Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

D.E.

Publicado em 05/10/2021
APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0001092-61.2014.4.03.6124/SP
2014.61.24.001092-9/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
APELANTE : Justica Publica
ADVOGADO : PR020589 GILSON BONATO
: PR039877 RONALDO DOS SANTOS COSTA
APELANTE : CELSO ROSSANI DOS SANTOS
: NELSON DE SOUZA LIMA JUNIOR
ADVOGADO : SP211000 PATRICIA CARDOSO MEDEIROS DE CASTRO
APELANTE : HERICA RUFINO CUNHA GARAVELO
ADVOGADO : SP240582 DANUBIA LUZIA BACARO (Int.Pessoal)
APELADO(A) : Justica Publica
ADVOGADO : PR020589 GILSON BONATO
: PR039877 RONALDO DOS SANTOS COSTA
APELADO(A) : CELSO ROSSANI DOS SANTOS
: NELSON DE SOUZA LIMA JUNIOR
ADVOGADO : SP211000 PATRICIA CARDOSO MEDEIROS DE CASTRO e outro(a)
APELADO(A) : HERICA RUFINO CUNHA GARAVELO
ADVOGADO : SP240582 DANUBIA LUZIA BACARO (Int.Pessoal)
No. ORIG. : 00010926120144036124 1 Vr JALES/SP

EMENTA

DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CÓDIGO PENAL. ARTIGO 149. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. CARÁTER NEGOCIAL DO ANPP. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. DOLO ATESTADO. DOSIMETRIA. TESE DO TERMO MÉDIO REJEITADA. PENA PARCIALMENTE REDIMENSIONADA. VALOR DO DIA-MULTA REDIMENSIONADO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA MANTIDA. JUSTIÇA GRATUITA CONCEDIDA PARA UM DOS RÉUS. APELAÇÃO DA ACUSAÇÃO E DA DEFESA PARCIALMENTE PROVIDAS.
1. Recursos de apelação interpostos pela acusação e pelas defesas contra sentença em que foram condenados os corréus pela prática do delito tipificado no art. 149, caput, do Código Penal (redução a condição análoga à escravidão).
2. A defesa pleiteou a aplicação do art. 28-A do CPP. O Ministério Público Federal manifestou-se no sentido de que não tem interesse em propor acordo de não persecução penal nos termos do art. 28-A do Código de Processo Penal. O oferecimento de ANPP não é direito público subjetivo do investigado. Ao revés, tal instituto constitui poder-dever do titular da ação penal, a quem cabe analisar a possibilidade de sua aplicação. Diante disso, não cabe qualquer manifestação desta Corte quanto ao tema, dado esse caráter negocial do ANPP, que pressupõe a atuação da defesa e da acusação (ao Poder Judiciário cabe a verificação das condições e sua viabilidade e, se o caso, a homologação judicial).
3. Autoria e materialidade. Comprovação. Prova testemunhal e documental. Documentos juntados aos autos e depoimentos das vítimas e testemunhas ouvidas em sede policial e em juízo, dão conta de um quadro de vida e trabalho degradantes envolvendo trabalhadores da empresa pertencente a um dos corréus. Relatos extrajudiciais de diversas vítimas. Práticas do réu que, aproveitando-se da vulnerabilidade concreta das vítimas, a elas impingia jornadas exaustivas de trabalho em condições degradantes que consistiam em ausência de alojamento adequado, ausência de banheiro no local onde os serviços eram prestados, ausência de fornecimento de alimentação adequada, impossibilidade de comunicação entre a empresa e o funcionário alocado e sujeição a jornadas exaustivas, de até mais de 48 (quarenta e oito) horas seguidas. Dolo patente na execução da conduta.
4. Dosimetria. Alterações. Tese de aplicação do termo médio rejeitada.
4.1.1ª fase. Afastamento da valoração negativa das consequências do crime para evitar "bis in idem".
4.2. Valor do dia-multa reduzido para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para dois dos acusados.
4.3. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos mantida.
4.4. Benefício da justiça gratuita concedido a um dos acusados.
5. Recursos da apelação e da defesa parcialmente providos.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, conhecer dos recursos de apelação e, no mérito, DAR PARCIAL PROVIMENTO ao recurso de apelação do Ministério Público Federal para fixar o regime inicial de cumprimento de pena para o réu Celso como semiaberto; e ao recurso defensivo para redimensionar o valor unitário do dia-multa para os réus Celso e Herika e para conceder o benefício da justiça gratuita ao réu Celso, fixando-se a pena dos acusados em 03 (três) anos, 11 (onze) meses e 19 (dezenove) dias de reclusão em regime semiaberto, além de 17 (dezessete) dias-multa, redimensionando-se o valor de cada dia-multa para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para o acusado Celso Rossanni dos Santos; 05 (cinco) anos, 09 (nove) meses e 12 (doze) dias de reclusão, além de 26 (vinte e seis) dias-multa, sendo o valor do dia-multa equivalente a 1/8 (um oitavo) do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para o acusado Nelson de Souza Lima Junior e; 02 (dois) anos, 07 (sete) meses e 22 (vinte e dois) dias de reclusão, além de 11 (onze) dias-multa, redimensionando-se o valor de cada dia-multa para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para a acusada Herika Rufino Cunha Garavelo, mantida a substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos para esta última, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

São Paulo, 23 de setembro de 2021.
JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


Documento eletrônico assinado digitalmente conforme MP nº 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que instituiu a Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil, por:
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APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0001092-61.2014.4.03.6124/SP
2014.61.24.001092-9/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
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: NELSON DE SOUZA LIMA JUNIOR
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RELATÓRIO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:


Trata-se de recursos de apelação, interpostos pelo Ministério Público Federal e por Nelson de Souza Lima Junior, Celso Rossanni dos Santos e Herica Rufino da Cunha Garavelo contra sentença de fls. 750/765, por meio da qual os ora apelantes foram condenados devido à prática do delito tipificado nos art. 149 c.c. art. 29, ambos do Código Penal, nos autos de ação penal pública incondicionada em face dele ajuizada pelo Ministério Público Federal.


Narrou-se na exordial acusatória (fls. 175/177v), quanto ao essencial, o seguinte:

