Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0003142-90.2000.4.03.6111/SP
2000.61.11.003142-9/SP
RELATOR : Juiz Convocado SILVIO GEMAQUE
APELANTE : Instituto Nacional de Colonizacao e Reforma Agraria INCRA
ADVOGADO : RONALD DE JONG e outro
: PAULO SÉRGIO MIGUEZ URBANO
APELANTE : Uniao Federal
ADVOGADO : GUSTAVO HENRIQUE PINHEIRO DE AMORIM e outro
APELADO : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : JEFFERSON APARECIDO DIAS e outro
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 1 VARA DE MARILIA Sec Jud SP

VOTO-VISTA

Trata-se de voto vista sobre preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal para propor ação ordinária cujo intento é compelir o INCRA a "destinar de forma adequada os imóveis rurais remanescentes do antigo Núcleo Colonial Monções, promovendo um projeto de reforma agrária no local, no prazo fixado na sentença" (f. 10).

Os réus INCRA e União Federal propuseram preliminar de ilegitimidade ativa à conta da ausência de interesses indivisíveis (difusos) capazes de motivar a ação ministerial no sentido de ajuizar demanda capaz de obrigar alguém a promover a reforma agrária.

A tese foi refutada na sentença, com lastro nos artigos 127 e 129, III, da Constituição, afirmando o d. juízo que a inércia do INCRA em efetivar reforma agrária no suposto remanescente do antigo núcleo colonial é capaz de prejudicar o "interesse público" e direitos difusos e coletivos de um número indeterminado de pessoas que estão "sem um pedaço de terra para construir o futuro" e por isso mesmo a atitude ministerial aloja-se "no plano da proteção de direitos individuais homogêneos, com amplo lastro social" (f. 114). Aduziu a incidência do artigo 5º, XXXV, da Constituição.

Em seus recursos as rés insistem na ilegitimidade, afirmando que o Ministério Público Federal não poderia intentar a ação civil pública "in casu" porque o efeito desejado só atingiria um grupo seleto de pessoas, aquelas que poderão ser "assentadas" pela pretendida reforma agrária, inexistindo interesses difusos e coletivos conforme definidos no Direito Brasileiro pelo artigo 81 do CDC.

O relator afastou essa preliminar.

Convém estabelecer desde logo que a questão da legitimidade ativa no caso não se resolve no âmbito do Direito Privado.

Por isso que entendo que a ilegitimidade do Ministério Público Federal para compelir o Poder Público a promover reforma agrária escapa das atribuições constitucionais e legais do zeloso órgão.

Acima de tudo sobreleva, na matéria, o fato de a pretensão deduzida pelo Parquet em juízo pretender a imersão do Judiciário no âmago das tarefas próprias do Poder Executivo, dado que promover a reforma agrária é incumbência constitucional da União, exercida inicialmente por decreto do Presidente da República que declara o imóvel de "interesse social" e autoriza a propositura da ação expropriatória a qual seguirá o rito da Lei Complementar n° 76/93 a ser promovida pelo INCRA, autarquia a quem compete a materialização da reforma agrária.

Inegavelmente a tarefa de promover a reforma agrária é de natureza política.

Cabe ao Presidente da República ajuizar da oportunidade e conveniência para decretar o "interesse social" sobre algum imóvel e, com isso, provocar o longo e complexo procedimento que, ao fim e ao cabo, culminará no assentamento de pessoas em áreas expropriadas.

É o Presidente da República quem dispõe da capacidade de opção a respeito da expropriação para reforma agrária.

Não é da alçada do Ministério Público Federal invocar o Poder Judiciário para que este suplante a vontade política do Presidente da República que tem esteio na discricionariedade a ele assegurada pela Constituição na medida em que, obviamente, a Magna Carta deixa ao chefe do Poder Executivo amplo espaço para ajuizar da oportunidade e conveniência da desapropriação destinada a reforma agrária.

O Ministério Público Federal não tem legitimidade de agir, na medida em que não lhe é dado provocar o Judiciário para suplantar a vontade política do chefe do Poder Executivo.

