HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5027686-90.2019.4.03.0000
RELATOR: Gab. 40 - DES. FED. NINO TOLDO
IMPETRANTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR, MARCELO EGREJA PAPA
PACIENTE: LEANDRO MARTINS CANDIDO DA SILVA, HARUMI SUSANA UETA WALDECK
Advogado do(a) IMPETRANTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
Advogados do(a) PACIENTE: MARCELO EGREJA PAPA - SP374632, FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
Advogados do(a) PACIENTE: MARCELO EGREJA PAPA - SP374632, FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 3ª VARA FEDERAL CRIMINAL, OPERAÇÃO BOCA LIVRE
OUTROS PARTICIPANTES:
HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5027686-90.2019.4.03.0000 RELATOR: Gab. 40 - DES. FED. NINO TOLDO IMPETRANTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR, MARCELO EGREJA PAPA Advogado do(a) IMPETRANTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279 IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 3ª VARA FEDERAL CRIMINAL, OPERAÇÃO BOCA LIVRE OUTROS PARTICIPANTES: O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado pelos advogados Francisco de Paula Bernardes Junior e Marcelo Egreja Papa, em favor de LEANDRO MARTINS CÂNDIDO DA SILVA e HARUMI SUSANA UETA WALDECK, contra ato da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP que, após o oferecimento de resposta escrita à acusação, determinou o prosseguimento da ação penal em que se imputa aos pacientes, respectivamente gerente de marketing e vice-presidente do Banco PINE S.A., a prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, no âmbito da segunda fase da denominada Operação Boca Livre, mantendo a rejeição inicial da denúncia quanto ao crime capitulado no art. 288 do Código Penal. Os impetrantes alegam, em síntese, que a denúncia é inepta, em atenção ao disposto no art. 41 do Código de Processo Penal, pois não descreve qual foi a ação ou omissão delitiva dos pacientes, não narra como eles teriam produzido o suposto prejuízo ao erário nem descreve o elemento subjetivo do tipo. Sustentam que não há justa causa para a ação penal, na medida em que o crime de estelionato, consistente em obter vantagem ilícita com prejuízo alheio, deixa vestígios, e, no caso, embora se diga que a vítima teria sofrido redução patrimonial, mesmo havendo corpo de delito a ser examinado, não se deu a indispensável perícia oficial que a lei exige Aduzem que este Tribunal, ao analisar o habeas corpus (HC) nº 0004307-79.2017.4.03.0000/SP, concedeu a ordem em favor de outros denunciados na primeira fase da Operação, para reclassificar o crime de estelionato imputado na denúncia para o delito previsto no art. 40 da Lei nº 8313/91 (Lei Rouanet), e que, não obstante a similitude fática, a autoridade impetrada preferiu ignorar o precedente citado, mantendo a ação penal de origem tal como classificada. Por fim, os impetrantes arguem que, com a correta desclassificação do crime de estelionato contra a União (art. 171, §3º, CP) para o crime positivado no art. 40 da Lei Rouanet, os fatos se revelam penalmente prescritos e extinta a punibilidade dos pacientes. Por isso, pleitearam a concessão liminar da ordem, para suspender o curso da ação penal de origem, e, no mérito, a concessão da ordem, para o seu trancamento. O pedido de liminar foi deferido em favor de todos os acusados (ID 106136768). A autoridade impetrada prestou informações (ID 107459563), nas quais justificou o recebimento da denúncia pelo crime de estelionato, fundamentando, em síntese, que a finalidade da conduta, tal como descrita na peça acusatória, seria a obtenção da contrapartida ilícita, e não propriamente a dedução do tributo. O Procurador Regional da República interpôs agravo regimental, contra a decisão liminar de suspensão do feito (ID 107500051) e, na sequência, opinou pela denegação da ordem (ID 122804287). É o relatório.
PACIENTE: LEANDRO MARTINS CANDIDO DA SILVA, HARUMI SUSANA UETA WALDECK
Advogado do(a) PACIENTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
Advogado do(a) PACIENTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
R E L A T Ó R I O
HABEAS CORPUS CRIMINAL (307) Nº 5027686-90.2019.4.03.0000 RELATOR: Gab. 40 - DES. FED. NINO TOLDO IMPETRANTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR, MARCELO EGREJA PAPA Advogado do(a) IMPETRANTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279 IMPETRADO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 3ª VARA FEDERAL CRIMINAL, OPERAÇÃO BOCA LIVRE OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO (Relator): Este habeas corpus refere-se à segunda fase da denominada Operação Boca Livre, que, em sua primeira fase, resultou na ação penal nº 0001071-40.2016.4.03.6181, em trâmite na 3ª Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo. A situação descrita nos autos assemelha-se àquela que foi objeto do HC nº 0004307-79.2017.4.03.0000, de minha relatoria, relacionado à primeira fase dessa Operação. Em outras palavras, a imputação feita na denúncia não se coaduna aos fatos praticados e, por isso, deve haver a reclassificação jurídica destes. Com efeito, a leitura da denúncia (ID 100174247) mostra que se imputa aos pacientes, na qualidade de representantes do Banco PINE S.A., o suposto cometimento de três crimes de estelionato, relativos aos aportes financeiros realizados em três projetos culturais: Pronac nº 081715, intitulado "Música Instrumental pelo Brasil", no valor de R$ 317.000,00, voltado à “difusão da música instrumental brasileira em shows itinerantes por cidades do país, com apresentações gratuitas regidas pelo Maestro Júlio Medaglia”; Pronac nº 061773, intitulado "Show Sinfônico O Guarani", no valor de R$ 138.000,00, “destinava-se a apresentação da ópera ‘O Guarany’, de