Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5007553-90.2020.4.03.0000

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. FÁBIO PRIETO

AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL

 

AGRAVADO: PREVENT SENIOR PARTICIPACOES S.A.

Advogado do(a) AGRAVADO: GILBERTO LEME MENIN - SP187542-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 


 

  

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5007553-90.2020.4.03.0000

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. FÁBIO PRIETO

AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL

 

AGRAVADO: PREVENT SENIOR PARTICIPACOES S.A.

Advogado do(a) AGRAVADO: GILBERTO LEME MENIN - SP187542-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

 

O Senhor Desembargador Federal Fábio Prieto:

 

Trata-se de agravo de instrumento interposto contra r. decisão que deferiu antecipação de tutela em ação destinada a obstar a requisição administrativa de ventiladores pulmonares, nos termos da Lei Federal nº. 13.979/2020 (fls. 10/13, ID 129173991).

 

A União, ora agravante, defende o poder de requisição administrativa exercido pelos gestores do Ministério da Saúde, para afetar aparelhos médicos de ventilação pulmonar.

 

Diz que a Constituição legitima o procedimento excepcional.

 

A condição de fato necessária para a adoção da medida administrativa é a declaração de calamidade pública, a partir da constatação de pandemia viral.

 

O pedido de efeito suspensivo foi deferido (ID 130225303).

 

Agravo regimental (ID 130895689), no qual a agravada argumenta com os princípios da segurança jurídica, da inviolabilidade da propriedade e da anterioridade.

 

Afirma que a aquisição dos 50 (cinquenta) equipamentos é anterior ao ato de requisição administrativa: a negociação foi iniciada em 2019.

 

Anota que os equipamentos estão sendo utilizados na cidade de São Paulo, local com grande incidência de casos e óbitos, sendo que todos os ventiladores possuiriam destinação certa e provada.

 

Sustenta que a empresa produtora teria capacidade de atender à demanda do Ministério da Saúde, nos termos de decisão proferida pela Justiça Comum do Estado de São Paulo.

 

Agravo regimental, com a manutenção da decisão (ID 131630580).

 

O julgamento do processo foi adiado, a pedido da Procuradoria da República (ID 133534778 e 133552012).

 

A Procuradoria Regional da República apresentou parecer (ID 135161332).

 

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5007553-90.2020.4.03.0000

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. FÁBIO PRIETO

AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL

 

AGRAVADO: PREVENT SENIOR PARTICIPACOES S.A.

Advogado do(a) AGRAVADO: GILBERTO LEME MENIN - SP187542-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

O Senhor Desembargador Federal Fábio Prieto:

 

O poder de requisição administrativa sobre bens e serviços é medida do constitucionalismo universal.

 

São significativas, apenas e tão-só, as diferenças relacionadas à extensão e às consequências da providência pública, de acordo com o modelo institucional de sociedade.

 

Estados intervencionistas, com pouco apreço pela propriedade privada, adotam a requisição administrativa como poder absoluto, sem limites. Não precisam pagar indenização pela fruição dos bens e serviços requisitados.

 

Nos Estados liberais, a requisição administrativa é medida excepcional, subordinada à fundamentação estrita, de justa causa.

 

O Estado também precisa pagar indenização ao proprietário do bem, cujo uso é destinado à coletividade, em situação de guerra, calamidade pública ou sob outras circunstâncias excepcionais.

 

É o caso do Brasil.

 

A Constituição: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” – artigo 5º, inciso XXV.

 

Em relação ao direito à saúde, a Lei Federal nº 8.080/90, que disciplina os setores público e privado de assistência, faculta, aos gestores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o exercício do poder de requisição administrativa: “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente  poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização” - artigo 15, inciso XIII.

 

Diante da pandemia viral, o Congresso Nacional optou por detalhar o modelo de enfrentamento ao desastre, com a edição de lei específica.

 

O artigo 3º, inciso VII, da Lei Federal nº 13.979/2020, autoriza, expressamente, a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

 

O modelo normativo do País não deixa dúvida quanto ao exercício do poder de requisição administrativa facultado aos gestores públicos de saúde, nos vários níveis de governança.

