Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 06/08/2021
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0017487-64.2008.4.03.6181/SP
2008.61.81.017487-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
APELANTE : ROGERIO AGUIAR DE ARAUJO incapaz
ADVOGADO : SP088708 LINDENBERG PESSOA DE ASSIS e outro(a)
REPRESENTANTE : AKIKO DE CASSIA ISHIKAWA
APELADO(A) : Justica Publica
EXTINTA A PUNIBILIDADE : IURI VANITELLI
: ALEX SIQUEIRA falecido(a)
No. ORIG. : 00174876420084036181 4P Vr SAO PAULO/SP

EMENTA

APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO CONTRA O INSS PRATICADO POR SERVIDOR. CORRÉUS COM PUNIBILIDADE EXTINTA NO CURSO DO PROCESSO. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS COMPROVADAS. ABSOLVIÇÃO IMPRÓPRIA. MANUTENÇÃO. INIMPUTABILIDADE. DEPENDÊNCIA DE DROGAS RECONHECIDA POR MEIO DE LAUDO PERICIAL. ART. 26, CAPUT, CP. DEFERIMENTO DE PEDIDO SUBSIDIÁRIO DE APLICAÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA DE TRATAMENTO AMBULATORIAL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DESTA C. CORTE REGIONAL.
1. Materialidade delitiva. Ausência de insurgência do acusado, não havendo dúvidas de que, em 01.07.2003, foi formulado pedido de pensão por morte por certo Jorge da Silva, suposto filho de Osmundo Rocha da Silva, tendo-lhe sido deferido por ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO, servidor do INSS, o NB 21/130.127.024-2, com data de início retroativa à data do óbito. O Relatório existente no processo administrativo do INSS traz a informação de que os dados correspondentes ao nome e localidade do cartório, livro, folha, termo, data da lavratura e nome da mãe, constantes na certidão de óbito apresentada não correspondiam àqueles registrados no Sistema de Controle de Óbitos. Verificou-se, ainda, que o NIT 11752929777, referente a Osmundo Rocha da Silva, foi feito com dados comprovadamente falsos posteriormente ao seu óbito, sendo que ele já possuía o NIT 10412466691 com seus verdadeiros dados, inclusive com o nome de sua mãe correspondente àquele constante no Sistema de Controle de Óbitos. Configuração do delito previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal.
2. Autoria delitiva demonstrada por meio das provas documental e testemunhal formadas nos autos que não deixam dúvidas de que foi o responsável pelo processamento de todas as etapas do benefício, inclusive o cadastramento de novo NIT com dados falsos do falecido.
3. Absolvição imprópria mantida. Desde o cumprimento do Mandado de Citação do réu teve-se conhecimento, por meio de sua mulher, de que ele fora interditado civilmente, tendo sido apresentada ao Oficial de Justiça, a respectiva certidão. Suspensão do feito em razão da instauração de incidente de insanidade mental.
4. Laudo pericial elaborado nos autos de incidente de insanidade mental que relata a internação do acusado por dezoito vezes, em decorrência do uso de drogas desde a sua juventude, havendo relato de que sua dependência química aumentou a partir de 1995, quando passou a consumir crack, tendo, a partir de então, feito uso diário da droga no ano de 2002. Em resposta ao quesito da defesa (pergunta n. 2), o perito respondeu afirmativamente à assertiva: O dependente químico deve ser visto como portador de doença multicausal, que necessita, no curso do tratamento, de intervenções em diversos níveis, complementando que o acusado estaria recebendo este tipo de tratamento.
5. A medida de segurança é espécie de sanção penal com função preventiva e terapêutica, sendo sua aplicação norteada pela análise da periculosidade social do autor de um fato típico e ilícito. Sob tal contexto, tem-se entendido que a espécie de medida de segurança a ser aplicada no caso concreto não deve ter como único fundamento a pena abstratamente cominada ao crime (HC - HABEAS CORPUS - 503889 2019.01.03320-1, REYNALDO SOARES DA FONSECA, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:18/09/2019; AIRESP - AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - 1805564 2019.00.94925-9, ROGERIO SCHIETTI CRUZ, STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA:02/12/2019; e APELAÇÃO CRIMINAL - 75039 - 0002864-21.2012.4.03.6127, RELATOR JUIZ CONVOCADO FERREIRA DA ROCHA, TRF3 - DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:13/08/2018).
6. O fato ora em julgamento, assim como aqueles apontados em sua folha de antecedentes foram praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa e no exercício de cargo não mais ocupado pelo acusado, sendo, portanto, mais razoável, que continue o tratamento terapêutico a que já se submete, com vista à recuperação de sua dependência. Tal entendimento não obsta nova conversão, diante de necessidade atual que possa ser apurada pelo Juízo das Execuções Penais, nos termos dos arts. 66, inciso V, alínea "f" e inciso VI, e 176, ambos da Lei n.º 7.210/1984.
7. No que diz respeito ao prazo estabelecido pelo r. Juízo a quo, de 2 (dois) anos de medida de segurança, tendo sido estabelecido tal prazo total, sem qualquer outro apontamento, mantém-se tal determinação, sob pena de se incorrer em reformatio in pejus.
8. Apelação parcialmente provida, mantendo-se a absolvição imprópria reconhecida em primeiro grau, determinando-se, porém, a aplicação de medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial, nos termos do art. 96, inciso II, do Código Penal, pelo prazo de 2 (dois) anos, com avaliação semestral perante o Juízo das Execuções Penais.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO DE ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO, mantendo-se a absolvição imprópria reconhecida em primeiro grau, determinando-se, porém, a aplicação de medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial, nos termos do art. 96, inciso II, do Código Penal, pelo prazo de 2 (dois) anos, com avaliação semestral perante o Juízo das Execuções Penais, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 22 de julho de 2021.
FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0017487-64.2008.4.03.6181/SP
2008.61.81.017487-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
APELANTE : ROGERIO AGUIAR DE ARAUJO incapaz
ADVOGADO : SP088708 LINDENBERG PESSOA DE ASSIS e outro(a)
REPRESENTANTE : AKIKO DE CASSIA ISHIKAWA
APELADO(A) : Justica Publica
EXTINTA A PUNIBILIDADE : IURI VANITELLI
: ALEX SIQUEIRA falecido(a)
No. ORIG. : 00174876420084036181 4P Vr SAO PAULO/SP