Diferentemente do que ocorre quando o intento ministerial é compelir o Poder Público a prestar serviços públicos específicos (p. ex., fornecer medicamentos, vacinar a população, abrir vagas em escolas, implementar serviços urgentes, etc.), na singularidade do caso o órgão busca invadir área de competência que vai muito além das tarefas administrativas normais e insere-se também no âmbito dos atos políticos do governo.

Tenho para mim que a previsão constitucional da defesa de direitos transindividuais, pelo Ministério Público, não possibilita e nem alberga atitude do órgão que visa sobrepor-se ao chefe do Poder Executivo na prática de atos estritamente de governo.

Mais do que a discussão sobre a natureza dos direitos que o Ministério Público Federal está defendendo, na singularidade do caso o que se agudiza é a discussão sobre a natureza do ato que o Parquet pretende ver praticado pelo Executivo, por ordem do Judiciário.

O decreto presidencial previsto no artigo 184 da Constituição é um ato declaratório que cristaliza a conveniência administrativa de afetar um certo imóvel rural à função de "interesse social", e obviamente isso ocorre depois de considerações de natureza política.

Atos políticos, inafastáveis da prática administrativa desde os mais remotos tempos, são decisões tomadas pelo administrador público, presumidamente lícitas, representativas de escolhas que buscam atender a determinadas necessidades da sociedade, mas que poderiam ter sido tomadas de modo diverso conforme a discricionariedade do administrador. Esses atos representam "opções" de caráter político adotadas quando é possível que se atue de outra forma.

Já vai longe o entendimento dos publicistas europeus que pretendiam colocar fora da Administração os "atos políticos"; a respeito lecionava com a precisão de sempre o saudoso OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO: "sem dúvida, verificam-se na atividade estatal atos jurídicos que imprimem a direção superior da sua vida política, que formam e manifestam originariamente a sua vontade e cogitam dos órgãos a quem competem essas atribuições, ao lado de outros, mais subalternos, que completam e desenvolvem aqueles, na afirmação da utilidade pública, condicionando as relações internas com os próprios órgãos ou com terceiros" (Princípios gerais de direito administrativo, I, 417/418, ed. Forense, 1ª edição, 1969).

Ora, se diante da discricionariedade administrativa essencial aos atos políticos fosse possível a intervenção concorrente do Poder Judiciário na escolha das opções possíveis, estar-se-ia diante daquela aberração que AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ chamou de "dupla administração", o que certamente geraria completa insegurança no trato das coisas do Estado.

Nesse âmbito de compreensão pode-se invocar decisão no sentido de que: "...não cabe ao Poder Judiciário interferir na esfera da discricionariedade administrativa, no que tange à execução da reforma agrária, salvo nas excepcionais hipóteses de abuso, ilegalidade ou desvio de finalidade, entre outras, não caracterizadas" (TRF/5ª Região, AC n° 381.424, Reg. nº 200484000029216, j. 8/8/2006, DJU 19/9/2006, p. 384 - destaquei).

É fato que o decreto presidencial lastreado no artigo 184, § 2°, da Constituição, pode ser atacado na via judicial "a posteriori".

Isso, porém, não significa que seja possível usar-se da via judicial para compelir o Presidente da República a expedir o decreto, de modo a desencadear o complexo procedimento de reforma agrária.

O conteúdo político da reforma agrária impede a atuação jurisdicional destinada a ordená-la em face do Presidente da República, sob pena de violação do artigo 2º da Constituição.

Não há interdependência entre o Executivo e o Judiciário na promoção da reforma agrária, porquanto essa tarefa reside na atribuição constitucional do primeiro, à vista da discricionariedade que a Constituição reserva para a prática desse autêntico ato político.

Enfim, no espaço constitucional brasileiro somente a União Federal pode desapropriar por "interesse social" para fins de reforma agrária (artigo 184 da Constituição) e essa matéria reside no âmbito discricionário que a Carta Magna conserva em favor do Presidente da República (§ 2°) para ajuizar com exclusividade os casos de "interesse social" justificadores da providência; permitir que o Judiciário substitua a discricionariedade do Presidente da República na prática de autêntico ato de conteúdo político representa invasão de competência constitucional e afronta ao artigo 2º da Constituição, sendo certo que o inc. III do artigo 129 da mesma não pode ser interpretado - sob pena de teratologia - de modo a afrontar a regra da independência de Poderes estatais para o fim de legitimar que o órgão recorra ao Judiciário para obrigar o Poder Executivo a promover a reforma agrária.