Carlos Gomes, pela Orquestra Filarmônica de Berlim, regida pelo maestro Júlio Medaglia” (ID 107459563, fls. 09); e, por fim, no Pronac nº 064145, intitulado "As Revoluções Brasileiras", no valor de R$ 263.126,09, destinado à “edição de livros contendo relatos históricos das Revoluções Brasileiras”. Segundo a acusação, esses projetos não chegaram a ser realizados, vez que o propósito da empresa patrocinadora, além do benefício fiscal previsto na Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91), era, desde o início da avença, obter como contrapartida, do Grupo Bellini, no primeiro caso, a "realização de um evento festivo de fim de ano, promovido pelo BANCO PINE, com a exibição, em 11/12/2009, de um show exclusivo da intérprete ALISSA SANDER e Banda, além de coquetel para 250 convidados", e com o segundo e terceiro Pronacs, "o pagamento da festa de confraternização do Banco em dezembro de 2008", no Cerimonial Leopoldo, em São Paulo, tudo por meio do desvio de recursos dos citados Projetos. A autoridade impetrada recebeu a denúncia apenas em relação ao crime capitulado no art. 171, § 3º, do Código Penal, rejeitando-a em relação ao crime de quadrilha, bem como ao corréu Norberto Nogueira Pinheiro Junior (ID 100174249), decisão essa que foi ratificada pelo juízo após analisadas as respostas à acusação oferecidas pelo paciente e demais réus (ID 100174251). Pois bem. Para melhor clareza, é necessário descrever do que se trata a Operação Boca Livre, a partir do que consta na denúncia. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), essa Operação, em suas duas fases, insere-se no contexto investigatório de desvirtuamento dos objetivos da Lei Rouanet (Lei nº 8.313, de 23.12.1991), os quais, apesar da regular captação de recursos visando à promoção de projetos culturais em nível nacional, deixaram de ser atingidos, por conta dos desvios de recursos públicos promovidos pelas pessoas denunciadas, em conluio com integrantes do Grupo Bellini Cultural. Essas pessoas são diretores e/ou gerentes de mais de uma dezena de empresas patrocinadoras desses projetos culturais. A acusação baseia-se em elementos de prova obtidos por ocasião do cumprimento de buscas e apreensões na sede do Grupo Bellini e nas sedes de diversas empresas patrocinadoras, bem como por interceptações telefônicas e telemáticas, tudo com a devida autorização judicial, no âmbito da referida Operação. O MPF argumenta que, em meio às provas colhidas, constatou-se a realização de diversas fraudes contra a União pela inexecução – total ou parcial – de projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura (MinC), sob a égide da Lei Rouanet, sendo que esses projetos culturais (denominados Pronac) haviam sido propostos pelo Grupo Bellini (por meio de suas empresas), que obteve autorização para a captação de patrocínios visando à sua realização. Aduz, que, como incentivo ao empreendedorismo cultural, a Lei Rouanet previu a concessão de dedução de percentual do imposto devido pela pessoa jurídica que aportasse recursos em projetos culturais, de modo que os benefícios advindos desses aportes se traduziriam na vinculação gratuita da marca da instituição (empresa) ao projeto cultural patrocinado, sendo que os recursos públicos que deveriam ser normalmente recolhidos aos cofres públicos na forma de tributo, são, na verdade, revertidos na execução do projeto cultural. No entanto, diz, o que se verificou nas investigações foi que os aportes feitos pelas empresas investigadas – considerados como recursos públicos federais porque captados por meio do incentivo fiscal previsto na Lei Rouanet – não foram contabilizados a favor do custeio dos projetos culturais aprovados pelo MinC e para os quais seriam destinados, mas foram objeto de comprovados desvios e fraudes praticados pelo Grupo Bellini (por suas diversas empresas) e também por dirigentes, prepostos, gerentes e/ou representantes de dezenas de empresas patrocinadoras, em conluio ou elo associativo. Via de regra, a fraude resume-se no seguinte procedimento: empresa vinculada ao Grupo Bellini foi proponente, junto ao MinC, de projeto cultural para o qual ficou autorizada a obter patrocínio junto a empresas. Obtido o patrocínio, o respectivo valor era desviado para a realização de eventos corporativos promovidos pelo Grupo Bellini em benefício das próprias empresas patrocinadoras. Durante as investigações, que abrangeram o período do início de 1998 até 29 de junho de 2016 (data da deflagração da Operação Boca Livre), constatou-se que milhares de eventos corporativos foram promovidos pelo Grupo Bellini. Constatou-se também, a partir das buscas e apreensões e dos diálogos telefônicos e telemáticos interceptados, que dezenas de projetos culturais aprovados pelo MinC (e para os quais os patrocínios haviam sido obtidos) não foram executados ou o foram de modo parcial, em razão dos desvios dos recursos. E esses desvios ocorreram não apenas em favor dos próprios integrantes do Grupo Bellini, mas especialmente para a promoção de eventos corporativos no interesse das empresas patrocinadoras. O MPF alega que o prejuízo advindo dessas fraudes superou R$ 41 milhões na primeira fase da Operação e que, na segunda fase, foram identificados desvios de mais de R$ 25 milhões. Diz, ainda, que a maior parte das empresas patrocinadoras somente aportava recursos em projetos culturais mediante certas condições, em regra expressas nos contratos de patrocínio, sem qualquer fundamento legal. Essas condições, que previam contrapartidas ilícitas, resultavam no desvio de grande parte dos recursos que deveriam ter sido empregados nos projetos culturais aprovados pelo MinC. Destaca que, para se formalizar um aporte a projeto cultural não é necessária a celebração