RELATÓRIO



O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:


Trata-se de Apelação interposta por ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO, (curadora Akiko de Cássia Ishikawa), nascido em 28.02.1962, em face da r. sentença publicada em 09.02.2018 (fl. 1437v) e proferida pela Exma. Juíza Bárbara de Lima Iseppi, da 4ª Vara Federal de São Paulo/SP, que julgou improcedente o pedido formulado na denúncia para ABSOLVER IMPROPRIAMENTE o réu da prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, com fundamento no art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, aplicando-lhe MEDIDA DE SEGURANÇA consistente em internação, nos termos do art. 96, inciso I, do Código Penal, pelo prazo de 2 (dois) anos, devendo ser comprovada a realização de tratamento e acompanhamento médico pelo réu perante o Juízo da Execução Penal, semestralmente, por sua curadora.


A denúncia, recebida em 20.07.2012 (fls. 560/561), fora oferecida, igualmente, em face de IURI VANITELLI e ALEX SIQUEIRA, os quais tiveram suas punibilidades extintas em razão do advento da prescrição (fls. 1144/1146) e de óbito (fl. 846), respectivamente.


Segundo narrou a peça acusatória (fls. 552/559), a apuração dos fatos nela tratados originou-se da Operação Gênesis, a qual investigou verdadeiros "nascimentos" de pessoas - em realidades inexistentes - a fim de incluí-las como beneficiárias de segurados já falecidos, por serem supostos filhos menores destes - fazendo jus, portanto, à pensão por morte.


No caso em tela, a pessoa criada trata-se de JORGE DA SILVA, suposto filho de OSMUNDO ROCHA DA SILVA. Os documentos que atestariam tal parentesco e que instruíram o pedido de benefício ao INSS são a certidão de óbito de OSMUNDO (fls. 09), RG de JORGE (fls. 10), RG e CPF de OSMUNDO (fls. 11) e a certidão de nascimento de JORGE (fls. 12).


O requerimento do benefício de pensão por morte (NB 21/130.127.024-2) foi apresentado em 01.07.2003 na Agência da Previdência Social em Cotia/SP, tendo o acusado, enquanto funcionário do INSS, recebido e concedido o aludido benefício. O deferimento deu-se em 01.10.2003 com pagamento retroativo a 22.01.2003, data do suposto óbito. O benefício perdurou até agosto de 2007, momento no qual foram levantadas suspeitas de irregularidades.


Em diligências perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do 31º Subdistrito de Pirituba/SP envolvendo a autenticidade da certidão de óbito apresentada perante o INSS, foi obtida a resposta de que o documento havia sido grotescamente falsificado, o que deveria ter sido constatado imediatamente por ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO. Os demais dados constantes na certidão de óbito, como livro e assento de nascimento de Jorge da Silva, tampouco eram verdadeiros.


Constatou-se, ainda, que na concessão do benefício haveria outras evidentes irregularidades, como número de NIT não correspondente àquele do falecido, ou, ainda, o nome de sua mãe, uma vez que aquele constante em seu RG e na certidão de óbito não correspondia ao que se encontrou no Sistema de Controle de Óbito DATAPREV.


O benefício foi cessado em 30.11.2007, ocasião em que se estimou o prejuízo ao INSS, em valor não atualizado, de R$ 86.691,63 (oitenta e seis mil, seiscentos e noventa e um reais e sessenta e três centavos) (fl. 554).


Com relação aos mencionados corréus, cumpre apenas destacar que se apurou na Operação Gênesis que na maioria dos benefícios irregularmente concedidos, IURI VANITELLI constava como procurador dos beneficiários, e que trabalharia em conjunto com ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO. Ainda, ALEX SIQUEIRA, seria vizinho de IURI VANITELLI, e seria a pessoa responsável por efetuar os saques bancários em nome de Jorge da Silva, tendo, igualmente, participado da abertura de contas bancárias em nome de tal suposto beneficiário e de financiamento da compra de uma motocicleta em nome desta pessoa não existente.

