Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001730-07.2018.4.03.6144

RELATOR: Gab. 20 - DES. FED. DIVA MALERBI

APELANTE: JOSE CARLOS ROCHA, UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL

Advogados do(a) APELANTE: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A

APELADO: UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL, JOSE CARLOS ROCHA

Advogados do(a) APELADO: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001730-07.2018.4.03.6144

RELATOR: Gab. 20 - DES. FED. DIVA MALERBI

APELANTE: JOSE CARLOS ROCHA, UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL

Advogados do(a) APELANTE: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A

APELADO: UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL, JOSE CARLOS ROCHA

Advogados do(a) APELADO: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

R E L A T Ó R I O

 

A SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL DIVA MALERBI (RELATORA): Trata-se de apelação interposta pelo autor e pela União, em face da r. sentença de parcial procedência, proferida nesses autos de ação de indenização por danos, promovida por JOSÉ CARLOS ROCHA, contra a  ré, pessoa jurídica, UNIÃO FEDERAL.

A petição inicial, distribuída à 1ª Vara Federal de Barueri/SP (ID 123383509) veiculou, em suma, o seguinte, como bem relatou a r. sentença (ID 123383555):

 

[...]

Cuida-se de feito sob o rito comum ajuizado em face da União. Visa a parte autora à declaração de que seus direitos de personalidade foram lesados ou violados, requerendo a condenação da União ao pagamento de indenização, a título de danos morais, no montante de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), em razão de ter sido separada de forma compulsória de seus genitores em virtude de estarem acometidos de hanseníase.

Narra a parte autora, em síntese, que seus pais padeciam de hanseníase e, em razão da política imposta pela União à época, foi compulsoriamente separada de sua genitora. Expõe que nasceu em 01/09/1952, na colônia conhecida como “Aimorés”, no município de Bauru/SP, e imediatamente foi retirada de sua mãe e encaminhada ao Educandário Santa Terezinha, em Carapicuíba/SP. Afirma que sofreu, dentre outras consequências, com a realização de trabalhos forçados e castigos físicos. Requer a concessão dos benefícios da assistência judiciária gratuita e a prioridade de tramitação.

[...]

 

Contestação da UNIÃO (ID 123383538). Réplica (ID 123383540).

Sobreveio a r. sentença (ID 123383555) que julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais, na forma do dispositivo abaixo transcrito, em seus trechos essenciais:

 

[...]

Não prosperam as preliminares de ausência de interesse de agir e de ilegitimidade passiva, uma vez que o feito não tem como objeto o recebimento da específica indenização especial de que cuida a Lei nº 11.520/2007, ainda que esteja deduzido em face da União e que trate do isolamento pela hanseníase. 

Antes, trata-se de pedido compensatório de dano moral em que a parte autora alega que, já em sua tenra idade, foi privada do convívio do (a/os) genitor(a/es), por força de política sanitária então adotada pela ré, em razão de isolamento compulsório a que o(a/os) ascendente(s) foi(ram) submetido(s) em hospital-colônia, para tratamento de hanseníase.

[...]

O objeto da presente demanda abrange o direito à reparação por danos morais decorrentes de ofensa à dignidade humana – direito assegurado pela Constituição da República e por tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Portanto, tratando-se de direito fundamental, não há que se falar em prescrição.

[...]

Ressalto que, apesar de o ato da separação compulsória em si ter sido realizado em período anterior ao regime militar instaurado em 1964, o afastamento foi mantido durante o regime, época em que a parte autora ainda era criança.

Ainda assim, as pretensões indenizatórias que visam à reparação de violações de direitos fundamentais são, por si só, imprescritíveis.

Dessarte, sendo o direito fundamental à dignidade humana imprescritível, não há que se falar em prescrição da pretensão condenatória por danos causados pela separação compulsória de pais e filhos, que suprime os direitos da vítima de maneira severa, abusiva e intolerável.

Assim, presentes os pressupostos do artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil, porque não há necessidade de realização de audiência, passo ao mérito do pedido.

[...]

Ressalto que, apesar de o ato da separação compulsória em si ter sido realizado em período anterior ao regime militar instaurado em 1964, o afastamento foi mantido durante o regime, época em que a parte autora ainda era criança.

Ainda assim, as pretensões indenizatórias que visam à reparação de violações de direitos fundamentais são, por si só, imprescritíveis.

Dessarte, sendo o direito fundamental à dignidade humana imprescritível, não há que se falar em prescrição da pretensão condenatória por danos causados pela separação compulsória de pais e filhos, que suprime os direitos da vítima de maneira severa, abusiva e intolerável.

Assim, presentes os pressupostos do artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil, porque não há necessidade de realização de audiência, passo ao mérito do pedido.

[...]

Pois bem. Da análise dos autos, verifico que, de fato, o autor, nascido em 01/09/1952, filho de José Maximino da Rocha e Clarice Gomes da Silva, foi separado compulsoriamente de sua mãe no mesmo dia de seu nascimento, conforme comunicação nº 177/A/JF, expedida pelo Sanatório “Aimorés”, vinculado ao Departamento de Profilaxia da Lepra da Secretaria dos Negócios da Saúde Pública e da Assistência Social do Estado de São Paulo, em 01/09/1952 (id. 8474096).

Ainda, a Ficha Social do autor como interno no “Asilo e Creche Santa Terezinha” comprova que sua internação naquele abrigo se deu no mesmo dia de seu nascimento e que ele veio do “Sanatório Aimorés” (id. 8474436).

Os mesmos documentos confirmam que sua mãe, Clarice Gomes da Silva, era doente e estava internada no “Sanatório Aimorés” (prontuário nº 29.935). Por sua vez, o fato de a referida casa de saúde ser vinculada ao Departamento de Profilaxia da Lepra da Secretaria dos Negócios da Saúde Pública e da Assistência Social do Estado de São Paulo demonstram que aquele nosocômio era direcionado aos portadores de hanseníase.

Inquestionável, portanto – ainda que desnecessário dizer, por ser tratar de nítida situação de dano moral in re ipsa – o abalo psicológico do autor, que teve sua infância e juventude preenchidas pelo sentimento de abandono e pela impossibilidade de convivência com sua mãe.

[...]

Diante do exposto, julgo parcialmente procedentes os pedidos deduzidos nos autos, resolvendo-lhes o mérito com fundamento no inciso I do artigo 487 do Código de Processo Civil. Por conseguinte, condeno a União a pagar à parte autora indenização a título de reparação pelo dano moral por ele sofrido, no valor de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).

Sobre esse valor incidirá correção monetária e juros moratórios segundo os índices estabelecidos no Manual de Cálculos da Justiça Federal, segundo a versão que estiver em vigor na data da apresentação da conta de liquidação, nos termos seguintes: juros de mora a partir da citação (25/06/2018, conforme registro de ciência da citação pelo sistema) e atualização monetária a partir desta data de arbitramento (AgREsp 1487012 2014.02.63103-4, Segunda Turma, Rel. Ministro Humberto Martins, DJE Data: 13/04/2015).

Atento aos termos dos artigos 85, §§ 2º e seguintes, e 86, parágrafo único, do Código de Processo Civil, e ao entendimento consagrado pela súmula nº 326 do Egrégrio Superior Tribunal de Justiça, fixo os honorários advocatícios a cargo exclusivo da requerida em 10% (dez por cento) do valor da reparação-condenação.

Custas na forma da lei.

[...]

 

Interposta apelação pelo autor que, em suas razões recursais sustenta (ID 123383557), em síntese, o seguinte: que o valor da indenização deve ser majorado.

Contrarrazões da União (ID 123383562).

Interposta apelação pela União que, em suas razões recursais sustenta (ID 63330004), em síntese, o seguinte: que não tem legitimidade para figurar no polo passivo da ação, sob o argumento de que cabe ao INSS decidir sobre concessão de pensão especial; alega falta de interesse de agir, sob o fundamento de que não houve prévio requerimento administrativo para a obtenção da pensão especial; no mérito, aduz a ocorrência da prescrição; afirma que não restou comprovada a segregação do autor ou de sua mãe e invoca o § 1º do art. 1º da Lei nº 11.520, de 2007; e sustenta não ter sido comprovada a existência de dano indenizável.

Sem contrarrazões do autor.

Vieram os autos a esta E. Corte.

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001730-07.2018.4.03.6144

RELATOR: Gab. 20 - DES. FED. DIVA MALERBI

APELANTE: JOSE CARLOS ROCHA e UNIAO FEDERAL

Advogados do(a) APELANTE: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A

APELADO: UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL, UNIAO FEDERAL e OUTROROCURADOR: PROCURADORIA-REGIONAL DA FAZENDA NACIONAL DA 3ª REGIÃO, PROCURADORIA-REGIONAL DA UNIÃO DA 3ª REGIÃO

OUTROS PARTICIPANTES:

  

 

 

V O T O

“EMENTA”

APELAÇÃO CIVIL. DANO MORAL. FILHO DE PACIENTE INTERNADO, COMPULSORIAMENTE, POR SER PORTADOR DO MAL DE HANSEN. LESÃO A DIREITO FUNDAMENTAL. IMPRESCRITÍVEL. EVENTO DANOSO E NEXO DE CAUSALIDADE. COMPROVADOS. DANO. IN RÉ IPSA. DEVER DE INDENIZAR. CONFIGURADO. APELAÇÕES NÃO PROVIDAS. SENTENÇA MANTIDA.

1. Cinge-se a controvérsia em apurar se a responsabilidade pela internação compulsória dos pais do autor, portadores do Mal de Hansen e a separação do autor de seus genitores, logo ao nascer, também de forma impositiva, com o consequente e inevitável distanciamento do convívio familiar, procedimentos médicos adotados, à época, para o tratamento da hanseníase, deve ser atribuída à ré, ensejando a condenação no dever de indenizar, por dano.

2. A hipótese dos autos é de lesão grave a direito fundamental, qual seja: da garantia de uma vida digna e, assim sendo, não há que se falar em prescrição do direito de requerer a devida indenização pelo dano causado, que atinge a personalidade e o íntimo dessas pessoas até hoje, tornando o direito de se buscar a responsabilização civil do Estado, pela prática desse maléfico e danoso evento, que violou tão importante preceito fundamental, imprescritível.

3. A privação do convívio social, seja pela internação compulsória, seja pelo isolamento nosocomial, fere o direito subjetivo fundamental ao convívio familiar, a uma vida digna e as relações familiares alicerçadas pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana, como preceitua o art. 226 da Constituição Federal, que reconhece a família como base da sociedade e confere ao Estado o dever de protegê-la. Além disso, a Carta Política atribui à família constituída e ao Estado o dever de garantir à criança e ao adolescente, o convívio familiar e a dignidade. Assim, restou comprovado nos autos que os pais do autor foram internados compulsoriamente, no Sanatório Aimorés, e que o autor foi retirado de seus genitores e encaminhado para um educandário, no mesmo dia em que nasceu, ou seja, a ação estatal, ao invés de proteger e manter a unidade familiar, a desfez e com isso atingiu a personalidade e o íntimo de seus membros, privando-os, da convivência familiar, retirando-lhes a dignidade e o respeito, o que configura o evento danoso e o nexo de causalidade a justificar a condenação no dever de indenizar, por dano moral.