 

Quanto à finalidade da requisição administrativa, é certo que a operadora de saúde privada, nos termos de seu legítimo objeto social, pretendia destinar o uso dos ventiladores pulmonares aos seus clientes particulares.

 

Mas a Lei Federal nº 13.979/2.020, no artigo 1º, § 1º, estabeleceu objetivo social distinto, também legítimo, porém mais amplo: “a proteção da coletividade”.

 

Trata-se de opção finalística do legislador, que não cabe ao Poder Judiciário afrontar, tanto mais sem a formalidade necessária e grave da declaração fundamentada sobre a suposta inconstitucionalidade da norma jurídica protetiva da coletividade.

 

Registre-se que o Congresso Nacional respeitou a função social das requisições administrativas, facultando a expansão do uso de bens e serviços privados para o domínio público.

 

Como na hipótese dos autos: os clientes particulares da operadora de saúde privada não serão alijados do uso dos ventiladores pulmonares; mas outros cidadãos, estranhos a esta condição econômica - a "coletividade", segundo a opção do Congresso Nacional -, poderão fazê-lo, também.

 

Acrescento, ainda, que o poder de requisição administrativa é facultado sobre bens à disposição de particulares.

 

No regime de emergência próprio a esta medida extrema, a autoridade requisitante não está subordinada à discussão do título jurídico – ou da simples situação de fato – que ensejou a posse da coisa.

 

As condições dramáticas e excepcionais facultativas da medida extrema - constitucional, legal, como já foi explicitado na decisão precedente – são incompatíveis, manifestamente incompatíveis, com qualquer modalidade contenciosa, administrativa ou judiciária, de aferição sobre a natureza de fato ou de direito da detenção da coisa.

 

O poder requisitante tem a faculdade de afetação de qualquer bem na posse do particular, pouco importando a relação jurídica da coisa com o requisitado.

 

Esta questão poderá ser relevante, não no momento do apossamento do bem pelo gestor público, mas, depois, quando, nas limitações impostas pelo Estado Democrático de Direito, o poder requisitante é obrigado a indenizar pelo uso público da coisa particular.

 

Por último, os precedentes jurisprudenciais invocados contra a posição da União são estranhos à realidade fático-jurídica do presente caso.

 

A decisão liminar da Presidência do TRF5 trata da hipótese de requisição administrativa de bem público. Não há elementos suficientes para conhecer toda a complexidade daquele caso, mas a informação preliminar é que a União teria afetado bem à disposição do Município do Recife.

 

Quanto à decisão unânime adotada no Plenário do Supremo Tribunal Federal (MS 25.295-2), é exato que o decreto subscrito, em março de 2.005, pelo Presidente da República e pelo Ministro de Estado de Saúde, foi censurado de modo acerbo e inusual: “intervenção disfarçada, enrustida”, “fraude constitucional”, “decreto calamitoso”, “medida inconstitucionalíssima”, “meio dissimulado da prática de atos de nítido caráter interventivo”.

 

A realidade daquele caso é distinta do atual. Tratou-se, então, de fraude constitucional praticada pela União contra bens e serviços hospitalares do Município do Rio de Janeiro.

 

Aqui, a União, em cumprimento ao desígnio do legislador, quer ampliar a finalidade do uso de bens particulares: da fruição de clientes privados de certa empresa, para a coletividade de cidadãos – entre os quais estão incluídos os citados clientes privados, registre-se uma vez mais. 

 

Por estes fundamentos, dou provimento ao agravo de instrumento. Prejudicado o agravo regimental.

 

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


VOTO DIVERGENTE DO DES. FEDERAL JOHONSOM di SALVO:

 

A Constituição Federal estabelece: no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”(artigo 5º, inciso XXV). O seu artigo 37, § 6º, elegeu a responsabilidade objetiva do Poder Público para indenizar o administrado, teoria do risco administrativo, segundo a qual o Estado tem o dever de indenizar mesmo que pratique atos lícitos.

Logo, mesmo que não houvesse lei ordinária regulando a espécie, o poder de requisitar poderia ser exercitado conforme regras constitucionais self executing.

Apesar disso, no âmbito dos assuntos de saúde temos a Lei nº 8.080/90, que assim disciplina o exercício do poder de requisição administrativa: “para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente  poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização” (artigo 15, inciso XIII).

