO (...) 2. Se a aplicação do direito aos fatos denunciados dá-se em regra pela sentença, mantendo ou não a tipificação indicada pela inicial acusatória - arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal -, o reconhecimento de incontroversos direitos processuais ou materiais, caracterizados como temas de ordem pública, pode dar-se em qualquer fase do processo, inclusive com fundamentação então necessária de correto enquadramento típico. 3. Nada impede possa o magistrado, mesmo antes da sentença condenatória, evitando a mora e os efeitos de indevida persecução criminal, reconhecer desde logo clara incompetência, prescrição, falta de justa causa, direitos de transação, sursis processual, ou temas outros de ordem pública, relevantes, certos e urgentes (...) (STJ, HC 241.206/SP, Rel. Min. NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 11/12/2014)

Com efeito, trata-se de hipótese na qual, excepcionalmente, mostra-se possível ao julgador imiscuir-se na capitulação do delito antes mesmo do momento sentencial, em especial quando a reclassificação implicar em alteração da competência do órgão julgador.

Portanto, plenamente possível aferir a definição jurídica dos fatos constantes da denúncia neste momento para o fim de delimitação da competência do órgão jurisdicional que deverá prosseguir à frente de tal expediente.

DA OBJETIVIDADE JURÍDICA INERENTE AO DELITO DE OBTENÇÃO DE FINANCIAMENTO IMOBILIÁRIO MEDIANTE FRAUDE A PROGRAMA ASSISTENCIAL

Definir a competência para o deslinde da causa subjacente perpassa pelo enfrentamento do concurso aparente de leis a incidir sobre o mesmo fato, de um lado o estelionato (art. 171, § 3º, do CP) e de outro a fraude na obtenção de financiamento (art. 19 da Lei nº 7.492/1986).

Com efeito, o tipo penal invocado pela decisão recorrida como adequado aos fatos ora retratados (art. 19 da Lei nº 7.492/1986) criminaliza a conduta de obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira, o que, de fato, importaria na atribuição da competência para processar e julgar o feito a uma das varas especializadas no combate a delitos financeiros. Contudo, não deve escapar ao exame da controvérsia a circunstância de que a Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492/1996) direciona-se a tutelar a credibilidade e a proteção do próprio Sistema Financeiro, a proteção do investidor e do mercado, imprimindo especial objetividade jurídica aos delitos nela tipificados - objetividade jurídica largamente reconhecida pela jurisprudência dos Tribunais Superiores (a exemplo do RESP - RECURSO ESPECIAL - 706871 2004.01.69368-0, CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA: 02/08/2010).

Vale relembrar, nesse sentido, o quanto afirmado pelo Min. Ayres Brito no julgamento da Ação Penal nº 470/STF: A objetividade jurídica do crime contra o sistema financeiro nacional é a credibilidade das instituições financeiras. No mesmo sentido o STJ: A Lei 7.492/1996 busca a preservação das instituições públicas e privadas que compõe o sistema financeiro, de modo a viabilizar a transparência, a licitude, a boa-fé, a segurança e a veracidade que devem reger as relações entre estas e aplicadores, poupadores, segurados e consorciados. O objeto jurídico tutelado é a garantia da solvência das instituições e a credibilidade dos agentes do sistema (CC 91.162/SP, 3ª Seção, Rel. Min. Arnaldo Esteves, v.u., DJ 02.09.2009).

Inclusive, deve-se ter presente que a própria introdução legislativa de um diploma normativo destinado a combater a criminalidade econômica dirigida contra o Sistema Financeiro Nacional cumpre o escopo de adequar o aparato judicial à complexidade e à especificidade dos crimes de colarinho branco, justificando um tratamento específico da ordem jurídica penal, conforme visualizam Jorge de Figueiredo Dias e Costa Andrade:

Pela dimensão dos danos materiais e morais que provoca, pela sua capacidade de adaptação e sobrevivência às mutações sociais e políticas, pela sua aptidão para criar defesas frustrando as formas de luta que lhe são dirigidas, a criminalidade econômica é uma ameaça séria a minar os alicerces de qualquer sociedade organizada. Daí que a invenção de formas eficazes de luta seja hoje preocupação das instâncias governativas, judiciais, policiais etc. de todos os países (DIAS, Jorge Figueiredo e COSTA ANDRADE, Manuel. Problemática geral das infrações contra a economia nacional. In: Direito Penal económico e europeu: textos doutrinários. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 319-346).