"Consta dos autos que Nelson de Souza Lima Junior e Herica Rufino da Cunha Garavelo, na condição, respectivamente, de sócio proprietário e gerente administrativa da empresa COS Emergencial Intermediação e Agendamento Ltda. (CNPJ: 07103056/0001-10), localizada em Santa Fé do Sul/SP, contando com a participação de Celso Rossanni dos Santos, funcionário com poder de gerenciamento na empresa, de forma consciente, livre e voluntária, durante o período compreendido entre os anos de 2005 a 2010, reduziram a condição análoga à de escravo os funcionários a seguir identificados, que prestavam serviços em trechos ferroviários, submetendo-os a jornadas exaustivas e sujeitando-os a condições degradantes de trabalho.
Conforme apurado, a empresa em questão contratou e manteve vínculo empregatício com os funcionários Antonio Joaquim Eufrazio, Claudir Lazarini, Daniel Aparecido Fernandes da Silva, Jean Renilson de Souza, José Ricci e Weber Guiliano Barbosa, para a prestação de serviços gerais terceirizados às empresas "ALL - América Latina Logística do Brasil S.A." e/ou "Ferronorte S/A Ferrovias Norte Brasil", consistentes na escolta e guarda de vagões descarrilados e suas respectivas cargas, em trechos de ferrovia operados sob concessão das referidas empresas, notadamente nas cidades de Santa Fé do Sul/SP, Chapadão do Sul/MS, Campo Grande/MS, Alto Taquari/MT e Alto Araguaia/MT, nos períodos (aprox..) detalhados na tabela que segue.
[...]
No entanto, conforme os depoimentos prestados pelos referidos trabalhadores, constantes das folhas referenciadas na primeira coluna da tabela acima, a empresa não fornecia as condições mínimas e dignas de trabalho, deixando os funcionários por longos períodos sem alimentação, água, sanitários, comunicação e equipamentos básicos para descanso (barracas, lanternas, etc.), além de submetê-los ao cumprimento de jornadas exaustivas, até o recolhimento da carga tombada.
[...]
Inquirida pela Exma. Autoridade Policial, a denunciada Herica Rufino da Cunha Garavelo declarou que exerceu a função de gerente administrativa da empresa denunciada de abril de 2008 a junho de 2011, confessando que "tinha conhecimento das péssimas condições de trabalho dos funcionários que ficavam encarregados de cuidar dos vagões descarrilados", assim como o denunciado Nelson, sócio-proprietário da empresa (fls. 93/94).
A participação de Celso Rossanni dos Santos nos crimes narrados, por sua vez, resta comprovada pelos depoimentos da vítima Antonio Joaquim Eufrazio (fl. 60) e da denunciada Hérika, no sentido de que o denunciado era o responsável pelo gerenciamento dos trabalhadores e também tinha pleno conhecimento das condições indignas nas quais eram submetidos.
Assim, a materialidade e a autoria dos fatos estampam-se notadamente nos termos de declarações das vítimas e da denunciada Hérika Rufino Cunha Garavelo, bem como na Ficha Cadastral Completa da empresa COS Emergencial (fls. 89/90)."

Citaram-se provas iniciais de autoria e materialidade delitivas quanto aos fatos em tese criminosos.


Forte nisso, requereu o Ministério Público Federal o recebimento da denúncia, seu processamento e a condenação de Nelson de Souza Lima Junior, Celso Rossanni dos Santos e Herica Rufino da Cunha Garavelo pela prática de condutas amoldadas ao art. 149, caput, c.c. art. 29, ambos do Código Penal.


A denúncia foi recebida em 18 de fevereiro de 2015 (fls. 180/180v).


Após seguimento do feito, sobreveio sentença condenatória (fls. 750/765). Entendeu o Juízo de origem terem sido comprovadas autoria e materialidade delitivas das imputações. No dispositivo, julgou procedente a pretensão punitiva deduzida na preambular, condenando Nelson de Souza Lima Junior, Celso Rossanni dos Santos e Herica Rufino da Cunha Garavelo pela prática dos crimes previstos nos arts. 149, caput, c.c. art. 29, ambos do Código Penal, às penas de 05 (cinco) anos e 08 (oito) meses de reclusão, além de 188 (cento e oitenta e oito) dias-multa, no valor de 1/8 (um oitavo) do salário mínimo vigente ao tempo dos fatos para o corréu Nelson, 03 (três) anos, 01 (um) mês e 19 (dezenove) dias de reclusão, além do pagamento de 95 (noventa e cinco) dias-multa, no valor de 1/15 (um quinze avos) para o corréu Celso e 03 (três) anos e 13 (treze) dias de reclusão, substituídas por penas restritivas de direitos, além do pagamento de 72 (setenta e dois) dias-multa, no valor de 1/10 (um décimo) do valor do salário mínimo para a corré Herika.


A sentença foi publicada em 25 de janeiro de 2019 (fl. 766).


O Ministério Público Federal interpôs recurso de apelação, em cujas razões (fls. 768/776) pleiteia a revisão da dosimetria da pena, alterando-se o cálculo da pena-base para o "termo médio", além do afastamento da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos para a corré Herika e imposição de regime inicial de cumprimento de pena mais gravoso.


A defesa dos corréus Nelson e Celso interpôs recurso de apelação (fl. 777). Nas razões recursais (fls. 785/808), pleiteiam a absolvição alegando não haver suficientes da materialidade e autoria do crime. Subsidiariamente, pleiteiam a diminuição das penas ao mínimo legal, sustentando a ocorrência de bis in idem na segunda e terceiras fases da dosimetria, além da diminuição do valor das penas de multa em razão da situação financeiras dos acusados e a concessão dos benefícios da justiça gratuita. Por fim, para fins de prequestionamento, alegou a utilização de analogia pelo magistrado para realizar a adequação típica.


A defesa da corré Herika também interpôs recurso de apelação, em cujas razões (fls. 887/900) requereu a absolvição por ausência de provas de materialidade e por ausência de dolo.


Contrarrazões apresentadas pelo Ministério Público Federal a fls. 821/831v e 926/931v e pelos corréus a fls. 838/862 e 901/907.


A Procuradoria Regional da República opinou pelo desprovimento do recurso da apelação e do recurso da corré Herika e pelo parcial provimento do recurso da defesa dos corréus Nelson e Celso, para a redução do valor da pena de multa ao corréu Celso (fls. 935/942).


É o relatório.


Submeto a revisão, nos termos regimentais.



JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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Data e Hora: 27/09/2021 18:50:03



APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0001092-61.2014.4.03.6124/SP
2014.61.24.001092-9/SP
RELATOR : Desembargador Federal JOSÉ LUNARDELLI
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: PR039877 RONALDO DOS SANTOS COSTA
APELANTE : CELSO ROSSANI DOS SANTOS
: NELSON DE SOUZA LIMA JUNIOR
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No. ORIG. : 00010926120144036124 1 Vr JALES/SP

VOTO

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço dos recursos interpostos e passo ao seu exame.

I - Do acordo de não persecução penal - Art. 28-A do CPP

A defesa dos corréus Celso e Nelson foi intimada acerca do julgamento do recurso e pleiteou a aplicação do art. 28-A do CPP (fls. 981/982v). O Ministério Público Federal manifestou-se no sentido de que não tem interesse em propor acordo de não persecução penal nos termos do art. 28-A do Código de Processo Penal, conforme requerido, ao argumento de que tal acordo não se revela cabível nesta etapa processual, pois "ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, a denúncia já havia sido recebida pelo Juízo 'a quo' (10/02/2015), o que torna descabida a incidência do benefício. A propósito, nesse momento, também já havia ssentença condenatória prolatada em face dos acusados (18/02/2019)" (fls. 984/985v).

O oferecimento de ANPP não é direito público subjetivo do investigado. Ao revés, tal instituto constitui poder-dever do titular da ação penal, a quem cabe analisar a possibilidade de sua aplicação. Diante disso, não cabe qualquer manifestação desta Corte quanto ao tema, dado esse caráter negocial do ANPP, que pressupõe a atuação da defesa e da acusação (ao Poder Judiciário cabe a verificação das condições e sua viabilidade e, se o caso, a homologação judicial).

Destarte, ante o teor da manifestação do Parquet, passo ao exame do recurso.