Mas para tudo deve haver um limite e ele está no nicho amplo do senso comum da vida real, e não na estratosfera onde habita a Constituição.

É de sabença comum em Direito Administrativo que a requisição existe para obviar e contornar riscos e perigos; ela não pode criar mais riscos e mais perigos. E, infelizmente, foi essa a situação que a agravante criou através do ofício requisitório nº n.º 43/2020/CGIES/DLOG/SE/MS, por sinal, desmotivado e por isso inválido, como se verá oportunamente.

Um singelíssimo conceito de requisição é dado por Zanella di Pietro: “ato administrativo unilateral, autoexecutório e oneroso, consistente na utilização de bens ou de serviços particulares pela Administração, para atender a necessidades coletivas em tempo de guerra ou em caso de perigo público iminente.” (Direito administrativo, 31ª ed.– Rio de Janeiro: Forense, 2018).

Segue daí, sem dúvida, que o escopo dessa medida extrema é incidir sobre bens particulares APENAS para combater necessidades coletivas em tempo de guerra ou quando há perigo público iminente.

Na espécie, a requisição vem a criar perigo, senão público, pelo menos para um número indeterminado de pessoas (notadamente sexagenários) que pagaram pelos serviços da entidade privada de saúde, eis que a União – para suprir as necessidades do SUS – está canibalizando os estoques de equipamentos médicos dos hospitais privados, claramente impedindo que essas entidades – que são coadjuvantes do Poder Público na prestação da saúde, ex vi do artigo 197 da Constituição – possam prestar o socorro terapêutico às vítimas da Covid-19 que os procuram.

É certo que leitos e serviços hospitalares podem ser requisitados (artigo 15, XIII, Lei nº 8.080/90), mas desde que, dessa medida não resultem outros danos e perigos. Tal como subtrair atendimento médico numa região para suprir outra.

Aqui, a entidade privada destinava os ventiladores pulmonares comprados em 2019 – respiradores – aos seus clientes particulares, aqueles que ao longo do tempo pagaram pelos serviços de saúde que viessem a precisar e que a empresa oportunizava contratualmente.

Logo, não há sentido algum em o Poder Público requisitar de entidades particulares de prestação de saúde os respiradores – em uso ou para serem entregues – que funcionam como terapia contra os malefícios da Covid-19 para alocá-los na rede pública, subtraindo dos doentes dessa moléstia que procuram socorro junto à entidade de plano de saúde (para a qual verteram substanciosas quantias) o mesmo tratamento.

O Poder Público brasileiro – de regra inepto – despe um santo para vestir outro.

Historicamente o Poder Público não oferece serviços de saúde compatíveis com as necessidades nacionais, compelindo pessoas com maior poder aquisitivo a buscar abrigo em planos de saúde, situação que não é pecaminosa e é bem vista sob o prisma do liberalismo econômico que retornou à moda.

Quando surge a atual pandemia, esse Poder Público que nunca na História desta nação ofereceu serviços de saúde corretos ao povo brasileiro, usa os poderes (legítimos) de requisição, mas de um modo perverso: subtrai os equipamentos da entidade que suplementava a prestação de saúde (voltada a quem pagava por isso há anos) para socorrer o serviço de saúde público, impedindo o socorro de quem pagou – além dos impostos escorchantes cobrados de qualquer brasileiro – para ter esse tratamento quando dele precisasse.

Não tem o menor sentido prático e moral sucatear ou canibalizar hospitais e entidades particulares razoavelmente aparelhados, tirando-lhes a capacidade de atender seus pacientes, para atender os doentes do SUS.

Como ficarão os doentes que procurarem os estabelecimentos privados que sofrerem essa requisição – hoje e doravante, pois a pandemia não vai parar antes que surja uma vacina –  ao quais pagaram na expectativa de obter tratamento ? Terão de correr às filas do SUS, aos hospitais de campanha inundados (https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/27/chuva-invade-hospital-de-campanha-do-anhembi-em-sp-veja-video.ghtml) isso porque o Estado não aparelhou a saúde pública e agora desaparelha a rede privada.

De fato, após a aprovação em 2016 do chamado “teto de gastos” (EC nº 95), o sistema de saúde deixou de receber R$ 20 bilhões, segundo o próprio Conselho Nacional de Saúde (CNS); é óbvio que a situação que já era ruim, piorou.

