Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002447-91.2019.4.03.6141

RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA

APELANTE: SONIA MARIA ARANTES

Advogado do(a) APELANTE: CATIA MARINA PIAZZA - SP221942-A

APELADO: UNIÃO FEDERAL

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002447-91.2019.4.03.6141

RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA

APELANTE: SONIA MARIA ARANTES

Advogado do(a) APELANTE: CATIA MARINA PIAZZA - SP221942-A

APELADO: UNIAO FEDERAL

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de ação ordinária, ajuizada por SONIA MARIA ARANTES AGUIAR em face da UNIÃO FEDERAL, objetivando o pagamento de indenização por danos morais no montante de R$ 300.000,00, em razão da separação compulsória, ainda criança, de seus genitores, portadores de hanseníase.

Relata a autora, que seus pais eram pacientes no Sanatório Pirapitingui, em Itu/SP, sendo separada deles logo ao nascer, no dia 18.06.1959, e levada para o Educandário Santa Terezinha, em Carapicuíba/SP, lá permanecendo até 30.04.1974.

Afirma que durante este tempo, “(...) foi vítima de maus-tratos constantes realizados pelas freiras, passou fome, foi tratada como bicho e perdeu o convívio com seus irmãos (...)”.

Aduz que foi privada de um desenvolvimento saudável, em ambiente adequado e acolhedor e a salvo de qualquer forma de agressão, sendo submetida, constantemente, às formas de violência citadas.

Requer o reconhecimento da imprescritibilidade das ações ajuizadas em face de graves violações a direitos fundamentais e requer a condenação da União Federal ao pagamento de indenização por danos morais, em razão dos abusos sofridos e da ausência de formação de vínculos afetivos familiares, decorrentes da separação forçada.

A r. sentença resolveu o mérito da ação, reconhecendo a prescrição, nos termos do artigo 487, II, do CPC, condenando a parte autora no pagamento de honorários advocatícios fixados em 10% do valor da causa atualizado, observando-se a gratuidade processual que a favorece.

Em suas razões de apelo, sustenta, em síntese, a imprescritibilidade do pedido formulado na exordial, haja vista ter sido privada do convívio com os pais, que por serem portadores de hanseníase, foram internados compulsoriamente em hospital colônia, à semelhança das pretensões indenizatórias decorrentes de violações a direitos fundamentais, ocorridas durante o Regime Militar.

Com contrarrazões, subiram os autos a este E. Tribunal.

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5002447-91.2019.4.03.6141

RELATOR: Gab. 14 - DES. FED. MARCELO SARAIVA

APELANTE: SONIA MARIA ARANTES

Advogado do(a) APELANTE: CATIA MARINA PIAZZA - SP221942-A

APELADO: UNIAO FEDERAL

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

A questão cinge-se acerca da condenação da União Federal, ao pagamento de indenização a título de danos morais, em favor da autora, filha de pacientes portadores de hanseníase, afastada compulsoriamente de seus pais, em razão da política sanitária da época.

Em sede de preliminar, passo à análise da prescrição.

Do que se depreende dos autos, resta firmada compreensão de que o pedido formulado não é alcançável pela prescrição, em razão da atipicidade dos fatos, que se situam no patamar de violação a direitos e garantias fundamentais protegidos pela Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

É bem de ver, que tratados internacionais, tais como o Pacto São José da Costa Rica, a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dentre outros, foram recepcionados pelo ordenamento jurídico pátrio.

De se notar, quanto à prescrição, que pacífico é o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça, relativo à imprescritibilidade das ações de reparação de danos decorrentes de violações a direitos fundamentais, ocorridas ao longo do Regime Militar no Brasil.

Nesse sentido:

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. PRETENSÃO DE REINTEGRAÇÃO AO CARGO PÚBLICO, CUJO AFASTAMENTO FOI MOTIVADO POR PERSEGUIÇÃO POLÍTICA. VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. PRISÃO E TORTURA PERPETRADOS DURANTE O REGIME MILITAR. IMPRESCRITIBILIDADE DA AÇÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. Assim sendo, in casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 1973.