II - Da materialidade e da autoria delitivas

Imputa-se aos réus a prática amoldada ao art. 149, caput, do Código Penal, cujo teor transcrevo:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Como se nota pelos núcleos do tipo, não se trata apenas da escravidão antiga, em seu sentido de redução estrita de outro ser humano à condição inadmissível de propriedade de alguém. É criminalizada no art. 149 do CP qualquer prática que reduza substancialmente a dignidade humana em relações de controle laboral, seja por meio da redução de locomoção, seja por meio da imposição prática de jornadas exaustivas e condições degradantes de vida e trabalho. É evidente, pela própria natureza disjuntiva das condutas descritas, que nesses últimos casos não se exige qualquer restrição da liberdade física. O que há, em tais circunstâncias, é a especial exploração da vulnerabilidade econômica, física e/ou cultural das vítimas, de maneira a subjugá-las e retirar-lhes o patamar de dignidade estabelecido como piso civilizatório pelo ordenamento pátrio. Assentadas brevíssimas colocações de ordem geral, passo ao exame concreto.

A materialidade do crime previsto no art. 149 do Código Penal foi devidamente demonstrada.

Consta dos autos que a empresa era contratada como mediadora de mão de obra terceirizada pelos gestores das ferrovias ALL (América Latina Logística do Brasil S/A) e Ferronorte S/A Ferrovias Norte Brasil e, nessa condição, era responsável por alocar funcionários para vigiar locais onde havia tombamento de cargas em decorrência de acidentes nas vias até que houvesse o recolhimento. Muitas vezes os acidentes ocorriam em locais ermos e os funcionários permaneciam por longo período em situação de trabalho degradante.

Da análise da prova documental e oral produzida se depreende que as condições degradantes consistiam em: a) ausência de alojamento adequado para os vigias que tinham de permanecer nos locais onde ocorriam os acidentes; b) ausência de banheiro no local onde os serviços eram prestados; c) ausência de fornecimento de alimentação adequada; d) ausência de possibilidade de comunicação entre a empresa e o funcionário alocado e; e) sujeição à jornadas exaustivas, de até mais de 48 (quarenta e oito) horas seguidas.

O boletim de ocorrência (fls. 08 do apenso I) e os documentos oriundos das ações trabalhistas (apensos do processo originário), bem como os depoimentos das vítimas e testemunhas ouvidas em sede policial e em juízo, dão conta de um quadro de vida e trabalho degradantes envolvendo trabalhadores da empresa COS Emergencial Intermediação e Agendamentos Ltda.

O mesmo se diga dos consistentes relatos das vítimas e testemunhas. Cito, a propósito, o depoimento da vítima Antonio Joaquim Eufrazio, ouvido em sede policial (fls. 60 do volume I):

"2- Trabalhei para a empresa COS por cerca de 7 anos e há cerca de 2 anos saí da empresa, onde exercia o cargo de auxiliar de serviços gerais, mas quando vagões descarrilhados eu cuidava desses vagões no local em que estivessem; 3- Trabalhava na guarda de vagões descarrilhados, sendo que as condições de trabalho não eram boas, com falta de alimentação, bem como de local para descanso, sanitários e ainda comunicação com a empresa; 4- Ficava cuidando de vagões de 5 a 20 dias ininterruptos e nas mesmas condições; 5- Quando cuidava dos vagões descarrilhados não tinha assistência nenhuma da empresa; 6- CELSO era a pessoa que cuidava do gerenciamento dos trabalhadores que cuidavam dos vagões acidentados, o qual tinha conhecimento da situação que estávamos sendo submetidos; 7- A pessoa que gerenciava a empresa era Érica Rufino, a qual acredito que tinha conhecimento de nossas condições de serviço e nada fez para melhorar isso; (...) Posso informar que sofri um derrame cerebral e estou sofrendo de convulsões, sendo que acredito que isso é advindo de como trabalhava, principalmente porque ficava exalando cheiro de soja dos vagões descarrilhados."

No mesmo sentido e com teor similar foi o depoimento da vítima José Ricci (fls. 65/67 do volume I):

"Que, em resposta ao terceiro quesito afirmou que trabalhava, como afirmou anteriormente, na guarda ou vigilância de vagões descarrilhados e locomotivas avariadas, e quanto às condições de trabalho informa que não havia alimentação (o próprio declarante levava sua alimentação), não havia local apropriado para descanso, tampouco sanitários, sendo que o declarante tinha que procurar um rio para tomar banho e o mato para fazer necessidades fisiológicas, sendo que certa vez chegou a ficar oito dias sem tomar banho, pois não havia rio próximo ao local onde estava vigiando os vagões, tendo o fato ocorrido na estação de Formoso; Que, dormia em rede em árvores próximos ao local ou jogava uma lona ao lado dos vagões tombados, dormindo ao relento; Que, em resposta ao quesito disse que era variável, a depender do local da ocorrência, sendo que foi rendido após 24 horas, mas também já ficou nos locais por 150 horas, sendo que na média era de quatro dias direto (96 horas); Que, em resposta ao quinto quesito disse que quando ficava cuidando dos vagões que descarrilhavam não recebia nenhum tipo de assistência por parte da empresa, sequer apareciam para entregar água ou mantimentos, sendo que só aparecia alguém quando a equipe ia ser trocada; Que, em resposta ao sexto quesito disse que o responsável pelas equipes e as trocas era JOSÉ MELQUIADES VELASQUEZ, sendo que ele tinha pleno conhecimento das condições de trabalho a quais eram submetidos os empregados, sendo que ele foi dispensado da empresa por reivindicar melhorias para os trabalhadores, como o declarante; Que, em resposta ao sétimo quesito disse que não sabe quem era o gerente da empresa, sabendo informar que o pessoal de JALES/SP, proprietários da empresa COS EMERGENCIAL E INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA., sabia das condições de trabalho dos empregados; (...) Que, em resposta ao décimo segundo quesito disse que na época a empresa pagava R$2,80 (dois reais e oitenta centavos) a hora de trabalho, sendo que o declarante saiu porque a empresa queria diminuir o valor pago pela hora trabalhada, sendo que nunca deram recibo de pagamento."

José Melquíades Velasquez, empregado à época responsável por organizar as equipes de trabalho quando ocorriam descarrilamentos de vagões, também relatou em sede policial as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os trabalhadores (fls. 68/70 do volume I):

"Que, em resposta ao sexto quesito disse que era o DECLARANTE que o responsável por gerenciar os trabalhadores que cuidavam dos vagões acidentados, tendo conhecimento das condições de trabalho a quais eram submetidos os empregados, sendo que ele foi dispensado da empresa por reivindicar melhores condições de trabalho com o fornecimento de capa de chuva, barraca, aumento de diárias pagas, ajuda alimentação; Que, em resposta ao sétimo quesito disse que a gerencia da empresa ficava em Santa Fé do Sul/SP, proprietários da empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA, que tinham conhecimento das condições de trabalho dos empregados; (...) Que, em resposta ao décimo segundo quesito disse que na época a empresa pagava R$2,80 (dois reais e oitenta centavos) a hora de trabalho; Que, não havia local apropriado para os empregados fazerem as necessidades fisiológicas, sendo que as condições eram menos ruins quando os vagões paravam perto de alguma cidade, mas, mesmo assim, os próprios empregados 'corriam atrás' das melhorias, de forma independente da empresa, que nada fornecia (além dos itens já citados anteriormente)."

