Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5015156-20.2020.4.03.0000

RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO

AGRAVANTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

AGRAVADO: IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICORDIA DE ARARAS

Advogado do(a) AGRAVADO: CAMILA NAVA AGUIAR - SP354816-N

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5015156-20.2020.4.03.0000

RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO

AGRAVANTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

 

AGRAVADO: IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICORDIA DE ARARAS

Advogado do(a) AGRAVADO: CAMILA NAVA AGUIAR - SP354816-N

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

 

O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FRANCISCO: Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por CAIXA ECONÔMICA FEDERAL contra decisão proferida nos autos da ação revisional que lhe é movida pela IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICORDIA DE ARARAS.

A decisão agravada foi proferida nos seguintes termos:

“Trata-se de ação ajuizada pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Araras em desfavor da Caixa Econômica Federal na qual se requer a liberação de garantia oferecida em financiamento pactuado entre as partes.

A autora alega que: celebrou dois contratos de empréstimo com a ré nos valores de R$ 7.400.000,00 e R$ 21.142.603,40, com previsão de amortizações mensais, respectivamente, de R$ 170.893,61 e R$ 316.807,22; foi oferecida como garantia a retenção de duas parcelas mensais de cada contrato, que totaliza R$ 986.204,77; o cenário atual, considerando os efeitos da pandemia gerada pelo novo coronavírus, impõe a revisão contratual e a consequente liberação desse valor retido a fim de que possa direcioná-lo para a compra de insumos hospitalares, EPI´s, equipamentos e testes para Covid-19.

Em tutela de urgência, requer a liberação da garantia de R$ 986.204,77.

Requer, por fim, a concessão dos benefícios da justiça gratuita e a confirmação da tutela de urgência (Id 30980049 e Id 31123711).

Foram concedidos os benefícios da gratuidade da justiça (Id 31583963).

Além disso, foi oportunizado à ré que, antes da análise do pedido de tutela de urgência, fosse oferecida proposta de acordo e apresentada defesa prévia (Id 31583963).

Em sua manifestação, a instituição financeira demonstra resistência à pretensão da autora, defendendo que não estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência. Segundo alega, ainda que a pandemia da Covid-19 possa configurar, em tese, caso fortuito ou força maior, tal fato jurídico não tem o condão de macular as obrigações livremente pactuadas entre as partes (Id 32037252).

2 – FUNDAMENTAÇÃO

A concessão da tutela de urgência exige que estejam presentes elementos que evidenciem a probabilidade do direito e perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo (art. 300 do Código de Processo Civil). E, sendo tutela de caráter antecipatório, não pode ser concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão (art. 300, § 3º, do Código de Processo Civil).

 

2.1 – Probabilidade do direito

2.1.1 – Operação de crédito e garantias prestadas

 

A operação de crédito realizada entre as partes foi formalizada a partir da emissão de cédula de crédito bancário, instrumento que possui natureza de título de crédito e que pode ser emitido com ou sem a prestação de garantia (arts. 26 e 27 da Lei nº. 10.931/04), já tendo o Superior Tribunal de Justiça fixado em precedente de observância obrigatória (Tema Repetitivo 576) a sua força como título executivo extrajudicial.

No caso dos autos foram emitidas duas cédulas em 14 de novembro de 2019: uma no valor de R$ 7.400.000,00, sem destinação específica (Id 32037268), e uma no valor de R$ 21.142.603,40, visando a reestruturação financeira da entidade autora, que lhe impede, por exemplo, de contrair novas dívidas sem prévia anuência da Caixa Econômica Federal (Id 32037272, com obrigação especial descrita no item 13, fl. 03).

Os recursos foram liberados em conta de livre movimentação da autora (cláusula quinta), sendo que a amortização vem se dando mensalmente nos valores de R$ 170.893,61 e R$ 316.807,22 (cláusula sétima).

Segundo informação prestada pela ré, a autora vem adimplindo a contento as obrigações pactuadas (Id 32037252, fl. 04).

Em ambas as cédulas de crédito foram prestadas as seguintes garantias: a) cessão de recebíveis do Ministério da Saúde, em decorrência da prestação de serviços pela autora ao Sistema Único de Saúde (cláusula nona); b) cessão de recebíveis de planos de saúde (cláusula décima quarta); e c) aplicação financeira em renda fixa, equivalente a duas parcelas mensais de cada cédula de crédito (cláusula décima sexta).