4. Na espécie, o dano é in ré ipsa, sendo absolutamente dispensável a sua demonstração, pois, a simples comprovação da ocorrência do evento danoso, pressupõe a efetiva incidência do dano.

5. Observados os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, a gravidade do evento danoso e a capacidade financeira do agente, a quantia fixada pela r. sentença se mostra suficiente para atender aos seus objetivos, que são: educativos, de coibir e de desestimular a prática do ato; bem como de compensar a vítima pelos danos causados, sem, contudo, configurar a hipótese de enriquecimento sem causa, razão pela qual deve ser mantido no patamar em que foi fixado.

6. Nega-se provimento à apelação do autor e da União, para manter a r. sentença, por seus próprios fundamentos.

 

A SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL DIVA MALERBI (RELATORA): Cinge-se a controvérsia em apurar se a responsabilidade pela internação compulsória dos pais do autor, portadores do Mal de Hansen e a separação do autor de seus genitores, logo ao nascer, também de forma impositiva, com o consequente e inevitável distanciamento do convívio familiar, procedimentos médicos adotados, à época, para o tratamento da hanseníase, deve ser atribuída à ré, ensejando a condenação no dever de indenizar, por dano.

Da falta de interesse de agir

Defende a União que o autor não tem interesse de agir, uma vez que não houve prévio requerimento administrativo para a obtenção da pensão especial.

Essa matéria foi analisada de forma clara e objetiva pelo Juízo a quo, razão pela qual peço vênia para transcrever parte de sua fundamentação para adotá-la como razão de decidir:

[...]

Não prosperam as preliminares de ausência de interesse de agir e de ilegitimidade passiva, uma vez que o feito não tem como objeto o recebimento da específica indenização especial de que cuida a Lei nº 11.520/2007, ainda que esteja deduzido em face da União e que trate do isolamento pela hanseníase. 

Antes, trata-se de pedido compensatório de dano moral em que a parte autora alega que, já em sua tenra idade, foi privada do convívio do (a/os) genitor(a/es), por força de política sanitária então adotada pela ré, em razão de isolamento compulsório a que o(a/os) ascendente(s) foi(ram) submetido(s) em hospital-colônia, para tratamento de hanseníase.

[...]

 

Portanto, o autor não requer a pensão especial de que cuida a Lei nª 11.520, de 2007, busca o Poder Judiciário porque, como dito, requer indenização, por danos morais, verba absolutamente distinta daquela, ainda que inacumuláveis.

Diante disso, rejeito a preliminar de falta de interesse de agir.

Da ilegitimidade da União para figurar no polo passivo

Sustenta a União que não tem legitimidade para figurar no polo passivo da ação, sob o argumento de que cabe ao INSS decidir sobre concessão de pensão especial.

Repito: o autor não requer a pensão especial de que cuida a Lei nª 11.520, de 2007, busca indenização, por danos morais.

Assim, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva da União Federal.

Da prescrição

Defende a apelante a ocorrência da prescrição.

Nesse passo peço vênia, mais uma vez, para transcrever a fundamentação constante da r. sentença, na qual o Juízo fez a análise dessa matéria com absoluta clareza e objetividade, para adotá-la como razão de decidir:

[...]

O objeto da presente demanda abrange o direito à reparação por danos morais decorrentes de ofensa à dignidade humana – direito assegurado pela Constituição da República e por tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Portanto, tratando-se de direito fundamental, não há que se falar em prescrição.

[...]

Ressalto que, apesar de o ato da separação compulsória em si ter sido realizado em período anterior ao regime militar instaurado em 1964, o afastamento foi mantido durante o regime, época em que a parte autora ainda era criança.

Ainda assim, as pretensões indenizatórias que visam à reparação de violações de direitos fundamentais são, por si só, imprescritíveis.

Dessarte, sendo o direito fundamental à dignidade humana imprescritível, não há que se falar em prescrição da pretensão condenatória por danos causados pela separação compulsória de pais e filhos, que suprime os direitos da vítima de maneira severa, abusiva e intolerável.

[...]

Nesse sentido o julgado:

ADMINISTRATIVO   E   PROCESSUAL   CIVIL.   NEGATIVA   DE   PRESTAÇÃO JURISDICIONAL.  INOCORRÊNCIA.  RESPONSABILIDADE  CIVIL  DO  ESTADO. OPOSIÇÃO AO REGIME MILITAR INSTAURADO EM 1964. PERSEGUIÇÃO POLÍTICA. DANOS MORAIS. IMPRESCRITIBILIDADE. DESRESPEITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.  CARACTERIZAÇÃO.  FIXAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. TERMO INICIAL.

[...]

2.  Este Superior Tribunal de Justiça tem entendimento no sentido de que  "a  prescrição  quinquenal,  disposta  no  art.  1º  do Decreto 20.910/1932,  é  inaplicável  aos  danos  decorrentes de violação de direitos   fundamentais,  que  são  imprescritíveis,  principalmente quando  ocorreram  durante  o  Regime  Militar,  época  na  qual  os jurisdicionados  não  podiam  deduzir  a  contento  suas pretensões" (AgInt  no REsp 1.648.124/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,  julgado  em  5/6/2018,  DJe 23/11/2018 ).

[...]

(REsp 1815870/RJ RECURSO ESPECIAL 2017/0323556-8 - Ministro SÉRGIO KUKINA – PRIMEIRA TURMA – Julgado em 19/09/2019 – Publicado no DJe de 23/09/2019)

Portanto, a hipótese dos autos é de lesão grave a direito fundamental, qual seja: da garantia de uma vida digna e, assim sendo, não há que se falar em prescrição do direito de requerer a devida indenização pelo dano causado, que atinge a personalidade e o íntimo dessas pessoas até hoje, tornando o direito de se buscar a responsabilização civil do Estado, pela prática desse maléfico e danoso evento, que violou tão importante preceito fundamental, imprescritível.

Nesse sentido o julgado:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FILHO DE PACIENTE COM HANSENÍASE INTERNADOS COMPULSORIAMENTE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. IMPRESCRITIBILIDADE.

1. À semelhança das pretensões indenizatórias decorrentes de violações a direitos fundamentais ocorridas durante o Regime Militar, há precedentes desta Terceira Turma em que foi acolhida a tese da imprescritibilidade também quanto às demandas tendentes à reparação por danos causados em razão da segregação compulsória para tratamento dos acometidos de Hanseníase.

(ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL/SP 5000760-07.2018.4.03.6144 - Desembargador Federal NELTON AGNALDO MORAES DOS SANTOS – 3ª Turma – Julgado em 13/05/2020 – Publicado no e - DJF3 Judicial 1 DATA: 15/05/2020)

Com isso, rejeito a preliminar de prescrição.

Do mérito

Afirma a União que não restou comprovada a segregação do autor ou de sua mãe e invoca o § 1º do art. 1º da Lei nº 11.520, de 2007; e sustenta não ter sido comprovada a existência de dano indenizável.

Inicialmente cabe ressaltar que a internação compulsória e o isolamento são condições exigidas para a concessão da pensão especial de que trata a Lei nº 11.520, de 2007, em seu art. 1º. No entanto, aqui o que se busca é a responsabilização civil do Estado pelo desrespeito a preceito fundamental que culminou com a separação da família, com a internação compulsória dos pacientes, privando-o do convívio familiar, em especial com seu filho recém-nascido, retirado da mãe e encaminhado para o Educandário Santa Terezinha, em Carapicuíba/SP.

E esse fato condiz com o que determinava a legislação que trava desse assunto, que assim estabelecia:

Lei nº 610, de 1949:

[...]

Art. 1º A profilaxia da lepra será executada por meio das seguintes medidas gerais:

[...]

III – Isolamento compulsório dos doentes contagiantes;

[...]

Art. 15. Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos Pais.

Art. 16. Os filhos de pais leprosos e todos os menores que convivam com leprosos serão assistidos em meio familiar adequado ou em preventórios especiais.

[...]

E assim foi feito. Os pais do autor foram internados e isolados, compulsoriamente, no Sanatório Aimorés e o autor, assim que nasceu, levado para o Educandário Santa Terezinha, como comprovam os documentos acostados aos autos, a saber: Ficha Social de Interno do Asilo e Creche Santa Terezinha que comprova que o autor foi internado no mesmo dia em que nasceu (ID 123383518); e Comunicação nº 177/A/JF, de 01/09/1952, do Sanatório Aimorés, vinculado ao Departamento de Profilaxia da Lepra da Secretaria dos Negócios da Saúde Pública e da Assistência Social do Estado de São Paulo (ID 123383517). 

A nocividade desse procedimento foi reconhecida pelo próprio Estado ao admitir e identificar o direito daqueles que foram submetidos a essa política sanitária, concedendo-lhes, por lei, o direito à pensão especial, vitalícia.

A privação do convívio social, seja pela internação compulsória, seja pelo isolamento nosocomial, fere o direito subjetivo fundamental ao convívio familiar, a uma vida digna e as relações familiares alicerçadas pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana, como preceitua o art. 226 da Constituição Federal, que reconhece a família como base da sociedade e confere ao Estado o dever de protegê-la:

[...]

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

Além disso, a Carta Política atribui à família constituída e ao Estado o dever de garantir à criança e ao adolescente, o convívio familiar e a dignidade:

[...]

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[...]

Assim, restou comprovado nos autos que os pais do autor foram internados compulsoriamente, no Sanatório Aimorés, e que o autor foi retirado de seus genitores e encaminhado para um educandário, no mesmo dia em que nasceu, ou seja, a ação estatal, ao invés de proteger e manter a unidade familiar, a desfez e com isso atingiu a personalidade e o íntimo de seus membros, privando-os, da convivência familiar, retirando-lhes a dignidade e o respeito, o que configura o evento danoso e o nexo de causalidade a justificar a condenação no dever de indenizar, por dano moral.

Destaco, por oportuno, que na espécie, o dano é in ré ipsa, sendo absolutamente dispensável a sua demonstração, pois, a simples comprovação da ocorrência do evento danoso, pressupõe a efetiva incidência do dano.

Nesse sentido o julgado:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FILHO DE PACIENTE COM HANSENÍASE INTERNADOS COMPULSORIAMENTE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. IMPRESCRITIBILIDADE.

[...]

17. Inquestionável, portanto, o abalo psicológico daqueles que tiveram sua infância e juventude interrompida por separações traumáticas para viver o sentimento de abandono e a privação do convívio familiar. Casos como o presente caracterizam a típica situação de dano moral in re ipsa, nos quais a mera comprovação fática do acontecimento gera um constrangimento presumido, capaz de ensejar indenização.

[...]

(ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL/SP 5000760-07.2018.4.03.6144 - Desembargador Federal NELTON AGNALDO MORAES DOS SANTOS – 3ª Turma – Julgado em 13/05/2020 – Publicado no e - DJF3 Judicial 1 DATA: 15/05/2020)

No que diz respeito ao quantum indenizatório, a r. sentença assim fixou seu valor:

[...]

Diante do exposto, julgo parcialmente procedentes os pedidos deduzidos nos autos, resolvendo-lhes o mérito com fundamento no inciso I do artigo 487 do Código de Processo Civil. Por conseguinte, condeno a União a pagar à parte autora indenização a título de reparação pelo dano moral por ele sofrido, no valor de R$ 80.000,00 (oitenta mil reais).

[...]

Observados os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, a gravidade do evento danoso e a capacidade financeira do agente, a quantia fixada pela r. sentença se mostra suficiente para atender aos seus objetivos, que são: educativos, de coibir e de desestimular a prática do ato; bem como de compensar a vítima pelos danos causados, sem, contudo, configurar a hipótese de enriquecimento sem causa, razão pela qual deve ser mantido no patamar em que foi fixado.

Ante o exposto, nego provimento à apelação do autor e da União, para manter a r. sentença, por seus próprios fundamentos.

É como voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5001730-07.2018.4.03.6144.

RELATOR: Gab. 20 - DES. FED. DIVA MALERBI.

APELANTE: JOSE CARLOS ROCHA, UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL.

Advogados do(a) APELANTE: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A.

APELADO: UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL, JOSE CARLOS ROCHA.

Advogados do(a) APELADO: THAIS CUNHA TUZI DE OLIVEIRA - SP373898-A, PAULO CEZAR AZARIAS DE CARVALHO - SP305475-A, JEAN DE MELO VAZ - SP408654-A.

 

 

 

 

 

V O T O - V I S T A

 

 

 

 

O Desembargador Federal Fábio Prieto:

 

 

Trata-se de ação de indenização por dano moral.

 

Na data de seu nascimento – 01º de setembro de 1.952 -, o autor foi separado de seus pais e internado em estabelecimento coletivo para crianças.

 

Isto porque os pais do autor também estavam sob regime de internação compulsória, em decorrência de serem portadores de hanseníase.

 

Sentença de procedência ao pedido inicial, agora com a chancela do voto da Relatora, a Desembargadora Federal Diva Malerbi, e, em antecipação, do Desembargador Federal Johonsom di Salvo.

 

Pedi vista dos autos.

 

O autor sofreu o dano da separação compulsória de seus pais em 01º de setembro de 1.952.

 

O reconhecimento da prescrição é irrecusável.

 

Argumenta-se que o Superior Tribunal de Justiça reputa imprescritível a indenização devida por violação a direito fundamental ou em consideração à dignidade da pessoa humana.

 

A questão não parece tão singela.

 

Tudo começou com os casos da anistia.

 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal já havia reconhecido a prescrição nestes casos. No mérito, só julgou cabível a reparação relacionada às relações de trabalho. Jamais admitiu qualquer recomposição por danos morais ou materiais, além dos acima mencionados.

 

A tese da imprescritibilidade, desautorizada pelo Supremo Tribunal Federal, surgiu em circunstância muito particular.

 

No sistema de justiça, não serviu a todos.

 

SERVIDOR. MILITAR. ANISTIA POLÍTICA. LEI 10.559/2002. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL.

1. Caso em que o autor objetiva o reconhecimento da condição de anistiado político nos termos do artigo 8º do ADCT.

2. Termo inicial do prazo prescricional que recai na data de publicação da Medida Provisória 2151-3/2001 que regulamentou o artigo 8º do ADCT. Prescrição configurada. Sentença mantida.

3. Recurso desprovido.

(TRF 3ª Região, 2ª Turma, ApCiv 0011019-79.2007.4.03.6000, Rel. Desembargador Federal OTAVIO PEIXOTO JUNIOR).

                                   

Outro exemplo.

 

Para vítima mutilada em caráter permanente, por ataque terrorista ocorrido no Conjunto Nacional desta Avenida Paulista, em 1.968, o Judiciário recusou a indenização por duas vezes.

 

Seja quando a vítima mutilada acionou um dos terroristas confessos, na Justiça Comum Estadual.

 

Seja quando demandou a União - nesta mesma Justiça Federal, neste mesmo Tribunal Regional Federal -, inclusive para pedir isonomia com um dos terroristas, beneficiário de indenização milionária.

 

O desfecho foi sempre pela prescrição.

 

Portanto, não é verdade que o Poder Judiciário considere imprescritível dano vinculado a direito fundamental. Ou que a dignidade humana seja o fundamento da imprescritibilidade.

 

O servidor militar e a vítima mutilada em caráter permanente pelo terrorismo têm dignidade humana. Alegavam danos irreparáveis a direitos fundamentais. Mas sempre encontraram a trava da prescrição na porta do Poder Judiciário.

 

Em todos os casos – de servidores militares, ex-terroristas ou de suas vítimas -, sendo a lei uma , cumpre reconhecer a prescrição, segundo a linha do Supremo Tribunal Federal.

 

Também no presente processo, porque - repita-se - a lei é a mesma e deve valer para todos.

 

Entre marcadores (*), a seguir, o voto prolatado por mim, no caso da vítima mutilada em caráter permanente pelo terrorismo, cujas razões são aplicáveis ao presente julgamento, para sustentar o que foi dito acima.

 

*   *   *   *   *                      *   *   *   *   *

 

Trata-se de embargos de declaração.

 

O embargante é vítima de atentado terrorista praticado por grupo armado, no dia 19 de março de 1.968, quando, aos 22 anos de idade, foi atingido pela explosão de bomba colocada na vitrine de dependência do Consulado dos Estados Unidos da América, instalada na calçada pública do Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, nesta Capital (SP).

 

Além de outros ferimentos, o embargante sofreu lesão permanente: a amputação do terço inferior da perna esquerda.

 

Narra que um dos terroristas que o mutilou, na condição de anistiado, recebe prestação mensal, permanente e continuada, do Governo Federal, três vezes maior que a sua pensão especial, concedida por lei federal.

 

Diz que, após o atentado terrorista, passou a ser considerado suspeito pela colocação da bomba, sendo constrangido a prestar depoimentos e a comparecer em dependências policiais.

 

Considera-se, por isto, perseguido pelo regime de exceção e deseja, também, como o terrorista que o vitimou, indenização, na condição de anistiado.

 

Para a estimativa do dano material, informou que, por ocasião do atentado terrorista, estava terminando o curso de pilotagem de aviação civil, o que o levaria à condição profissional de piloto comercial, atividade cuja remuneração, no topo da carreira que era o seu sonho de juventude e para a qual ficou incapacitado, deve ser a base para o cálculo de prestação mensal, continuada e permanente a que tem direito.

 

Reputa, ainda, a União responsável pelas condições favoráveis ao atentado terrorista. Quer, por isto, indenização pelos danos morais, de pelo menos dois mil salários mínimos.

 

A r. sentença julgou os pedidos iniciais improcedentes.

 

Segundo a decisão, o embargante não “foi vítima do golpe militar” (fls. 826).

 

Por outro lado, a indenização por danos morais teria sido atingida pela prescrição de cinco anos, prazo contado a partir da data do atentado terrorista.

 

A apelação do embargante não obteve êxito neste Tribunal.

 

A Relatora, a Desembargadora Federal Consuelo Yoshida, sustentou a validade do julgamento realizado na Comissão de Anistia, ressaltando do voto do relator, o Conselheiro Egmar José de Oliveira, a seguinte fundamentação:

 

“Ora, restou claro que o requerente foi vítima de uma fatalidade que culminou com a amputação de sua perna, todavia, esse acidente não condiz com os pressupostos legais passíveis de anistia política estabelecidos pela Lei nº 10.559/02, por não estarem relacionados à ideologia contrária ao regime sustentado pela revolução de 64, mas sim, originário de uma triste fatalidade e de um ato insano.

(...)

Nos presentes autos demonstrou-se que a "motivação" engendrada foi decorrente apenas de um procedimento policial investigatório não passível de anistia (fls. 870, frente e verso).

 

No que concerne à reparação de danos morais, a senhora Relatora enfatizou que o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento sobre a natureza imprescritível das pretensões indenizatórias “decorrentes de perseguições políticas sofridas durante o regime de ditadura militar” (fls. 871).

 

Porém, na hipótese dos autos, fez a distinção, porque “a elaboração do artefato, cuja explosão provocou a amputação da perna esquerda do autor, ora apelante, foi feita por integrante de grupo denominado Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), movimento contrário ao regime político da época” (fls. 871 verso).

 

Por esta razão, cabível a aplicação da prescrição quinquenal.

 

Nos presentes embargos de declaração, o embargante sustenta que houve omissão no julgamento da apelação, na falta de consideração da circunstância de que a anistia foi “ampla, geral e irrestrita, não devendo ser concedida apenas às pessoas que se opunham ao Regime Militar” (fls. 886).

 

Quanto ao tema da prescrição, aponta contradição, porque o Superior Tribunal de Justiça pacificou a imprescritibilidade das pretensões relacionadas ao “Regime Militar de exceção” (STJ, REsp 816.209, relatora a Ministra Eliana Calmon).

 

“Ora, (...) PERDEU A PERNA por conta de um atentado com motivação COMPROVADAMENTE POLÍTICA, recebendo do Estado uma pensão MENOR do que a do autor do atentado!!!” – enfatiza o embargante (fls. 886).

 

No julgamento dos embargos de declaração, o senhor Relator, o Juiz Federal Convocado Paulo Sarno, manteve o v. Acórdão prolatado no julgamento da apelação.

 

Pedi vista dos autos.

 

A prova de que o embargante foi vítima de atentado terrorista praticado por organização revolucionária armada, de nítida conotação política, é certa.

 

O embargante trouxe cópia do voto prolatado, na Comissão de Anistia, pelo Conselheiro Egmar José de Oliveira (fls. 580/584), a respeito de um dos autores do atentado terrorista.

 

Registrou o citado Conselheiro, na Comissão de Anistia: “por tudo que há nos autos e ainda pelo significado histórico da militância política e revolucionária de Diógenes José Carvalho de Oliveira, o Estado brasileiro hoje presidido pelo operário Luiz Inácio Lula da Silva, por meio desta Comissão de Anistia, órgão de assessoramento do gabinete do Ministro da Justiça, doutor Tarso Genro”, fica concedida, ao terrorista, “por ter  participado da luta armada”, prestação mensal, permanente e continuada, com efeitos retroativos à data da Constituição – o valor dos atrasados ultrapassou 400 mil reais (fls. 579).

 

A prova da condição de terrorista, depois anistiado político, motivo do pagamento da indenização, foi feita por certidão elaborada pela Agência Brasileira de Inteligência (fls. 575/578), a pedido do próprio interessado.