O artigo 129, III, da Constituição não tem o alcance que o Ministério Público Federal pretende. Tampouco isso ocorre com a Lei Complementar n° 75 de 20 de maio de 1993.

A Constituição não pode ter - e não tem ! - a contradição que a pretensão ministerial ora busca ver reconhecida.

A leitura da Constituição de 1988 não autoriza que um de seus dispositivos que trata de funções institucionais do Ministério Público se sobreponha a outro, alojado dentre os princípio fundamentais e que tem idade secular: a separação de Poderes abrigada no artigo 2º. Se a Carta reserva ao Chefe do Poder Executivo Federal a prerrogativa de decidir sobre a reforma agrária, não há de ser uma diretriz de atuação processual de órgão agregado à Justiça que será capaz de amesquinhar um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Sempre que se fala na cláusula magna de independência entre os poderes republicanos, recorda-se que ela não é absoluta; são permitidas - sempre no âmbito orgânico da Constituição - interferências, mas que assegurem o sistema de freios e contrapesos.

Mas o mecanismo de freios e contrapesos não significa intervenção onde ela não pode se dar; noutro dizer: haverá desarmonia se a interferência operar-se fora dos critérios constitucionais.

Por não existir previsão de concorrência entre o Executivo Federal e o Judiciário na promoção da reforma agrária - tarefa que a Constituição comete ao primeiro, como agente da União (artigo 184 e seu § 2°) - é impossível pensar-se na possibilidade de um órgão estatal, "in casu" o Ministério Público Federal, com atribuições para provocar o Judiciário a fim de que este substitua a vontade política do Presidente da República.

Não ! É impossível entender que o Ministério Público possa comparecer perante o Judiciário na busca de uma providência que - embora recheada de boas intenções - amesquinhe um dos pilares da nossa ainda jovem democracia: a reserva de competências entre os Poderes da República.

Repito: mesmo que o Parquet esteja coberto de boas intenções, não cabe ao Judiciário reconhecer-lhe legitimidade para amesquinhar as competências exclusivas do Presidente da República no âmbito dos atos políticos.

Vale a pena recordar aqui o que deveria estar permanentemente na cabeça de todos os magistrados, conforme o alerta do grande CARLOS MAXIMILIANO: "quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria" (Hermenêutica e aplicação do direito, p. 83, Forense, 16ª edição).

O dar sentido a um texto legal não é tarefa que se faz com os pés no populismo. Como afirmava Demolombe, expoente da Escola da Exegese francesa, a interpretação das leis é obra de raciocínio e de lógica, mas também de discernimento e bom senso, de sabedoria e experiência.

É nesse diapasão que se percebe, com clareza solar, que sequer a Lei Complementar n° 75 de 20 de maio de 1993 ampara a presente ação.

É certo que o artigo 5º, I, da Lei Complementar n° 75, de 20 de maio de 1993, dispõe caber ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis.

Mas não tem valor a leitura fracionada e tópica desse dispositivo, como se pretende seja feito nestes autos.

Não !

Não é possível esconder que essa defesa dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis deve ser executada, diz a lei, considerando-se, dentre outros princípios fundamentais, a independência e a harmonia dos Poderes da União. Ora, não há como desvincular a defesa de suposto interesse social que se reflete na reforma agrária, do respeito que a lei exige, de parte do Ministério Público, para com a independência e a harmonia dos Poderes. Bem por isso não se pode tolerar o ajuizamento de demanda que busca justamente afrontar a independência e a harmonia dos Poderes, perseguindo a incursão do Judiciário no âmbito de discricionariedade que o artigo 184 da Constituição reservou ao Poder Executivo Federal.

De outro lado nem de longe se pode dizer que o Ministério Público Federal está defendendo o patrimônio público que estaria sendo maltratado porque o INCRA transferiu para o local dezenas de famílias "prometendo" realizar um assentamento.