O depoimento das vítimas Jean Renilson Rosa de Souza (fls. 80/81) e Weber Giuliano Barboza (fls. 86/87) colhido em sede policial corrobora o teor dos depoimentos transcritos. A corré Herica Rufino Cunha Garavelo, em seu interrogatório policial (fls. 93/94), confirmou ter ciência das péssimas condições de trabalho a que eram submetidos os empregados, além de afirmar que o corréu Nelson também tinha plena ciência, não só por sua posição de proprietário da empresa, mas também porque ele teve que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no Ministério Público do Trabalho de São José do Rio Preto/SP.

Das cláusulas presentes no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA. e o Ministério Público do Trabalho de São José do Rio Preto/SP (fls. 146/148) se verifica que o quadro laboral e de vida com diversas irregularidades graves a que eram submetidos os empregados realmente existiam. Do contrário, não seria necessário a assinatura de tal termo pelos responsáveis pela empresa. Transcrevo as cláusulas:

"1. Observar a duração normal da jornada de trabalho, de acordo com os artigos 58 e 59 da CLT, ressalvada a prestação de horas extras, na forma legal;
2. Disponibilizar transporte e estadia em local adequado para os seus empregados, quando da prestação de serviços de segurança de mercadorias em vagões nas ferrovias;
3. Disponibilizar nas frentes de trabalho, abrigos, fixos ou móveis, que protejam os trabalhadores contra as intempéries;
4. Disponibilizar suprimentos alimentares e água potável e fresca em quantidade suficiente nas frentes de trabalho, conforme NR-24, em seu item 24.7.1;
5. Disponibilizar nas frentes de trabalho, instalações fixas ou móveis compostas de vasos sanitários e lavatórios, na proporção de um conjunto para cada grupo de quarenta trabalhadores ou fração, conforme a NR-24;
6. Garantir pausas para descanso dos trabalhadores nas atividades que foram realizadas necessariamente em pé, conforme disposto no item 17.6.3, "b", da NR-17".

Ressalte-se que o TAC foi firmado no ano de 2011, posteriormente ao período de trabalho de todas as vítimas destes autos.

Nessa linha, há também o teor dos depoimentos judiciais das vítimas e testemunhas. As descrições das condições de trabalho são de teor similar.

O teor geral de irregularidades e ilegalidades foi confirmado em juízo, também, pelas testemunhas Francisco de Assis Cordeiro e Amilton Alves (mídia acostada a fls. 598), maquinistas da linha Ferronorte. Em juízo, disseram socorreram, no dia 14 de outubro de 2005, as vítimas Daniel Aparecido Fernandes da Silva e Claudir Lazarini, que à época trabalhavam na empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA., o que ocorreu próximo ao município de Aparecida do Taboado/MS. Relataram que encontraram os trabalhadores que estavam com fome, sede e apresentavam quadro de febre, diante das precárias condições de trabalho a que estavam submetidos.

Francisco de Assis Cordeiro relatou que:

"Eu estava de regresso para minhas férias, estava retornando para Santa Fé do Sul, e num pátio de cruzamento eu fiquei aguardando o cruzamento com outro trem que estava em direção contrária. O maquinista desse trem passou por mim e disse que havia dois trabalhadores que lhe disseram que estavam passando muto mal, estão com febre, com fome e sede, e disse para mim dirigir até lá devagar, porque pode ocorrer deles estarem caídos na linha. Como eu estava de retorno para Santa Fé, após o cruzamento, cheguei até o local, com restrição de velocidade, com cuidado, e os trabalhadores estavam me acenando, como sinal de socorro. Eu parei o trem, conversei com eles, e realmente não estavam muito bem, inclusive eu até mediquei eles, com dipirona, alguns medicamentos que eu tinha no bolso. Comuniquei a central de controle de tráfego de trens, porque todas as paradas e partidas temos que comunicar. Informei a situação, pedi autorização para levar eles e foi autorizado. Depois socorri os dois, e levei eles para Santa Fé que era meu destino(...)"

O depoimento da testemunha de defesa Ivair Dionísio de Souza (mídia acostada a fls. 665) corroborou o quadro de péssimas condições de trabalho. Narrou que quando ocorriam descarrilamentos de vagões em locais ermos, os funcionários permaneciam nos locais por vários dias seguidos, chegando a trabalhar por 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas. Já José Melquíades Velasquez (mídia acostada a fls. 598) confirmou seu depoimento prestado perante a autoridade policial, acrescentando que recebia ordens diretamente do corréu Nelson e que o corréu Celso tinha a mesma função que ele (encarregado), contudo Celso tinha maior autoridade. Sobre a ciência dos corréus, disse que os três conheciam as condições de trabalho, pois levava ao conhecimento deles as reclamações e reivindicações pessoais de cada empregado.

As vítimas também foram ouvidas em juízo e foram uníssonas em confirmar os depoimentos prestados perante a autoridade policial.

Antonio Joaquim Eufrazio (mídia acostada a fls. 598) relatou que trabalhou na empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA. por seis meses e recebia ordens diretamente dos corréus Celso e Herika, que eram os responsáveis por leva-lo para os locais mais isolados. Disse que permanecia nestes locais por até 20 (vinte) dias, sem comunicação e fornecimento de água, comida e banheiro e que deveria aguardar a empresa buscá-lo, porque não tinha como ir embora. Sobre a alimentação, afirmou que quando ia para o local levava uma marmita para ficar 12 (doze) horas, período que em tese haveria a troca de equipe, mas que isso não ocorria, já que era levado aos locais e deixado lá por vários dias sem comunicação com a empresa. Narrou, por fim, que acredita que Celso e Herika o castigavam no serviço, já que o deixavam no local isolado e quando chegava a data aprazada para buscá-lo não apareciam.

Do mesmo modo, a vítima Jean Renilson de Souza (mídia acostada a fls. 598) relatou as condições de trabalho a que estava submetido durante o período em que trabalhou na empresa:

"(...) As condições eram bem precárias mesmo, às vezes falavam que ia buscar tarde, deixava lá e depois não te buscava. Deixava você lá de um dia para o outro, e às vezes você fica sem comer, te deixavam uma marmita no almoço para você comer à noite, não tinha onde colocar, na geladeira e nem nada, às vezes tinha que comer feijão estragado e era complicado, muito complicado. (...) Isso ai era direto, era o dia a dia. Pode ver que todo mundo reclamou disso aí, eles te levavam lá, e te deixavam lá, falava que daqui 12h trocava o turno, e às vezes não trocava, ninguém aparecia lá. Não tinha nem como você vim embora, porque você não tinha noção do lugar que você estava, de distância, no meio do mato, vamos supor o trem descarrilava no meio do mato lá eles tinham que colocar uma pessoa lá para ficar olhando, aí você ficava lá, passava a noite e no outro dia de manhã que ia aparecer alguém, e às vezes no outro dia de tarde, às vezes ficava mais de 24h, eu já passei por isso."

A vítima José Ricci (mídia acostada a fls. 598) também informou em juízo o quadro de precariedade absoluta do meio ambiente de trabalho, relatando que ficava nos locais onde estavam os vagões tombados com apenas um garrafão de água, dormindo em redes montadas em árvores durante vários dias, tendo chegado a permanecer por seis dias inteiros sem poder tomar banho e sem qualquer tipo de comunicação com a empresa. No mesmo sentido é o depoimento da vítima Weber Giuliano Barboza (mídia acostada a fls. 637).