de contrato de patrocínio, bastando a exibição do comprovante de que os recursos que deveriam ser recolhidos aos cofres públicos (até 4% do IR devido sobre o lucro real) foram depositados em uma conta oficial vinculada a um projeto cultural aprovado pelo MinC. Assim, entende o MPF que, ao procederem a esse desvio de recursos, com base na Lei Rouanet, a União teria sido usada não apenas como promotora de uma isenção fiscal sem causa, mas também do financiamento de festas ou produtos corporativos sem qualquer custo para a empresa patrocinadora ou incentivadora. Aduz que os departamentos de marketing dessas empresas utilizavam-se dos recursos objeto dos aportes em favor delas mesmas, como se privados fossem, sendo que muitos contratos de patrocínio apreendidos continham cláusulas expressas de contrapartidas, que são ilícitas, a corroborar o fato de que, sem elas, o patrocínio não sairia. O MPF entende que tudo isso ocorria em associação criminosa entre os integrantes do Grupo Bellini e os representantes das empresas e que esses desvios constituem estelionato contra a União, não sendo aplicável ao caso o tipo previsto no art. 40 da Lei Rouanet. A imputação por associação criminosa não é objeto de exame porque a denúncia foi rejeitada nessa parte. Quanto à imputação por estelionato, é preciso examinar, antes de mais nada, o tipo penal invocado pelo MPF: Art. 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa. [...] § 3º A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. Pois bem. Em primeiro lugar é preciso ter em mente que o estelionato é um crime contra o patrimônio e, portanto, na lição de Heleno Cláudio Fragoso, “[o] interesse juridicamente tutelado neste crime é a inviolabilidade do patrimônio, com especial referência às ações praticadas com engano ou fraude. De forma secundária é também tutelada a segurança, a fidelidade e a veracidade nos negócios jurídicos patrimoniais (...)” (Lições de direito penal, parte especial: arts. 121 a 212 do CP, 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 382). Disso decorre que se trata de crime material, que só se perfaz com a obtenção da vantagem ilícita patrimonial, que é o fim visado pelo agente. No caso dos patrocínios feitos pelas empresas que foram alvo da Operação Boca Livre, qual seria o dano patrimonial à União por elas objetivado, por intermédio dos seus representantes? O MPF entendeu, na denúncia, que o objetivo visado eram as contrapartidas ilícitas (eventos corporativos promovidos pelo Grupo Bellini em benefício das próprias empresas patrocinadoras), que provinham do desvio dos valores aportados a título de patrocínio, os quais o órgão acusatório entendeu serem recursos públicos. Esse raciocínio foi acolhido pela autoridade judicial impetrada, conforme se depreende do seguinte trecho das informações, que reproduz o que constou no recebimento da denúncia por estelionato: Dessa forma, entendeu-se pela impossibilidade de enquadramento no artigo 40 da Lei Rouanet, uma vez que, da leitura do mencionado dispositivo, observa-se que a conduta seria voltada à obtenção da redução do imposto de renda devido, e a fraude seria praticada com a finalidade de obter a sonegação tributária. No presente caso, a finalidade da conduta seria a obtenção da contrapartida ilícita, correspondente justamente à festa de encerramento do ano de 2008, evento institucional e exclusivo da instituição financeira. A finalidade da conduta, tal como descrita na denúncia, não seria a dedução do tributo. A dedução do tributo seria o meio (fraudulento) empregado para a obtenção da vantagem ilícita, consistente nas contrapartidas ilegais (shows, eventos, livros) obtidas pelas patrocinadoras. Assim, ao menos em uma análise preliminar, sem adentrar no mérito, que será discutido durante a instrução, não estar-se-ia [sic] diante do delito apontado pela defesa, pois não se obtinha somente o não pagamento de tributos. Além da dedução tributária, as empresas obtinham as contrapartidas ilícitas, que eram justamente os shows, eventos e livros. Estes eram inclusive objeto do contrato de patrocínio firmado entre as empresas do Grupo Bellini e as empresas patrocinadoras. [os negritos e sublinhados constam do original] Com a devida vênia, o entendimento do MPF na denúncia, que foi acolhido pelo juízo impetrado, contém significativo equívoco conceitual. Isso porque, como dito acima, o estelionato é um crime patrimonial, praticado mediante fraude (“obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio”). Para que se materialize, é necessária a ocorrência da lesão ao patrimônio da vítima em decorrência da fraude (que se dá por indução ou manutenção da vítima em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento). O núcleo do tipo é o verbo “obter” (que significa conseguir, lograr, ganhar) e compõe-se com a expressão “para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”. Assim, obter significa conseguir uma vantagem (lucro ou ganho) indevida em razão da indução ou manutenção da vítima em erro (engano) nela provocado, que é a finalidade do agente, sem que ela (vítima) note que está sendo lesada. Para que exista o crime de estelionato, são necessários: i) emprego de fraude; ii) situação de erro à qual a vítima foi induzida ou nela foi mantida; iii) obtenção da vantagem ilícita; iv) prejuízo da vítima. No caso das empresas patrocinadoras investigadas no âmbito da Operação Boca Livre, sem maiores digressões quanto ao mérito da imputação, qual seria a lesão ao patrimônio da União? A Lei Rouanet é clara quanto à impossibilidade de recebimento, pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou material em decorrência do patrocínio que efetuar (v. art. 23, § 1º). Portanto, é ilícita qualquer contrapartida que tenha