Sucede que o Ministério Público Federal de Marília refere-se a supostos remanescentes do antiguíssimo Núcleo Colonial Monções, criado pela União em terras públicas no início do Século XX (entre 1905 e 1910) para receber imigrantes.

Mas a Procuradoria da República em momento algum discriminou na demanda qual seria essa "porção remanescente", pois é de sabença comum que o Decreto nº 13.039, datado de 1918 assinado pelo Presidente Wenceslau Bráz, "emancipou" o Núcleo Colonial Monção no Estado de São Paulo, nos seguintes termos:

"DECRETO N. 13.039 - DE 29 DE MAIO DE 1918 - Emancipa o nucleo colonial "Monção", no Estado de S. Paulo. O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brasil resolve, de accôrdo com o art. 227, do regulamento a que se refere o decreto n. 9.081, de 3 de novembro de 1911, declarar emancipado o núcleo colonial "Monção", no Estado de S. Paulo."

Historicamente sabe-se que a emancipação de núcleos coloniais ocorria sempre que o domínio sobre todos os lotes se consolidava no patrimônio dos imigrantes assentados. Isso se dava conforme o Decreto nº 9.081, de 1911 - regulamento do antigo Serviço Nacional de Povoamento - que estabelecia em seu artigo 227:

"Art. 227. A emancipação de cada nucleo colonial será resolvida pelo Governo, quando houverem sido expedidos a todos os concessionarios de lotes os titulos definitivos de propriedade, ou antes disso, si fôr conveniente. Paragrapho único. A emancipação dos nucleos será feita por decreto."

Ainda, uma parte das terras adquiridas para formação do Núcleo Colonial Monções - "Fazenda Turvinho" - acabou indo parar no domínio do Estado de São Paulo.

Essa "Fazenda Turvinho" foi recebida pela União Federal da Estrada de Ferro Sorocabana; sucedeu que aquela gloriosa empresa chegou a bancarrota na República Velha e foi adquirida pela União em leilão; acabou sendo vendida para o Estado de São Paulo em 1919; assim, se o patrimônio da Estrada de Ferro Sorocabana acabou transferido para o Estado de São Paulo, permanece difícil justificar como poderia a União Federal, ou alguém em nome dela, reivindicar que uma área rural que ingressou no domínio do Estado-membro há quase um século, e que atualmente acha-se em outras mãos, possa ser tida como integrante da gleba maior no que consistia o Núcleo Colonial Monções - recorde-se, já emancipado ! - para fins de se compelir a União Federal a promover reforma agrária.

A situação moderna do que um dia foi o Núcleo Colonial Monções impede que se reconheça qualquer legitimidade ao Ministério Público Federal para postular reforma agrária no local, na medida em que nem o próprio órgão sabe se há algum remanescente de área pública na região; se soubesse, era de seu dever processual discriminá-lo na petição inicial de fls. 2/10, o que não fez.

Destarte, falece qualquer "legitimatio ad causam" ativa sob o prisma de suposta "defesa de patrimônio público".

Estou seguro de que, sempre ressalvadas as boas intenções com que procede o Parquet, não há qualquer espaço jurídico na Constituição, na Lei Complementar n° 75 de 20 de maio de 1993, ou em outra qualquer norma regente das atribuições ministeriais (menos ainda nas de Direito Privado) que justifique a presença do Ministério Público Federal no pólo ativo da presença demanda.

Por fim, cumpre anotar o manifestou equívoco da sentença (f. 118) ao referir como lastro para a legitimação ministerial também o artigo 5º, XXXV da Constituição.

O erro é evidente e manifesto.

Esse dispositivo constitucional permite, sim, o amplo acesso ao Judiciário. Mas em favor de quem, conforme as demais normas legais - e sobretudo constitucionais - tenha legitimidade para questionar uma determinada situação, ato ou conduta.

Vale dizer: o artigo 5º, XXXV não autoriza qualquer um a questionar em juízo tudo o que bem entende.

Se fosse assim, estariam derrogadas todas as regras de legitimação ativa e as normas processuais que tratam das condições para o regular exercício do direito de ação.