Ouvido em juízo, o corréu Nelson de Souza Lima Junior (mídia acostada a fls. 665) negou a prática delitiva. Justificou a permanência dos trabalhadores por mais doze horas em locais isolados em razão da demora no deslocamento para se chegar à cidade, alegando que os trabalhadores escolhiam estar ali.

A corré Herika Rufino Cunha Garavelo foi ouvida em juízo (mídia acostada a fls. 665) e apresentou versão contrária ao seu depoimento prestado em sede policial (fls. 93/94 do volume I), oportunidade em que disse que tinha plena ciência das péssimas condições de trabalho dos funcionários responsáveis por cuidar dos vagões descarrilados. Em seu interrogatório judicial, negou que os empregados fossem submetidos a condições degradantes de trabalho, reputando como estranho o fato de poucos deles terem alegado tal situação. Também afirmou que os funcionários que excediam 24 (vinte e quatro) horas no local de trabalho o faziam por conta própria.

Na mesma linha, em seu interrogatório judicial (mídia acostada a fls. 665), o corréu Celso Rossanni dos Santos negou a prática delitiva. Afirmou que não havia jornada de mais de 24 (vinte e quatro) horas e que havia água, comida, barraca e um cartão corporativo da empresa à disposição dos funcionários.

Por fim, destaque-se que as vítimas eram pessoas de origem muito humilde, atraídas pela oportunidade de emprego em questão. Isso se afigura de especial importância no caso concreto. Ocorre que, confiavam nas condições de trabalho acordadas com os corréus que, no entanto, não eram cumpridas. Em razão da necessidade do trabalho, tornavam-se facilmente exploráveis, "aceitando" as jornadas e condições degradantes impostas pelo empregador de maneira a obterem recursos mínimos, para si mesmos e, em alguns casos, para suas famílias. Desse modo, embora não haja prova de violência física por parte do empregador, apesar de haver prova da restrição visível à liberdade de locomoção das vítimas que eram abandonadas em locais ermos sem comunicação e sem possibilidade de retornar, chegando a ser socorridas por maquinistas que por ali passavam, fica evidenciado o aproveitamento de sua vulnerabilidade e pobreza como mecanismo de perpetuação da exploração sob condições degradantes de vida e extenuantes de trabalho.

Convém destacar novamente, neste ponto, que a redução de outrem à condição análoga à de escravo, por óbvio, não se resume aos estritos casos de restrição total da liberdade e de coação física absoluta. É evidente que o conceito jurídico e sociológico de condição análoga à escravidão é mais amplo, mormente diante dos avanços éticos, sociais e materiais da humanidade nos últimos séculos. De resto, se se tratasse do conceito mais restrito, não se trataria de condição "análoga à de escravo", mas sim de pura e simples escravidão, que é a espécie mais grave e perniciosa que se pode extrair das elementares do art. 149 do Código Penal. O trabalho exercido em condições degradantes, claramente prejudiciais à saúde ou à dignidade humana, se amolda ao precitado tipo penal, em cujo caput se lê expressamente constituir modalidade de prática do crime de redução de outrem a condições análogas às de escravo submeter alguém a "condições degradantes de trabalho".

Comprovado um conjunto de circunstâncias gravíssimas (individualmente, e, em especial, quando vistas em seu todo, como diminuidoras da dignidade e do desenvolvimento efetivamente livre das vítimas), tem-se trabalho exercido em condições degradantes, e submissão de seres humanos a jornadas exaustivas de trabalho, situações que, reitero, se amoldam ao tipo penal constante do art. 149 do Código Penal, configurando, de acordo com o ordenamento pátrio, redução de outrem a condições análogas à escravidão.

Faço um derradeiro esclarecimento no que tange à materialidade. Não se está, aqui, a ignorar os relatos de testemunhas judiciais favoráveis aos corréus (Valdemar Caldeira da Silva e Alexandre Luis dos Santos Felipe - mídia digital de fls. 665). Ocorre que estes não infirmam o amplo conjunto probatório amealhado nos autos e demonstrativo do efetivo estado a que ao menos parcela substancial dos empregados dos corréus era submetida, com condições degradantes e indignas de trabalho e manutenção. O fato de possivelmente alguns dos empregados não terem sido submetidos às mesmas condições degradantes não infirma essa conclusão, especialmente diante dos muitos relatos colhidos pela autoridade policial e em juízo (impedindo qualquer cogitação de conluio malicioso em desfavor do empregador, o que, de resto, nem sequer foi por ele alegado), somado à narrativa das demais testemunhas e dos documentos juntados a estes autos. Não há indícios que qualquer dessas pessoas ostentavam qualquer predisposição contra os corréus, posto que nem mesmo o conheciam antes do início das fiscalizações, o que impede qualquer pensamento hipotético de que estivessem a tentar prejudicá-lo. Diga-se, de outro lado, que foi o corréu Nelson que tentou coagir testemunhas no curso do processo, situação que ensejou denuncia em seu desfavor pelo crime respectivo. Outrossim, a clareza dos depoimentos torna cristalina a situação geral dos trabalhadores vitimados pelas ações do réu/empregador, o que, reitero, não exclui a possibilidade de outros empregados terem tido melhores condições.

Devidamente demonstrada, pois, a ocorrência objetiva, nas condições de espaço e tempo descritas na denúncia, de práticas do crime previsto no art. 149 do Código Penal. A autoria é incontroversa, posto que os próprios apelantes reconhecem ser proprietário e gerentes com maior autoridade sobre os funcionários (no mesmo sentido foram os relatos de todas as vítimas). O mesmo se o diga quanto ao elemento subjetivo, tendo em vista que os corréus conduziram sua conduta ao longo (no mínimo) de vários anos, sendo certo que exerciam o comando direto e a gerência dos negócios em que se deu a redução das vítimas a condições análogas à escravidão, em plenas condições físicas e psíquicas, tendo, pois, consciência e vontade voltadas à execução das práticas.

Provadas autoria e materialidade delitivas, bem como o elemento subjetivo, e ausentes excludentes de qualquer espécie, deve ser mantida a condenação de Nelson de Souza Lima Junior, Celso Rossanni dos Santos e Herica Rufino da Cunha Garavelo pela prática do delito tipificado no art. 149 do Código Penal.

III - Da dosimetria da pena

Em seu apelo, o Ministério Público Federal requer a adoção do "termo médio" como ponto de partida para a fixação da pena-base, pois tal critério permite a avaliação de todas as circunstâncias judiciais, tanto favoráveis, como desfavoráveis. O apelo, contudo, não deve ser acolhido.

O Código Penal não define critérios para majoração da pena-base em razão do reconhecimento de circunstâncias judiciais desfavoráveis, de modo que a existência de uma única circunstância negativa pode elevar a pena ao patamar máximo, desde que para tanto haja fundamentação idônea.