Em suas razões recursais (fls. 1453/1462), o acusado sustenta que as provas constantes nos autos não permitem concluir que teria conhecimento da falsidade dos documentos a ele apresentados por ocasião da concessão do benefício. Aduz que nos autos do processo administrativo foi necessária a expedição de ofício ao cartório de registro de pessoas naturais para que se verificasse a autenticidade da certidão de nascimento e de casamento, que instruíam o pedido. Afirma, portanto, que somente por meio de tal diligência teria sido possível a constatação das falsidades.


Acrescenta que a documentação apresentada era ideologicamente falsa e que não dispunha de recursos ou de treinamento para a verificação da autenticidade, sublinhando, ainda, que todos os documentos apresentavam autenticação cartorária. Alega que tampouco seus superiores hierárquicos teriam percebido a existência de irregularidades nos documentos apresentados.


Aponta não terem sido encontrados em sua residência apetrechos ligados às falsidades ou, ainda, comprovada a obtenção, para si, de vantagem indevida.


Subsidiariamente, caso não seja absolvido com fundamento no art. 386, inciso IV, do Código de Processo Penal, requer a sua absolvição por falta de provas (art. 386, VII, CPP).


Ainda, caso seja mantida a sua absolvição imprópria, pleiteia a aplicação de medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial, tendo em vista que não se trata de crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa e, ainda, que se fosse aplicada pena privativa de liberdade, possivelmente, seria fixado o regime inicial aberto para o seu cumprimento.


Assevera que, conforme comprovação documental juntada aos autos, já se submete a tratamento clínico, com o amparo de sua família, não havendo causa para a sua internação.


Em suas contrarrazões, o Ministério Público Federal pleiteou o desprovimento do recurso defensivo (fls. 1464/1465v).


Subiram os autos a esta E. Corte.

Oficiando nesta instância (fls. 1467/1469) o órgão ministerial opinou pelo desprovimento do recurso da defesa.


À fl. 1471 determinou-se a manifestação do Ministério Público Federal em relação a eventual prescrição da pretensão punitiva.


Em cumprimento à determinação, o Ministério Público Federal manifestou-se pela não ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, tendo em vista que nos casos de sentença absolutória imprópria a pena a ser considerada seria a máxima prevista quanto ao delito imputado ao acusado e que os autos permaneceram suspensos em razão da instauração de incidente de insanidade mental, entre 20.03.2014 e 17.04.2017 (fl. 1472).


É o Relatório.

À Revisão.


FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0017487-64.2008.4.03.6181/SP
2008.61.81.017487-0/SP
RELATOR : Desembargador Federal FAUSTO DE SANCTIS
APELANTE : ROGERIO AGUIAR DE ARAUJO incapaz
ADVOGADO : SP088708 LINDENBERG PESSOA DE ASSIS e outro(a)
REPRESENTANTE : AKIKO DE CASSIA ISHIKAWA
APELADO(A) : Justica Publica
EXTINTA A PUNIBILIDADE : IURI VANITELLI
: ALEX SIQUEIRA falecido(a)
No. ORIG. : 00174876420084036181 4P Vr SAO PAULO/SP

VOTO

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:


BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DELITO DE ESTELIONATO


O art. 171, parágrafo 3º, do Código Penal, assim dispõe:


Art. 171: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.
(...)
§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

Trata-se de uma modalidade especial de estelionato, praticado contra entidades de direito público ou institutos de economia popular, assistência social ou beneficência (tais como a Caixa Econômica Federal e o INSS, por exemplo), de modo que é maior a reprovabilidade da conduta, uma vez que tais entes prestam serviços fundamentais à sociedade, razão pela qual a lei prevê, para essa hipótese, uma causa especial de aumento de pena a ser considerada na terceira fase da dosimetria da pena.


Para a caracterização do crime de estelionato, devem estar presentes três requisitos fundamentais, quais sejam: I) o emprego de meio fraudulento, de que são exemplos o artifício (recurso engenhoso/artístico) e o ardil (astúcia, manha ou sutileza), ambos espécie do gênero fraude; II) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; III) a obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita (economicamente apreciável), sem o que não se há de falar em consumação deste delito.


A respeito do primeiro requisito (emprego de meio fraudulento), é relevante mencionar que, ontologicamente, não se há de falar em distinção entre fraude penal e fraude civil, já que não há diferenças estruturais entre estas. Com efeito, não existe diferença entre a fraude civil e a fraude penal. Só há uma fraude. Trata-se de uma questão de qualidade ou grau, determinado pelas circunstâncias da situação concreta. Elas é que determinam se o ato do agente não passou de apenas um mau negócio ou se neles estão presentes os requisitos do estelionato, caso em que o fato será punível penalmente (TJRS, AP. Crim. 70013151618, 7ª Câm. Crim., Rel Sylvio Baptista Neto, j. 22.12.2005).