sido objeto de contrato entre o Grupo Bellini e a patrocinadora para a liberação do patrocínio para o Pronac apresentado. No entanto, essas contrapartidas constituiriam prejuízo para o patrimônio da União? Apesar de o MPF, em diversos momentos da denúncia, ter chamado de “recursos públicos” os aportes feitos pelas empresas patrocinadoras, eles não o são. Somente a partir da dedução do imposto de renda, com a renúncia fiscal, é que os recursos das empresas (patrocínios) passam a ter natureza pública. Até então, sua natureza é privada. Explico. O Grupo Bellini (por qualquer de suas empresas) era autorizado a captar patrocínios para cada Pronac (projeto cultural) que apresentava ao MinC e por ele era aprovado. Uma vez obtido o patrocínio, esse valor deveria ser totalmente aplicado no Pronac para o qual fora autorizada a sua obtenção. Tendo sido desviado para qualquer outra situação (não importa qual), o valor desviado era privado até o momento em que a empresa patrocinadora deduzia do seu imposto de renda o valor aportado. Somente a partir desse momento, ou seja, da diminuição do imposto de renda que deveria ser recolhido é que se pode dizer que há lesão ao patrimônio da União. A contrapartida, em si mesma, não lesa o patrimônio da União. Se o Grupo Bellini negociou com a patrocinadora a realização de uma festa de confraternização de fim de ano pelo patrocínio de R$ 357.315.000,00 e utilizou, para tanto, de Pronacs que tinham por objeto a difusão da Ópera O Guarani e livros contendo relatos históricos das Revoluções Brasileiras, por exemplo, esses eventos, em si mesmos, não lesam o patrimônio da União, já que esse valor (patrocínio) saiu dos cofres da empresa (privado) e não dos cofres da União (público). A lesão ao patrimônio da União somente ocorrerá, repita-se, no momento em que esses R$ 357.315.000,00 forem deduzidos do imposto de renda devido pela empresa. De outro lado, o fundamento da autoridade impetrada no sentido de que “[a] dedução do tributo seria o meio (fraudulento) empregado para a obtenção da vantagem ilícita, consistente nas contrapartidas ilegais (shows, eventos, livros) obtidas pelas patrocinadoras” não é lógica. Ora, o meio não pode ser posterior ao fim. Se a empresa patrocinadora objetivasse apenas os shows, os eventos e os livros, qual o sentido de patrocinar um projeto cultural, se poderia alcançar esses mesmos objetivos (shows, eventos e livros) diretamente? Nenhum. Observe-se que, em diversas situações vistas na Operação Boca Livre, o valor aportado a título de patrocínio era muito superior ao custo de apresentação de um artista para evento privado, de onde se pode supor que, se o objetivo da empresa fosse realmente o show, seria muito mais fácil e mais barato contratar diretamente o artista, por meio de seu agente, do que se valer de um esquema envolvendo desvios de finalidade de Pronac. A conduta das empresas patrocinadoras só se justifica, do ponto de vista lógico, se o que elas objetivavam era valer-se de um futuro benefício fiscal. Veja-se, aliás, o que o próprio MPF fez constar da denúncia: Em meio às provas colhidas, foi constatada a realização de diversas fraudes contra a União no que se refere à inexecução - total ou parcial - de projetos culturais aprovados pelo Ministério da Cultura (doravante desigando MinC), sob a égide da Lei nº 8313/91 (Lei Rouanet). Tais projetos (PRONAC's) haviam sido propostos pelo Grupo Bellini (por meio de sua empresas) e aprovados pelo MinC, a partir da captação de milhões em aportes de empresas, que seriam empregados, a título de patrocínio, nesses mesmos projetos. Ora, sabe-se que, como incentivo ao empreendedorismo cultural, a Lei Rouanet previu a concessão de dedução de até 4% (quatro por cento) do imposto de renda devido pela pessoa jurídica que aportar recursos em projetos culturais por meio da Lei Rouanet. O benefício advindo desses aportes se traduz na vinculação gratuita da marca da instituição (empresa) ao projeto cultural em a patrocinadora investiu, sendo que os recursos públicos que deveriam ser normalmente por ela recolhidos, na forma de tributo, são, na verdade, revertidos na execução desse projeto cultural. O Grupo Bellini, em princípio, valendo-se de seus projetos culturais aprovados pelo MinC, oferecia às empresas patrocinadoras contrapartidas para que estas fizessem aportes para esses projetos, em descumprimento à Lei Rouanet. Aspectos mais específicos dessas condutas, no entanto, escapam ao restrito campo de conhecimento deste habeas corpus. Aqui, o que importa destacar é que a conduta imputada aos pacientes não pode ser classificada como estelionato. Assiste razão aos impetrantes no que tange à tipificação da conduta a eles imputada. Como já disse em outra oportunidade (no HC acima indicado), o acusado defende-se de fatos, e não da capitulação que consta na denúncia ou queixa, e o momento processual adequado para eventual correção da capitulação é o da prolação da sentença, nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal. Excepcionalmente, porém, é possível proceder a tal correção em momento diverso, inclusive o de recebimento da denúncia, nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado, com a aplicação dos institutos benéficos previstos na legislação, em especial a transação penal e a suspensão condicional do processo. De fato, se de antemão o magistrado percebe, no início do processo, que o fato se enquadra em tipo penal que admite tais medidas, não faz sentido processar integralmente a ação penal (com apresentação de defesa pelo acusado, realização de instrução e oferecimento de alegações finais pelas partes) para, somente ao final, no momento de prolação da sentença, determinar a conversão do julgamento em diligência