 

Na certidão, constam as ações de terrorismo que serviram de fundamento para a indenização concedida pela Comissão de Anistia:

 

“Em conformidade com a Portaria nº 510, de 16 nov. 2000, da Agência Brasileira de Inteligência do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e em atendimento a requerimento de DIÓGENES JOSÉ CARVALHO DE OLIVEIRA, brasileiro, solteiro, filho de JOSÉ CÂNDIDO DE OLIVEIRA e NOÊMIA CARVALHO DE OLIVEIRA, nascido no dia 15 nov. 1942, em Júlio de Castilhos/RS, portador da Carteira de Identidade nº 5000147032 – SSP/RS inscrito no CPF sob o nº 428.216.490-53, protocolizado no dia 29 jul. 2003, é certificado que, nos arquivos sob custódia desta Agência, há registros sobre fatos e ações com as seguintes informações:

Foi militante da organização denominada Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), onde possuía os codinomes de “Pedro” ou “Luís” e integrava o setor de logística; suplente do Diretório Municipal do Partido dos Trabalhadores (PT) de Porto Alegre/RS; funcionário da Exportadora de Madeira Fontanive Ltda; e auxiliar de escritório na Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do Sul.

Mantinha contatos em nome da VPR com o Comando de Libertação Nacional (COLINA), na Guanabara e em Minas Gerais, e, no Nordeste, com o Partido Comunista Revolucionário, que atuava na zona camponesa de Pernambuco. Possuía curso de guerrilha feito em Cuba.

(...)

Participou de treinamento de tiro em um sítio em Cotia/SP, sob a orientação de Carlos Lamarca.

(...)

Tomou parte em atentados à bomba, roubos de armamentos, assassinato político e vários assaltos a bancos, tais como: em 30 dez. 67, participou do roubo de dinamites da Cia Perus, em Cajamar/SP; em 07 mar. 68, tomou parte no assalto ao Banco do Comércio e Indústria de São Paulo; em 19 mar. 68, confeccionou o petardo e tomou parte no atentado à bomba contra o Consulado Americano em São Paulo. Em 20 abr. 68, participou do atentado a bomba contra o jornal “O Estado de São Paulo”; em 31 mai. 68, era um dos assaltantes em ação contra o Banco Brasileiro de Descontos (BRADESCO); em 22 jun. 68, participou do furto de 9 (nove) fuzis “FAL”, no Hospital Militar; em 26 jun. 68, fazia parte do grupo que lançou uma perua carregada de dinamite contra o edifício do Quartel General do II Exército, que, ao explodir, provocou a morte do sentinela; em 1º ago. 68, praticou assalto contra o Banco Mercantil de São Paulo; em set. 68, tomou parte na morte do sentinela do Quartel General da Força Pública no Barro Branco, para roubar sua metralhadora; em 12 out. 68, participou do assassinato do capitão norte-americano Charles Rodney Chandler, morto a tiros de metralhadora; em 15 out. 68, participou do assalto ao Banco do Estado de São Paulo, na rua Iguatemi, em São Paulo/SP; em 27 out. 68, confeccionou a bomba e tomou parte na ação perpetrada contra as Lojas Sears; e, em 11 dez. 68, participou do furto de grande quantidade de armas e munição da Casa de Armas Diana, na Rua do Seminário.

(...)

Em 3 nov. 69, foi indiciado no IP nº 19/69, instaurado pelo DOPS/SP, para apurar a responsabilidade de militantes da VPR no assassinato do capitão norte-americano Charles Rodney Chandler. Do relatório do inquérito extraem-se os seguintes dados sobre o requerente: “Juntamente com outros militantes, procedeu ao levantamento topográfico do local onde residia a vítima e várias vezes sozinho esteve na rua Petrópolis com o objetivo de estudar hábitos. No dia do crime, juntamente com outros dois militantes, participou do assassinato do infortunado capitão Chandler e assim descreveu a ação: desceu em primeiro lugar do carro, que estava a uma distância de um metro e pouco da parte dianteira da perua de Chandler, e, empunhando um revólver, marca Taurus, calibre 35, totalmente carregado, e, aproximando-se do capitão, que estava na direção da perua, contra ele desfechou seis tiros”.

(...)

Integrou relação de pessoas trocadas pelo Cônsul do Japão, Nobuo Okuchi, sequestrado no dia 11 mar. 70 em São Paulo/SP.

(...)

Em out. 79, a Justiça Militar, face a Lei de Anistia (6.683/79), que extinguiu a punibilidade de condenados políticos, dentre eles o requerente, solicitou aos órgãos policiais de São Paulo, a restituição dos mandados de prisão expedidos contra os mesmos.

(...)

Regressou ao Brasil em nov. 79.

(...)

Foi candidato a vereador pelo PT/RS nas eleições de 15 nov. 88, obtendo 1.463 votos. Não foi eleito.

(...)

Em 17 out. 89, foi empossado no cargo de Secretário Municipal dos Transportes pelo prefeito municipal de Porto Alegre/RS” (certidão da Abin - fls. 575/578).

 

Na Comissão de Anistia, entre os atos considerados de “significado histórico da militância política e revolucionária” está o atentado terrorista à bomba de que foi vítima o embargante.

 

De outro lado, há duas confissões de outro terrorista autor do atentado.

 

Sergio Ferro Pereira confessou o crime e confirmou a participação do outro terrorista na ação criminosa, com detalhes (fls. 587) – relatou, por exemplo, a instrução para o uso de armas de uso militar, como fuzis, e a confecção de bombas.

 

Reconheceu a participação de ambos no atentado terrorista que vitimou o embargante.

 

A primeira confissão foi realizada perante órgão de segurança pública.

 

Depois, como é público e notório, em 18 de maio de 1.992, Sergio Ferro concedeu entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, na qual acusou a prática de tortura quando da primeira confissão.

 

Afirmou, então, que teria virado alvo dos torturadores, porque escondeu em sua casa o terrorista Carlos Lamarca, depois da derrota da guerrilha no Vale do Ribeira, no interior do Estado de São Paulo.

 

“Por causa disso os torturadores diziam que iriam nos apagar. Escapamos graças às nossas famílias burguesas”, diz Ferro, filho de um empresário do ramo imobiliário” – ressalta o jornal.

                                     

Mas, na entrevista, voltou a confessar a autoria do atentado terrorista que vitimou o embargante e a participação em outras nove ações de igual natureza, que preferiu não especificar.

 

Para efeito de prova nestes autos, como já reconheceram todos os demais julgadores, nos 1º e 2º graus de jurisdição, reputa-se certo o fato de que o embargante foi vítima de atentado terrorista.

 

A partir daí, o embargante enfatiza que, após a explosão da bomba, os órgãos de segurança pública passaram a vê-lo como suspeito de autoria do ato criminoso.

 

Foi, então, constrangido a prestar depoimentos, a comparecer nas repartições policiais.

 

A prova testemunhal demonstra que o embargante sofreu abordagens na rua, por agentes da ordem pública.

 

Notícias da imprensa chegaram a registrar que o embargante era, sim, um dos suspeitos do atentado terrorista.

 

A palavra do embargante merece credibilidade, neste contexto.

 

Divirjo, com a devida licença, das decisões até aqui prolatadas, neste ponto. Considero-as em contradição com a prova dos autos.

 

Não tenho dúvida que o embargante, ao menos por certo tempo, foi considerado potencial adversário do regime então vigente.

 

Admitida a premissa de fato, ao menos do ponto de vista da retórica judiciária dominante, o embargante parece ter razão quando aponta a jurisprudência relativa à imprescritibilidade das pretensões indenizatórias relacionadas à anistia política e busca, por interpretação analógica, a sua proteção.

 

Também quando protesta contra o fato de que um de seus algozes recebe três vezes mais de remuneração mensal.

 

Ou quando tem a pretensão de receber indenização por dano moral, por ser vítima de crime, para superar o paradoxo de que autores de graves delitos de terrorismo a conquistaram em juízo.

 

É inegável que, a respeito da anistia, a interpretação dominante realizada pelo Poder Judiciário autoriza, em tese, ou entusiasma, em concreto, o discurso do embargante.

 

Mas, aqui, é preciso fixar bem o critério de hermenêutica das normas jurídicas, as circunstâncias históricas e os seus intérpretes, os juízes.

 

Diante do contexto dos fatos, não se pode deixar de lembrar certo magistério do Supremo Tribunal Federal, a sustentar que terrorismo e crime político são noções abertas, não conceitos teóricos fechados, no domínio quase exclusivo da política judiciária.

 

Como é sabido, se governo estrangeiro solicita, ao Brasil, a entrega de suposto terrorista e o Supremo Tribunal Federal reconhece o caráter político dos crimes, a extradição é vetada.

 

O reconhecimento do caráter político dos crimes de terrorismo, pelo Supremo Tribunal Federal, priva o estado estrangeiro da punição contra o terrorista.

 

A propósito, na Extradição 417, o Ministro Oscar Correa registrou:

 

“A questão está, contudo, em saber até que ponto a atuação política, a paixão política - digamo-lo - pode ser compreendida e absorvida pela lei, para exculpar, ou descriminar.

Sabem os que participaram da vida pública e da atividade política que, não raras vezes – para não dizer sempre – principalmente nos movimentos revolucionários, o dilema que o destino lhes põe é o de serem vencedores e heróis, ou vencidos e criminosos. É o risco que todos correm, para não dizer no pretérito, corremos. É disso que a defesa dá expressivos exemplos.

Há limites, contudo, à atividade dita política, que, obviamente, conforme a sorte das revoluções, se caracterizam como normais à consecução dos objetivos, ou se configuram como delituosas. Nas revoluções, os que depredam, ferem e matam, se vitoriosos, são os juízes dos depredados, feridos e mortos, que pisam e dominam. Se vencidos, são os criminosos, que respondem pelos erros – que, então, são erros imperdoáveis – e comparecem à barra do Tribunal para expiar a culpa... de terem sido derrotados. Não se trata de interpretação que se chamasse cínica, mas que se chama real”.

 

Na Extradição 855, mais recente, a tese foi debatida com objetividade:

 

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Sr. Presidente, quero fazer uma reserva no ponto relativo à descaracterização do caráter político do fato, porque a ele se apôs a nota de ato terrorista.

(...)

Dizia, tenho velha convicção de que não cabe levar o repúdio ao terrorismo, ao ponto de conceder a extradição por atos de violência política, sim, mas ocorridos em cenário histórico, onde não restava à oposição ao regime de força dominante nenhuma alternativa à ação violenta.

Por isso, deixo, para quando for o caso, o exame dos limites em que, mesmo levando em conta as solenes declarações constitucionais contra o terrorismo, o problema haja de ser pensado no caso concreto.

(...)

A noção de terrorismo é uma noção fluida. A admirável tese de Heleno Fragoso que o Relator cita – não sei S. Exa. ficou com a mesma impressão – é uma monografia excepcional, ao final da qual, no entanto, há uma conclusão evidente: ninguém sabe o que é terrorismo.

(...)

Eu vejo, na própria lei brasileira, a exigência de uma ponderação pelo Supremo Tribunal, caso a caso: porque, ao prescrever que o Supremo poderá deixar de considerar crimes políticos o atentado a Chefes de Estado, os atos terroristas, os sequestros de pessoas, está-se dizendo que esses fatos constituem, em princípio, crime político. Ou não seria necessário dizer que o Supremo poderá deixar de considera-los políticos.