Nesse sentido, trago precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

"PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. TRÁFICO DE DROGAS. DOSIMETRIA. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. ELEVADA QUANTIDADE DE ENTORPECENTES APREENDIDOS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. REGIME SEMIABERTO. CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. [...] No presente caso, o Tribunal de origem, de forma motivada e de acordo com o caso concreto, atento as diretrizes do art. 42 da Lei de Drogas e do art. 59, do Código Penal, considerou a quantidade, a natureza e a variedade dos entorpecentes apreendidos com o paciente, vale dizer, 56 porções de cocaína pesando 17,5 gramas, 44 porções de maconha pesando 43 gramas, 107 pedras de crack pesando 18 gramas, para exasperar a reprimenda-base, inexistindo flagrante ilegalidade a ser sanada pela via do writ. IV - Quanto ao critério numérico de aumento para cada circunstância judicial negativa, insta consignar que "A análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal não atribui pesos absolutos para cada uma delas a ponto de ensejar uma operação aritmética dentro das penas máximas e mínimas cominadas ao delito." (AgRg no REsp n. 143.071/AM, Sexta Turma, Relª. Minª. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 6/5/2015). Precedentes. V - No que tange ao regime inicial de cumprimento de pena, cumpre registrar que o Plenário do col. Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90 - com redação dada pela Lei n. 11.464/07, não sendo mais possível, portanto, a fixação de regime prisional inicialmente fechado com base no mencionado dispositivo. Dessa forma, para o estabelecimento de regime de cumprimento de pena mais gravoso, é necessária fundamentação específica, com base em elementos concretos extraídos dos autos. VI - Não obstante a primariedade do paciente e o quantum de pena estabelecido, considerando a existência de circunstância judicial desfavorável, utilizada para exasperar a pena-base, o regime mais gravoso sequente, qual seja, o semiaberto, mostra-se adequado ao caso. Precedentes. Habeas corpus não conhecido.
(STJ. HC 2018.02.82162-8. Quinta Turma. Relator Felix Fischer. DJe 03/12/2018)
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA E VÁLIDA. AUMENTO DESPROPORCIONAL. NÃO EVIDENCIAÇÃO. 1. Não se demonstra excessiva, desarrazoada ou ilegal a exasperação da pena-base em patamar um pouco acima de 1/6 pela valoração de duas circunstâncias judiciais. 2. Consoante orientação jurisprudencial deste STJ, a exasperação da pena-base não se dá por critério objetivo ou matemático, uma vez que é admissível certa discricionariedade do órgão julgador, desde que vinculada aos elementos concretos dos autos (AgInt no HC 352.885/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/05/2016, DJe 09/06/2016). 3. Agravo regimental improvido. (STJ. AGRHC 2018.00.76203-4. SEXTA TURMA. RELATOR NEFI CORDEIRO. DJe 13/12/2018).
PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. VALORAÇÃO NEGATIVA DAS CONSEQUÊNCIAS DO CRIME MANTIDA. ACRÉSCIMO CONCRETAMENTE MOTIVADO. AUMENTO DA FRAÇÃO DE REDUÇÃO PELA TENTATIVA. CRITÉRIO DO ITER CRIMINIS PERCORRIDO OBSERVADO. ÓBICE AO REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO NA VIA ELEITA. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. (...) III - Quanto ao critério numérico de aumento para cada circunstância judicial negativa, insta consignar que 'A análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal não atribui pesos absolutos para cada uma delas a ponto de ensejar uma operação aritmética dentro das penas máximas e mínimas cominadas ao delito'. Assim, é possível que 'o magistrado fixe a pena-base no máximo legal, ainda que tenha valorado tão somente uma circunstância judicial, desde que haja fundamentação idônea e bastante para tanto' (AgRg no REsp 143071/AM, Sexta Turma, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 6/5/2015). No presente caso, em relação ao quantum de exasperação na primeira fase da dosimetria, não há desproporção na reprimenda-base aplicada, porquanto existe motivação particularizada, vinculada à discricionariedade e à fundamentação da r. sentença, ausente, portanto, notória ilegalidade a justificar a concessão da ordem de ofício. Precedentes. (...) (HC 426.444/RS, Rel. Min. FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 01/03/2018, DJe 07/03/2018).

Há, portanto, discricionariedade na valoração das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal, não estando o magistrado vinculado a critérios puramente matemáticos, devendo, contudo, pautar-se nos postulados da razoabilidade e proporcionalidade.

Ademais, a adoção da teoria do "termo médio" está em descompasso com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme precedentes abaixo colacionados:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. SUSTENTAÇÃO ORAL. IMPOSSIBILIDADE. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DOSIMETRIA. ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. OCORRÊNCIA. UTILIZADA PARA EMBASAR A CONDENAÇÃO. INCIDÊNCIA. SÚMULA 545/STJ. PENA-BASE. COMPENSAÇÃO DA CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL ATINENTE AO COMPORTAMENTO DA VÍTIMA COM AS CIRCUNSTÂNCIAS DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE. COMPORTAMENTO DA VÍTIMA VALORADO POSITIVAMENTE. INVIABILIDADE DE EFETIVA REDUÇÃO DA PENA-BASE. FRAÇÃO DA TENTATIVA. QUANTUM DE 1/3 JUSTIFICADO. ALTERAÇÃO INVIÁVEL. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO FÁTICO PROBATÓRIO. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO.
[...]3. A circunstância judicial referente ao comportamento da vítima deve ser valorada de maneira neutra ou positiva pelo magistrado ao proceder a dosimetria da pena. Entretanto, reconhecidas outras circunstâncias judiciais negativas, tal como as circunstâncias do delito, não há falar em efetiva redução da sanção inicial, uma vez que a pena-base parte do termo mínimo e não do termo médio. 4. A alteração do julgado, para se concluir de modo diverso quanto ao iter criminis percorrido considerado pelo Tribunal de origem e, consequentemente, determinar qual seria a fração adequada a aplicar pela tentativa, necessitaria do revolvimento de fatos e provas dos autos, o que é vedado na via do habeas corpus. 5. Agravo regimental parcialmente provido para reconhecer a atenuante da confissão espontânea. (STJ. AgRg no HC 409275 / RO. MINISTRO NEFI CORDEIRO. SEXTA TUMA. DJE 19/06/2018)
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ARTS. 129, CAPUT, NA FORMA DO ART. 14, INCISO II, POR DUAS VEZES, 180, 311, 157, § 2.º, INCISOS I E II, TODOS DO CÓDIGO PENAL, BEM COMO ART. 16, CAPUT, E PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 10.826 /2003. CONCURSO MATERIAL. DOSIMETRIA. PRIMEIRA FASE. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. QUANTUM DE ELEVAÇÃO DA PENA. DESPROPORCIONALIDADE. SEGUNDA FASE. ATENUANTE DA CONFISSÃO. RECONHECIMENTO PARA OUTROS DELITOS. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. TERCEIRA FASE. MAJORANTES DO ROUBO. APLICAÇÃO DE FRAÇÃO SUPERIOR A 1/3. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO CONCRETA. APLICAÇÃO DO ENUNCIADO N. 443 DA SÚMULA DESTA CORTE. CAUSA DE DIMINUIÇÃO PELA TENTATIVA. FRAÇÃO DE 1/2. ITER CRIMINIS PERCORRIDO. CRITÉRIO IDÔNEO. MANUTENÇÃO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO, PARA REDUZIR AS PENAS DO PACIENTE.
[...] - A dosimetria da pena insere-se dentro de um juízo de discricionariedade do julgador, atrelado às particularidades fáticas do caso concreto e subjetivas do agente, somente passível de revisão por esta Corte no caso de inobservância dos parâmetros legais ou de flagrante desproporcionalidade.
[...] - Embora haja fundamentação idônea, no caso, para fixar a pena-base de todos os delitos acima do mínimo legal, a forma de cálculo do incremento punitivo, pelo termo médio, está em desconformidade com a jurisprudência desta Corte, resultando em aumento desproporcional. [...]
(STJ. HC 447857 / RS. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA. QUINTA TURMA. DJE 28/08/2018).

