Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0000904-89.2018.4.03.6104/SP
2018.61.04.000904-4/SP
RELATORA : Juíza Federal Convocada LOUISE FILGUEIRAS
APELANTE : Justica Publica
: WESLEY AZEVEDO LIRA reu/ré preso(a)
: WILLIAM AZEVEDO LIRA reu/ré preso(a)
APELADO(A) : Justica Publica
APELADO(A) : WESLEY AZEVEDO LIRA reu/ré preso(a)
ADVOGADO : SP265690 MARCELO HENRIQUE GARCIA RIBEIRO
APELADO(A) : WILLIAM AZEVEDO LIRA reu/ré preso(a)
ADVOGADO : SP265690 MARCELO HENRIQUE GARCIA RIBEIRO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00009048920184036104 5 Vr SANTOS/SP

EMENTA

PENAL. PROCESSUAL PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PORNOGRAFIA INFANTO/JUVENIL. COMPARTILHAMENTO E ARMAZENAMENTO DE ARQUIVOS. PRELIMINARES REJEITADAS. CERCEAMENTO DE DEFESA NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE NULIDADES NA SENTENÇA. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. MÉRITO. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS SUFICIENTEMENTE COMPROVADAS. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO PARA OS DELITOS PREVISTOS NOS ARTIGOS 241-A E 241-B, AMBOS DA LEI N. 8.069/90. DOSIMETRIA. PENA-BASE PARA CRIME DO ARTIGO 241-A DO ECA MANTIDA. PENA-BASE DOS CRIMES DO ARTIGO 240 E 217-A MAJORADAS. CRIMES DOS ARTIGOS 240 E 217-A PRATICADOS EM CONTINUIDADE DELITIVA. APLICAÇÃO DA CONTINUIDADE DELITIVA EM SEU PATAMAR MÁXIMO DE 2/3 (DOIS TERÇOS).
1. Em relação ao direito de recorrer em liberdade, os réus foram presos em flagrante, permanecendo custodiados durante todo o processo, sendo, ao final, condenados, não tendo havido mudança do quadro fático descrito na sentença a ensejar a alteração de sua situação prisional, nos termos do artigo 387, § 1º, do Código de Processo Penal.
2. Ausência de nulidade dos depoimentos das vítimas e testemunhas arroladas pela acusação em razão de terem sido convidadas a ler os depoimentos que prestaram à autoridade policial. A norma processual penal (cf. artigo 204 do CP) não proíbe a leitura de depoimento prestado em sede policial, somente a apresentação pela testemunha de um depoimento por escrito, previamente elaborado.
3. Cerceamento de defesa não configurado, uma vez que cabe ao magistrado, na condução do processo penal, indeferir, de forma fundamentada, os pedidos que se mostrem desnecessários, protelatórios ou infundados (cf. REsp 1.519.662/DF).
4. Da prescrição. Considerando a prática dos crimes a partir de 2009, o recebimento da denúncia em 19/06/2018 (fls. 292/293) e a sentença condenatória publicada em 13/12/2018 (fls. 471/529), percebe-se que os crimes praticados a partir de 2009 não foram atingidos pela prescrição. Além disso, embora os primeiros estupros e atos libidinosos retratados tenham ocorrido quando os réus ainda eram inimputáveis, são fortes os elementos que apontam para a prática reiterada desses delitos até 2011, quando ambos tinham 22 (vinte e dois) anos de idade. Desse modo, nem todos os crimes cometidos pelos apelantes foram fulminados pela prescrição, mas somente aqueles consumados em 2008, tal como destacado na sentença recorrida.
5. A Lei nº 12.650/2012 deu nova redação ao inciso V do artigo 111 do Código Penal para que a prescrição antes do trânsito em julgado nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes comece a correr apenas na data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos. No entanto, o cálculo prescricional realizado na sentença pautou-se pela antiga redação do dispositivo, não havendo razão e sequer interesse processual para a insurgência da defesa.
6. Nulidade da sentença por inobservância do teor da Súmula nº 497 do STF no cálculo da prescrição. O cálculo da prescrição deu-se sobre a pena-base majorada exclusivamente pela norma do artigo 226, inciso II, do Código Penal. Obediência ao teor da Súmula nº 497 do STJ.
7. Preliminares rejeitadas.
8. Materialidade e autoria dos delitos comprovadas.
9. In casu, tendo sido cometidos os delitos dos artigos 241-A e 241-B, ambos da Lei 8.069/1990, o primeiro crime absorve o segundo, com base no princípio da consunção.
10. Com efeito, no que tange ao delito de armazenamento de arquivos de conteúdo pornográfico infantil (artigo 241-B da Lei nº 8.069/1990) e ao delito previsto no artigo 241-A da Lei nº 8.069/1990, não há prova de que os desígnios de cada um dos delitos eram autônomos.
11. No caso sob estudo, não restou esclarecido no laudo pericial em que pasta foram armazenadas as imagens de pedofilia infanto-juvenil, sendo impossível concluir se a pasta encontrada é aquela necessária para o compartilhamento automático de imagens pelo sistema P2P ou se refere a uma pasta sobressalente, destinada exclusivamente ao armazenamento das imagens.