para, então, oferecê-las. Assim, embora o momento adequado para a reclassificação jurídica da conduta imputada seja, em regra, o da prolação da sentença, em determinadas situações o juízo é autorizado a assim proceder em momento anterior, inclusive o de recebimento da denúncia, ante a desnecessidade de instrução probatória para tanto. É esse exatamente o caso dos autos. Há um aparente conflito de normas, pois o MPF imputa aos pacientes a prática do delito de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º), enquanto os impetrantes defendem que a conduta dos pacientes se amolda, em tese, ao crime do art. 40 da Lei Rouanet, que assim dispõe: Art. 40. Constitui crime, punível com reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, obter redução do imposto de renda utilizando-se fraudulentamente de qualquer benefício desta Lei. § 1º No caso de pessoa jurídica respondem pelo crime o acionista controlador e os administradores que para ele tenham concorrido. § 2º Na mesma pena incorre aquele que, recebendo recursos, bens ou valores em função desta Lei, deixa de promover, sem justa causa, atividade cultural objeto do incentivo. Pelo que acima foi dito e pelo exame dos autos, a intenção dos pacientes (sem estabelecer qualquer juízo de valor prévio acerca da sua eventual ilicitude) era valer-se do benefício fiscal decorrente da Lei Rouanet, qual seja, a dedução do imposto de renda do valor aplicado nos projetos culturais alegadamente fraudados. Assim, esse conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat generali), pois, no caso, o suposto uso fraudulento dos benefícios da Lei Rouanet é incriminado pelo art. 40 dessa Lei, que, por isso, constitui norma especial em relação ao estelionato e, ainda, aos tipos descritos na Lei nº 8.137/90. Dito isso, é certo também que tal fato constitui especial modalidade de crime contra a ordem tributária, de sorte que o pagamento integral do valor do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, constitui causa extintiva da punibilidade. Também em relação à prescrição da pretensão punitiva, não é o caso de se examinar essa questão no âmbito deste habeas corpus, até porque isso demandaria examinar o momento em que teria ocorrido a constituição definitiva do crédito tributário, já que o crime do art. 40 da Lei Rouanet é material (obter redução do imposto de renda) e, nesse caso, teria que ser observada a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal. Por fim, considerando que a pena máxima do crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet não é superior a dois anos de reclusão, a competência para o exame da suficiência do pagamento realizado, bem como de eventual prescrição da pretensão punitiva, é do Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP. Em consequência, não deverá ser procedida à instrução em relação aos pacientes. Posto isso, CONCEDO PARCIALMENTE A ORDEM para reclassificar a conduta imputada aos pacientes de estelionato, por três vezes, para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet, a ser processado e julgado perante o Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, assegurando aos pacientes, ainda, a possibilidade do reconhecimento da extinção da punibilidade desde que tenha havido o pagamento integral do tributo relativo aos benefícios fiscais supostamente fraudados, devidamente atualizados, com aplicação de juros e multa, o que deverá ser verificado pelo juízo impetrado, na origem, ao qual caberá, ainda, examinar eventual prescrição da pretensão punitiva, e JULGO PREJUDICADO O AGRAVO REGIMENTAL. Em consequência, não deverá ser procedida à instrução em relação aos pacientes, não se estendendo a situação para os demais corréus na ação penal, eis que estão em situações distintas. É o voto.
PACIENTE: LEANDRO MARTINS CANDIDO DA SILVA, HARUMI SUSANA UETA WALDECK
Advogado do(a) PACIENTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
Advogado do(a) PACIENTE: FRANCISCO DE PAULA BERNARDES JUNIOR - SP246279
O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:
Trata-se de Habeas Corpus, com pedido de liminar, impetrado pelos advogados Francisco de Paula Bernardes Junior e Marcelo Egreja Papa, em favor de LEANDRO MARTINS CÂNDIDO DA SILVA e HARUMI SUSANA UETA WALDECK, contra ato da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP que, após o oferecimento de resposta escrita à acusação, determinou o prosseguimento da ação penal em que se imputa aos pacientes, respectivamente, gerente de marketing e vice-presidente do Banco PINE S.A., a prática do crime previsto no art. 171, § 3º, do Código Penal, no âmbito da segunda fase da denominada Operação Boca Livre, mantendo a rejeição inicial da denúncia quanto ao crime capitulado no art. 288 do Código Penal.
O Exmo. Desembargador Federal Relator NINO TOLDO, em seu voto concedeu parcialmente a ordem para reclassificar a conduta imputada aos pacientes de estelionato, por três vezes, para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet, a ser processado e julgado perante o Juizado Especial Federal Criminal adjunto à 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP, assegurando aos pacientes, ainda, a possibilidade do reconhecimento da extinção da punibilidade desde que tenha havido o pagamento integral do tributo relativo aos benefícios fiscais supostamente fraudados, devidamente atualizados, com aplicação de juros e multa, o que deverá ser verificado pelo juízo impetrado, na origem, ao qual caberá, ainda, examinar eventual prescrição da pretensão punitiva, e julgou prejudicado o Agravo Regimental. Em consequência, determinou não deverá ser procedida à instrução em relação aos pacientes, não se estendendo a situação para os demais corréus na ação penal, eis que estão em situações distintas.