 

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Sua Excelência até registra a dignidade de alguns crimes políticos.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – O homicídio, numa rebelião, obviamente, não é terrorismo, como, aliás, se decidiu no caso Falco.

O Sr. Ministro CARLOS VELLOSO – Agora, quem coloca uma bomba num local frequentado por civis, por inocentes, e essa bomba explode, isso é terrorismo.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE – Pode ser. Mas, se há guerra civil? Vamos ficar no caso concreto.

(...)

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) – Quanto à discussão inicial levantada pelo Ministro Sepúlveda Pertence e longamente desenvolvida pelo Ministro Celso de Mello sobre o conceito de terrorismo, tenho uma tranquilidade absoluta a respeito, porque toda essa discussão do que é terrorismo – a lei brasileira não sabe o que é o terrorismo – é uma discussão essencialista da linguagem; é um erro de perspectiva – e aí já vem uma provocação do Senhor Procurador-Geral: é o nosso débito escolástico e o tomismo. Ou seja, o conceito terrorismo não é um conceito que diz respeito a um ato da realidade, não é um substantivo que trate de atos concretos; são juízos de valores em condutas políticas que têm de ser examinados caso a caso.

(...)

Isso aqui me lembra uma discussão já antiga na filosofia ocidental, em que se deixava muito claro que essa discussão é uma pseudoquestão, porque é um erro de uso de linguagem, ou seja, atribuir à linguagem o que ela não tem. E ela não tem essa característica. O mesmo se passa com o crime político. O conceito de crime político não existe. O conceito de crime político é um juízo de valor sobre determinadas circunstâncias, que dependem, inclusive, dos juízos de valores de quem o examina e da sociedade em que se examina. Então, não teria dúvida nenhuma de ser rigorosamente minimalista nessas conceituações do que é ou não é terrorismo. Prefiro examinar o caso e, em cima deste, intuitivamente, a partir de uma análise, sair do caso e emitir um juízo sobre como deverá ser ele tratado pelo sistema legal. Renuncio a qualquer possibilidade de discutir academicamente a busca de algo no mundo que seja o terrorismo, o que não vai haver nunca. Isso depende do lado do muro em que se encontra.

O SENHOR MINISTRO EROS GRAU: - Permita-me um aparte. A questão é que aí não há conceito, porque conceito é sempre atemporal e ahistórico. Estamos aí diante de uma noção que, portanto, tem de ser pensada no momento, no caso, como disse V. Exa.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – É uma perplexidade. V.Exa. está correto nas suas ponderações, mas que perplexidade: se deixarmos o terrorismo como um ato de conteúdo semântico aberto, não sobra espaço para o cometimento do crime político, porque a linha divisória entre o crime político e o terrorismo é muito pouco nítida.

O SENHOR MINISTRO NELSON JOBIM (PRESIDENTE) – Vossa Excelência parte da possibilidade de que exista uma definição. Eu nego essa possibilidade. Daí por que me é irrelevante o problema, porque é um juízo de valor em cima de determinadas circunstâncias. Evidentemente que aquilo que pode ser qualificado por todos nós como ato terrorista, pode não ser qualificado em outra circunstância. Basta ver o exemplo abstrato que tentou dar o nosso Ministro Carlos Velloso quando disse que a explosão de uma bomba no ambiente público – e a reação do Ministro Sepúlveda Pertence: “depende”.

 

No exame do caso concreto – de seu tempo histórico, para ser fiel ao STF -, é impossível cogitar se foi atendido o apelo a uma compreensão judicial de momento, circunstancial, do terrorismo e do crime político, com reflexo na esfera de direito subjetivo do embargante.

 

Se a jurisprudência vigente sobre o julgamento da anistia é consequência direta do casuísmo hermenêutico cogitado nos anais do Supremo Tribunal Federal, o embargante tem motivação para pretender, ao menos, a equiparação aos que foram beneficiados com bilhões, em decisões administrativas ou judiciais que seriam casuísticas, ofensivas à Constituição, mas em perfeita harmonia com o tempo histórico.

 

Vejamos.

 

Preceitua o Ato das Disposições Constituições Transitórias:

 

Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos. 

§ 1º O disposto neste artigo somente gerará efeitos financeiros a partir da promulgação da Constituição, vedada a remuneração de qualquer espécie em caráter retroativo.

§ 2º Ficam assegurados os benefícios estabelecidos neste artigo aos trabalhadores do setor privado, dirigentes e representantes sindicais que, por motivos exclusivamente políticos, tenham sido punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como aos que foram impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos.

§ 3º Aos cidadãos que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5 será concedida reparação de natureza econômica, na forma que dispuser lei de iniciativa do Congresso Nacional e a entrar em vigor no prazo de doze meses a contar da promulgação da Constituição.

§ 4º Aos que, por força de atos institucionais, tenham exercido gratuitamente mandato eletivo de vereador serão computados, para efeito de aposentadoria no serviço público e previdência social, os respectivos períodos.

§ 5º A anistia concedida nos termos deste artigo aplica-se aos servidores públicos civis e aos empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações, empresas públicas ou empresas mistas sob controle estatal, exceto nos Ministérios militares, que tenham sido punidos ou demitidos por atividades profissionais interrompidas em virtude de decisão de seus trabalhadores, bem como em decorrência do Decreto-Lei nº 1.632, de 4 de agosto de 1978, ou por motivos exclusivamente políticos, assegurada a readmissão dos que foram atingidos a partir de 1979, observado o disposto no § 1º.

Art. 9º. Os que, por motivos exclusivamente políticos, foram cassados ou tiveram seus direitos políticos suspensos no período de 15 de julho a 31 de dezembro de 1969, por ato do então Presidente da República, poderão requerer ao Supremo Tribunal Federal o reconhecimento dos direitos e vantagens interrompidos pelos atos punitivos, desde que comprovem terem sido estes eivados de vício grave.

 

A anistia da Constituição de 1.988 não tratou de delitos. O tema, na perspectiva criminal, já havia sido objeto da Lei Federal nº 6.683/79 – conhecida como Lei da Anistia – e da Emenda Constitucional nº 26/85.

 

Também não cuidou da recomposição de danos civis, como os produzidos contra a integridade física – assassinatos, torturas, lesões corporais - e o patrimônio – direito das empresas e dos bancos assaltados pela guerrilha ou cidadãos com bens confiscados pelo governo de exceção.

 

A Constituição de 1.988 teve um objetivo. A reparação dos danos decorrentes da frustração ou da interrupção indevida – por isto, anistiada – das relações de trabalho.

 

Além da clara redação da Constituição, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, não deixou qualquer dúvida sobre esta exclusiva finalidade:

 

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONSTITUIÇÃO DO PARANÁ (EC 14/2001). INDENIZAÇÃO POR ATOS DE EXCEÇÃO. TERCEIROS DE BOA-FÉ. ARTS. 8º E 9º DO ADCT.

1. A anistia referida nos arts. 8º e 9º do ADCT foi prevista em benefício daqueles que foram vítimas de atos de "exceção, institucionais ou complementares" que, de alguma forma, sofreram prejuízos em suas atividades profissionais, em seus direitos ou por motivos políticos, mesmo que trabalhadores da iniciativa privada, dirigentes e representantes sindicais.

2. A anistia dos arts. 8º e 9º do ADCT tem índole político-institucional e, por essa mesma natureza, sua competência de concessão legislativa é exclusiva do poder constituinte originário federal. Isso porque, muito embora seja previsão importante do ponto de vista da compensação financeira das vítimas de atos de exceção, constitui-se também na aceitação excepcional de uma responsabilidade civil extraordinária do Estado, quanto aos atos políticos do passado.

3. Essa repercussão política e financeira quando da concessão de anistia reveste o ato de absoluta excepcionalidade e, por isso, não é possível que norma constitucional estadual amplie tal benefício. ADI que se julga procedente.

(ADI 2639, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 08/02/2006, DJ 04-08-2006 PP-00024 EMENT VOL-02240-01 PP-00085).

 

Do v. Acórdão, cabe destacar:

 

"De fato, pela própria natureza do ato de anistia previsto nos arts. 8º e 9º do ADCT, sua competência de concessão legislativa é exclusiva do poder constituinte originário federal.

Isso porque, muito embora seja previsão importante do ponto de vista da compensação financeira das vítimas de atos de exceção, é também claramente a aceitação excepcional de uma responsabilidade civil extraordinária do Estado por atos políticos do passado.

A repercussão política e financeira reveste esse ato confessional de culpa do Estado de excepcionalidade que, por isso, não admitiria interpretação extensiva e nem, ao menos, ampliação por parte do poder constituinte derivado dos Estados-membros.

Do contrário, com facilidade, ato de tamanha envergadura política e institucional do nosso Estado Democrático de Direito se vulgarizaria e sua previsão poderia se tornar instrumento de populismo ou até mesmo de práticas da Administração local em violação aos princípios da moralidade e impessoalidade.

Por isso mesmo, em se tratando de indenização por atos de exceção, valem somente as regras estritas dos arts. 8º e 9º do ADCT, sem possibilidade de ampliação do benefício" (os destaques não são originais).

 

Neste caso paradigma, a Constituição do Estado do Paraná procurou resolver reparação de natureza civil, fato surgido com o confisco de propriedade imobiliária, por Ato Complementar editado com lastro no Ato Institucional nº 5, de 1.968, entre outros.

 

Outros precedentes no mesmo sentido:

 

AGRAVO REGIMENTAL EM AÇÃO RESCISÓRIA. RECURSO INTERPOSTO EM 04.08.2010. DIREITO ADMINISTRATIVO. ANISTIA. COMPATIBILIDADE DO ART. 9º DO ADCT DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL COM O CONTEÚDO DO ARTIGO 8º, §1º, DO ADCT DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. RETROATIVIDADE DOS EFEITOS FINANCEIROS. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO FEDERAL. PRECEDENTES.

1. O Supremo Tribunal Federal já assentou que os efeitos financeiros da anistia, nos termos do §1º do art. 8º do ADCT da CF/88, contam-se a partir da promulgação da CF/88.

2. É firme a jurisprudência desta Corte no sentido de que a competência para concessão de anistia é exclusiva do poder constituinte originário federal, razão pela qual não é possível que norma constitucional estadual amplie tal benefício.

3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AR 2013 AgR, Relator(a):  Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 07/04/2017)”.

 

Anistia. Efeitos financeiros. Compatibilidade do art. 8º, §§ 1º. e 5º., do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988 e do art. 39 do ADCT da Constituição do Estado do Paraná. Limitação dos efeitos financeiros da anistia ao período posterior à promulgação da Carta de 1988. Precedentes. Se o Constituinte Federal estabeleceu, como princípio, a limitação, no tempo, dos efeitos financeiros da anistia, o Poder Constituinte derivado, não pode ultrapassar este limite. Interpretação conforme do 8º., § 1º. e 5º., do ADCT da Carta Maior. Na expressão "todas as vantagens" encontram-se tão só aquelas não excluídas pela correspondente norma da Constituição Federal. Recurso conhecido e provido.
(RE 275480, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 07/11/2002, DJ 07-02-2003 PP-00048 EMENT VOL-02097-04 PP-00855).