12. Quanto ao delito previsto no artigo 241-A da Lei nº 8.069/90, com fundamento no artigo 59 do CP, mantida a pena-base cominada aos réus em 3 (três) anos de reclusão e 10 (dez) dias-multa. Ausentes circunstâncias agravantes e atenuante. Na terceira fase, mantido o fator de 1/6 (um sexto) aplicado na sentença, por força da continuidade delitiva, perfazendo a pena privativa de liberdade atribuída aos réus, 03 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 11 (onze) dias-multa.
13. Nos crimes do artigo 217-A do Código Penal e artigo 214, parágrafo único, do Código Penal (com redação anterior à vigência da Lei nº 12.015/09), c.c. artigo 226, inciso II, todos do Código Penal praticados contra a vítima Rebeca, a pena-base restou exasperada por força da acentuada culpabilidade e as circunstâncias delitivas negativas, tendo em vista que obrigaram a vítima, criança de tenra idade, mediante o emprego de violência física e psicológica, à prática de atos libidinosos e atos sexuais, consistentes em conjunção carnal, sexo anal, sexo oral, entre outros atos tendentes a satisfazer a lascívia, bem como a privações de ordem física por conta de não fornecerem água e alimentos, condutas que se perpetuaram por longos anos.
14. A atitude assumida pelos agentes no decorrer da consumação das infrações penais (uso de violência psicológica, física e privações de comida e água), mediante a mecânica delitiva empregada, dentre outros elementos denotam o alto grau de censurabilidade das condutas praticadas.
15. Ademais, os réus obrigavam os sobrinhos de tenra idade a assistirem os vídeos de pornografia infanto-juvenil e de violência empregada contra crianças que compartilhavam, de modo a, psicologicamente, os fazerem crer que a atitude deles era aceitável e ao mesmo tempo satisfazerem a própria lascívia. Tais circunstâncias elevam em auto grau a sua culpabilidade. Cabe, ainda, a majoração da pena-base diante das graves consequências causadas à vítima Rebeca em razão da prática dos delitos pelos réus.
16. Todavia, cumpre ressaltar que não foi aplicada a majoração da pena-base por força da relação de parentesco, com esteio no princípio "non bis in idem", uma vez que é aplicável na segunda etapa da dosimetria, a agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea "f", do Código Penal, tendo em vista que os acusados praticaram os atos prevalecendo-se de relações domésticas de coabitação.
17. Desse modo, com fundamento no artigo 59 do CP, em decorrência das circunstâncias e consequências delitivas gravíssimas, foi aplicado o fator de ½ (metade), redimensionando a pena-base cominada aos réus para 12 (doze) anos de reclusão, para o delito tipificado no artigo 217-A do CP e 9 (nove) anos de reclusão, para o delito tipificado no artigo 214, parágrafo único, do CP.
18. Na segunda etapa, mantida a incidência da circunstância agravante prevista no artigo 61 do CP, inciso II, alínea "f", do Código Penal, reconhecida na sentença, tendo em vista que os acusados praticaram os atos prevalecendo-se de relações domésticas de coabitação. Sendo assim, mantido o aumento de 1/6 (um sexto), resultam as penas intermediárias em 14 (quatorze) anos de reclusão para o delito previsto no artigo 217-A do CP e, 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de reclusão para o delito previsto no artigo 214, parágrafo único, do CP.
19. Na terceira etapa, mantido o aumento em ½ (metade) das penas anteriormente estabelecidas, por força da incidência da causa especial de aumento prevista no artigo 226, inciso II, do Código Penal, uma vez que a vítima era deixada aos seus cuidados pelo pai. Fixado, ainda, o aumento em ¼ (um quarto), considerando que os réus cometeram os crimes em concurso de 2 (duas) ou mais pessoas, por força da incidência da causa especial de aumento prevista no artigo 226, inciso I, do Código Penal, perfazendo a pena para o delito previsto no artigo 217-A do CP, 26 (vinte e seis) anos e 3 (três) meses de reclusão e, para o delito previsto no artigo 214, parágrafo único, do CP, 19 (dezenove) anos, 8 (oito) meses e 7 (sete) dias de reclusão.
20. No que se refere à continuidade delitiva, foi analisada em conjunto com os fatos relativos à outra vítima, em atenção ao princípio non bis in idem, tendo em vista o atual entendimento do E. Superior Tribunal de Justiça, que reconheceu a continuidade delitiva entre crimes semelhantes ainda que praticados contra vítimas diferentes.
21. No crime do artigo 214, parágrafo único (redação anterior à vigência da Lei nº 12.015/90), c.c. artigo 226, inciso I, ambos do Código Penal, praticados contra a vítima Lucas, a pena-base restou exasperada em razão da acentuada culpabilidade e das circunstâncias delitivas negativas, tendo em vista que obrigaram a vítima, criança de tenra idade, mediante o emprego de violência física e psicológica, à prática de atos libidinosos e atos sexuais, consistentes em sexo anal, sexo oral, entre outros atos tendentes a satisfazer a lascívia, condutas que se perpetuaram por longos anos.