Por meio da primeira garantia descrita, os valores que a autora receberia do Ministério da Saúde são transferidos diretamente para a instituição financeira para amortização do empréstimo. Na petição inicial foram inseridas duas imagens que demonstram a transferência direta das duas parcelas do mês de abril (Id 30980049, fls. 09-10). Verifica-se, pois, que as duas parcelas do último mês foram pagas integralmente com os recursos oriundos do Ministério da Saúde.

A terceira garantia referida, que é objeto dos autos, constitui na retenção em aplicação financeira do valor correspondente a duas parcelas mensais de cada cédula de crédito, duas vezes R$ 170.893,61 e duas vezes R$ 316.807,22, que totaliza o montante de R$ 975.401,66. Tal valor, com seus rendimentos, deve permanecer bloqueado até a data da total liquidação da dívida (parágrafo segundo da cláusula décima sexta). A autora apresentou extrato datado de 02 de abril de 2020 em que demonstra a existência de saldo bloqueado no valor de R$ 986.204,77 (Id 30980049, fls. 08). Sua pretensão nesta ação refere-se à liberação desse numerário, pois, a seu ver, haveria um excesso de garantias.

2.1.2 – Excesso de garantia e revisão judicial

Apesar de a operação de crédito ter sido concretizada por meio de cédula de crédito bancário, que, como visto, possui natureza jurídica de título de crédito, passo a analisar a postulação da autora sob a ótica do direito contratual, que possui institutos mais sólidos para avaliar a (in)subsistência de garantias prestadas em atos privados.

A liberdade contratual (art. 421 do Código Civil) corresponde a uma das principais manifestações do princípio geral da liberdade (art. 5º, caput, da Constituição Federal). É porque o ser humano é livre que ele decide se celebra ou não determinado contrato e, ao celebrar o contrato, ele também decide o que vai ou não constar nesse contrato.

Ao regular o modo de circulação da propriedade, os contratos têm como principal finalidade conferir segurança às relações comerciais. Os riscos na concretização de determinado negócio jurídico são assumidos a partir e em razão do denominador comum a que se chegou com a negociação. Se não houvesse, por exemplo, a prestação de determinada garantia, não se pode dizer que teria havido a celebração do contrato. Daí a importância de se seguir à risca o que restou pactuado, sendo de todos conhecida a máxima de que o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda).

Sabe-se, porém, que, ao longo dos anos, a realidade concreta vem impondo limitações a essa estrutura, havendo hoje um sem número de normas que impõem diversas restrições ao exercício da liberdade contratual, podendo-se citar duas das mais representativas, que são a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº. 5.452/43) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 8.078/90). O estágio civilizacional atual não admite a “livre” pactuação de um contrato de trabalho que reduza o trabalhador a situação análoga à de um escravo.

Tratando das relações civis, que é espécie de relação privada travada entre as partes, destaco dispositivo do Código Civil brasileiro (Lei nº. 10.406/02) que estabelece que a liberdade contratual deve ser “exercida nos limites da função social do contrato” (art. 421). Se antes já se falava em função social da propriedade (art. 2º do Estatuto da Terra – Lei nº. 4.504/64 e art. 5º, XXIII, da Constituição Federal), passou-se a se falar também em função social dos contratos.

Diante dessa diretriz social, torna-se indispensável destacar o objeto do contrato discutido nos autos: um empréstimo realizado por uma empresa pública, cuja existência é justificada por relevante interesse coletivo (art. 173 da Constituição Federal), a uma entidade filantrópica participante do Sistema Único de Saúde (SUS) (art. 199, § 1º, da Constituição Federal). 

Após estabelecer que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” (art. 196), a Constituição Federal prevê que as ações e serviços públicos de saúde devem integram uma rede regionalizada e hierarquizada, constituindo um sistema único, o SUS (art. 198). E, sendo facultada a participação de instituições privadas, deve-se dar preferência nessa atuação complementar a entidades filantrópicas e sem fins lucrativos (art. 199, § 1º). A situação da autora é justamente esta, assim como a de tantas outras santas casas existentes no país.

A essas entidades são garantidos diversos benefícios pela ordem jurídica, cabendo destaque a imunidade à incidência de impostos e de contribuições à seguridade social (art. 150, VI, “c”, e art. 195, § 7º, da Constituição Federal). Há aqui não um privilégio, mas um reconhecimento da utilidade pública dos serviços prestados e um incentivo estatal para que tais entidades não tenham suas atividades embaraçadas por obrigações tributárias.