Na linha do entendimento ora exposto, a consideração de que todo e qualquer financiamento fraudulento ensejaria o comprometimento do Sistema Financeiro Nacional consagraria interpretação legislativa desarrazoada e extrema da definição da competência da Vara Especializada, mostrando-se pertinente a ponderação de que espécie de fraude estaria a Lei nº 7.492/1986 de fato abarcando.

No sentido de detectar que o tipo penal do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 resguarda o Sistema Financeiro Nacional, interesse supra individual, e não simples interesse patrimonial da instituição financeira, vale atentar para os ensinamentos de Rodolfo Tigre Maia ao sustentar que:

"A objetividade jurídica imediata é a proteção dos interesses patrimoniais das instituições integrantes do SFN e, por extensão, de seus investidores, poupadores, acionistas etc. contra lesões potenciais originárias da obtenção fraudulenta de recursos a elas pertencentes e, mediatamente, resguardar o interesse estatal na integridade e manutenção do próprio sistema e dos objetivos socioeconômicos por ele almejados através de suas políticas de fomento". (Dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional - Anotações à Lei Federal n. 7492/1986, São Paulo: Malheiros, 1996. p. 123)

A este respeito, inclusive, em recente pronunciamento da 4ª Seção deste Eg. Tribunal Regional Federal da 3ª Região na sede de conflito negativo de competência entre Vara Federal Comum e Vara Federal Especializada no Combate a Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, esta Corte estabeleceu o entendimento, por unanimidade, de que deve existir, no contexto da prática delitiva, risco sistêmico para que o julgamento da fraude na obtenção de financiamento seja de competência da Vara Especializada:

