Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5004998-07.2018.4.03.6100

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: EDUARDO ISSACAR

APELADO: UNIÃO FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5004998-07.2018.4.03.6100

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: EDUARDO ISSACAR

APELADO: UNIAO FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de apelação à sentença que denegou mandado de segurança para garantir o recebimento e processamento do pedido de naturalização sem apresentação de passaporte válido e atestado de antecedentes criminais emitidos pelo país de origem, “bem como documentos legalmente inexigíveis”.

Alegou-se que: (1) no verso do documento de identidade de estrangeiro consta a legislação que embasou a respectiva emissão, no caso a antiga Resolução Normativa 06/1997 (CNIg), que dispõe sobre a “concessão de permanência definitiva a asilados ou refugiados e suas famílias”, encontrando-se superada a premissa da sentença em sentido contrário; (2) ostentando o status de refugiado, aplica-se-lhe a flexibilização de exigências documentais, tal como prevista no artigo 6º da Convenção de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados, replicada nos artigos 43 e 44 da Lei 9.474/1997, o que impede o estabelecimento de “limites burocráticos intransponíveis para que refugiado exerça seus direitos fundamentais, sob pena de ele jamais alcançar condições de vida dignas na nação em que obteve o refúgio”, justamente porque a exigência de apresentação de documentos emitidos pelos países de origem ou representações diplomáticas e consulares não se coaduna com as circunstâncias excepcionais da condição de refugiado (artigos 121 do Decreto 9.199/2017 e 12 da Portaria MJ 1.949/2015); (3) o atual formulário de solicitação de refúgio, anexo à Resolução Normativa 22/2015, do CONARE, exige que o solicitante apresente apenas documento de identidade e passaporte original de seu país de origem ou residência, possibilitando, ainda, que, na falta de tal documentação, sejam explicados os motivos sem implicar, por si só, negativa do pedido; (4) foram, ainda, exigidas vias de documentos sem previsão na Portaria MJ 1.949/2015; (5) tendo ingressado no país em 1992, possui filho brasileiro, nascido em 2006, cuja certidão de nascimento somada ao passaporte angolano foram anexados à documentação, assim preenchendo os requisitos exigidos pelos artigos 64 a 66 da Lei 13.445/2017; e (6) pretende-se tão somente o recebimento e processamento do pedido de naturalização sem passaporte válido e atestado de antecedentes emitido pelo país de origem, sem prejuízo do juízo discricionário do Ministério da Justiça para o deferimento ou não do requerimento, caso constado algum óbice.

Foram apresentadas contrarrazões.

O Ministério Público Federal opinou pelo provimento do recurso.

É o relatório.

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5004998-07.2018.4.03.6100

RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA

APELANTE: EDUARDO ISSACAR

APELADO: UNIAO FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

V O T O

 

 

 

Senhores Desembargadores, as hipóteses de naturalização encontram-se previstos nos artigos 66 a 75 da atual Lei de Migração (Lei 13.445/2017), que foi regulamentada pelo Decreto 9.199/2017, nos seguintes termos:

 

“Art. 234. O pedido de naturalização ordinária se efetivará por meio da:

I - apresentação da Carteira de Registro Nacional Migratório do naturalizando;

II - comprovação de residência no território nacional pelo prazo mínimo requerido;

III - demonstração do naturalizando de que se comunica em língua portuguesa, consideradas as suas condições;

IV - apresentação de certidões de antecedentes criminais expedidas pelos Estados onde tenha residido nos últimos quatro anos e, se for o caso, de certidão de reabilitação; e

V - apresentação de atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem.

Art. 235. O prazo de residência mínimo estabelecido no inciso II do caput do art. 233 será reduzido para um ano se o naturalizando preencher um dos seguintes requisitos:

I - ter filho brasileiro nato ou naturalizado, ressalvada a naturalização provisória; ou

[...]

Art. 239. O pedido de naturalização extraordinária se efetivará por meio da apresentação:

I - da Carteira de Registro Nacional Migratório do naturalizando;

II - de certidões de antecedentes criminais expedidas pelos Estados onde tenha residido nos últimos quatro anos e, se for o caso, de certidão de reabilitação; e

III - de atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem.