 

Recurso Extraordinário. 2. Direito Constitucional. Anistia. Art. 8º do ADCT. Extensão. Promoções e indenizações pertinentes a carreiras de servidores públicos e empregados. Precedentes. 3. Confisco decorrente de sanção pela prática de enriquecimento ilícito. Pedido de restituição de bens confiscados. Impossibilidade. Inaplicabilidade do art. 8º do ADCT. 4. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(RE 368090, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 21/08/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-248 DIVULG 18-12-2012 PUBLIC 19-12-2012).

 

A vedação à ampliação de benefício concedido por norma de anistia é velha, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

 

É obstáculo contra iniciativas do próprio Poder Judiciário, ao qual cumpre, apenas, garantir a reparação prevista na norma de anistia - não, por exemplo, a partir da aplicação geral da responsabilidade civil, em ação judicial.

 

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO DE SERVIDORES COM BASE EM ATO INSTITUCIONAL. LEI DA ANISTIA (APLICAÇÃO). RESPONSABILIDADE DO ESTADO E INDENIZAÇÃO DO DANO. A COMPOSIÇÃO DO PREJUIZO CAUSADO POR ATO ADMINISTRATIVO FUNDADO NO ARTIGO 7. DO ATO INSTITUCIONAL DE 09.04.64, SUBORDINA-SE À LEI DA ANISTIA, DA QUAL JÁ SE VALERAM OS INTERESSADOS (LEI 6.683/79). IMPROCEDENCIA DA AÇÃO DE RESSARCIMENTO FUNDADA NO ARTIGO 159 DO CÓDIGO CIVIL, PROPOSTA CONTRA O ESTADO DO AMAZONAS. RE CONHECIDO E PROVIDO.
(RE 113559, Relator(a):  Min. CÉLIO BORJA, Segunda Turma, julgado em 03/04/1990).

 

A Constituição de 1.988 deu limites para a recomposição da atividade laborativa.

 

A regra: “promoções, na inatividade”.

 

Com a exceção da “readmissão dos que foram atingidos a partir de 1979”, nas condições do artigo 8º, § 5º, do ADCT.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ANISTIA. ART. 8º, § 5º, DO ADCT. DIREITO À READMISSÃO RESTRITO AOS QUE SOFRERAM ATOS DE EXCEÇÃO A PARTIR DE 1979. PRECEDENTES.

1. A autora enquadra-se na condição de anistiada prevista no caput do art. 8º do ADCT, porém esse reconhecimento não lhe confere o direito a ser readmitida. Isso porque não preencheu a hipótese fática constante da limitação imposta pelo texto constitucional, uma vez que foi demitida em 1969, dez anos antes do termo inicial fixado pela norma constitucional.

2. A ocorrência de novo ato de exceção em 1980 não foi objeto de discussão no acórdão recorrido.

3. Agravo interno a que se nega provimento.
(ARE 709246 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 17/02/2017).

 

Os debates da Assembleia Nacional Constituinte são esclarecedores:

 

“MICHEL TEMER (PMDB – SP. Sem revisão do orador.): –  Há pouco, Sr. Presidente, votamos aqui a anistia aos militares. Embora tenha votado a favor da anistia tal como foi proposta nas várias emendas, reconheço que, no caso dos militares, poderia haver uma margem de litigiosidade entre aqueles que seriam reintegrados e os que estão nas Forças Armadas, porque as Forças Armadas – diz a Constituição baseiam-se na hierarquia e na disciplina. É muito provável, portanto, que os Constituintes que votaram ‘não’ à anistia aos militares tenham pensado exata e precisamente nesta circunstância, recearam permitir, depois da promulgação da nova Constituição, uma área de litigiosidade nas Forças Armadas.     Mas aqui, Sr. Presidente, a anistia tem uma natureza praticamente trabalhista, visa apenas aos servidores públicos civis e aos empregados das fundações, empresas mistas etc. A pacificação que essa emenda busca é simplesmente em relação aos servidores civis. E não se diga que eles poderiam ir ao Poder Judiciário, porque todos sabemos que os atos excepcionais, baixados durante largo período histórico, não podem ser revistos pelo Judiciário. Portanto, cabe a nós decidir esta questão. E não se diga também, Sr. Presidente, que as empresas públicas, que o Governo, no seu todo, não teria suporte financeiro para arcar com essas despesas, porque a emenda, muito sabidamente, estabelece que deve observar-se o disposto no § 1º, que salienta, que registra, que enfatiza que os efeitos financeiros da anistia contam-se única e exclusivamente a partir da promulgação da nova Constituição.     Portanto, em nome da pacificação social, em nome de uma Constituição duradoura, perene, pacificadora, moderadora, equilibrada, encaminho favoravelmente a votação dessa emenda’ (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 01/06/1998 a 17/06/1998, p. 431/432).     Em seguida, a manifestação do Exmo. Sr. Constituinte Luiz Soyer: – Sr. Presidente, Sras. e Srs. Constituintes, chega-nos a informação de que, fruto de um acordo, substitui-se por ‘readmissão’ a palavra ‘reintegração’, que, se permanecesse, subentenderia o direito à remuneração referente a todo o período de afastamento, o que não ocorre com o termo ‘readmissão’, ora adotado.    Considerando, então, que não se trata de reintegração, mas sim de readmissão, e, por outro lado, tendo em vista terem sido excluídos os militares, ficando tão-somente os civis, concordamos com essa emenda’ (Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 01/06/1998 a 17/06/1998, p. 432) (destaquei).     Questionado pelo Plenário acerca de mudanças supostamente acordadas no texto, seguiu-se a fala do Exmo. Sr. Constituinte Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte:  V. Ex.ª tem razão. Falei talvez um pouco baixo, com a dicção paulista, que às vezes não é muito boa para ser ouvida. É que, em vez de 'reintegração', que pressupõe receber os atrasados, como V. Ex.ª sabe, adota-se a palavra 'readmissão', que é a volta ao emprego sem percepção dos atrasados. Além disso, estão excluídos os ministérios militares”.

 

A opção pelo uso do vocábulo readmissão foi reforçada pela redação de parágrafo expresso, de restrição dos efeitos financeiros da reparação à data da promulgação da Constituição.

 

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ANISTIA POLÍTICA. EFEITOS FINANCEIROS. RETROAÇÃO. PRECEDENTES. 1. A jurisprudência do STF é firme no sentido de que os efeitos financeiros da readmissão ou da reintegração, decorrentes da anistia concedida na forma do art. 8º do ADCT/88, contam-se da promulgação da Constituição vigente, ou seja, 5 de outubro de 1988. 2. Agravo regimental desprovido.
(RE 346736 AgR, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 09/08/2011).

 

Ademais disto, os anistiados vinculados a Ministérios Militares não poderiam – como não podem – ser readmitidos (STF- RMS 35517).

 

Todo o sistema de anistia, desde a lei federal editada no Governo João Figueiredo em 1.979, até a Constituição de 1.988, compôs processo de pacificação social, no campo do esquecimento das sanções penais e no da reparação das relações de trabalho.

 

A participação do Poder Judiciário na garantia destas medidas é fundamental, seja reconhecendo a extinção da punibilidade na Justiça Criminal, seja zelando para que os benefícios de natureza pecuniária não sejam afetados pelo populismo ou pela imoralidade, como advertiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 2639.

 

A integridade deste sistema depende, basicamente, da preservação de alguns parâmetros: temporal e de conteúdo da norma de anistia.

 

E de sua aplicação uniforme em todos os tribunais, a partir da orientação jurisprudencial da mais alta corte de justiça.

 

O Brasil tem larga tradição na concessão de anistias de natureza política. Algumas vezes, há tempo razoável entre o fato da conflagração e a lei de benefício, como aconteceu no sistema agora em discussão.

 

A conflagração, objeto da atual anistia, começa em 1.946. O ato jurídico – a Constituição - que garantiu a reparação na esfera das relações de trabalho é de outubro de 1.988. Estamos em uma sessão de julgamento realizada em 2.019, para o julgamento de um ato praticado em 1.968.

 

Parece evidente que, em algum momento, o Poder Judiciário deixou de seguir o caminho da prudência. Eternizou a discussão judicial.

 

Por outro lado, cabe lembrar que o controle jurisdicional do conteúdo das normas de anistia é feito sob interpretação restrita.

 

Anistia é esquecimento – não é perdão.

 

É a reconciliação da Pátria consigo mesma.

 

A tarefa de alta sensibilidade política é sempre da competência dos legisladores, nos parlamentos ordinários ou nas assembleias nacionais constituintes.

 

São momentos críticos das Nações, em busca da retomada da paz social.

 

Por isto, quando a União decide, não se concede espaço complementar algum aos Estados, como seu viu na jurisprudência do STF.

 

É preciso manter a unidade nacional, no seu mais alto significado. Estados dirigidos por facções adversárias podem, facilmente, reavivar o conflito, com a disciplina fragmentada da anistia, como também está demonstrado na jurisprudência antes registrada.

 

A integridade do Poder Judiciário é fundamental nestes momentos históricos. Se os juízes rompem os limites das normas de pacificação social, pelo simples ativismo ou motivo ainda menos nobre, criando ou negando prestações, a pessoas, grupos ou facções, a reativação da beligerância é muito provável.

 

O distanciamento político dos magistrados é, ainda, essencial.

 

Na Extradição 417, acima mencionada, do líder do grupo Montoneros, foi debatido, como argumento da causa, no STF, o suposto interesse, dos juízes argentinos envolvidos no processo, em agradar o governo de turno, pois disto dependeria a carreira na magistratura.

 

Adotadas tais premissas de interpretação, peço licença para continuar a manter distância de certas balizas jurisprudenciais surgidas no debate da anistia. 

 

Quanto ao aspecto temporal do instituto, as indenizações por anistia sempre foram prescritíveis e tiveram como termo inicial a data da norma jurídica de benefício - no caso concreto, a Constituição de 1.988.

 

E foi assim, nos tribunais, com a presente anistia, até certo ponto.

 

Quando ex-integrantes anistiados de grupos de oposição ao Governo Militar, mais do que vencer eleições, enraizaram-se na máquina estatal de poder, surgiu a mudança jurisprudencial.

 

A tese da imprescritibilidade.

 

Supero a coincidência histórica certamente casual, mas não a fragilidade da nova teoria.

 

Afirma-se que o abuso do governo de exceção é causa ofensiva à dignidade humana e, assim, a pretensão indenizatória tornar-se-ia imprescritível.

 

Sim. Qualquer abuso contra o ser humano ofende a sua dignidade – nos governos, nos clubes, nas igrejas, em qualquer grupo social, em qualquer tempo.