Em que pesem os judiciosos argumentos trazidos a lume pelo e. Relator em seu voto, peço vênia para divergir do seu posicionamento, pois entendo que o caso é de denegação da ordem.
Passo aos fundamentos do meu voto.
Dispõe o art. 171, § 3°, do Código Penal:
Estelionato
Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.
(…)
§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.
O art. 40 da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet), por sua vez, estabelece que:
Art. 40. Constitui crime, punível com reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, obter redução do imposto de renda utilizando-se fraudulentamente de qualquer benefício desta Lei.
§ 1o No caso de pessoa jurídica respondem pelo crime o acionista controlador e os administradores que para ele tenham concorrido.
§ 2o Na mesma pena incorre aquele que, recebendo recursos, bens ou valores em função desta Lei, deixa de promover, sem justa causa, atividade cultural objeto do incentivo.
Como se nota, no delito previsto no art. 40 da Lei n° 8.313/1991, o bem jurídico violado é a arrecadação de tributos, na medida em que se busca suprimir imposto de renda mediante a obtenção do benefício de forma fraudulenta. O objetivo da conduta é obter a redução do tributo e o meio utilizado para alcançá-lo é a obtenção do benefício mediante fraude.
De outro lado, o crime de estelionato é mais amplo e abarca a conduta daquele que obtém para si ou para terceiro qualquer vantagem em prejuízo alheio, induzindo alguém em erro mediante fraude.
Restou apurado pela leitura da denúncia (ID 100174247) que se imputa aos pacientes, na qualidade de representantes do Banco PINE S.A., o suposto cometimento de três crimes de estelionato, relativos aos aportes financeiros realizados em três projetos culturais: Pronac nº 081715, intitulado Música Instrumental pelo Brasil, no valor de R$ 317.000,00, voltado à difusão da música instrumental brasileira em shows itinerantes por cidades do país, com apresentações gratuitas regidas pelo Maestro Júlio Medaglia; Pronac nº 061773, intitulado Show Sinfônico O Guarani, no valor de R$ 138.000,00, destinava-se a apresentação da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, pela Orquestra Filarmônica de Berlim, regida pelo maestro Júlio Medaglia (ID 107459563, fls. 09); e, por fim, no Pronac nº 064145, intitulado As Revoluções Brasileiras, no valor de R$ 263.126,09, destinado à edição de livros contendo relatos históricos das Revoluções Brasileiras.
Segundo a acusação, esses projetos não chegaram a ser realizados, vez que o propósito da empresa patrocinadora, além do benefício fiscal previsto na Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91), era, desde o início da avença, obter como contrapartida, do Grupo Bellini, no primeiro caso, a realização de um evento festivo de fim de ano, promovido pelo BANCO PINE, com a exibição, em 11/12/2009, de um show exclusivo da intérprete ALISSA SANDER e Banda, além de coquetel para 250 convidados, e com o segundo e terceiro Pronacs, o pagamento da festa de confraternização do Banco em dezembro de 2008, no Cerimonial Leopoldo, em São Paulo, tudo por meio do desvio de recursos dos citados Pronacs.
No entanto, o que se teria verificado nas investigações foi que os aportes feitos pelas empresas investigadas – considerados como recursos públicos federais porque captados por meio do incentivo fiscal previsto na Lei Rouanet – não foram contabilizados a favor do custeio dos projetos culturais aprovados pelo MinC e para os quais seriam destinados, mas foram objeto de comprovados desvios e fraudes praticados pelo Grupo Bellini (por suas diversas empresas) e também por dirigentes, prepostos, gerentes e/ou representantes de dezenas de empresas patrocinadoras, em conluio ou elo associativo.
Via de regra, a fraude resumia-se no seguinte procedimento: empresa vinculada ao Grupo Bellini foi proponente, junto ao MinC, de projeto cultural para o qual ficou autorizada a obter patrocínio junto a empresas. Obtido o patrocínio, o respectivo valor era desviado para a realização de eventos corporativos promovidos pelo Grupo Bellini em benefício das próprias empresas patrocinadoras.
Os prejuízos advindos dessas fraudes teriam superado R$ 41 milhões na primeira fase da Operação e, na segunda fase, teriam sido identificados desvios de mais de R$ 25 milhões.
Consta, ainda, que a maior parte das empresas patrocinadoras somente aportava recursos em projetos culturais mediante certas condições, em regra expressas nos contratos de patrocínio, sem qualquer fundamento legal. Essas condições, que previam contrapartidas ilícitas, resultavam no desvio de grande parte dos recursos que deveriam ter sido empregados nos projetos culturais aprovados pelo MinC. Destacou-se que, para se formalizar um aporte a projeto cultural não é necessária a celebração de contrato de patrocínio, bastando a exibição do comprovante de que os recursos que deveriam ser recolhidos aos cofres públicos (até 4% do IR devido sobre o lucro real) foram depositados em uma conta oficial vinculada a um projeto cultural aprovado pelo MinC.
Assim, entendeu o órgão acusador que, ao procederem a esse desvio de recursos, com base na Lei Rouanet, a União teria sido usada não apenas como promotora de uma isenção fiscal sem causa, mas também do financiamento de festas ou produtos corporativos sem qualquer custo para a empresa patrocinadora ou incentivadora. Aduziu que os departamentos de marketing dessas empresas utilizavam-se dos recursos objeto dos aportes em favor delas mesmas, como se privados fossem, sendo que muitos contratos de patrocínio apreendidos continham cláusulas expressas de contrapartidas, que são ilícitas, a corroborar o fato de que, sem elas, o patrocínio não sairia.