PROCESSO PENAL. CONFLITO DE JURISDIÇÃO. SUPOSTA PRÁTICA DE CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL A ATRAIR A COMPETÊNCIA DA VARA ESPECIALIZADA (ART. 19 DA LEI Nº 7.492/1986). NÃO CONSTATAÇÃO DE OFENSA EFETIVA E REAL AO BEM JURÍDICO TUTELADO PELA LEI DOS CRIMES DE COLARINHO BRANCO: O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. CONFLITO JULGADO PROCEDENTE DE MOLDE A FIXAR A COMPETÊNCIA DE VARA CRIMINAL COMUM. - A questão discutida no apuratório subjacente (de nº 0002754-63.2018.403.6110) guarda relação em se definir juridicamente, para fins de fixação de competência, se os fatos sob investigação configurariam crime contra o Sistema Financeiro Nacional (a avocar a competência do MM. Juízo da 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP - Vara Especializada no combate a crimes de lavagem e contra o Sistema Financeiro Nacional) ou se mero crime patrimonial tido como estelionato (a ensejar a fixação da competência junto ao MM. Juízo da 2ª Vara Federal de Sorocaba/SP - Vara criminal com competência ampla ou geral). Sem se descurar de outros aspectos de índole iminentemente fática, a análise em tela perpassa pela aferição da objetividade jurídica que se pretende proteger por meio da tipificação de condutas no âmbito da Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986 (que define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional). - Não haveria a perfeita subsunção dos fatos à norma do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 quando há financiamento perante instituição financeira, a despeito de possuir alguma destinação específica e/ou vinculação dos recursos, na hipótese, por exemplo, de inexistir uma orquestração hábil a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional. A interpretação não pode se enveredar por conclusão que apenas leve em conta a distinção entre empréstimo e financiamento e, assim, concluir esta última modalidade como sendo de competência federal jungida à Vara Especializada. - Na verdade, os contratos firmados para financiamento de bem imóvel possuem nítida natureza de contrato de caráter privado, cabendo ao Poder Público, tão-somente, a fiscalização e a adequação normativa, atividade de regulação que visa à proteção e à defesa do consumidor evitando que haja práticas abusivas por parte de instituições bancárias. Inserem-se, portanto, no campo das relações de consumo, o que força as instituições financeiras evitarem a imposição de obrigações excessivamente onerosas, reconhecendo-se a vulnerabilidade do consumidor. Parece que não seria defensável que um mero ato jurídico básico que retrate com fidelidade as relações entre a moeda e o crédito, típico contrato de empréstimo de coisa fungível, ainda que vinculado a um determinado bem, fosse atingir o Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade. Não se vislumbra sequer risco potencial a ele. - O art. 19 da Lei nº 7.492/1986 somente pode possuir efetividade quando a fraude ao contrato de financiamento implicar em orquestração relevante, atingindo ou não mais de uma instituição financeira, ou na hipótese de financiamento de vários bens visando a atividade de fomento mercantil - nestas hipóteses, haveria que se invocar o art. 109, VI (crimes contra o Sistema Financeiro Nacional), da Constituição Federal, porquanto o inciso IV (delitos contra bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas) não há de ter aplicação diante de previsão específica (inciso VI), a culminar na atribuição de tal competência à Vara Especializada no combate de crimes de colarinho branco. - Adentrando ao caso dos autos, não se vislumbra dos fatos narrados no Inquérito Policial nº 0002754-63.2018.403.6110 a necessária e efetiva mácula ao Sistema Financeiro Nacional a ensejar o reconhecimento da competência do MM. Juízo da 10ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP (Vara Especializada em combate a crime contra o Sistema Financeiro Nacional) na justa medida em que o crédito tomado da Caixa Econômica Federal - CEF, ainda que no bojo do Programa Minha Casa, Minha Vida, não possui o condão de sequer minimamente chacoalhar as bases de nosso Sistema Financeiro. Desta feita, por não se verificar ofensa, nem mesmo potencial, ao Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade, porquanto a natureza de tal modalidade de concessão de crédito volta-se exclusivamente ao interesse privado de forma preponderante, risco calculado, digerido pelo mercado e pouco consistente (quantidade e grau de garantias previstas e interveniência de terceiros no controle do preenchimento das condições econômicas devidas), não há que se falar no crime previsto no art. 19 da Lei nº 7.492/1986, porquanto, em verdade, toca e releva apenas a interesses de cunho exclusivamente patrimonial. - Conflito de Jurisdição julgado procedente. Declarado competente o MM. Juízo suscitado (2ª Vara Federal de Sorocaba/SP) para o tramitar do Inquérito Policial nº 0002754-63.2018.403.6110.
(CJ - CONFLITO DE JURISDIÇÃO - 21621 0000441-29.2018.4.03.0000, DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS, TRF3 - QUARTA SEÇÃO, e-DJF3 Judicial 1 DATA:28/02/2019)

Sob a ótica ora retratada, a caracterização do crime contra o sistema financeiro nacional não dependeria exclusivamente da qualidade de um dos sujeitos da relação negocial, ou seja, inserir-se no rol das instituições financeiras ou a estas equiparadas (art. 1º da Lei nº 7.492/1986), mas ograu de impacto e a relevância da fraude frente ao Sistema Financeiro Nacional.

A simples obtenção de financiamento de maneira fraudulenta não possui a qualidade intrínseca de lesar ou abalar o Sistema Financeiro Nacional em sua integralidade, uma vez que a concessão do crédito encontra-se normalmente balizada pelo risco calculado, digerido pelo mercado e pouco consistente. Não lhe é inerente sequer o risco potencial a ele.

Consequentemente, revela-se essencial aferir se o financiamento obtido fraudulentamente possui a qualidade extraordinária de promover orquestração relevante, representando uma ameaça à ordem e a segurança do mercado financeiro, de modo que não haveria a perfeita subsunção dos fatos à norma do art. 19 da Lei nº 7.492/1986 quando o financiamento perante instituição financeira não se traduzir em uma orquestração hábil a abalar a higidez do Sistema Financeiro Nacional.

Adentrando ao caso dos autos, não se vislumbra dos fatos narrados na denúncia referida a necessária e efetiva mácula ao Sistema Financeiro Nacional a ensejar o reconhecimento da competência de Vara Especializada em combate a crime contra o Sistema Financeiro Nacional na justa medida em que o crédito tomado da Caixa Econômica Federal - CEF, ainda que no bojo do programa Minha Casa, Minha Vida, não possui o condão de sequer minimamente chacoalhar as bases de nosso Sistema Financeiro, além de, importante frisar, a denúncia não descrever nenhuma circunstância fática apreciável sob este aspecto, razão pela qual cinge-se o caso a um estelionato comum praticado contra a Caixa, nos termos do art. 171, § 3º, do Código Penal.