É possível que haja um comportamento ilícito e, todavia, circunscrito à esfera civil. Assim, por força dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade, é necessário, para a caracterização do crime de estelionato, que o agente tenha o dolo como fim especial de agir, sendo imprescindível a consciência, a vontade de enganar, ludibriar, com objetivo de obter vantagem ilícita em detrimento da vítima. É a presença do dolo que distinguirá uma conduta penalmente relevante daquela situação em que, por exemplo, o agente age com boa-fé, sem a intenção de enganar, mas, por motivos diversos, acaba por cometer um ilícito civil. Atente-se que se, por um lado, não se pode adentrar a consciência do indivíduo, por outro, é possível aferir a presença do elemento anímico a partir de fatores externos, ou seja, dos detalhes e circunstâncias que envolvem os fatos. Além disso, é indispensável, para a caracterização do delito de estelionato, que se identifique a ocorrência de ação dolosa pré-ordenada (antecedente), pois, se, em dado caso, se constatar que o dolo é posterior (subsequens), ou seja, surgiu apenas depois da obtenção/entrega da vantagem, não se haverá de falar em estelionato, mas sim no crime de apropriação indébita que, aliás, sequer exige a ocorrência de fraude para sua caracterização.


Por oportuno, cabe mencionar, também, que o estelionato não se confunde com o furto mediante fraude, pois, nesta última hipótese, a fraude é utilizada como meio de burlar a vigilância da vítima que, por desatenção, não percebe que a coisa lhe está sendo subtraída, enquanto que, na hipótese de estelionato, a fraude é utilizada para se obter o consentimento viciado da vítima que, iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente.


Válida, nesse passo, a menção ao seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:


CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. PENAL E PROCESSO PENAL. FRAUDE ELETRÔNICA NA INTERNET. TRANSFERÊNCIA DE NUMERÁRIO DE CONTA DA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. FURTO MEDIANTE FRAUDE QUE NÃO SE CONFUNDE COM ESTELIONATO. CONSUMAÇÃO. SUBTRAÇÃO DO BEM. APLICAÇÃO DO ART. 70 DO CPP. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL PARANAENSE.
1. O furto mediante fraude não se confunde com o estelionato. A distinção se faz primordialmente com a análise do elemento comum da fraude que, no furto, é utilizada pelo agente com o fim de burlar a vigilância da vítima que, desatenta, tem seu bem subtraído, sem que se aperceba; no estelionato, a fraude é usada como meio de obter o consentimento da vítima que, iludida, entrega voluntariamente o bem ao agente.
2. Hipótese em que o agente se valeu de fraude eletrônica para a retirada de mais de dois mil e quinhentos reais de conta bancária, por meio da 'Internet Banking' da Caixa Econômica Federal, o que ocorreu, por certo, sem qualquer tipo de consentimento da vítima, o Banco. A fraude, de fato, foi usada para burlar o sistema de proteção e de vigilância do Banco sobre os valores mantidos sob sua guarda. Configuração do crime de furto qualificado por fraude, e não estelionato.
3. O dinheiro, bem de expressão máxima da idéia de valor econômico, hodiernamente, como se sabe, circula em boa parte no chamado 'mundo virtual' da informática. Esses valores recebidos e transferidos por meio da manipulação de dados digitais não são tangíveis, mas nem por isso deixaram de ser dinheiro. O bem, ainda que de forma virtual, circula como qualquer outra coisa, com valor econômico evidente. De fato, a informação digital e o bem material correspondente estão intrínseca e inseparavelmente ligados, se confundem. Esses registros contidos em banco de dados não possuem existência autônoma, desvinculada do bem que representam, por isso são passíveis de movimentação, com a troca de titularidade. Assim, em consonância com a melhor doutrina, é possível o crime de furto por meio do sistema informático.
4. A consumação do crime de furto ocorre no momento em que o bem é subtraído da vítima, saindo de sua esfera de disponibilidade. No caso em apreço, o desapossamento que gerou o prejuízo, embora tenha se efetivado em sistema digital de dados, ocorreu em conta-corrente da Agência Campo Mourão/PR, que se localiza na cidade de mesmo nome. Aplicação do art. 70 do Código de Processo Penal.
5. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal de Campo Mourão - SJ/PR.
(2006.01.66153-0, Rel. Laurita Vaz, DJ de 11.12.2007, pág. 170STJ, Terceira Seção, Conflito de Competência n.º 67343)

Ademais, ainda tratando da fraude como elemento central do delito de estelionato, é importante falar sobre a frequente hipótese em que a falsidade documental é o meio empregado para se obter êxito na empreitada criminosa. Neste caso, em observância ao princípio da consunção, deve prevalecer o entendimento de que o crime-meio (falsidade documental) deverá ser absorvido pelo crime-fim (estelionato), desde que, depois da utilização do documento falso para obtenção de vantagem ilícita, não reste qualquer potencialidade ofensiva, nos termos da súmula n.º 17 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:


Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.


A respeito do segundo requisito (induzimento ou manutenção da vítima em erro), é relevante mencionar que o erro é a consequência provocada pela fraude e que, em se constatando que a fraude não foi suficientemente hábil para provocar ou manter em erro a vítima (fraude grosseira), deverá haver, em princípio, o reconhecimento da hipótese de crime impossível, por absoluta ineficácia do meio ou absoluta impropriedade do objeto (inteligência do art. 17 do CP).


Já a respeito do terceiro requisito (obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita), cabe consignar que, em sendo o estelionato um crime material e de dano, sua consumação se dará com a efetiva obtenção da vantagem, isto é, a partir do momento em que a coisa passar da esfera de disponibilidade da vítima para a do infrator (ou de terceiro).