Passo, portanto, a analisar a dosimetria da reprimenda dos réus com fundamento nas balizas do art. 59 do Código Penal.

Réu Celso Rossanni dos Santos

1ª fase da dosimetria

A defesa do réu Celso pleiteia a fixação da pena no mínimo legal e alega a ocorrência de bis in idem na segunda e terceira fases da dosimetria da pena. O pleito da defesa deve ser parcialmente acolhido.

Conforme consta da sentença, a pena deve ser fixada em patamar superior ao mínimo legal. No entanto, a análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal deve sofrer alteração, visto que o juiz valorou negativamente as consequências do crime pelos mesmos motivos utilizados para valorar negativamente a culpabilidade e as circunstâncias do crime.

Entendo que deve ser mantida a valoração negativa da culpabilidade do acusado, já que a conduta perdurou por diversos anos (aproximadamente sete anos). Da mesma forma, deve ser mantida a exasperação da pena em razão das circunstâncias do crime, pois restou comprovado que a conduta delituosa envolveu elevado número de vítimas (seis), todas ex-funcionárias da empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA.

Já a valoração negativa das consequências do crime deve ser afastada para evitar "bis in idem", eis que o magistrado utilizou os mesmos motivos utilizados para exasperação da pena-base em razão da valoração negativa da culpabilidade e das circunstâncias do crime.

Por fim, mantenho a valoração negativa dos antecedentes do réu, já que reconhecido ter havido condenação cuja punibilidade foi extinta pelo cumprimento da pena, conforme fls. 13v do apenso (autos originários nº 0087/2000, que tramitou na 1ª Vara de Santa Fé do Sul/SP).

Esclareço que o patamar de aumento da pena em razão da valoração negativa da culpabilidade e dos antecedentes não foge ao ordinário, razão pela qual foi estabelecido no patamar ordinário. Contudo, entendo que as circunstâncias do crime são graves, já que a conduta do réu perdurou por aproximadamente sete anos, de forma que exaspero a pena em ½ (metade).

No que tange às demais circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código Penal, entendo que devem ser consideradas como circunstâncias neutras.

Dessa forma, fixo a pena-base em 04 (quatro) anos e 01 (um) mês de reclusão, e 18 (dezoito) dias-multa.

2ª fase da dosimetria

Na segunda fase da dosimetria da pena, mantenho a incidência da circunstância agravante prevista no art. 61, II, "h", do Código Penal, pois uma das vítimas contava com mais de 60 (sessenta) anos à época dos fatos, conforme informação de fls. 596, razão pela qual a pena resta fixada em 04 (quatro) anos, 09 (nove) meses e 02 (cinco) dias de reclusão, além de 21 (vinte e um) dias-multa.

3ª fase da dosimetria

Inexistem causas de aumento.

Mantenho a incidência da causa de diminuição de pena prevista no art. 29, §1º, do Código Penal em razão do reconhecimento da participação de menor importância em relação ao réu Nelson, por se tratar de funcionário, que não tinha pleno domínio da situação.

Afasto a diminuição aplicada pelo magistrado a quo em razão de possível desconhecimento da ilicitude da conduta (art. 21 do Código Penal). Entendo que justamente em razão das circunstâncias mencionadas na sentença (grau de instrução, condição social, vida familiar, cultura e função que exercia na empresa) não há que se falar que Celso não tinha plena ciência da gravidade e ilicitude de sua conduta, não sendo razoável admitir-se que o acusado reputava lícito o tratamento indigno dispensado às vítimas.

Fixo, portanto, a pena definitiva em 03 (três) anos, 11 (onze) meses e 19 (dezenove) dias de reclusão, além de 17 (dezessete) dias-multa.

Acolho pedido da defesa e redimensiono o valor do dia-multa para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos, pois conforme bem pontuado pelo parecer ofertado pelo Parquet federal (fls. 940), "além de ter tido participação menor nos fatos, demonstrou que sobrevivia como açougueiro com um salário de R$1.108,00 até ser desligado da empresa em maio de 2018 (fls. 811/813), de modo que o pagamento de 95 dias-multa pode ter impacto negativo sobre a subsistência".

Réu Nelson de Souza Lima Junior

1ª fase da dosimetria

A defesa do réu Celso pleiteia a fixação da pena no mínimo legal e alega a ocorrência de bis in idem na segunda e terceira fases da dosimetria da pena. O pleito, contudo, deve ser parcialmente acolhido.

A pena deve ser fixada em patamar superior ao mínimo legal. No entanto, a análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal deve sofrer alteração, visto que o juiz valorou negativamente as consequências do crime pelos mesmos motivos utilizados para valorar negativamente a culpabilidade e as circunstâncias do crime.

Entendo que deve ser mantida a valoração negativa da culpabilidade do acusado, já que era sócio administrador da empresa cujo controle a ele pertencia, tendo a conduta perdurado por diversos anos. As circunstâncias do crime também merecem valoração negativa, já que envolveu elevado número de vítimas, todos ex-funcionários da empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA submetidos a condições degradantes e indignas de trabalho, havendo plena consciência do acusado de que obtinha lucro em detrimento da dignidade dos trabalhadores.

Já a valoração negativa das consequências do crime deve ser afastada para evitar "bis in idem".

Da mesma forma, deve ser afastada a valoração negativa da conduta social e personalidade do agente, pois não há nos autos informações ou elementos suficientes que permitam aferir a personalidade e a conduta social do acusado, não sendo suficiente relatos de ex-funcionários acerca da falta de condições de trabalho, nem mesmo o fato de ter despedido um funcionário que contra ele testemunhou em outro processo. Inexistindo laudos multidisciplinares que permitam ter análise dos caracteres de caráter e conduta global do réu, e sem provas em concretude e profundidade tais que permitam uma aferição de tal abrangência acerca dele, não cabe a majoração da pena com base nessas específicas circunstâncias.

Consigno que não obstante o afastamento da valoração negativa das circunstâncias judiciais a que procedi (personalidade, conduta social e consequências do crime), entendo que o quantum de exasperação deve ser mantido acima do ordinário, tendo em vista a gravidade da conduta.

No que tange às demais circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código Penal, entendo que devem ser consideradas como circunstâncias neutras.

Dessa forma, fixo a pena-base fixada em 04 (quatro) anos e 03 (três) meses de reclusão, além de 20 (vinte) dias-multa.

2ª fase da dosimetria

Na segunda fase da dosimetria da pena, mantenho a incidência das circunstâncias agravantes previstas no art. 61, II, "h", do Código Penal, pois uma das vítimas contava com mais de 60 (sessenta) anos à época dos fatos, conforme informação de fls. 596, assim como da prevista no art. 62, I, do Código Penal, pois o acusado, sócio proprietário da empresa, possuía um maior domínio dos fatos, dirigindo a atividade dos demais corréus, dispondo de meios de cessar a conduta a qualquer momento.