[...]

Art. 242. O pedido de naturalização especial se efetivará por meio da:

I - apresentação de documento de identidade civil válido do naturalizando;

II - demonstração do naturalizando de que se comunica em língua portuguesa, consideradas as suas condições;

III - apresentação de atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem e, se residir em país diferente, também pelo país de residência.” (g.n.)

 

Como se observa, a legislação de regência prevê os requisitos gerais para concessão de naturalização, ato discricionário e político do Estado, que não se sujeita a controle de mérito. No caso, discute-se a documentação necessária ao recebimento e processamento do pedido, ainda a ser analisado no mérito pela autoridade competente.

A decisão de concessão ou não de naturalização é dotada de cunho discricionário e político, cujo mérito é insusceptível de revisão judicial, porém é ilegal, além de violar a razoabilidade, a exigência formal de documentos na situação narrada nos autos.

Com efeito, consta dos autos que o impetrante é natural de Angola, tendo ingressado no Brasil em 11/11/1992, período abrangido pela Guerra Civil Angolana, com graves violações a direitos humanos.

A documentação anexada inicial revela que o autor possui cédula de identidade de estrangeiro expedida em 16/12/2013, com validade até 10/07/2022 e classificação permanente, com amparo na “Resolução NR 06 de 21/08/97 do CNIG/MTB, publicado no D.O.U. de 09/01/2004” (ID 7851626).

A Resolução Normativa 06/1997 do Conselho Nacional de Imigração dispôs sobre a “concessão de permanência definitiva a asilados ou refugiados e suas famílias”, prevendo que:

 

Art. 1º - O Ministério da Justiça resguardados os interesses nacionais, poderá conceder a permanência definitiva ao estrangeiro detentor da condição de refugiado ou asilado, que comprovadamente, preencher um dos requisitos abaixo:

[...]

Parágrafo único - Na concessão de permanência definitiva, o Ministério da Justiça deverá verificar a conduta do estrangeiro e a existência de eventuais condenações criminais sofridas pelo mesmo.” (g.n.)

 

A propósito, a própria autoridade impetrada informou que (ID 7851748):

 

[...] estrangeiro em tela encontra-se devidamente registrado no Sistema Nacional de Registro de Estrangeiros (SINCRE), sob o amparo legal da Resolução Normativa 06/97 CNIg (Conselho Nacional de Imigração), com os registro válido até o dia 10.07.2022.

[...]

[...] Cumpre informamos que, sob a égide do revogado Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980), a documentação a ser apresentada em caso de pedido de naturalização ordinária encontrava-se elencada no anexo I da então vigente Portaria 1.949/2015, [...]

[...]

Especificamente quanto ao pedido do impetrante de ver-se desonerado de apresentar o passaporte válido e o atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem, cumpre-nos esclarecer que, na situação específica daqueles estrangeiros que pretendiam alterar seu estado migratório por intermédio do instituto da naturalização, e, que, anteriormente, obtiveram o reconhecimento de sua condição de refugiado nos termos da lei nº. 9.474/1997, por já terem sido submetidos a minucioso processo de análise quanto à perseguição sofrida em procedimento específico perante o Comitê Nacional para Refugiados do Ministério da Justiça - CONARE/MJ, era excepcionada a apresentação de alguns documentos por parte dos mesmos, nos termos do que dispunha a então vigente Portaria MJ de n° 1.949/2015:

 

Art. 12. Os refugiados, asilados políticos e apátridas solicitantes de naturalização ficam dispensados de apresentar os seguintes documentos constantes dos anexos a esta Portaria:

I - atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem, legalizado junto à repartição consular brasileira e traduzido por tradutor público juramentado ou devidamente inscrito na Junta Comercial, no Brasil, previstos nos Anexos I e II; e

II - certidão ou inscrição consular, emitida por Embaixada ou Consulado no Brasil, comprovando a correta grafia do nome do interessado e de seus genitores, previstos nos Anexos I, II, III, V, VI e VIII;