 

Isto deve ser sempre proclamado nas praças, nos púlpitos, na imprensa, na opinião popular.

 

O que não cabe é, nos tribunais, criar causa judiciária de imprescritibilidade, exemplo clássico de arbitrariedade, porque tal competência é exclusiva do legislador constituinte.

 

E só para quem, ontem, terá sido vítima de inaceitável crueldade, em tal ou qual dependência policial, mas ocupa o palácio do poder no momento da criação deste exotismo hermenêutico.

 

As vítimas do terrorismo, como o embargante, nas calçadas públicas, nas lojas de departamento, nas agências bancárias, nas forças de segurança, por acaso não gozam do atributo da dignidade humana?

 

Ademais disto, a ser exato o raciocínio, todos os integrantes da antiga oposição ao regime superado estariam sujeitos a pagar indenizações pesadas. Também ficariam sem a proteção da prescrição, o que não é desejável, nem aceitável.

 

É oportuno registrar que quando o embargante promoveu ação judicial civil contra o terrorista confesso Sergio Ferro, a questão foi decidida pela prescrição.

 

A não ser que o ato de criação judiciária da imprescritibilidade, além de arbitrário, seja apenas para os que decidem as promoções na carreira da magistratura, como foi cogitado na Extradição 417.

 

O embargante tem todo direito de trazer o seu protesto enfático ao tribunal nesta questão.

 

O Supremo Tribunal Federal reconheceu o artificialismo da tese. No Plenário, na AOE 27, foi certificada a prescritibilidade de toda e qualquer ação, com a ressalva da exceção prevista na própria Constituição - artigo 5º, inciso XLIV: "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".

 

AÇÃO ORIGINÁRIA ESPECIAL. ART. 9º DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS. ATO INSTITUCIONAL N. 5/1968. REFORMA DE CAPITÃO-TENENTE. PRESCRIÇÃO: ART. 1º DO DECRETO-LEI N. 20.910/1932. ART. 269, INC. IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. EXTINÇÃO DA AÇÃO COM RESOLUÇÃO DE MÉRITO (AOE 27, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2011) .

 

O voto do Ministro Cezar Peluso:

 

"Volto ao meu raciocínio para dizer que tampouco me parece, com o devido respeito, consistente o fundamento de que se trata de direito oriundo de violação à dignidade da pessoa humana.

Esse fundamento, que é respeitabilíssimo, se fosse levado às últimas consequências, justificaria, para além do que já foi de certo modo pontuado pelo Ministro Marco Aurélio, as seguintes conclusões: todas as ações decorrentes de um homicídio, por exemplo, seriam imprescritíveis, porque, em termos jurídicos, nada há de mais ofensivo à dignidade da pessoa humana do que a subtração do próprio suporte em que repousa a dignidade da pessoa humana; isto é, a subtração da vida da própria pessoa, sobre a qual recai esse valor realmente superior da sua dignidade.

Em segundo lugar, como também já acentuou o Ministro Marco Aurélio, tanto a decadência quanto a prescrição, de prazos preclusivos, atendem à necessidade, elementar a uma sociedade civilizada, da segurança jurídica e da paz social. Daí por que é possível afirmar-se que todas as ações e pretensões são prescritíveis, salvo aquelas que, por força de disposição constitucional ou de disposição de tratado aprovado na forma da Constituição - seja com estatura de norma constitucional, seja com estatura de norma infraconstitucional -, são excluídas da prescrição, o que não é o caso. E não quero entrar, aqui, na questão da imprescritibilidade ou não das ações declaratórias. O caso é de ação manifestamente de caráter condenatório e constitutivo.

A mim me parece que razões de ordem prática não podem, com devido respeito, conduzir a outras conclusões, sob pena de chegarmos a consequências empíricas estranháveis, como, por exemplo, o fato de que esta ação, sendo absolutamente imprescritível, ou outras como esta, passariam a sucessivas gerações de herdeiros. Daqui a trinta ou quarenta anos, todos aqueles que foram punidos ou seus netos, bisnetos ou trinetos poderiam propor ação contra a União, o que evidentemente parece ser, do ponto de vista prático, uma situação de incerteza e de resultados, a meu ver, tão pouco sustentáveis que, já por si, recomendaria a conclusão que eu, com o devido respeito, estou tomando. Acompanho a eminente Relatora, pedindo, mais uma vez, vênia aos votos divergentes, e também acolho a prescrição".

 

Outro precedente:

 

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ANISTIA. APLICAÇÃO DE PRAZO PRESCRICIONAL ÀS AÇÕES FUNDADAS NO ART. 8º DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS - ADCT. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO.
(AI 825731 AgR-segundo, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 16/10/2012).

 

Quanto ao controle jurisdicional da extensão da anistia, de seu conteúdo, somo com a posição do STF: ela diz respeito a relações de trabalho, não a outros aspectos, como violações físicas ou patrimoniais de ordem distinta, como já foi explicado acima.

 

É exato, porém, que as decisões do Supremo Tribunal Federal não são seguidas, porque emitidas sem efeito vinculante, e isto garantiu o mercado bilionário das indenizações ilícitas. 

 

Nem o Supremo Tribunal Federal fez uso dos instrumentos de vinculação decisória, nem os demais tribunais tiveram cerimônia para afrontar as regras usuais de interpretação, que a mais Alta Corte do País lembrou na própria jurisprudência ineficaz.

 

Criou-se, assim, o círculo vicioso para as contas públicas.

 

Indenizações bilionárias ilícitas de toda ordem foram concedidas contra a letra da Constituição.

 

Em um processo, dizia-se que os documentos oficiais sobre a prática de terrorismo teriam sido obtidos sob tortura.

 

No feito seguinte, o interessado mudava a versão e, com base nos mesmos documentos oficiais, na qualidade de protagonista dos assassinatos, dos roubos, dos sequestros, deduzia o milionário pedido de indenização – indenização por dano moral.

 

O caso sob exame é exemplar.

 

Mau exemplo de equidade.

 

Na Comissão de Anistia, sem prova alguma, um dos terroristas responsáveis pelo infortúnio do embargante recebeu milionária indenização, em homenagem à “magnitude” de sua ação criminosa.

 

O embargante, por sua vez, teve que ouvir que a detonação da bomba na calçada pública e a sua permanente mutilação não passaram de “acidente”, de “triste fatalidade”.

 

Compreendo as petições do embargante e de seus combativos advogados contra todas estas infâmias, incongruências manifestas, vergonhosas parcialidades.

 

Mas não posso deixar de ser fiel à minha consciência de juiz.  Não aderi a este espetáculo ignominioso ontem. Não o farei agora.

 

Em matéria de anistia, os beneficiários da norma decidida pelos representantes do povo terão tudo que lhes cabe. Nem mais, nem menos. Juízes não devem ser árbitros de anistias, mas garantidores do que foi chancelado nos parlamentos.

 

Na minha interpretação, de hoje e de sempre, seja quem for a parte ou o governo de turno, pretensão indenizatória por anistia é prescritível, o seu termo inicial é a data de vigência da Constituição e qualquer pedido estranho à reparação de dano que não seja por relação de trabalho é juridicamente impossível.

 

Por fundamentação distinta, acompanho o voto do senhor Relator.

 

*   *   *   *   *                 *   *   *   *   *

 

A prescrição está consumada.

 

A jurisprudência não faz distinção pela dignidade da pessoa humana ou pela violação a direito fundamental.

 

Isso não é exato.

 

A transcrição da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dissipa dúvidas.

 

É certo que o autor da ação, como pessoa humana, tem o atributo da dignidade. Abstraídas as causas histórico-normativas de seu infortúnio, é inegável que sofreu violações a direitos fundamentais.

 

Mas o Superior Tribunal de Justiça não deixa de reconhecer a prescrição em casos tais:

 

ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FILHO DE PORTADOR DE HANSENÍASE. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DA GENITORA DO AUTOR. PRESCRIÇÃO DO DIREITO DE AÇÃO. ART. 1º DO DECRETO 20.910/32. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.

I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara recurso interposto contra decisum publicado na vigência do CPC/2015.

II. Na origem, a parte ora agravante ajuizou, em 2017, ação, postulando a condenação da União e do Estado do Rio de Janeiro ao pagamento de indenização pelos danos que lhe foram causados, em decorrência da internação compulsória de sua mãe, portadora de hanseníase, no período de 1983 a 1986. No acórdão objeto do Recurso Especial, o Tribunal de origem manteve a sentença, que, reconhecendo a prescrição do direito de ação, jugara extinto o feito, com resolução de mérito.

III. No caso, o Tribunal de origem decidiu a causa em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, no julgamento do REsp 1.251.993/PR, submetido ao rito do art. 543-C do CPC/73, firmou entendimento no sentido de que "aplica-se o prazo prescricional quinquenal - previsto do Decreto 20.910/32 - nas ações indenizatórias ajuizadas contra a Fazenda Pública, em detrimento do prazo trienal contido do Código Civil de 2002" (Tema 553).

IV. Agravo interno improvido.

(AgInt nos EDcl no agravo em recurso especial nº 1.502.585 - relatora: Ministra Assusete Magalhães – 2ª Turma).

 

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OFENSA AOS ARTS. 489 E 1.022 DO CPC/2015 NÃO CONFIGURADA. PRESCRIÇÃO. DANO MORAL. FILHO DE PORTADOR DE HANSENÍASE. INTERNAÇÃO E SEGREGAÇÃO COMPULSÓRIA. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONFORMIDADE COM TESE FIRMADA EM RECURSO REPETITIVO. TEMA 553/STJ.

1. Inexiste a alegada violação ao art. 1.022 do CPC/2015, visto que a Corte de origem julgou integralmente a lide e solucionou, de maneira clara e amplamente fundamentada, a controvérsia, em conformidade com o que lhe foi apresentado, não podendo ser considerado nulo tão somente porque contrário aos interesses da parte.

2. Hipótese em que o Tribunal a quo, ao analisar a questão relativa à prescrição, orientou-se em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que no julgamento proferido pela Primeira Seção, no REsp 1.251.993/PR, submetido ao rito dos recursos repetitivos, firmou entendimento no sentido de que, nas ações de indenização contra a Fazenda Pública, o prazo prescricional é de cinco anos, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932, em detrimento do prazo prescricional previsto no Código Civil (Tema 553/STJ).

3. Ressalte-se que a tese recursal relacionada à imprescritibilidade de ações de indenização oriundas de suposta violação de direito fundamentais não é aplicável ao caso dos autos. Ela está relacionada às hipóteses de atos decorrentes de perseguições políticas ocorridas durante o regime militar, época na qual os jurisdicionados não podiam deduzir a contento suas pretensões.

4. Agravo conhecido para conhecer parcialmente do Recurso Especial, somente em relação à preliminar de violação do art. 1.022, II, do CPC/2015 e, nessa extensão, negar-lhe provimento.

(AREsp 1662747/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma).

 

Vencido no tema da prescrição, julgo a ação improcedente.