Além disso, não se deve perder de vista que a vantagem obtida pelo agente deve ser ilícita, ou seja, contrária ao ordenamento, uma vez que, se a vantagem for devida, ficará descaracterizado o delito de estelionato, podendo haver, por exemplo, a desclassificação para o delito de exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do artigo 345 do CP.


Feitas essas breves considerações, passa-se à análise dos fatos descritos na presente ação penal.


ANÁLISE DO CASO CONCRETO


Por meio da r. sentença ora recorrida ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO foi absolvido impropriamente da prática do crime descrito no art. 171, § 3º, do Código Penal, nos termos do art. 386, inciso VI, do Código de Processo Penal, à medida de segurança de internação pelo período de 2 (dois) anos, devendo ser comprovada a realização de tratamento e acompanhamento médico pelo réu perante o Juízo da Execução Penal, semestralmente, pelo seu curador.


MATERIALIDADE DELITIVA


O conjunto probatório formado nos autos não deixa dúvidas a respeito da materialidade delitiva, cabendo, neste ponto, transcrever trecho da fundamentação da r. sentença (fl. 1434v):


(...)
A materialidade delitiva restou comprovada por meio do Relatório do INSS de fls. 74/76, que concluiu pela irregularidade da concessão do benefício previdenciário de pensão por morte em nome de pessoa fictícia ('Jorge da Silva'). Tal concessão irregular acarretou o prejuízo de R$ 86.691,03 (oitenta e seis mil, seiscentos e noventa e um reais e três centavos).
Ademais, ouvidas em juízo, diversas testemunhas corroboraram a materialidade.
A testemunha Vicentina Rodrigues Garcia Silva (fl. 872) destacou que as irregularidades eram bem visíveis, sendo facilmente contatadas. Exemplo disso era o nome da mãe constante na certidão de óbito, diverso daquele indicado na identidade.
Por sua vez, a testemunha Antônio Sena Alencar (fl. 990) apontou a existência de inúmeras denúncias, cujas fraudes foram também explicadas pela testemunha Ronny Apolinario da Silva (fl. 1026).

Quanto a tal ponto, não se vislumbra insurgência do acusado, não havendo, portanto, questionamento que, em 01.07.2003, foi formulado pedido de pensão por morte por certo Jorge da Silva, residente à Rua Mahmaud Ibraim, n. 35, em Osasco/SP (fl. 41), tendo-lhe sido deferido o NB 21/130.127.024-2, com data de início retroativa a 22.01.2003 (fl. 22).


Em resposta ao Ofício 541, expedido pelo Polo de Ação de Revisão de Benefícios - São Paulo/SP, o Oficial de Registro Civil do 31º Subdistrito em Pirituba informou que a certidão de óbito de Osmundo Rocha da Silva, apresentada ao INSS, fora grotescamente falsificada, eis que, além de não guardar nenhum dado com os assentos de óbitos da serventia, apresenta impressão primária, fora de padrões normais aqui adotados. Acrescentou que o cargo mencionado de "Oficial Maior", constante no documento falso, seria, em verdade, de "Oficial Substituto" e que o sobrenome da pessoa subscritora da aludida certidão não corresponderia ao verdadeiro.


Igualmente, em resposta ao Ofício n. 001123, expedido pelo Polo de Ação de Revisão de Benefícios - São Paulo/SP (fl. 53), o Oficial de Registro Civil da Comarca de Pedreira/SP informou que:


Atendendo ao Ofício n. 001123, vimos informar que não consta em nossos registros o assento de JORGE DA SILVA, filho de Osmundo Rocha da Silva e Doralice Lima da Silva, registrado sob n. 11530, fls. 92, 'LA-58', portanto essa certidão que ora se encontra em vosso poder, não foi emitida pelo nosso Cartório de Registro Civil (fl. 51).


No mesmo sentido, o mencionado Relatório do INSS (fls. 74/76) traz a informação de que os dados correspondentes ao nome e localidade do cartório, livro, folha, termo, data da lavratura e nome da mãe, constantes na certidão de óbito falsa não correspondiam àqueles registrados no Sistema de Controle de Óbitos.


Verificou-se, ainda, que o NIT 11752929777, referente a Osmundo Rocha da Silva, foi feito com dados comprovadamente falsos posteriormente ao seu óbito, sendo que ele já possuía o NIT 10412466691 com seus verdadeiros dados, inclusive com o nome de sua mãe correspondente àquele constante no Sistema de Controle de Óbitos.


A testemunha Ronny Apolinario da Silva, funcionário do INSS (fl. 1.026), embora não se recordasse do caso específico dos autos relatou ter participado de um grupo de trabalho do INSS destinado à verificação de diversas concessões irregulares de benefícios, tendo descrito que, em relação aos benefícios de pensão por morte era utilizado o mesmo modus operandi verificado nos presentes autos.


Afirma que participou de um grupo de trabalho do INSS, no qual se apurou irregularidades, mas não sabe dizer se algum funcionário do INSS estaria envolvido.


Ainda que esta testemunha não tenha atestado a participação do réu, o conjunto probatório formado em diligências realizadas perante a autarquia previdenciária demonstra de forma cabal a materialidade do delito descrito no art. 171, § 3º, do Código Penal.