[...] (grifamos)

 

A atual legislação não alterou tal regramento, dispondo a Portaria Interministerial 11/2018, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que:

 

“Art. 55. Os refugiados, asilados políticos e apátridas requerentes de naturalização ficam dispensados de apresentar os seguintes documentos constantes dos Anexos a esta Portaria:

I - atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem, legalizado junto à repartição consular brasileira e traduzido por tradutor público, no Brasil, previstos nos Anexos I e II; e

II - certidão ou inscrição consular, emitida por Embaixada ou Consulado no Brasil, comprovando a correta grafia do nome do interessado e de seus genitores, prevista nos Anexos I, II, III, IV e V.” (g.n.)

 

Não obstante, cumpre destacar que o impetrante apresentou ofício do Consulado Geral de Angola em São Paulo, de 07/06/2017, informando que foi oficiado às autoridade angolanas, solicitando certidão de antecedentes criminais do país de origem, sem notícia de resposta até o momento. Ademais, residente no país desde 1992, o impetrante obteve certidão negativa de antecedentes criminais expedida pela Polícia Federal brasileira em 22/05/2017 (ID 7851627).

Dado que a exibição de passaporte válido objetiva a verificação administrativa do correto nome e filiação do estrangeiro, evidencia-se que a existência de outros documentos de igual idoneidade supre a finalidade essencial da exigência, não se justificando que, residente no país há muito no país e admitido como refugiado, seja submetido a procedimento incompatível com o estatuto jurídico que lhe se aplica, segundo a legislação interna e internacional. 

Neste contexto específico de análise, é que se reconhece direito líquido e certo do impetrante ao recebimento e processamento do pleito de naturalização, sem a apresentação de passaporte válido e atestado de antecedentes criminais emitidos pelo país de origem.

Neste sentido, aliás, o posicionamento desta Turma e Corte:

 

ApelRemNec 0023011-47.2015.4.03.6100, Rel. Des. Fed. CARLOS MUTA, e-DJF3 de 02/06/2017: “DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PEDIDO DE NATURALIZAÇÃO. RECEBIMENTO E PROCESSAMENTO DO PEDIDO. ATESTADO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS EXPEDIDO PELO PAÍS DE ORIGEM E CERTIDÃO OU INSCRIÇÃO CONSULAR. EXIGÊNCIA FORMAL NÃO RAZOÁVEL. SITUAÇÃO DO CASO CONCRETO. 1. O artigo 112 da Lei de Estrangeiros prevê requisitos gerais para concessão de naturalização, ato discricionário e político do Estado, que não se sujeita a controle de mérito. No caso dos autos, a discussão é limitada ao tema da documentação necessária ao recebimento e processamento do pedido, ainda a ser analisado em seu mérito pela autoridade competente. 2. Certo que a decisão de concessão ou não de naturalização é dotada de cunho discricionário e político, cujo mérito é insusceptível de revisão judicial, porém é indevida, por violar a razoabilidade e a isonomia, a exigência formal de documentos na situação narrada nos autos, que é de conhecimento público. 3. Assevere-se que a situação em que se encontra o país de origem do impetrante equivale à compreendida pela Portaria 1.949/2015 do Ministério da Justiça, que dispõe sobre os procedimentos de naturalização, alteração de assentamentos de estrangeiros, entre outros, e, inclusive, dispensa os refugiados, asilados políticos e apátridas da apresentação do atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem, e da certidão ou inscrição consular, emitida por Embaixada ou Consulado no Brasil (artigo 12). 4. Apelação e remessa oficial desprovidas.”