Resta claro, portanto, que, apesar de se tratar de um empréstimo pactuado entre duas pessoas jurídicas de direito privado, não se está aqui diante de um contrato tipicamente empresarial, caracterizado que é pelo fato de ambos os polos da relação terem finalidade lucrativa. Está-se sim diante de um contrato civil pactuado por uma associação benemérita que, em complemento à atuação estatal, presta serviço relacionado ao direito fundamental à saúde (art. 6º da Constituição Federal).

Essa situação peculiar das partes não se mostra suficiente, por si, para que se proceda à revisão da garantia prestada nas cédulas de crédito bancários. Pressupõe-se que a instituição financeira tenha exigido as garantias descritas para cobrir o risco do negócio.

Tenho, porém, que essa situação de equilíbrio existente no momento da contratação merece ser reanalisada em razão da pandemia gerada pela Covid-19.

Miguel Reale, que foi o Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, esclarece ser o sentido social uma das características mais marcantes do Código Civil de 2002, havendo “maior aderência à realidade contemporânea, com a necessária revisão dos direitos e deveres dos cinco principais personagens do Direito Privado tradicional: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de família e o testador.” Segundo ele, o “empenho foi no sentido de situar tais direitos e deveres no contexto da nova sociedade que emergiu de duas guerras universais, bem como da revolução tecnológica e da emancipação plena da mulher.” (In: Visão Geral do Projeto de Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm >).

Não me parece exagerada a comparação do momento atual com o de uma guerra universal, tanto pelas consequências geradas sobre as vidas humanas, quanto pelos efeitos econômicos decorrentes da retração na circulação de bens e na prestação de serviços. Em momentos como o esse, a manutenção do pacto social exige uma reformulação das funções desempenhadas por cada um dos atores. Se até pouco tempo instituições financeiras como a ré direcionavam vultosos recursos para viabilizar a construção de estádios de futebol, hoje, com estádios vazios e a carência de vagas em hospitais, é imperativo que haja uma mudança de rota.

O ideal seria que as próprias partes repactuassem os termos contratados para que a autora pudesse ter acesso imediato aos recursos bloqueados. Porém, frustrada a tentativa de autocomposição (Id 31583963 e Id 32037252), mostra-se necessária a intervenção judicial.

Ao que tudo indica, a liberação do numerário não causará prejuízo imediato à instituição financeira, pois, como visto, a amortização do empréstimo continuará se dando normalmente através dos recebíveis do Ministério da Saúde. Por outro lado, o acesso da autora a esse montante neste momento de pandemia tende a gerar benefícios incalculáveis para a coletividade, tendo em vista suas finalidades institucionais.

Inegavelmente, haverá um desequilíbrio a respeito do que foi considerado inicialmente pelas partes. Esse desequilíbrio, porém, já é real no presente momento, independentemente da intervenção judicial ora empreendida. Desde a celebração do negócio, datada de novembro de 2019, a realidade financeira e operacional da ré já vem sofrendo mudanças bruscas, bastando pensar na verdadeira operação de guerra (não há outra palavra...) montada para realizar o pagamento do auxílio emergencial a dezenas de milhões de brasileiros.

Reconheço que há neste pronunciamento evidente cunho moral, não sendo recomendado que decisões judiciais sejam fundados em aspectos morais outros que não os plasmados na ordem jurídica. Ressalto, porém, que essa abertura me é concedida pelo próprio sistema quando estabelece que a “liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato” (art. 420 do Código Civil). Conforme lição de Maria Helena Diniz, “o órgão judicante, ante o caso sub judice, para delimitar a função social do contrato, poderá fazer aferições valorativas de ordem social, jurídica, moral ou econômica” (In: Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 365).

Registro, por fim, que esta decisão se insere na previsão de que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada” (art. 421-A, III, do Código Civil). No caso em análise, reputo que a intervenção é limitada, já que incide sobre uma única garantia, e excepcional, já que justificada pela situação de pandemia.

2.2 – Perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo

Apesar da alegação da ré no sentido de que a pretensão deduzida na inicial “não traz qualquer fato concreto que justifique o perigo da demora ao resultado útil do processo” (Id 32037252, fl. 06), considero notória a urgência da medida pleiteada (art. 374, I, do Código de Processo Civil).

Dois fatos recentes evidenciam a necessidade premente de recursos por parte da autora para enfrentamento da pandemia da Covid-19.