Registre-se ser admissível, para o fim de comprovação da materialidade delitiva, a utilização de dados coletados em processo administrativo perante o INSS, uma vez que nele deve-se observância ao princípio do contraditório. Esse tem sido o entendimento exarado pela Colenda Décima Primeira Turma desta Corte Regional (in APELAÇÃO CRIMINAL - 74106 - 0007075-98.2014.4.03.6105, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI, julgado em 24/04/2018, e-DJF3 Judicial 1 DATA:07/05/2018 e APELAÇÃO CRIMINAL - 74536 - 0007181-89.2015.4.03.6181, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI, julgado em 10/04/2018, e-DJF3 Judicial 1 DATA:20/04/2018).


AUTORIA DELITIVA


Da análise dos autos tem-se que por meio do Relatório de Aditamento do INSS (fls. 80/81) concluiu-se que o benefício em questão foi concedido por ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO (em 01.07.2003), em período no qual se encontrava em gozo de licença para tratamento de saúde (entre 04.04.2003 a 13.11.2003). Segundo consta no aludido relatório, foi ele o responsável, ainda, pelo cadastramento de novo NIT ao falecido Osmundo Rocha da Silva com os dados constantes nos documentos falsos, inclusive, com o nome de sua mãe falso, embora já possuísse outro registro anterior, cujos dados eram compatíveis com aqueles constantes no Sistema de Controle de Óbitos.


Em suas razões recursais, o acusado alega que não teria condições, nem preparo técnico, para identificar as falsidades dos documentos que lhe teriam sido apresentados por ocasião do requerimento do benefício.


A testemunha João Francisco Marques de Souza (fl. 942), servidor público do INSS que participou do Polo de Ação de Revisão de Benefícios responsável pela respectiva apuração, perguntado, respondeu que as condutas mencionadas no já citado Relatório de Aditamento correspondem a uma atuação do início ao fim da concessão do benefício, inclusive, com a liberação de pagamento retroativo ao óbito, o que, em geral demandaria um procedimento específico. Confirmou, ainda, recordar-se que ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO estivesse envolvido em diversas concessões irregulares, inclusive durante períodos de licença. Acrescentou que diversos processos administrativos com concessões irregulares apresentavam documentos falsos muito parecidos, ou seja, dando a impressão de que a mesma matriz seria utilizada, pois nos mesmos campos havia determinadas marcas, embora se tratassem, em tese, de documentos antigos.


No mesmo sentido, a testemunha Euclides Paulino da Silva Neto participou dos trabalhos do INSS de apuração das irregularidades e confirmou que ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO havia concedido benefícios irregularmente durante períodos em que se encontrava afastado (fl. 987).


Diante do conjunto probatório formado nos autos, é possível concluir, sem dúvidas, que ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO atuou na concessão irregular de benefícios tendo conhecimento das falsidades dos documentos. Contrariamente ao que expõe em suas razões recursais, o fato de o INSS, em sua apuração administrativa, ter diligenciado em cartórios com o objetivo de obter informações sobre a autenticidade dos documentos apresentados, não significa que sua conduta estaria isenta de responsabilidade. Isso porque, conforme afirmado tanto pelas testemunhas como pelo Oficial de Registro Civil do 31º Subdistrito em Pirituba, a certidão de óbito de Osmundo Rocha da Silva fora grotescamente falsificada e tais falsidades eram reiteradamente realizadas em outros processos, pelo mesmo modus operandi, exigindo-se de ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO, no mínimo, a identificação de suspeita e a correspondente averiguação da veracidade dos documentos apresentados pelo requerente. Contrariamente ao que se esperava, o acusado trabalhou em todas as etapas do procedimento, concedendo o benefício ao suposto segurado.


Como se não bastasse, em conduta diversa daquela recomendada, segundo afirmou a testemunha João Francisco Marques de Souza, o acusado procedeu a novo cadastro de NIT de Osmundo Rocha da Silva sem notar que este já o possuía, sendo que o segundo NIT foi cadastrado com dados constantes nos documentos apresentados, os quais não correspondiam àqueles registrados no Sistema de Controle de Óbitos.


Anote-se, outrossim, que o fato de seus superiores hierárquicos, não terem, eventualmente, percebido as irregularidades, não afasta o conjunto probatório formado em desfavor do acusado.


Acrescente-se que o corréu IURI VANITELLI, o qual foi condenado por meio da sentença prolatada às fls. 1257/1265, tendo sido sua punibilidade, posteriormente, extinta pela prescrição, afirmou, em Juízo (fl. 458), que trabalhava para ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO como office boy, atuava como procurador em requerimentos de benefícios previdenciários e teria, ainda, guardado alguns documentos pessoais do servidor do INSS em sua residência, embora tenha negado ter conhecimento das fraudes. Em tal contexto, não surpreende que não tenham sido encontrados apetrechos ligados às falsidades na residência de ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO, conforme por ele salientado em suas razões recursais.


Ante o exposto entende-se demonstrada a atuação de ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO na prática do crime ora em julgamento.


ABSOLVIÇÃO IMPRÓPRIA


Não havendo fundamento para o deferimento dos pedidos de absolvição formulados pelo acusado, passa-se à análise de sua imputabilidade penal e de seus pedidos subsidiários envolvendo a aplicação de medida de segurança de tratamento ambulatorial.