O Ministério Público Federal afirmou, por fim, tudo isso ocorria em associação criminosa entre os integrantes do Grupo Bellini e os representantes das empresas e que esses desvios constituem estelionato contra a União, não sendo aplicável ao caso o tipo previsto no art. 40 da Lei Rouanet.
Identificou-se que os pacientes LEANDRO MARTINS CÂNDIDO DA SILVA e HARUMI SUSANA UETA WALDECK eram representantes do BANCO PINE S/ A. e tinham conhecimento da necessidade em se dar correta destinação aos aportes efetuados, bem como do efetivo desvio para a realização da festa de confraternização da instituição financeira.
A denúncia foi recebida em 25.02.2019 pelo magistrado da 3ª Vara Federal Criminal de São Paulo ( ID 100174248).
Da impossibilidade de desclassificação do delito tipificado no art. 171, § 3°, do Código Penal para o delito previsto no art. 40, inciso I, da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet).
A magistrada a quo rechaçou o pleito defensivo de desclassificação da conduta tipificada no art. 171, § 3°, do Código Penal para aquela prevista no art. 40 da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet), por entender que...a finalidade da conduta, tal como descrita na denúncia, não era a dedução do tributo. A dedução do tributo era o meio (fraudulento) empregado para a obtenção da vantagem ilícita, consistentes nas contrapartidas ilegais (shows, eventos, livros) obtidos pelas patrocinadoras (ID 100174251).
In casu, os pacientes, representantes do BANCO PINE S/ A., teriam se utilizado dos recursos, em proveito da própria empresa, como se recursos privados fossem.
Assim, a tipificação dada na denúncia vai muito além da prática de mera sonegação fiscal por parte da patrocinadora ou da inexecução total ou parcial dos projetos culturais aprovados, já que tal empresa foi, também e diretamente, beneficiada com a realização de um evento festivo de fim de ano, promovido pelo BANCO PINE, com a exibição, em 11/12/2009, de um show exclusivo da intérprete ALISSA SANDER e Banda, além de coquetel para 250 convidados, e, ainda, com o pagamento da festa de confraternização do Banco em dezembro de 2008, no Cerimonial Leopoldo, em São Paulo, tudo por meio do desvio de recursos dos citados Pronacs.
Ao se associar dolosa e criminalmente aos membros do Grupo Bellini Cultural, a patrocinadora, por meio dos pacientes, que seriam os representantes legais à época, teria transformado um projeto originariamente cultural, num projeto corporativo, com fins unicamente promocionais, em completo desvirtuamento dos propósitos da Lei Rouanet.
Por esta razão, entende-se que o ilícito praticado consiste no estelionato contra a União, em razão do específico auferimento, pela empresa patrocinadora, de vantagens ilícitas em detrimento da execução de um projeto cultural, além de usufruir da própria isenção fiscal sem causa legítima que a justificasse.
A fraude consistiu em obter vantagem indevida sob a justificativa de realizar o incentivo à cultura, sabendo-se que tal evento não seria realizado, mas sim, o evento privado.
Diante desse contexto, conclui-se que o que se pretendia era utilizar o dinheiro destinado ao incentivo cultural para fins privados, ou seja, a elaboração de produto em caráter nitidamente promocional e personalizado, com especificações que atendiam ao interesse da empresa.
Assim, entende-se pela impossibilidade da desclassificação do delito tipificado no art. 171, § 3°, do Código Penal para o delito previsto no art. 40, inciso I, da Lei n° 8.313/91 (Lei Rouanet).
Dispositivo
Ante o exposto, voto no sentido de divergir do e. Relator, a fim de DENEGAR a ordem de Habeas Corpus.
É o voto.
E M E N T A
PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. OPERAÇÃO BOCA LIVRE. FRAUDE RELACIONADA A BENEFÍCIOS DA LEI ROUANET. IMPUTAÇÃO DE PRÁTICA DO CRIME DE ESTELIONATO QUALIFICADO. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. RECLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA ANTES DA PROLAÇÃO DA SENTENÇA. POSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL FEDERAL CRIMINAL.
1. A imputação feita na denúncia, de prática do crime de estelionato qualificado (CP, art. 171, § 3º) contra a União, não se coaduna aos fatos praticados e, por isso, deve haver a reclassificação jurídica destes.
2. O estelionato é um crime patrimonial, praticado mediante fraude (“obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio”). Para que se materialize, é necessária a ocorrência da lesão ao patrimônio da vítima em decorrência da fraude (que se dá por indução ou manutenção da vítima em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento).
3. A Lei Rouanet é clara quanto à impossibilidade de recebimento, pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou material em decorrência do patrocínio que efetuar (v. art. 23, § 1º). Portanto, é ilícita qualquer contrapartida que tenha sido objeto de contrato entre o grupo intermediador e a patrocinadora para a liberação do patrocínio para o Pronac apresentado.
4. Apesar de o Ministério Público Federal, em diversos momentos da denúncia, ter chamado de “recursos públicos” os aportes feitos pelas empresas patrocinadoras, eles não o são. Somente a partir da dedução do imposto de renda, com a renúncia fiscal, é que os recursos das empresas (patrocínios) passam a ter natureza pública.