Nada obstante os argumentos acima considerados, que já bastariam para o afastamento da competência da Vara Especializada para processar e julgar a obtenção fraudulenta de financiamento imobiliário pelo programa Minha Casa, Minha Vida por quem não preencha os requisitos legais, há ainda outros fundamentos que implicam na caracterização como estelionato em detrimento de sua tipificação como obtenção fraudulenta de financiamento contra o Sistema Financeiro Nacional.

Análise do elemento subjetivo na definição do tipo penal

A avaliação do dolo do agente (compreensível pela narrativa fática descrita na denúncia, sem adentrar ao mérito da causa ou à verificação de sua ocorrência in casu), enquanto elemento estruturante do tipo penal, também contribui solidamente para alicerçar a conclusão de que o caso reclama a incidência, em tese, do delito insculpido no 171, § 3º, do Código Penal.

O dolo do agente que, passando-se por pessoa necessitada, obtém acesso indevido ao financiamento habitacional pelo programa Minha Casa, Minha Vida, seja por sua condição social, como pelos valores envolvidos e ainda pela baixa complexidade do artifício ou ardil, contrasta enormemente com o elemento subjetivo característico dos crimes de colarinho branco comumente verificados na esfera de proteção do bem jurídico tutelado pela Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, não se fazendo presente qualquer intenção de atentar contra a integridade e credibilidade dos agentes ou das instituições do sistema. Diversamente, resta visível que sobressai da conduta narrada na denúncia tão somente a suposta vontade de burlar as regras de concessão de benefício assistencial.

Análise da presença do prejuízo causado na definição do tipo penal

Além das notas distintivas declinadas acima, a presença do prejuízo ao erário com a destinação de recursos para indivíduo que não faria jus ao amparo assistencial de moradia vem a ser mais uma característica que torna claro o enquadramento dos fatos sob exame à tipificação legal do estelionato comum.

Com efeito, a obtenção de financiamento mediante fraude é crime nitidamente formal (v. RESP - RECURSO ESPECIAL - 706871 2004.01.69368-0, CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA:02/08/2010), cuja configuração não pressupõe um resultado lesivo economicamente apreciável (comportaria, inclusive, um resultado benéfico para o mutuário e também a própria instituição concedente do empréstimo, mas que atentasse fraudulentamente contra o sistema financeiro), podendo atingir a confiabilidade no sistema (valor imaterial). Por outro lado, o estelionato é crime material, exigindo o resultado lesivo economicamente visível como elemento integrante do tipo.

No caso, sonegar informação relevante para enquadrar-se nos requisitos legais de acesso ao programa assistencial Minha Casa, Minha Vida, ocasiona um prejuízo concreto no tocante ao direcionamento dos recursos públicos para atender à população que realmente necessitaria do benefício, subtraindo do poder público a capacidade de atender outra pessoa no lugar do agente fraudador.

Inclusive, nos moldes em que o programa assistencial é estruturado, o beneficiário pode ser contemplado não apenas com taxas de juros privilegiadas, mas também com subvenções governamentais, obtendo parte dos recursos empregados na aquisição do imóvel disponibilizados diretamente pelo governo.

O aspecto de haver a imputação de um prejuízo concreto é relevantíssimo, mostrando-se determinante para o enquadramento da conduta denunciada nos termos do art. 171, § 3º, do Código Penal.

Consequentemente, a competência para processar e julgar a presente causa recai sob a jurisdição criminal comum do juízo federal de 1º grau, devendo os autos retornarem à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, para o regular prosseguimento do feito.

DISPOSITIVO

Ante o exposto, voto por DAR PROVIMENTO ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal, para determinar o retorno dos autos à 1ª Vara Federal de Itapeva/SP, a fim de que promova o regular prosseguimento do feito, nos termos anteriormente expendidos.

FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
Signatário (a): FAUSTO MARTIN DE SANCTIS:10066
Nº de Série do Certificado: 11A217042046CDD3
Data e Hora: 09/08/2019 14:16:29