Agora, atira-se no colo dos hospitais privados e dos cidadãos que a duras penas pagaram planos de saúde, o ônus de ficarem sem tratamento pelo qual já pagaram, para suprir a incúria estatal.

Diante do precedente criado, imagine-se outra hipótese (por sinal, que poderia ter ocorrido com uma epidemia anterior, a do H1N1): surge uma vacina, entidades particulares mais ricas e expeditas compram lotes dessa vacina antes que o faça o letárgico Poder Público e colocam o medicamento à disposição de quem possa pagar pela dose. Animado pelo precedente criado aqui, o Estado requisita o estoque para vacinar pessoas em outras regiões do país, subtraindo a vacina do local para onde a compra foi cogitada.

Outra: hospitais privados, sem as amarras da Lei nº 8.666/93, importam equipamentos de proteção individual para seus funcionários; na alfândega, o Poder Público requisita tudo para usar nos hospitais públicos, despindo de proteção os médicos e enfermeiros dos nosocômios privados.

È claro que a requisição em tema de saúde pública é possível, mas não em dimensão que sucateia a rede privada de saúde, que também mereceu proteção constitucional (artigo 197), o que significa que aquele que paga pelos serviços de saúde merece tanto respeito quanto o brasileiro que se vale do SUS.

A espécie dos autos tem mais um complicador em detrimento da requisição. A empresa agravada - empresa PREVENT SENIOR PRIVATE OPERADORA DE SAÚDE LTDA. – é uma entidade prestadora de saúde cuja clientela é de sexagenários, pessoas com idade mínima de 60 anos, justamente o maior grupo de risco da Covid-19.

Ou seja, a atitude da União, despojando o hospital particular dos respiradores essenciais ao grupo de risco (sexagenários) pode inviabilizar tratamentos dessas pessoas diretamente atingidas pelo mal; e a União assim procede para alocá-los aonde ? A quem serão destinados os respiradores ? Ficarão no Estado de São Paulo (sede da empresa atingida e onde está a massa de seus sexagenários-usuários) ou serão destinados a outro ente federativo, permanecendo fora do alcance dos sexagenários que pela via contratual contatam com o tratamento e que não terão, efetivamente, acesso a tratamento nos respiradores que foram ao depois requisitados pela potestade administrativa da União ?

O enxame de dispositivos legais e argumentos trazidos na minuta – inclusive o das “escolhas trágicas” – não suplanta a realidade criada pela União: os pacientes do SUS merecem tratamento; aqueles que, além de pagar impostos escorchantes para custar o próprio SUS, e ainda buscam socorro privado, devem ser alijados do tratamento pelos respiradores comprados pela empresa PREVENT SENIOR PRIVATE OPERADORA DE SAÚDE LTDA.

No ponto, nem há que se dar importância ao surrado argumento das “escolhas trágicas”, já que aqui a União está elegendo quais cidadãos deverão ser alijados de tratamento pelos respiradores: aqueles que pagaram para isso. A imoralidade administrativa e a pessoalidade da conduta da Administração no caso dos autos infringe o artigo 37 da Constituição.

Mas a ilegalidade não para por aí.

O ato de requisição – um ofício – é despido de motivação, que é o elemento essencial de qualquer ato administrativo que interfere na vida jurídica ou pessoal alheia, como sustenta a doutrina nacional e estrangeira (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. Motivo e motivação do Ato Administrativo. RT, São Paulo, 1979, p. 110 - BIELSA, Rafael. Compendio de Derecho Público. Buenos Aires, 1952, II/27 - JÈZE, Gaston. Príncipes Généraux du Droit Administratif. Paris, 1962, III;219).

A menção à justificativa (motivação) é imperiosa (STF: MS 25518, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/2006, DJ 10-08-2006 PP-00020 EMENT VOL-02241-02 PP-00374 RTJ VOL-00201-02 PP-00550 - RE 160381, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 29/03/1994, DJ 12-08-1994 PP-20052 EMENT VOL-01753-03 PP-00479).