Rogo a Deus que o juízo não tenha tido essa intenção manifestamente írrita ao invocar em abono de seu entendimento aquele dispositivo constitucional.

Por esses fundamentos, dou provimento às apelações das rés e a remessa oficial para acolher a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal para o fim de extinguir o processo sem exame de mérito.

É como voto.


Johonsom di Salvo
Relator para Acórdão


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EMENTA

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. ILEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM" DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA COMPELIR, PERANTE O JUDICIÁRIO, O PODER EXECUTIVO A PROMOVER A REFORMA AGRÁRIA. MATÉRIA PRELIMINAR ACOLHIDA. EXTINÇÃO DO FEITO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO.
1. Não é da alçada do Ministério Público Federal invocar o Poder Judiciário para que este suplante a vontade política do Presidente da República, que tem esteio na discricionariedade a ele assegurada pela Constituição na medida em que, obviamente, a Magna Carta deixa ao chefe do Poder Executivo amplo espaço para ajuizar da oportunidade e conveniência da desapropriação destinada a reforma agrária. O conteúdo político da reforma agrária impede a atuação jurisdicional destinada a ordená-la em face do Presidente da República, sob pena de violação do artigo 2º da Constituição.
2. Não há interdependência entre o Executivo e o Judiciário na promoção da reforma agrária, porquanto essa tarefa reside na atribuição constitucional do primeiro, à vista da discricionariedade que a Constituição reserva para a prática desse autêntico ato político. Pensar de modo diverso seria consagrar "dupla administração", o que certamente geraria completa insegurança no trato das coisas do Estado.
3. No espaço constitucional brasileiro somente a União Federal pode desapropriar por "interesse social" para fins de reforma agrária (artigo 184 da Constituição) e essa matéria reside no âmbito discricionário que a Carta Magna conserva em favor do Presidente da República (§ 2°) para ajuizar com exclusividade os casos de "interesse social" justificadores da providência; permitir que o Judiciário substitua a discricionariedade do Presidente da República na prática de autêntico ato de conteúdo político representa invasão de competência constitucional e afronta ao artigo 2º da Constituição, sendo certo que o inc. III do artigo 129 da mesma não pode ser interpretado - sob pena de teratologia - de modo a afrontar a regra da independência de Poderes estatais para o fim de legitimar que o Ministério Público recorra ao Judiciário para "obrigar" o Poder Executivo a promover a reforma agrária.
4. A leitura da Constituição de 1988 não autoriza que um de seus dispositivos que trata de funções institucionais do Ministério Público se sobreponha a outro, alojado dentre os princípio fundamentais e que tem idade secular: a separação de Poderes abrigada no artigo 2º. Se a Carta reserva ao Chefe do Poder Executivo Federal a prerrogativa de decidir sobre a reforma agrária, não há de ser uma diretriz de atuação processual de órgão agregado à Justiça que será capaz de amesquinhar um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.
5. A previsão constitucional da defesa de direitos transindividuais, pelo Ministério Público, não possibilita e nem alberga atitude do órgão que visa sobrepor-se ao chefe do Poder Executivo na prática de atos estritamente de governo. Ainda, não é possível esconder que a defesa dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis deve ser executada, diz a lei, considerando-se, dentre outros princípios fundamentais, a independência e a harmonia dos Poderes da União. Ora, não há como desvincular a defesa de suposto interesse social que se reflete na reforma agrária, do respeito que a lei exige, de parte do Ministério Público, para com a independência e a harmonia dos Poderes. Bem por isso não se pode tolerar o ajuizamento de demanda que busca justamente afrontar a independência e a harmonia dos Poderes, perseguindo a incursão do Judiciário no âmbito de discricionariedade que o artigo 184 da Constituição reservou ao Poder Executivo Federal.
6. O artigo 129, III, da Constituição não tem o alcance que o Ministério Público Federal pretende. Tampouco isso ocorre com a Lei Complementar n° 75 de 20 de maio de 1993.
7. O artigo 5º, XXXV, da Constituição, não autoriza qualquer um a questionar em juízo tudo o que bem entende; fosse assim, estariam derrogadas todas as regras de legitimação ativa e as normas processuais que tratam das condições para o regular exercício do direito de ação.
8. A situação moderna do que um dia foi o Núcleo Colonial Monções (emancipado pelo Presidente Wenceslau Braz através do Decreto nº 13.039, datado de 29 de maio de 1918) impede que se reconheça qualquer legitimidade ao Ministério Público Federal para postular reforma agrária no local, na medida em que nem o próprio órgão sabe se há algum remanescente de área pública na região; se soubesse, era de seu dever processual discriminá-lo na petição inicial de fls. 2/10, o que não fez.
9. Apelações das rés e remessa oficial providas para acolher a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal para o fim de extinguir o feito sem exame de mérito.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por maioria, dar provimento às apelações e à remessa oficial e acolher a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal para o fim de extinguir o processo sem exame de mérito, nos termos do voto do Desembargador Federal Johonsom di Salvo, acompanhado pela Desembargadora Federal Vesna Kolmar, vencido o relator que rejeitava a preliminar de ilegitimidade do Ministério Público Federal. Relatório, voto vencido e voto-vista ficam fazendo parte integrante do presente julgado.