II - Trata-se, na origem, de ação ordinária proposta por ex-servidor da Assembleia Legislativa do Paraná buscando sua reintegração ao cargo anteriormente ocupado, além dos efeitos financeiros e funcionais, com fundamento no art. 8º do ADCT e na Lei n. 10.559/02, sob a alegação de que seu desligamento ocorreu em razão de perseguição política, perpetrada na época da ditadura militar.

III - A Constituição da República não prevê lapso prescricional ao direito de agir quando se trata de defender o direito inalienável à dignidade humana, sobretudo quando violada durante o período do regime de exceção.

IV - Este Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de ser imprescritível a reparação de danos, material e/ou moral, decorrentes de violação de direitos fundamentais perpetrada durante o regime militar, período de supressão das liberdades públicas.

V - A 1ª Seção desta Corte, ao julgar EREsp 816.209/RJ, de Relatoria da Ministra Eliana Calmon, afastou expressamente a tese de que a imprescritibilidade, nesse tipo de ação, alcançaria apenas os pleitos por dano moral, invocando exatamente a natureza fundamental do direito protegido para estender a imprescritibilidade também às ações por danos patrimoniais, o que deve ocorrer, do mesmo modo, em relação aos pleitos de reintegração a cargo público.

VI - O retorno ao serviço público, nessa perspectiva, corresponde a reparação intimamente ligada ao princípio da dignidade humana, porquanto o trabalho representa uma das expressões mais relevantes do ser humano, sem o qual o indivíduo é privado do exercício amplo dos demais direitos constitucionalmente garantidos.

VII - A imprescritibilidade da ação que visa reparar danos provocados pelos atos de exceção não implica no afastamento da prescrição quinquenal sobre as parcelas eventualmente devidas ao Autor. Não se deve confundir imprescritibilidade da ação de reintegração com imprescritibilidade dos efeitos patrimoniais e funcionais dela decorrentes, sob pena de prestigiar a inércia do Autor, o qual poderia ter buscado seu direito desde a publicação da Constituição da República.

VIII - Recurso especial provido.

(REsp 1565166/PR, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, 1ª Turma, DJe 02/08/2018)

Segue jurisprudência desta E. Corte, verbis:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FILHOS DE PACIENTES COM HANSENÍASE INTERNADOS COMPULSORIAMENTE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. IMPRESCRITIBILIDADE. VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ABALO PSICOLÓGICO VERIFICADO. PRIVAÇÃO DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

1. A questão posta nos autos diz respeito à possibilidade de condenação da União Federal em indenização por danos morais em favor de filho de pacientes portadores de hanseníase, afastado compulsoriamente de seus pais, em razão da política sanitária da época.

2. Em análise de prescrição, destaca-se ser amplamente aceita nos Tribunais Superiores a tese de imprescritibilidade das pretensões indenizatórias decorrentes de violações a direitos fundamentais ocorridas ao longo do Regime Militar no Brasil. Precedentes: REsp 1565166/PR, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26/06/2018, DJe 02/08/2018; AgInt no REsp 1648124/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 23/11/2018;AgRg no AREsp 701.444/RS, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/08/2015, DJe 27/08/2015.

3. Observa-se que, conforme grifamos, essa orientação jurídica não se limita apenas aos casos específicos que remetem à Ditadura Militar no Brasil, mas, uma vez amparada na lógica de que não se pode admitir que o decurso do tempo legitime a violação de um direito fundamental, deve ser estendida a todos os casos que igualmente ofendam nessa intensidade a dignidade da pessoa humana.

4. A compreensão axiológica dos direitos fundamentais não cabe na estreiteza das regras do processo clássico, demandando largueza intelectual que lhes possa reconhecer a máxima efetividade possível.

5. É juridicamente sustentável afirmar, portanto, que a imprescritibilidade dos direitos fundamentais, especialmente a dignidade da pessoa humana, somente será garantida quando assegurar-se também imprescritibilidade dos meios disponíveis a sua proteção. 6. Nos cenários típicos de graves violações perpetradas pelo Estado contra uma coletividade de pessoas, o decurso do tempo atua justamente para que seja possível vislumbrar posteriormente, à luz do distanciamento dos fatos, algumas atrocidades cuja percepção era dificultada pelo contexto histórico vigente à época de seu cometimento.