Simples referência genérica à “necessidade de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública de interesse nacional decorrente do Coronavírus (COVID-19)”, sem qualquer menção a necessários  critérios de distribuição e destinação dos aparelhos, a justificar essa medida extrema que subtrai de alguns pacientes a terapia respiratória em favor de outros, é insuficiente para justificar o discrímen entre cidadãos brasileiros.

Aqui, é óbvio que não se trata de intervenção do Judiciário em política pública, mas sim – e efetivamente – de examinar a validade do ato administrativo em sua organicidade, perscrutando os chamados “motivos determinantes”. Que não foram mencionados de modo a justificar aquilo que a própria União diz ser uma “escolha trágica”.

Sem motivação no ofício n.º 43/2020/CGIES/DLOG/SE/MS, como será possível responder a pergunta: porque o sexagenário contratante da empresa Prevent Senhor Ltda. deve ser alijado de um respirador, em favor de alguém vinculado ao SUS ?

Ora, se a empresa Prevent Senhor Ltda. é coadjuvante do Poder Público no enfrentamento da pandemia (art. 197 da Constituição) qual motivo seria “determinante” de subtrair dela um equipamento necessário – e já em uso – a esse enfrentamento ?

Esse é um ponto importante: a União requisitou RESPIRADORES JÁ EM USO pela empresa destinados a tutelar a saúde de pessoas em grupo de risco da pandemia de Covid-19, fazendo-o através do ofício n.º 43/2020/CGIES/DLOG/SE/MS, e não há uma só linha que indique a razão objetiva (se subjetiva, seria mais uma afronta ao art. 37 da Magna Carta) para apoderar-se de equipamento médico alocado em UTI e em uso, ainda que em parte.

A União, em seus arrazoados, sustenta que a requisição em causa serve para preservação da saúde da população. Qual população ? Acaso os usuários dos serviços da agravada não fazem parte do conceito de população ? Porque eles não podem ser tratados com os respiradores pelos quais, indiretamente, pagaram ?

Cabe à União, como ela mesma afirma, “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas”(art, 21 da Constituição).

Na sequência de não planejar e não defender a população contra a calamidade do Covid-19, a União quer despojar os particulares que possuem equipamentos de combate ao mal, especialmente a agravada que, diligentemente ao contrário da União, comprou 50 respiradores de fornecedor internacional.

A ausência de motivação é clara e custa crer que a União se preste a uma atitude como a mencionada nos autos sem a devida justificativa, essencial no Estado Democrático de Direito, quando o clássico jus imperium estatal vem perdendo força.

Recordemos Hely Lopes Meirelles: “No Direito Público o que há de menos relevante é a vontade do administrador. Seus desejos, suas ambições, seus programas, seus atos, não têm eficácia administrativa, nem validade jurídica, se não estiverem alicerçados no Direito e na Lei. Não é a chancela da autoridade que valida o ato e o torna respeitável e obrigatório. É a legalidade a pedra de toque de todo ato administrativo. Ora, se ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei, claro está que todo ato do Poder Público deve trazer consigo a demonstração de sua base legal e de seu motivo. Assim como todo cidadão, para ser acolhido na sociedade, há de provar sua identidade, o ato administrativo, para ser bem recebido pelos cidadãos, deve patentear sua legalidade, vale dizer sua identidade com a lei. Desconhecida ou ignorada sua legitimidade, o ato da autoridade provocará sempre suspeitas e resistências, facilmente arredáveis pela motivação.” (Direito Administrativo Brasileiro28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 98 - grifei) .

Por isso que “a motivação do ato administrativo deve ser explícita, clara e congruente, vinculando o agir do administrador público e conferindo o atributo de validade ao ato. Viciada a motivação, inválido resultará o ato, por força da teoria dos motivos determinantes. Inteligência do art. 50, § 1.º, da Lei n. 9.784/1999" (STJ: RMS 56.858/GO, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, DJe 11/09/2018).

“A motivação é a declaração escrita dos motivos que ensejaram a prática do ato e integra a forma do ato administrativo, acarretando a sua ausência a nulidade do ato, por vício de forma” (STJ: RMS 55.732/PE, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/05/2019, DJe 30/05/2019).

Ainda sobre a obrigatoriedade da motivação: STJ: MS 15.290/DF, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/10/2011, DJe 14/11/2011.