Anote-se que, embora na sentença, o r. Juízo de primeiro grau tenha se manifestado favoravelmente ao tratamento ambulatorial, acabou por determinar, no dispositivo da sentença, a medida de segurança de internação pelo prazo de 2 (dois) anos. Assim, a insurgência do acusado será apreciada conforme o decidido no aludido dispositivo.


Desde o cumprimento do Mandado de Citação de ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO teve-se conhecimento, por meio de sua mulher, Akiko de Cássia Ishikawa, de que o acusado fora interditado civilmente, tendo sido apresentada ao Oficial de Justiça, a respectiva certidão (fls. 600/601). Diante de tal informação, foi instaurado o Incidente de Insanidade Mental n. 0005286-64.2013.403.6181, cuja conclusão, em 20.03.2014 (fls. 1209/1213) embasada no Laudo Pericial constante às fls. 1196/1208, foi no sentido de que o acusado era, ao tempo da infração, inimputável, com fundamento no art. 26, caput, do Código Penal (Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento).


Naquele mesmo momento foi determinada a suspensão da ação principal quanto a ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO, uma vez que o mesmo laudo apontara que o réu apresentava insanidade mental ainda naquela época em decorrência do prejuízo cognitivo advindo pelo constante uso de drogas, bem como pela possibilidade de ter recaídas na utilização do crack (fls. 1207/1208). Posteriormente, tal decisão foi revista pelo r. Juízo de primeiro grau, tendo-se determinado o prosseguimento do feito em 17.04.2017 (fl. 1265v).


Por ocasião da elaboração do aludido laudo, o acusado havia sido internado por dezoito vezes, havendo relato de que sua dependência química aumentou após 1995, quando passou a consumir crack, tendo, a partir de então, feito uso diário da droga no ano de 2002. Consta, ainda, do documento que o acusado começou a fumar aos nove anos de idade e a beber aos doze anos. Aos dezoito anos passou a fazer uso de maconha e álcool com o objetivo de se desinibir sexualmente, havendo menção no laudo de que tenha sofrido abuso sexual na infância. Aos vinte anos de idade passou a fazer uso de cocaína injetável, e em razão de tal vício deu-se a sua primeira internação. Em resposta ao quesito da defesa (pergunta n. 2), o perito respondeu afirmativamente à assertiva: O dependente químico deve ser visto como portador de doença multicausal, que necessita, no curso do tratamento, de intervenções em diversos níveis, complementando que o acusado estaria recebendo este tipo de tratamento (fls. 1160 e 1208).


Da análise dos autos e das razões recursais, tem-se que o pedido subsidiário de ROGÉRIO AGUIAR DE ARAÚJO deve ser acolhido. Sublinhe-se que, a despeito da previsão do art. 97 (Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial), tal regra não deve ser adotada de forma absoluta.


A medida de segurança é espécie de sanção penal com função preventiva e terapêutica, sendo sua aplicação norteada pela análise da periculosidade social do autor de um fato típico e ilícito. Sob tal contexto, tem-se entendido que a espécie de medida de segurança a ser aplicada no caso concreto não deve ter como único fundamento a pena abstratamente cominada ao crime. Neste sentido, registre-se os seguintes precedentes:


HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. ESTELIONATO. INIMPUTABILIDADE. ABSOLVIÇÃO IMPRÓPRIA. MITIGAÇÃO DO ART. 97 DO CÓDIGO PENAL. TRATAMENTO AMBULATORIAL. POSSIBILIDADE. LAUDOS MÉDICOS. REDUZIDO GRAU DE PERICULOSIDADE DO PACIENTE. CRIME PRATICADO SEM VIOLÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA. RESPALDO FAMILIAR. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Esta Corte e o Supremo Tribunal Federal pacificaram orientação no sentido de que não cabe habeas corpus substitutivo de revisão criminal e de recurso legalmente previsto para a hipótese, impondo-se o não conhecimento da impetração, salvo quando constatada a existência de flagrante ilegalidade no ato judicial impugnado a justificar a concessão da ordem, de ofício. 2. A par do entendimento jurisprudencial deste Tribunal Superior, no sentido da imposição de medida internação quando o crime praticado for punível com reclusão - reconhecida a inimputabilidade do agente -, nos termos do art. 97 do Código Penal, cabível a submissão do inimputável a tratamento ambulatorial, ainda que o crime não seja punível com detenção. (REsp 912.668/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, julgado em 18/3/2014, DJe de 7/4/2014). 3. Não se apresenta razoável, proporcional e tampouco recomendada a internação de pessoa portadora de esquizofrenia em hospital de custódia para tratamento psiquiátrico, que cometeu infração penal sem violência ou grave ameaça, apresenta reduzido grau de periculosidade social e possui respaldo familiar para a disponibilização do necessário para o tratamento de sua enfermidade. 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para restabelecer a sentença absolutória imprópria, que aplicou a medida de segurança de tratamento ambulatorial ao ora paciente.
(HC - HABEAS CORPUS - 503889 2019.01.03320-1, REYNALDO SOARES DA FONSECA, STJ - QUINTA TURMA, DJE DATA:18/09/2019) - destaque nosso.
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. INIMPUTÁVEL. MEDIDA DE SEGURANÇA. DELITO PUNÍVEL COM PENA DE RECLUSÃO. TRATAMENTO AMBULATORIAL. CABIMENTO. ART. 97. MITIGAÇÃO. ADEQUAÇÃO DA MEDIDA À PERICULOSIDADE DO AGENTE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Levando-se em consideração o propósito terapêutico da medida de segurança e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é viável a aplicação de tratamento ambulatorial, mesmo em se tratando de prática de crime punido com reclusão. 2. O tratamento ambulatorial foi imposto ao recorrido depois de cuidadosa análise das peculiaridades do caso, havendo sido constatada a desnecessidade da internação para o fim de cura da periculosidade. 3. Agravo regimental não provido.
(AIRESP - AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - 1805564 2019.00.94925-9, ROGERIO SCHIETTI CRUZ, STJ - SEXTA TURMA, DJE DATA:02/12/2019) - destaque nosso.
APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO PRATICADO EM FACE DA UNIÃO. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. MEDIDA DE SEGURANÇA. TRATAMENTO AMBULATORIAL. APELO PROVIDO EM PARTE. 1 - A materialidade, autoria e o dolo são induvidosos. As provas documentais e orais trazidas aos autos confirmaram a participação do réu na fraude contra a União. 2 - O incidente de insanidade mental concluiu pela inimputabilidade do réu. Dessa forma, comprovadas a materialidade e a autoria do crime, bem como, a incapacidade do réu, à época dos fatos criminosos, de determinar-se, deve ser aplicada a medida de segurança ao caso (artigo 26 e 97 do Código Penal). 3- No entanto, muito embora o fato praticado seja punível com pena de reclusão, acarretando, na literalidade da Lei, internação em hospital de custódia, observa-se que o Laudo Pericial constante dos autos recomenda para o réu tratamento psiquiátrico ambulatorial, por tempo indeterminado. 4 - Diante disso, e à luz dos princípios da proporcionalidade e da humanidade, a medida de segurança aplicada deve ser o tratamento ambulatorial, devendo ser enviados ao Juízo competente, anualmente, relatórios circunstanciados acerca do tratamento desenvolvido e da saúde psíquica do réu. 5 - Apelo da acusação parcialmente provido.
(APELAÇÃO CRIMINAL - 75039 - 0002864-21.2012.4.03.6127, RELATOR JUIZ CONVOCADO FERREIRA DA ROCHA, TRF3 - DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:13/08/2018) - destaque nosso.

No caso em tela, do conjunto probatório formado nos autos, tem-se que o acusado luta há muitos anos contra a dependência de drogas, tendo sido internado por inúmeras vezes, sempre com o acompanhamento de sua mulher, a qual é também sua curadora.


Tratando-se de crime de estelionato praticado em face do INSS, é certo que as condutas típicas e ilícitas praticadas pelo acusado não se deram com violência ou grave ameaça à pessoa. De outro lado, o laudo pericial anteriormente mencionado aponta que em situações de abstinência o adicto pode apresentar sintomas de extrema violência, agressividade que se manifesta, a princípio contra a própria família e depois se volta contra a sociedade em geral com visível aumento do número de crimes relacionados ao uso do crack (fl. 1204).


Registre-se, contudo, que tanto o fato ora em julgamento, com aqueles apontados em sua folha de antecedentes (fl. 6v dos autos apensados) foram praticados no exercício de cargo que o acusado não mais ocupa, sendo, portanto, mais razoável, que continue o tratamento terapêutico a que já se submete, com vista à recuperação de sua dependência. Certamente, tal entendimento não obsta nova conversão, diante de necessidade atual que possa ser apurada pelo Juízo das Execuções Penais, nos termos dos arts. 66, inciso V, alínea "f" e inciso VI, e 176, ambos da Lei n.º 7.210, 11.07.1984, que dispõem:


Art. 66. Compete ao Juiz da execução:
(...)
V - determinar:
(...)
f) a desinternação e o restabelecimento da situação anterior
(...)
VI - zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança.
Art. 176. Em qualquer tempo, ainda no decorrer do prazo mínimo de duração da medida de segurança, poderá o Juiz da execução, diante de requerimento fundamentado do Ministério Público ou do interessado, seu procurador ou defensor, ordenar o exame para que se verifique a cessação da periculosidade, procedendo-se nos termos do artigo anterior.

No que diz respeito ao prazo estabelecido pelo r. Juízo a quo, de 2 (dois) anos de medida de segurança, entende-se adequado ao caso concreto, mantendo-se tal determinação, que consistirá, portanto, em tratamento ambulatorial, nos termos do art. 96, inciso II, do Código Penal, com acompanhamento médico perante o Juízo das Execuções Penais e avaliação periódica semestralmente. Anote-se que, tendo sido estabelecido tal prazo total, sem qualquer outro apontamento, mantém-se tal determinação, sob pena de se incorrer em reformatio in pejus.


Ante o exposto, VOTO POR DAR PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO da defesa, mantendo a ABSOLVIÇÃO IMPRÓPRIA reconhecida em primeiro grau, determinando-se, porém, a aplicação de medida de segurança consistente em tratamento ambulatorial, nos termos do art. 96, inciso II, do Código Penal, pelo prazo de 2 (dois) anos, com avaliação semestral perante o Juízo das Execuções Penais.

É o voto.


FAUSTO DE SANCTIS
Desembargador Federal


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