 

Em caso similar, ponderei:

 

“A premissa de que a internação compulsória adotada pela sociedade, para enfrentar a hanseníase, foi uma “desculpa”, como censura a petição inicial, agora suscetível ao restabelecimento do que seria a “verdade histórica”, extrapola o limite da racionalidade e do Estado Democrático de Direito - lugar de muitas verdades; ao contrário da tirania, com a sua verdade sempre única.

Limitada pela ciência médica, a sociedade fez o que era possível em certo momento histórico.

Ainda hoje, milhares ou milhões de cidadãos pelo mundo são submetidos a tratamentos profundamente agressivos – inclusive à internação compulsória, em casos infecciosos graves, geriátricos, de saúde mental e outros -, que a ciência médica, amanhã, poderá reputar inúteis, cruéis ou inservíveis.

O olhar para as muitas dores do passado provocará sempre empatia e compaixão. Mas nunca poderá ser o decreto condenatório pela presumida crueldade da classe médica ou da própria sociedade.

Isso é a negação da justiça.

Seja como for, não se pode ignorar a absoluta, incontroversa e flagrante ausência de nexo causal, para a responsabilização jurídica.

A sentença, porém, filiou-se ao modelo clássico do revisionismo. Com a desconsideração do tempo da História, realizou o julgamento, com as categorias morais do presente, sobre as escolhas feitas nas condições limitadas do passado:

“Não se tem dúvida de que se tratava de uma política higienista que defendia a intervenção na vida da população como solução para questões de saúde – ou seja, a higienização vinha como um mecanismo de regulação, controle e vigilância da população. Tal intervenção, como apontou a exposição de motivos da Lei n. 610/1949 implicava em interferência em direitos individuais.

Virgílio Afonso da Silva ao tratar das “regulamentações restritivas” dentro do tema dos direitos fundamentais ressalta que “nem tudo aquilo que se refira à forma de exercício de uma liberdade é mera regulamentação. Como se viu, é perfeitamente possível que com base em medidas aparentemente inofensivas e meramente regulamentadoras o exercício de um direito fundamental possa ser restringido de forma contundente. O que aparenta ser mera regulamentação é, na verdade, restrição”. 

Tanto é assim que na exposição de motivos do projeto de medida provisória encaminhado ao Presidente da República, que culminou com a edição da Lei nº 11.520, de 18 de setembro de 2007, está bem contextualizado o problema. Assim, através deste documento, o próprio Poder Executivo Federal reconhece a sistemática lesão a direito produzido pelo Estado Brasileiro:

“2. A legislação sanitária brasileira da Primeira República, em conformidade com os conhecimentos científicos da época, previa o isolamento de pessoas com hanseníase em colônias construídas especificamente para esse fim. (...) 

4. No primeiro governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-45), o combate à hanseníase foi ainda mais disciplinado e sistematizado. Reforçou-se, então, a política de isolamento compulsório que mantinha os doentes asilados em hospitais- colônia. Quando se concluiu a rede asilar do País, o isolamento forçado ocorreu em massa.

5. A maior parte dos pacientes dos hospitais-colônia foi capturada ainda na juventude. Foram separados de suas famílias de forma violenta e internados compulsoriamente.

Em sua maioria, permaneceram institucionalizados por várias décadas. Muitos se casaram e tiveram filhos durante o período de internação. Os filhos, ao nascer, eram imediatamente separados dos pais e levados para instituições denominadas “preventórios”. Na maioria dos casos, não tinham quase nenhum contato com os pais.

6. A disciplina nos preventórios era extremamente rígida, com aplicação habitual de castigos físicos desmesurados. As crianças eram induzidas a esquecerem de seus pais, porquanto a hanseníase era considerada uma “mancha” na família.

(...)

A iniciativa do Governo Brasileiro significa uma demonstração contundente do compromisso de resgatar parte da dívida que a sociedade tem com esses cidadãos.

Assim, o reconhecimento da lesão à dignidade da pessoa humana das pessoas acometidas com hanseníase traduz um importante passo no reconhecimento da verdade histórica que acometeu não só os doentes, mas uma parcela importante de pessoas que também foram vítimas da política de internações compulsórias de hansenianos, qual seja os filhos separados dos pais, tal como o autor.

O governo brasileiro, por sua vez, até demonstrou, em certas oportunidades, haver a vontade política de promover alguma forma de reparação aos filhos separados compulsoriamente de seus pais adoecidos, por exemplo, as declarações proferidas em 2013, pelo então Ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho. Nas palavras do então Ministro “Os filhos são vítimas porque foram retirados dos pais violentamente e colocados em preventórios, que eram espécie de orfanatos anexos às colônias. Muitos eram dados para a família como mortos, dados em adoção sem que a família soubesse e se perderam por esse mundo afora, com muitas sequelas físicas e psicológicas. O que estamos fazendo é nada mais, nada menos do que reconhecer uma dívida de Estado” (os destaques não são originais).

O que há de objetivo no texto é o reconhecimento indiscutível de que a sociedade atuou em “conformidade com os conhecimentos científicos da época” (TRF3 - processo nº 5001270-92.2018.4.03.6120 - 6ª Turma).

 

Desprezado o fato objetivo, realizado o julgamento moral com as facilidades do presente, a tese poderá servir a qualquer tipo de tratamento médico superado pela morte, pois é certo que nenhum dano à dignidade humana é maior do que esse.

 

A hanseníase foi um problema terrível para toda Humanidade – e, tragicamente, para milhares cidadãos, como o autor, em particular.

 

Nos dias de hoje, embora protegida pela cura médica, ainda produz danos.

 

A sociedade brasileira, através do Congresso Nacional, criou pensão especial para as vítimas da doença, sob determinadas condições.

 

É medida de inclusão que poucos países devem ter adotado pelo mundo – admite-se, para argumentar, que algum o tenha feito, à falta de outros dados.

 

Mas nenhuma geração suportaria todo o custo moral, político, social e econômico do revisionismo das guerras sangrentas, dos conflitos internos, das doenças agressivas, das desigualdades brutais - enfim, das grandes tragédias humanas.

 

Os danos sempre existiram.

 

E continuarão a existir.

 

Mas não há nexo causal algum com a geração do presente, senão – ao contrário - com o da superação de muitos infortúnios do passado.

 

No campo dos dilemas morais, o abandono - ainda que motivado por elogiável compaixão – do direito objetivo, é o caminho para a ditadura da consciência íntima de cada juiz.

 

É a advertência do Ministro Sepúlveda Pertence (ADI 3289): “A alegação de ofensa ao princípio da moralidade, quero deixar claro também que não acolho no caso. Confesso meu temor do uso, sem muita discrição, desse princípio constitucional, porque, por meio dele, podemos estabelecer o governo dos juízes, que não é, por ser de juízes, menos arbitrário que outros governos arbitrários”.

 

Em matéria de indenização, como lembrou o Supremo Tribunal Federal no caso da anistia, é a oportunidade para o “populismo” e a “imoralidade”.

 

Nenhuma teoria jurídica de responsabilidade civil sustenta o pedido de indenização patrimonial, por dano moral, deduzido nesta ação.

 

Algo distinto é a empatia e a compaixão dos magistrados com os grandes dramas humanos.

 

Mas isso não está em causa.

 

Por estes fundamentos, dou provimento à apelação da União Federal e nego provimento ao recurso do autor.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


E M E N T A

 

 

APELAÇÃO CIVIL. DANO MORAL. FILHO DE PACIENTE INTERNADO, COMPULSORIAMENTE, POR SER PORTADOR DO MAL DE HANSEN. LESÃO A DIREITO FUNDAMENTAL. IMPRESCRITÍVEL. EVENTO DANOSO E NEXO DE CAUSALIDADE. COMPROVADOS. DANO. IN RÉ IPSA. DEVER DE INDENIZAR. CONFIGURADO. APELAÇÕES NÃO PROVIDAS. SENTENÇA MANTIDA.

1. Cinge-se a controvérsia em apurar se a responsabilidade pela internação compulsória dos pais do autor, portadores do Mal de Hansen e a separação do autor de seus genitores, logo ao nascer, também de forma impositiva, com o consequente e inevitável distanciamento do convívio familiar, procedimentos médicos adotados, à época, para o tratamento da hanseníase, deve ser atribuída à ré, ensejando a condenação no dever de indenizar, por dano.

2. A hipótese dos autos é de lesão grave a direito fundamental, qual seja: da garantia de uma vida digna e, assim sendo, não há que se falar em prescrição do direito de requerer a devida indenização pelo dano causado, que atinge a personalidade e o íntimo dessas pessoas até hoje, tornando o direito de se buscar a responsabilização civil do Estado, pela prática desse maléfico e danoso evento, que violou tão importante preceito fundamental, imprescritível.

3. A privação do convívio social, seja pela internação compulsória, seja pelo isolamento nosocomial, fere o direito subjetivo fundamental ao convívio familiar, a uma vida digna e as relações familiares alicerçadas pela observância do princípio da dignidade da pessoa humana, como preceitua o art. 226 da Constituição Federal, que reconhece a família como base da sociedade e confere ao Estado o dever de protegê-la. Além disso, a Carta Política atribui à família constituída e ao Estado o dever de garantir à criança e ao adolescente, o convívio familiar e a dignidade. Assim, restou comprovado nos autos que os pais do autor foram internados compulsoriamente, no Sanatório Aimorés, e que o autor foi retirado de seus genitores e encaminhado para um educandário, no mesmo dia em que nasceu, ou seja, a ação estatal, ao invés de proteger e manter a unidade familiar, a desfez e com isso atingiu a personalidade e o íntimo de seus membros, privando-os, da convivência familiar, retirando-lhes a dignidade e o respeito, o que configura o evento danoso e o nexo de causalidade a justificar a condenação no dever de indenizar, por dano moral.

4. Na espécie, o dano é in ré ipsa, sendo absolutamente dispensável a sua demonstração, pois, a simples comprovação da ocorrência do evento danoso, pressupõe a efetiva incidência do dano.

5. Observados os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade, a gravidade do evento danoso e a capacidade financeira do agente, a quantia fixada pela r. sentença se mostra suficiente para atender aos seus objetivos, que são: educativos, de coibir e de desestimular a prática do ato; bem como de compensar a vítima pelos danos causados, sem, contudo, configurar a hipótese de enriquecimento sem causa, razão pela qual deve ser mantido no patamar em que foi fixado.

6. Nega-se provimento à apelação do autor e da União, para manter a r. sentença, por seus próprios fundamentos.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, proferiu voto-vista o Desembargador Federal Fábio Prieto. Assim a Turma, em julgamento realizado de acordo com o artigo 942 do Código de Processo Civil, por unanimidade, negou provimento à apelação do autor, e, por maioria, negou provimento à apelação da União, nos termos do voto da Relatora, acompanhada pelos Desembargadores Federais Johonsom di Salvo e Carlos Muta, vencidos, o Desembargador Federal Fábio Prieto e a Juíza Federal Giselle França, que lhe davam provimento. Lavrará o acórdão a Relatora, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.