São Paulo, 29 de junho de 2010.
Johonsom di Salvo
Relator para Acórdão


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2000.61.11.003142-9/SP
RELATOR : Juiz Convocado SILVIO GEMAQUE
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RELATÓRIO

O Juiz Federal Convocado Sílvio Gemaque (Relator):


Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal em face da União Federal e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária- INCRA, que tramitou perante a 1ª Vara Federal de Marília, onde se pleiteia que os réus sejam compelidos a promover a reforma agrária com relação aos imóveis remanescentes do Núcleo Colonial Monções, inseridos na circunscrição de Santa Bárbara do Rio Pardo.

Relata o Parquet Federal que:

a) a União Federal adquiriu várias fazendas naquela região com o intuito de destiná-las a imigrantes para que estes se fixassem e produzissem naquelas terras. O referido Núcleo Colonial foi dividido em lotes rurais, sendo que uma parcela foi destinada à construção de um centro administrativo, no qual existiriam ainda lotes urbanos;

b) até aproximadamente 1960, a União teria titulado várias propriedades, porém, a partir daí, os demais ocupantes passaram a deter somente a posse dos imóveis, sem a possibilidade de obter o seu domínio. O centro administrativo perdeu sua vocação agrícola com o decorrer do tempo, e passou a ter destinação urbana, dando origem ao atual município de Iaras;

c) não obstante a formação de áreas urbanas, grande parcela das terras do Núcleo Colonial Monções continuam a ter vocação agrícola, encontrando-se na posse de particulares;


d) o MST, ao tomar conhecimento de que as referidas terras pertenciam à União Federal, promoveu o acampamento de aproximadamente 80 famílias às margens das estradas;

e) o INCRA promoveu ação reivindicatória de parte da Fazenda Capivara com o objetivo de assentar aquelas famílias, tendo obtido tutela antecipada para promover o assentamento em 30% da área reivindicada. Tal fato fez com que outras 150 famílias se dirigissem ao local, na expectativa de que também fosse assentadas, além do que o próprio INCRA transferiu dezenas de famílias oriundas de Itapetininga, também com o propósito de assentá-las;

f) o Ministério Público Federal, visando a evitar que o INCRA continuasse a transferir famílias à região, sem um projeto de reforma agrária, ajuizou a ação civil pública cautelar nº 1999.61.11.002464-0. No entanto, antes da apreciação do pedido liminar, o INCRA transferiu mais 500 famílias originárias da região de Limeira para aquela área, também com o intuito de assentá-las. Depois de deferida a liminar pleiteada, o INCRA deixou de transferir mais famílias para aquele local.

Sustenta o Parquet que a União e o INCRA devem obedecer a regra insculpida no art. 13, da Lei 8.629/93 que destina, preferencialmente, as terras rurais da União, Estados e Municípios a planos de reforma agrária. Assim, estaria havendo omissão dos réus em promover a destinação legal das áreas remanescentes do Núcleo Colonial Monções, tendo como consequência grande beligerância na região.