5. O grupo intermediador (por qualquer de suas empresas) era autorizado a captar patrocínios para cada Pronac (projeto cultural) que apresentava ao Ministério da Cultura e por ele era aprovado. Uma vez obtido o patrocínio, esse valor deveria ser totalmente aplicado no Pronac para o qual fora autorizada a sua obtenção. Tendo sido desviado para qualquer outra situação (não importa qual), o valor desviado era privado até o momento em que a empresa patrocinadora deduzia do seu imposto de renda o valor aportado. Somente a partir desse momento, ou seja, da diminuição do imposto de renda que deveria ser recolhido é que se pode dizer que há lesão ao patrimônio da União.
6. A contrapartida, em si mesma, não lesa o patrimônio da União. Se o Grupo Bellini negociou com a patrocinadora a realização de uma festa de confraternização de fim de ano pelo patrocínio de R$ 357.315.000,00 e utilizou, para tanto, de Pronac que tinham por objeto a difusão da Ópera O Guarani, por exemplo, esse show, em si mesmo, não lesa o patrimônio da União, já que esse valor (patrocínio) saiu dos cofres da empresa (privado) e não dos cofres da União (público). A lesão ao patrimônio da União somente ocorrerá, repita-se, no momento em que esses R$ 357.315.000,00 forem deduzidos do imposto de renda devido pela empresa.
7. O meio não pode ser posterior ao fim. Se a empresa patrocinadora objetivasse apenas os shows, os eventos e os livros, qual o sentido de patrocinar um projeto cultural, se poderia alcançar esses mesmos objetivos (shows, eventos e livros) diretamente? Nenhum. Em diversas situações vistas na Operação Boca Livre, o valor aportado a título de patrocínio era muito superior ao custo de apresentação de um artista para evento privado, de onde se pode supor que, se o objetivo da empresa fosse realmente o show, seria muito mais fácil e mais barato contratar diretamente o artista, por meio de seu agente, do que se valer de um esquema envolvendo desvios de finalidade de Pronac. A conduta das empresas patrocinadoras só se justifica, do ponto de vista lógico, se o que elas objetivavam era valer-se de um futuro benefício fiscal. A conduta imputada à paciente não pode ser classificada como estelionato.
8. O acusado defende-se de fatos, e não da capitulação que consta na denúncia ou queixa, e o momento processual adequado para eventual correção da capitulação é o da prolação da sentença, nos termos do art. 383 do Código de Processo Penal. Excepcionalmente, porém, é possível proceder a tal correção em momento diverso, inclusive o de recebimento da denúncia, nas hipóteses de erro flagrante, alteração de competência absoluta e concessão de benefícios processuais ao acusado, com a aplicação dos institutos benéficos previstos na legislação, em especial a transação penal e a suspensão condicional do processo.
9. Se de antemão o magistrado percebe, no início do processo, que o fato se enquadra em tipo penal que admite tais medidas, não faz sentido processar integralmente a ação penal (com apresentação de defesa pelo acusado, realização de instrução e oferecimento de alegações finais pelas partes) para, somente ao final, no momento de prolação da sentença, determinar a conversão do julgamento em diligência para, então, oferecê-las. Assim, embora o momento adequado para a reclassificação jurídica da conduta imputada seja, em regra, o da prolação da sentença, em determinadas situações o juízo é autorizado a assim proceder em momento anterior, inclusive o de recebimento da denúncia, ante a desnecessidade de instrução probatória para tanto.
10. No caso, há um aparente conflito de normas, pois o MPF imputa aos pacientes a prática do delito de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º), enquanto os impetrantes defendem que a conduta dos pacientes se amolda, em tese, ao crime do art. 40 da Lei Rouanet.
11. Pelo exame dos autos, a intenção dos pacientes (sem estabelecer qualquer juízo de valor prévio acerca da sua eventual ilicitude) era valer-se do benefício fiscal decorrente da Lei Rouanet, qual seja, a dedução do imposto de renda do valor aplicado nos projetos culturais alegadamente fraudados. Assim, esse conflito aparente de normas deve ser resolvido pelo princípio da especialidade (lex specialis derogat generali), pois, no caso, o suposto uso fraudulento dos benefícios da Lei Rouanet é incriminado pelo art. 40 dessa Lei, que, por isso, constitui norma especial em relação ao estelionato e, ainda, aos tipos descritos na Lei nº 8.137/90.
12. É certo também que tal fato constitui especial modalidade de crime contra a ordem tributária, de sorte que o pagamento integral do valor do tributo relativo ao benefício supostamente fraudado, devidamente atualizado, com aplicação de juros e multa, constitui causa extintiva da punibilidade. Contudo, não há como reconhecer, neste writ, a extinção da punibilidade da paciente pelo pagamento integral do tributo, haja vista que tal situação depende de manifestação específica da autoridade fazendária, não presente nos autos, a ser aferida na origem.
13. Em relação à prescrição da pretensão punitiva, não é o caso de se examinar essa questão no âmbito deste habeas corpus, até porque isso demandaria examinar o momento em que teria ocorrido a constituição definitiva do crédito tributário, já que o crime do art. 40 da Lei Rouanet é material (obter redução do imposto de renda) e, nesse caso, teria que ser observada a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal.
14. Considerando que a pena máxima do crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet não é superior a dois anos de reclusão, a competência para o exame da suficiência do pagamento realizado, bem como de eventual prescrição da pretensão punitiva, é do Juizado Especial Federal Criminal adjunto ao juízo de origem.
15. Ordem parcialmente concedida para reclassificar a conduta imputada aos pacientes de estelionato, por três vezes, para o crime previsto no art. 40 da Lei Rouanet. Agravo regimental prejudicado.