 

ApCiv 5021362-88.2017.4.03.6100, Rel. Des. Fed. JOHONSON DI SALVO, Intimação via sistema 02/03/2020: “APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE NATURALIZAÇÃO. ATESTADO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS E PASSAPORTE VÁLIDO. INEXIGIBILIDADE DIANTE DA EXCEPCIONALIDADE DO CASO. RECURSO PROVIDO. 1. A exigência de documento impossível de ser obtido pelo requerente de naturalização é medida que ofende os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como atenta contra a dignidade da pessoa humana, razão pela qual merece censura pelo Poder Judiciário. 2. Na singularidade, é fato inconteste que o impetrante/apelante goza da condição de refugiado, possuindo autorização permanente de residência no Brasil, em razão da grave crise humanitária pela qual passa seu país de origem (Síria), situação que o impede de obter os documentos referenciados na inicial (passaporte e antecedentes criminais emitidos no país de origem) e, consequentemente, de pleitear sua naturalização. 3. Importante destacar que a Lei nº 9.474/97, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, em seu art. 43 expressamente prevê que, "no exercício de seus direitos e deveres, a condição atípica dos refugiados deverá ser considerada quando da necessidade da apresentação de documentos emitidos por seus países de origem ou por suas representações diplomáticas e consulares". Nesse sentido, ainda, previa a Portaria MJ nº 1.949/15, vigente quando da propositura desta ação, em seu art. 12 a dispensa dos referidos documentos para os refugiados que venham a requerer sua naturalização. A mesma redação é repetida pela Portaria Interministerial nº 11/18, atualmente vigente. 4. Apelação provida.”

 

Ante o exposto, dou provimento à apelação.

É como voto.



E M E N T A

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PEDIDO DE NATURALIZAÇÃO. RECEBIMENTO E PROCESSAMENTO. PASSAPORTE VÁLIDO E ATESTADO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS EXPEDIDO PELO PAÍS DE ORIGEM. ILEGALIDADE. VIOLAÇÃO À RAZOABILIDADE. SITUAÇÃO DO CASO CONCRETO.

1. As hipóteses de naturalização encontram-se previstos nos artigos 66 a 75 da atual Lei de Migração (Lei 13.445/2017), regulamentada pelo Decreto 9.199/2017, que exige, entre outros requisitos, a apresentação de atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem.

2. A concessão de naturalização, ato discricionário e político do Estado, não se sujeita a controle de mérito. No caso, discute-se a documentação necessária ao recebimento e processamento do pedido, ainda a ser analisado no mérito pela autoridade competente.

3. A decisão de concessão ou não de naturalização é dotada de cunho discricionário e político, cujo mérito é insusceptível de revisão judicial, porém é ilegal, além de violar a razoabilidade, a exigência formal de documentos na situação narrada nos autos.

4. Consta dos autos que o impetrante é natural de Angola, tendo ingressado no Brasil em 11/11/1992, período abrangido pela Guerra Civil Angolana, com graves violações a direitos humanos, ostentando cédula de identidade de estrangeiro expedida em 16/12/2013, com validade até 10/07/2022 e classificação permanente, com amparo na “Resolução NR 06 de 21/08/97 do CNIG/MTB, publicado no D.O.U. de 09/01/2004”.

5. A Portaria Interministerial 11/2018 do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, atualmente vigente, dispõe que os refugiados, asilados políticos e apátridas requerentes de naturalização estão dispensados de apresentar atestado de antecedentes criminais expedido pelo país de origem e certidão ou inscrição consular, emitida por Embaixada ou Consulado no Brasil, comprovando a correta grafia do nome do interessado e de seus genitores (artigo 55).

6. Não obstante a dispensa, o impetrante apresentou ofício do Consulado Geral de Angola em São Paulo, de 07/06/2017, informando que foi oficiado às autoridade angolanas, solicitando certidão de antecedentes criminais do país de origem, sem notícia de resposta até o momento. Ademais, residente no país desde 1992, o impetrante obteve certidão negativa de antecedentes criminais expedida pela Polícia Federal brasileira em 22/05/2017.

7. Dado que a exibição de passaporte válido objetiva a verificação administrativa do correto nome e filiação do estrangeiro, evidencia-se que a existência de outros documentos de igual idoneidade supre a finalidade essencial da exigência, não se justificando que, residente no país há muito no país e admitido como refugiado, seja submetido a procedimento incompatível com o estatuto jurídico que lhe se aplica, segundo a legislação interna e internacional. 

8. Apelação provida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Terceira Turma, por unanimidade, deu provimento à apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.