Assim, a pena resta fixada em 05 (cinco) anos, 09 (nove) meses e 12 (doze) dias de reclusão, além de 26 (vinte e seis) dias-multa.

3ª fase da dosimetria

Inexistem causas de aumento ou de diminuição.

Fixo, portanto, a pena definitiva em 05 (cinco) anos, 09 (nove) meses e 12 (doze) dias de reclusão, além de 26 (vinte e seis) dias-multa.

O pedido de redução do valor do dia-multa não deve ser acolhido em relação ao réu Nelson, pois conforme narrou em seu interrogatório judicial ostenta condição financeira confortável, já que afirmou prestar consultoria para diversas empresas terceirizadas que prestam serviço de segurança. Resta mantido, portanto, o valor do dia-multa em 1/8 (um oitavo) do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos.

Ré Herika Rufino Cunha Garavelo

1ª fase da dosimetria

Na primeira fase da dosimetria penal, entendo que deve ser mantida a valoração negativa da culpabilidade da acusada, já que a conduta perdurou por aproximadamente três anos, bem como das circunstâncias do crime, pois a prática delituosa envolveu elevado número de vítimas, todos ex-funcionários da empresa COS EMERGENCIAL INTERMEDIAÇÃO E AGENCIAMENTO LTDA.

Já a valoração negativa das consequências do crime, assim como para os demais corréus, deve ser afastada para evitar "bis in idem".

No que tange às demais circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código Penal, entendo que devem ser consideradas como circunstâncias neutras.

Dessa forma, fixo a pena-base em 02 (dois) anos, 08 (oito) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, além de 12 (doze) dias-multa.

2ª fase da dosimetria

Na segunda fase da dosimetria da pena, mantenho a incidência da circunstância agravante prevista no art. 61, II, "h", do Código Penal, pois uma das vítimas contava com mais de 60 (sessenta) anos à época dos fatos, conforme informação de fls. 596, razão pela qual a pena resta fixada em 03 (três) anos, 02 (dois) meses e 03 (três) dias de reclusão, além de 14 (catorze) dias-multa.

3ª fase da dosimetria

Inexistem causas de aumento. Mantenho a incidência, porém, causa de diminuição de pena prevista no art. 29, §1º, do Código Penal em razão do reconhecimento da participação de menor importância por se tratar de funcionária do corréu Nelson.

Fixo, portanto, a pena definitiva em 02 (dois) anos, 07 (sete) meses e 22 (vinte e dois) dias de reclusão, além de 11 (onze) dias-multa.

Da mesma forma que o corréu Celso, dimensiono o valor do dia-multa para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos, pois não há informações suficientes acerca da situação econômica da acusada.

IV - Regime inicial de cumprimento de pena

Mantenho o regime inicial de cumprimento da pena como aberto para a ré Herika, com fundamento no art. 33, § 2º, "c", do Código Penal, pois a pena privativa de liberdade fixada não excede quatro anos de prisão.

Embora tenham sido a culpabilidade e as circunstâncias do crime negativamente valoradas na primeira fase da dosimetria das penas, entendo que, no caso concreto, não são negativas a ponto de afastar o regime aberto como regime inicial de cumprimento da pena, de forma nego provimento ao apelo da acusação para fixação de regime mais gravoso.

Em relação aos demais corréus, fixo o regime inicial de cumprimento como semiaberto, com fundamento no art. 33, § 2º, "b", do Código Penal, pois a pena privativa de liberdade fixada em relação ao réu Nelson não excede oito anos de prisão. Já em relação ao acusado Celso, apesar da pena privativa de liberdade não ultrapassar quatro anos, deve o regime inicial de cumprimento de pena ser fixado como semiaberto, nos termos do artigo 33, § 2º, "b", do Código Penal, dadas as circunstâncias judiciais desfavoráveis ao réu, que autorizam, à luz do artigo 33, § 3º, do Código Penal, a fixação de regime mais consentâneo com a finalidade da pena, não estando adstrito unicamente ao quantum estipulado.

V - Da substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos

O recurso da acusação pleiteia o afastamento da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos em relação à ré Herika. Sem razão, contudo.

Preenchidos os requisitos legais (art. 44 do Código Penal), de rigor a manutenção da substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos em relação à acusada Herika, quais sejam, prestação de serviços a comunidade ou entidades públicas designadas pelo Juízo das Execuções, e interdição temporária de direitos, nos termos da sentença, e que terá a mesma duração da pena substituída, nos termos do art. 46 e §§ do Código Penal.

VI - Da Justiça Gratuita

Em suas razões recursais, a defesa dos réus Celso e Nelson pugnou pela concessão da gratuidade da justiça, ante suas alegadas condições socioeconômicas desfavoráveis (fls. 809/815).

Na oportunidade, concedo em favor do réu Celso o pedido de gratuidade da justiça, na forma do artigo 98 do novo Código de Processo Civil, por haver elementos nos autos que indicam que estar desempregado. Quanto ao réu Nelson, entendo que os documentos apresentados a fls. 809/811 não são suficientes para demonstrar a alegada condição socioeconômica desfavorável.

Nada obstante, esclareço que a mera concessão de gratuidade da justiça não exclui a condenação do referido réu nas custas do processo nos termos do artigo 804 do Código de Processo Penal, ficando, contudo, seu pagamento sobrestado, enquanto perdurar seu estado de pobreza, pelo prazo de cinco anos, quando então a obrigação estará prescrita, conforme determina o artigo 98, § 3º, da Lei 13.105/2015.

Em sintonia com o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no AREsp 23.804/DF, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 01/08/2012; AgRg no Ag 1377544/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 14/06/2011), o pertinente exame acerca da miserabilidade da acusado deverá ser realizado, com efeito, em sede do Juízo de Execução, fase adequada para aferir a real situação financeira do condenado, restando, por conseguinte, mantida sua condenação ao pagamento das custas processuais nos termos da r. sentença.

Ante o exposto, conheço dos recursos interpostos e, no mérito, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso de apelação para fixar o regime inicial de cumprimento de pena para o réu Celso como semiaberto; e ao recurso defensivo para redimensionar o valor unitário do dia-multa para os réus Celso e Herika e para conceder o benefício da justiça gratuita ao réu Celso, fixando-se a pena dos acusados em 03 (três) anos, 11 (onze) meses e 19 (dezenove) dias de reclusão em regime semiaberto, além de 17 (dezessete) dias-multa, redimensionando-se o valor de cada dia-multa para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para o acusado Celso Rossanni dos Santos; 05 (cinco) anos, 09 (nove) meses e 12 (doze) dias de reclusão, além de 26 (vinte e seis) dias-multa, sendo o valor do dia-multa equivalente a 1/8 (um oitavo) do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para o acusado Nelson de Souza Lima Junior e; 02 (dois) anos, 07 (sete) meses e 22 (vinte e dois) dias de reclusão, além de 11 (onze) dias-multa, redimensionando-se o valor de cada dia-multa para 1/30 (um trigésimo) do valor do salário-mínimo vigente ao tempo dos fatos para a acusada Herika Rufino Cunha Garavelo, mantida a substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos para esta última.

É como voto.

JOSÉ LUNARDELLI
Desembargador Federal


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