Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0002643-52.2018.4.03.6119/SP
2018.61.19.002643-6/SP
RELATOR : Desembargador Federal MAURICIO KATO
APELANTE : G R D S
ADVOGADO : SP365054 LUANA APARECIDA BERNARDO SILVA
APELADO(A) : Justica Publica
No. ORIG. : 00026435220184036119 2 Vr GUARULHOS/SP

EMENTA

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ARTS. 241-A E 241-B DA LEI N. 8.069/90.C OMPARTILHAMENTO E ARMAZENAMENTO DE ARQUIVOS COM CONTEÚDO PEDÓFILO. MATERIALIDADE. AUTORIA. DOLO. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. INCIDÊNCIA. DE OFÍCIO. DOSIMETRIA. PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS. ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. QUANTIDADE DE ARQUIVOS. CONTINUIDADE DELITIVA. AFASTADA. SUBSTITUIÇÃO PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. ISENÇÃO CUSTAS PROCESSUAIS. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.
1. Os delitos dos arts. 241-A e 241-B da Lei n. 8.069/90 não exigem dolo específico para sua configuração, bastando a vontade livre e consciente de armazenar e disponibilizar/divulgar arquivos com conteúdo pedófilo.
2. Revejo meu entendimento para reconhecer a incidência do princípio da subsidiariedade ao delito previsto no art. 241 -B do ECA. O princípio da subsidiariedade (lex primaria derogat legi subsidiarae) é um critério de solução de conflito aparente de normas presidido pelo aspecto valorativo. Não se trata, ao contrário do que ocorre com o princípio da especialidade (in abstrato), de uma mera analise lógica respeitante aos elementos constitutivos dos tipos penais concorrentes, isto é, em que medida haveria uma relação de gênero e espécie essencialmente formal. Tem esse princípio uma estrutura lógica de interferência, não de subordinação (BITENCOURT), exigindo uma verificação in concreto, isto é, um "juízo de valor do fato em relação a elas" (normas) (Oscar Stevenson, apud BITENCOURT). Nesse sentido, o princípio da subsidiariedade estabelece que a incidência da norma principal, que tem uma sanção mais grave, afasta a incidência da norma subsidiária: "(...) uma norma exclui a outra não porque comandada por rígido cânone de lógica, mas porque a aplicação de todas as normas concorrentes se chocaria contra as necessidades práticas de valoração do fato e viriam a contrastar com as mais elementares exigências de justiça" (BETTIOL, p. 328). Na hipótese de diversas normas tutelarem o mesmo bem jurídico conforme estádios ou graus diversos de ofensa, segue-se que a ofensa maior absorve a menor, o que implica que a aplicabilidade da sanção menor é condicionada pela não aplicação da sanção maior. A subsidiariedade pode vir expressa no próprio texto legal, como consta do tipo do crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (CP, art. 132), cuja sanção é aplicável "se o fato não constitui crime mais grave", como seria se se tratar de tentativa de homicídio ou abandono de incapaz (HUNGRIA). Mas a subsidiariedade pode ser também tácita, isto é, quando a lei não contenha essa ressalva em seu texto. Segundo a doutrina, tal ocorrerá quando o fato incriminado é "elemento componente ou agravante especial do fato incriminado por outra norma" (HUNGRIA, p. 139) ou quando "determinada figura típica funcionar como elemento constitutivo, majorante ou meio prático de execução de execução de outra figura mais grave" (BITENCOURT, p. 250). A heterogeneidade dos exemplos doutrinários sugere a dificuldade em determinar a subsidiariedade : furto qualificado quanto ao dano e violação de domicílio; estupro quanto a constrangimento ilegal e lesão corporal leve; sedução quanto à corrupção de menor (HUNGRIA), tentativa quanto à consumação (BETTIOL); dano quanto ao furto com destruição ou rompimento de obstáculo; violação de domicílio quanto ao furto ou roubo com entrada em casa alheia; constrangimento ilegal e crime de violência ou grave ameaça (BITENCOURT). A heterogeneidade desses exemplos, que evocam o princípio da consunção, não chega a prejudicar a compreensão do conteúdo do princípio da subsidiariedade: havendo mais de uma norma dotada de igual autoridade a tutelar o mesmo bem jurídico, entende-se que prevalece a mais grave, posto que a menos grave somente seria aplicável na hipótese de inexistir aquela. Caso contrário, o Estado não esgotaria o conteúdo normativo sancionatório instituído pela norma penal: a aplicação da norma mais branda em prejuízo da mais grave deixa parte da tutela penal simplesmente inaplicada (BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, p. 322-331, n.5; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral, 10ª ed., São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p. 247-253; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958. V. I, t. I, p. 136-140, n. 31).
3. Os delitos de divulgar e armazenar conteúdo pedófilo infantil protegem o mesmo bem jurídico, a formação moral e emocional da criança e do adolescente, sendo a conduta do primeiro mais grave em relação a do segundo.
4. A conduta, de armazenar, menos grave, pode constituir elemento ou meio para a execução do delito mais grave, o que robora o caráter subsidiário tácito do art. 241-B em relação ao delito do art. 241-A, ambos do ECA.
5. Em resumo, aplicando-se, de ofício, a subsidiariedade do art. 241-B do ECA ao caso, os fatos tipificam-se apenas no art. 241-A da Lei n. 8.069/90, devendo ser mantida a respectiva dosimetria, fixada pelo Relator, em 3 (três) anos de reclusão, regime inicial aberto, e 10 (dez) dias-multa, cada qual em 1/3 (um terço) do salário mínimo vigente à data dos fatos.
6. Com a readequação da pena, fica mantida a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade pelo tempo da pena aplicada e prestação pecuniária de 5 (cinco) salários mínimo vigente à data dos fatos.
7. A quantidade de arquivos compartilhados e/ou armazenados constitui um dado acessório que cerca a ação delituosa e pode ser considerado para agravar a pena-base como circunstância negativa do crime.
8. O réu, ao incorrer nas condutas penalmente tipificadas, fica submetido às penas estabelecidas no preceito secundário da norma incriminadora, não podendo eximir-se da aplicação das sanções legalmente estabelecidas ao argumento de insuficiência financeira.
9. Recurso parcialmente provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, aplicar, de ofício, o princípio da subsidiariedade, mantendo-se a condenação do réu apenas pelo crime do art. 241-A do ECA e dar parcial provimento ao recurso da defesa para reduzir a pena do crime do art. 241-A do ECA para 3 (três) anos de reclusão, regime inicial aberto, e 10 (dez) dias-multa, cada qual em 1/3 (um terço) do salário mínimo vigente à data dos fatos, substituída a pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade pelo tempo da pena aplicada e prestação pecuniária de 5 (cinco) salários mínimos vigentes ao tempo dos fatos, na forma e destinação estipulada pelo Juízo da Execução Penal, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

São Paulo, 07 de fevereiro de 2022.
Andre Nekatschalow
Relator para Acórdão


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