Pleiteia o Ministério Público que os réus sejam condenados na obrigação de fazer consubstanciada em "destinar de forma adequada os imóveis rurais remanescentes do Núcleo Colonial Monções, promovendo a reforma agrária necessária".

A liminar foi deferida no sentido de proibir o INCRA de promover a transferência de mais famílias para a região do Núcleo Colonial Monções (fls. 51/55).

Sobreveio sentença que julgou procedente a ação para condenar o INCRA "na obrigação de fazer, consistente em destinar, de forma adequada, os imóveis rurais remanescentes do antigo Núcleo Colonial Monções, ao projeto de reforma agrária, promovendo-o no prazo de 02 (dois) meses e concluindo-o no prazo máximo de 03 ( três) anos (art. 16, da Lei 8.629/93), sob pena de multa diária, que fixo em R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), sem prejuízo de outras penalidades". (fls. 109/120).

Em suas razões recursais, o INCRA sustenta, preliminarmente, a falta de legitimidade do autor, vez que não se trata de interesses difusos ou coletivos definidos no art. 81, do CDC, e, no mérito, que: a) não promoveu ou incentivou a transferência de famílias para a área objeto da lide; b) o Ministério Público não demonstrou que o INCRA teria realizado as indigitadas transferências, ou que não estaria promovendo a reforma agrária segundo os ditames legais; e c) a reforma agrária é atribuição própria e regular da Administração Pública, sendo descabida a intervenção do Poder Judiciário no caso em tela, vez que não se trata de ato de manifesta ilegalidade.

Por sua vez, a União Federal, em seu apelo sustenta, preliminarmente, que o Ministério Público Federal não tem legitimidade ativa para o ajuizamento da ação, e, no mérito, em síntese, que o INCRA vem atuando na promoção da reforma agrária na região objeto da lide, além do que o pedido é juridicamente impossível, vez que os atos políticos não podem ser praticados por força de determinação judicial, pois contraria o princípio constitucional da separação dos poderes.

É o relatório.

Dispensada a revisão, nos termos regimentais.


Silvio Gemaque
Desembargador Federal Relator


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Data e Hora: 25/06/2010 18:47:37



APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0003142-90.2000.4.03.6111/SP
2000.61.11.003142-9/SP
RELATOR : Juiz Convocado SILVIO GEMAQUE
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ADVOGADO : RONALD DE JONG e outro
: PAULO SÉRGIO MIGUEZ URBANO
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VOTO

Da preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal.


O art. 81, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece as situações que tratam de direitos coletivos, in verbis:


"A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum."


E o art. 82, I, do código consumerista, legitima o Ministério Público na defesa destes interesses. Confira-se:


"Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I - o Ministério Público,

(...)"

Assim, cabe verificar se o direito em litígio está inserto numa das hipóteses previstas no art. 81, parágrafo único, do CDC.

Como se extrai dos autos, o Parquet Federal pretende que a União e o INCRA sejam condenados na obrigação de fazer consubstanciada em "destinar de forma adequada os imóveis rurais remanescentes do Núcleo Colonial Monções, promovendo a reforma agrária necessária".

Verifica-se que, neste momento processual, os sujeitos são indeterminados e indetermináveis, e o direito pretendido é indivisível, pois não é possível identificar quais indivíduos serão beneficiados pela tutela jurisidicional pleiteada.

Vale dizer, não é possível saber, de antemão, quais as famílias que serão assentadas na região, nem tampouco quais outros indivíduos serão beneficiados por eventual decisão judicial. Como afirmado pelo autor, estaria havendo beligerância naquela área, além do que prefeituras estariam tendo dificuldades em prestar serviços básicos de saúde, educação, transporte e segurança à coletividade em razão do acúmulo de pessoas, o que implica concluir tratar-se de direito indivisível.

Resta claro, portanto, tratar-se, inicialmente, de direitos difusos, para os quais o art. 81, I, e art. 82, parágrafo único, do CDC, conferem legitimidade ativa ao Ministério Público Federal, revelando-se descabida a preliminar argüida.


Ante o exposto, afasto a preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público Federal.


Silvio Gemaque
Juiz Federal Convocado


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