Outra consideração não pode ser desprezada. Como não se sabe para onde irão os respiradores requisitados – quiçá para outras cidades deste ou de outros Estados, ou para demais regiões do país – a situação se torna preocupante para os cidadãos paulistanos do grupo de risco quando se sabe que a Capital recomeça a ser atingida pela pandemia.

A União abusa do bom senso (e da paciência) ao dizer que a permanência dos respiradores com a empresa não se justifica porque com isso se dará “atendimento de um interesse privado, surgindo daí o risco de aparelhos serem utilizados localmente, para uma pequena parcela de beneficiários, em detrimento de outras localidades com maior necessidade no curto prazo”.

O argumento não pode ser levado a sério, é quase um insulto ao trabalho realizado pelas entidades privadas de saúde. Ultrapassa os limites do tolerável que o Poder Público – que depende de entidades privadas como coadjuvantes de suas ações na área da saúde – chegue ao ponto de afirmar que o tratamento médico a pessoas de grupo de risco de Covid-19 por hospital privado atende a “interesse privado” de uma pequena parcela de beneficiários. Convenientemente o Poder Público esquece que esses “beneficiários” – que implicitamente a União insinua serem “privilegiados” – pagaram pelo atendimento e, sendo atendidos no hospital da Prevent Senior Ltda. eles estão DESONERANDO as unidades de saúde estatais, liberando recursos para o SUS.

Aqui, não se está tratando de princípios etéreos e filigranas jurídicas; a temática atinge a vida humana REAL, sem ideologias ou o detestável, verborrágico e inútil juridiquês.

A atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro-LINDB estabelece que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão” (artigo 20).

A consequência prática da decisão favorável à União é privar sexagenários de atendimento médico capaz de salvar-lhes a vida, em nosocômio privado, depois que as vítimas pagaram pelo atendimento possível, para com isso aumentar as filas de espera nas portas das unidades públicas de saúde, depois que o Poder Público, imprevidente, deixou de se preparar para os efeitos da pandemia, sendo certo que há indícios de que desde janeiro do corrente ano já se sabia da presença do vírus entre nós (https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/03/mandetta-e-possivel-que-tenhamos-tido-casos-da-covid-19-em-janeiro-ou-antes.ghtml).

Pelo exposto, vênia do e. Relator, voto para NEGAR PROVIMENTO ao agravo e ratificar a interlocutória recorrida. Prejudicado o agravo regimental.

 

E M E N T A

 

 

PROCESSUAL CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - CONSTITUCIONAL - ADMINISTRATIVO - REQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS - PANDEMIA DE CORONAVÍRUS - LEI FEDERAL Nº. 13.979/2020.

1- A Constituição: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” – artigo 5º, inciso XXV.

2- Em relação ao direito à saúde, a Lei Federal nº 8.080/90, que disciplina os setores público e privado de assistência, faculta, aos gestores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o exercício do poder de requisição administrativa.

3- Diante da pandemia viral, o Congresso Nacional optou por detalhar o modelo de enfrentamento ao desastre, com a edição de lei específica. O artigo 3º, inciso VII, da Lei Federal nº 13.979/2020, autoriza, expressamente, a “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.

4- Trata-se de opção finalística do legislador, que não cabe ao Poder Judiciário afrontar, tanto mais sem a formalidade necessária e grave da declaração fundamentada sobre a suposta inconstitucionalidade da norma jurídica protetiva da coletividade. Registre-se que o Congresso Nacional respeitou a função social das requisições administrativas, facultando a expansão do uso de bens e serviços privados para o domínio público.

5- Acrescento, ainda, que o poder de requisição administrativa é facultado sobre bens à disposição de particulares. No regime de emergência próprio a esta medida extrema, a autoridade requisitante não está subordinada à discussão do título jurídico – ou da simples situação de fato – que ensejou a posse da coisa.

6- Agravo de instrumento provido. Agravo regimental prejudicado.


  ACÓRDÃO
 
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Sexta Turma, por maioria, deu provimento ao agravo de instrumento, julgando prejudicado o agravo regimental, nos termos do voto do Relator, acompanhado do voto do Desembargador Federal Souza Ribeiro, vencido o Desembargador Federal Johonsom Di Salvo, que lhe negava provimento. Lavrará o acórdão o Relator , nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.