7. Afasta-se o reconhecimento da ocorrência de prescrição ante o acolhimento da tese de imprescritibilidade da presente demanda.

8. Quanto ao mérito propriamente dito, o cerne da discussão recai sobre o tema da responsabilidade civil do Estado, de modo que se fazem pertinentes algumas considerações doutrinárias e jurisprudenciais.

9. São elementos da responsabilidade civil a ação ou omissão do agente, a culpa, o nexo causal e o dano, do qual surge o dever de indenizar. No direito brasileiro, a responsabilidade civil do Estado é, em regra, objetiva, isto é, prescinde da comprovação de culpa do agente, bastando-se que se comprove o nexo causal entre a conduta do agente e o dano. Está consagrada na norma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. 10. No caso dos autos, trata-se de evidente conduta comissiva consubstanciada na separação compulsória entre pais e filho.

11. É certo que a Lei 610/1949 fixou normas para a profilaxia da hanseníase, dentre elas, o tratamento obrigatório mediante isolamento compulsório dos doentes contagiantes. Igualmente, restou estabelecido que todo recém-nascido filho de portadores de hanseníase seria compulsoriamente e imediatamente afastado da convivência com os pais.

12. Contudo, o mero fato da conduta danosa estar amparada pela legislação vigente à época não é suficiente para excluir a responsabilidade do Estado pela adoção de uma política governamental sanitária desumana.

13. Com o advento da Lei 11.520/2007, a própria União Federal assumiu sua responsabilidade e reconheceu o direito à concessão de pensão especial para as pessoas que foram submetidas à mencionada política sanitária segregacionista. Entretanto, o diploma legal não esgota todas as alternativas de reparação, e nem ampara os familiares das pessoas isoladas, que, especialmente no caso dos filhos, igualmente sofreram as mazelas da segregação, ainda que na condição de internos em educandários.

14. Assim, se o próprio Estado reconhece o direito de pensionamento às pessoas atingidas pela doença, exsurge, como corolário, assegurar-se aos filhos o pagamento de indenizações por dano moral.

15. Acerca do dano moral a doutrina o conceitua como "dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral , porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. (Cavalieri, Sérgio. responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 549)".

16. O demandante juntou diversos documentos comprobatórios da internação compulsória de seus pais para tratamento de hanseníase (ID 5345936, 5345937), da separação compulsória após seu nascimento (ID 5345938, 5345939, 5345940), de sua internação no educandário (ID 5345942, 5345943, 5345944) e até da proibição de visita aos seus pais (ID 534546).

17. Inquestionável, portanto, o abalo psicológico daqueles que tiveram sua infância e juventude interrompida por separações traumáticas para viver o sentimento de abandono e a privação do convívio familiar. Casos como o presente caracterizam a típica situação de dano moral in re ipsa, nos quais a mera comprovação fática do acontecimento gera um constrangimento presumido, capaz de ensejar indenização.

18. Com base no precedente citado, nas particularidades do caso, e na extensão do dano que marcou o autor por toda sua vida, fixo indenização por danos morais em R$ 200.000,00, com incidência de correção monetária nos termos da Súmula 362 do STJ, e juros de mora a partir da citação, conforme entendimento do C. STJ para as hipóteses de reparação a violações a direitos fundamentais ocorridas durante o Regime Militar.

19. Fixa-se a verba honorária em 10% sobre o valor da condenação, nos termos do art. 85, §3º, I, do atual CPC.

20. Apelação parcialmente provida para condenar a União Federal ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 200.000,00.

(TRF 3ª Região, 3ª Turma,  ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5002761-40.2018.4.03.6119, Rel. Desembargador Federal ANTONIO CARLOS CEDENHO, julgado em 14/06/2019, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 19/06/2019).

Vale ressaltar, que o disposto no Decreto n° 20.910/1932, atinge situações de normalidade, e não àquelas que correspondem a violações de direitos e garantias fundamentais, protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Carta Magna.

É inadmissível, que o mero transcurso do lapso temporal, simplesmente faça desaparecer, as dores que ficam na memória de quem sofreu as violações impostas à autora.

Assim, considero imprescritível a ação, em caso, como o dos presentes autos.