22. A atitude assumida pelos agentes no decorrer da consumação das infrações penais (uso de violência psicológica e física), a mecânica delitiva empregada dentre outros elementos denotam o alto grau de censurabilidade das condutas praticadas.
23. Ademais, os réus obrigavam os sobrinhos de tenra idade a assistirem os vídeos de pornografia infanto-juvenil e de violência empregada contra crianças que compartilhavam, de modo a, psicologicamente, os fazerem crer que a atitude deles era aceitável e ao mesmo tempo satisfazerem a própria lascívia. Tais circunstâncias elevam em auto grau culpabilidade dos réus. Cabe, ainda, a majoração da pena-base diante das graves consequências causadas à vítima Lucas em razão da prática dos delitos pelos réus. Além disso, os réus abusaram dos seus primos, menores de idade para satisfazer sua lascívia por anos seguidos, ameaçando-os e ameaçando seus familiares.
24. No entanto, não foi aplicada a majoração da pena-base por força da relação de parentesco, com esteio no princípio "non bis in idem", uma vez que foi aplicada na sentença, na segunda etapa da dosimetria, a agravante prevista no artigo 61, inciso II, alínea "f", do Código Penal.
25. Com fundamento no artigo 59 do CP, em decorrência das circunstâncias e consequências delitivas gravíssimas, aplicado o fator de ½ (metade), redimensionando a pena-base cominada aos réus para 9 (nove) anos para o delito tipificado no artigo 214, parágrafo único, do CP.
26. Na segunda etapa, mantida a incidência da circunstância agravante em 1/6 (um sexto) prevista no artigo 61 do CP, inciso II, alínea "f", do Código Penal, reconhecida na sentença, tendo em vista que os acusados praticaram os atos prevalecendo-se de relações domésticas de coabitação, resultando a pena intermediária em 10 (dez) anos e 06 (seis) meses de reclusão, para o delito previsto no artigo 214, parágrafo único, do CP.
27. Na terceira etapa, mantido o aumento em ¼ (um quarto), considerando que os réus cometeram os crimes em concurso de 2 (duas) ou mais pessoas, por força da incidência da causa especial de aumento prevista no artigo 226, inciso I, do Código Penal, perfazendo, assim, 13 (treze) anos, 1 (um) mês e 15 (quinze) dias de reclusão.
28. Deve ser reconhecida a continuidade delitiva entre os delitos previstos nos artigos 217-A do Código Penal e 214, parágrafo único do CP, majorando a pena em 2/3 (dois terços), por terem sido praticados em face de duas vítimas e as condutas reiteradas por longo período de tempo, conforme já descrito nos tópicos da materialidade e autoria. Com efeito, mesmo com a limitação da prescrição de muitos crimes, considerados por estimativa, os 18 (dezoito) atos praticados, ocorreram durante pelo menos 2 (dois) anos, justificando o aumento da pena pela continuidade delitiva em seu patamar máximo. Aplicada referida fração sob a pena mais grave, totaliza a pena de 43 (quarenta e três) anos e 9 (nove) meses de reclusão para cada um dos réus.
29. Do concurso de crimes. Reconhecido o concurso material entre os delitos previstos nos artigos 241-A da Lei nº 8.069/90 e 217-A do Código Penal, com a somatória das penas, a pena privativa de liberdade totaliza o montante de 47 (quarenta e sete) anos e 3 (três) meses de reclusão e 11 (onze) dias-multa. O valor unitário do dia-multa permanece no mínimo legal de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente na data dos fatos.
30. Mantido o regime inicial fechado para o cumprimento da pena e mantenho a prisão cautelar dos réus.
31. Impossível a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, em vista do não preenchimento dos requisitos do artigo 44 do Código Penal.
32. Preliminares rejeitadas.
33. Reconhecida, de ofício, a consunção do crime do artigo 241-B pelo delito do artigo 241-A, ambos da Lei 8.069/90.
34. Réus absolvidos do crime do artigo 241-B da Lei 8.069/90.
35. Apelo defensivo a que se nega provimento.
36. Apelo ministerial a que se dá provimento.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, rejeitar as preliminares arguidas pela defesa; por maioria, negar provimento ao apelo defensivo; de ofício, reconhecer a consunção do crime do artigo 241-B pelo delito do artigo 241-A, ambos da Lei 8.069/1990, de modo que os réus ficam absolvidos do crime do artigo 241-B, da Lei 8.069/1990 e, ainda, dar provimento ao apelo ministerial, para majorar a pena-base cominada aos réus e para reconhecer a continuidade delitiva entre os delitos previstos nos artigos 217-A e 214, parágrafo único, ambos do Código Penal, em seu patamar máximo de 2/3 (dois terços), de modo que a pena privativa de liberdade aplicada a cada um dos réus, totaliza o montante de 47 (quarenta e sete) anos e 3 (três) meses de reclusão e 11 (onze) dias-multa, no valor unitário de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente na data dos fatos, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 20 de janeiro de 2020.
LOUISE FILGUEIRAS
Juíza Federal Convocada


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