Superada à questão preliminar, passo à análise do mérito propriamente dito, em conformidade com a teoria da causa madura, considerando que o feito está devidamente instruído.

A responsabilidade objetiva do Estado está estampada no artigo 37, §6º da Constituição Federal e, na forma do texto constitucional, o Estado e a pessoa jurídica de direito privado prestadora do serviço respondem a terceiros pelo dano causado, independente de dolo ou culpa.

O trecho extraído do voto do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário nº. 109.615, ilustra com clareza a norma do referido artigo:

"A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal." (RE 109615, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 28/05/1996, DJ 02-08-1996 PP-25785 EMENT VOL-01835-01 PP-00081)

O Decreto nº 16.300 de 31 de dezembro de 1923 aprovou o regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública, estabelecendo a profilaxia especial da lepra, determinando o isolamento das pessoas com hanseníase em sanatórios, hospitais, asilos e colônias agrícolas, impondo que “(...) as crianças que moravam junto com aqueles que tinham hanseníase e que não eram sujeitados a isolamento em instituição pública seriam submetidas à intensa vigilância durante o período escolar e, se apresentassem qualquer suspeita da doença, não poderiam frequentar o mesmo local de outras crianças saudáveis (...)”.

Aqui, não há como negar o trauma e a “marca” que tais crianças e adolescentes carregavam, pois, mesmo que saudáveis, eram acompanhadas rigorosamente pelos agentes responsáveis. Já aquelas que eram isoladas em instituições, o estigma carregado era ainda mais presente, visto que nem ao menos era possível o convívio com outras crianças, que não apresentavam o mesmo histórico familiar.

In casu, resta comprovada severa ofensa aos direitos de personalidade da autora, vitimada pela legislação vigente à época, que adotava a política de isolamento compulsório de doentes acometidos pela hanseníase e a separação dos filhos dessas pessoas, ocorrido entre os anos de 1923 e 1986, com fundamento no Decreto 16.300/1923 e na Lei nº 610/1949.

A separação de seus pais ocorreu logo após o nascimento, sendo impedida de receber qualquer manifestação de carinho, muito menos desfrutar do período de amamentação, em que pese a importância incomparável do laço afetivo advindo desta convivência, sendo levada para o Educandário Santa Terezinha e lá mantida sob a tutela do Estado.

De rigor anotar, que com o advento da Lei 11.520/2007, a própria União Federal assumiu sua responsabilidade e reconheceu o direito à concessão de pensão especial para as pessoas que foram submetidas à mencionada política sanitária segregacionista.

Entretanto, o diploma legal não esgota todas as alternativas de reparação, e nem ampara os familiares das pessoas isoladas, que, especialmente no caso dos filhos, igualmente sofreram as mazelas da segregação, ainda que na condição de internos em educandários.

Assim, se o próprio Estado reconhece o direito de pensionamento às pessoas atingidas pela doença, de rigor assegurar, aos filhos, o pagamento de indenizações por dano moral.

Quanto ao valor a ser arbitrado, a fixação de montante em pecúnia é forma de se tentar minorar a contrariedade vivenciada, o qual deve ser compatível à extensão do dano causado, ao abalo psíquico suportado, sem dar ensejo ao enriquecimento sem causa, bem como ostentar feitio de reprimenda ao responsável pela ocorrência fática, para que em tal conduta não venha a reincidir, devendo ser de igual modo ponderada à situação econômica de ambas as partes.

O sofrimento experenciado pela autora, afetou sobremaneira sua dignidade e seus direitos como ser humano.

Portanto, com base nas particularidades do caso, e na extensão do dano que marcou a apelante por toda sua vida, fixo indenização por danos morais em R$ 200.000,00, com incidência de correção monetária nos termos da Súmula 362 do STJ, e juros de mora a partir da citação, conforme entendimento do C. STJ para as hipóteses de reparação a violações a direitos fundamentais ocorridas durante o Regime Militar.

Ante o exposto, dou parcial provimento ao apelo, para afastar a prescrição e condenar a União Federal ao pagamento de indenização à autora, no montante de R$ 200.000,00, nos termos da fundamentação.

Impõe-se, portanto, o acolhimento da pretensão recursal e, consequentemente, a inversão do ônus da sucumbência, devendo a ré ser condenada a pagar honorários advocatícios, que mantenho no montante arbitrado pelo r. Juízo de piso.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. FILHOS DE PACIENTES COM HANSENÍASE INTERNADOS COMPULSORIAMENTE. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. IMPRESCRITIBILIDADE. VIOLAÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRIVAÇÃO DE CONVIVÊNCIA FAMILIAR. TEORIA DA CAUSA MADURA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

1. A questão cinge-se acerca da condenação da União Federal, ao pagamento de indenização a título de danos morais, em favor da autora, filha de pacientes portadores de hanseníase, afastada compulsoriamente de seus pais, em razão da política sanitária da época.

2. Do que se depreende dos autos, resta firmada compreensão de que o pedido formulado não é alcançável pela prescrição, em razão da atipicidade dos fatos, que se situam no patamar de violação a direitos e garantias fundamentais protegidos pela Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

3. É bem de ver, que tratados internacionais, tais como o Pacto São José da Costa Rica, a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dentre outros, foram recepcionados pelo ordenamento jurídico pátrio.

4. De se notar, quanto à prescrição, que pacífico é o entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça, relativo à imprescritibilidade das ações de reparação de danos decorrentes de violações a direitos fundamentais, ocorridas ao longo do Regime Militar no Brasil.

5. Superada à questão preliminar, passo à análise do mérito propriamente dito, em conformidade com a teoria da causa madura, considerando que o feito está devidamente instruído.

6. A responsabilidade objetiva do Estado está estampada no artigo 37, §6º da Constituição Federal e, na forma do texto constitucional, o Estado e a pessoa jurídica de direito privado prestadora do serviço respondem a terceiros pelo dano causado, independente de dolo ou culpa.

7. O Decreto nº 16.300 de 31 de dezembro de 1923 aprovou o regulamento do Departamento Nacional de Saúde Pública, estabelecendo a profilaxia especial da lepra, determinando o isolamento das pessoas com hanseníase em sanatórios, hospitais, asilos e colônias agrícolas.

8. As crianças e adolescentes, mesmo que saudáveis, eram acompanhadas rigorosamente pelos agentes responsáveis. Já aquelas que eram isoladas em instituições, carregavam estigma ainda mais presente, visto que nem ao menos era possível o convívio com outras crianças, que não apresentavam o mesmo histórico familiar.

9. In casu, resta comprovada severa ofensa aos direitos de personalidade da autora, vitimada pela legislação vigente à época, que adotava a política de isolamento compulsório de doentes acometidos pela hanseníase e a separação dos filhos dessas pessoas, ocorrido entre os anos de 1923 e 1986, com fundamento no Decreto 16.300/1923 e na Lei nº 610/1949.

10. De rigor anotar, que com o advento da Lei 11.520/2007, a própria União Federal assumiu sua responsabilidade e reconheceu o direito à concessão de pensão especial para as pessoas que foram submetidas à mencionada política sanitária segregacionista.

11. Entretanto, o diploma legal não esgota todas as alternativas de reparação, e nem ampara os familiares das pessoas isoladas, que, especialmente no caso dos filhos, igualmente sofreram as mazelas da segregação, ainda que na condição de internos em educandários.

12. Assim, se o próprio Estado reconhece o direito de pensionamento às pessoas atingidas pela doença, de rigor assegurar, aos filhos, o pagamento de indenizações por dano moral.

13. Portanto, com base nas particularidades do caso, e na extensão do dano que marcou a apelante por toda sua vida, fixo indenização por danos morais em R$ 200.000,00, com incidência de correção monetária nos termos da Súmula 362 do STJ, e juros de mora a partir da citação, conforme entendimento do C. STJ para as hipóteses de reparação a violações a direitos fundamentais ocorridas durante o Regime Militar.

14. Apelo parcialmente provido.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quarta Turma, à unanimidade, decidiu dar parcial provimento ao apelo, nos termos do voto do Des. Fed. MARCELO SARAIVA (Relator), com quem votaram os Des. Fed. ANDRÉ NABARRETE e MÔNICA NOBRE. Ausente, justificadamente, a Des. Fed. MARLI FERREIRA, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.