A Lei nº. 13.995, editada em 05 de maio de 2020, previu a liberação de um montante emergencial de até R$ 2.000.000.000,00 às santas casas e hospitais filantrópicos, sem fins lucrativos, que participam de forma complementar do SUS para o controle do avanço da Covid-19.

Além disso, destaco notícia extraída do endereço eletrônico da autora que informa a existência de campanha endossada pelo Rotary Club de Araras Alvorada em busca de doações para a aquisição de 12 novos leitos de unidade de terapia intensiva (UTI), sendo estabelecido como meta a arrecadação de R$ 110.000,00 para cada novo leito (<https://iscma.com.br/2020/03/20/doacao-a-santa-casa-de-araras/>). No endereço eletrônico onde estão sendo centralizadas as doações, verifico que já foram arrecadados mais de R$ 50.000,00 (<https://abacashi.com/p/novo-leito-de-uti-para-a-santa-casa-de-araras>).

2.3 – Reversibilidade dos efeitos da decisão

Caso ao fim da instrução processual se chegue a conclusão que leve à revogação da tutela antecipada aqui concedida, a liberação do dinheiro neste momento, pela sua própria natureza, mostra-se plenamente reversível, já que intrinsecamente compatível com a indenização por perdas e danos (art. 302 do Código de Processo Civil).

A propósito, ao defender a possibilidade de se conceder tutela antecipada de soma em dinheiro, Luiz Guilherme Marinoni ilustra seu raciocínio justamente com um julgado de uma corte italiana que, nos idos de 1982, admitiu a “antecipação de pagamento de soma em favor de um hospital que necessitava imediatamente do dinheiro para não interromper suas atividades.” (In: Tutela de urgência e tutela da evidência; soluções processuais diante do tempo da justiça. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 112, nota 104, apud, Pret. Roma, 15.12.82, Temi Romana, 1982, p. 637).

3 – DISPOSITIVO

Ante o exposto, concedo a tutela de urgência para determinar à instituição financeira ré que, no prazo de 2 dias, promova em favor da autora a liberação dos recursos bloqueados em razão de previsão contida na cláusula décima sexta das Cédulas de Crédito Bancário nº. 0535576-90 e nº. 0535592-93.

Fica a autora advertida que, na forma do art. 3º da Lei nº. 13.995/20, a integralidade dos recursos deverá ser, obrigatoriamente, aplicada na aquisição de medicamentos, de suprimentos, de insumos e de produtos hospitalares para o atendimento adequado à população, na aquisição de equipamentos e na realização de pequenas reformas e adaptações físicas para aumento da oferta de leitos de terapia intensiva, bem como no respaldo ao aumento de gastos que terá com a definição de protocolos assistenciais específicos para enfrentar a pandemia da Covid-19 e com a contratação e o pagamento dos profissionais de saúde necessários para atender à demanda adicional.

Oficie-se ao Fundo de Saúde do Município de Araras, com cópia desta decisão, para ciência e exercício das funções fiscalizatórias que foram cabíveis, considerada a natureza da verba envolvida, devendo-se aplicar, também no que couber, o disposto no art. 3º, parágrafo único, da Lei nº. 13.995/20.

Oficiem-se aos membros do Conselho Fiscal da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Araras, com cópia desta decisão, para ciência e exercício das competências estatutárias (art. 35 do Estatuto).

Intimem-se as partes, abrindo-se ao réu o prazo de 15 dias para o oferecimento de contestação (art. 335 do Código de Processo Civil).”

Alega a agravante, em síntese, que toda e qualquer garantia tem por fundamento o risco do negócio, de modo que a sua supressão agrava o risco inicialmente assumido por uma das partes. Ressalta que a quebra de garantia pode culminar no vencimento antecipado da dívida, conforme entabulado entre as partes. Pondera que a grave crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19 fundamenta a existência e incremento das garantias, que servem precisamente para proteger o capital mutuado de eventualidades que possam gerar à inadimplência do devedor. Destaca também que eventual levantamento dos recursos pela parte agravada indica a irreversibilidade da medida, visto que se a alegação da agravada é de insolvência, sendo certo que que não poderá restituir ou complementar a garantia quebrada. Ressalta que se trata de operação que envolve cifras milionárias, realizada com recursos provenientes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, patrimônio de interesse público.  Esclarece que, embora da mesma linha, os contratos pactuados são de modalidades diferentes: I) CCB 0535576-90, no valor de R$7.400.000,00: Contrato de Capital de Giro sem destinação específica; II) CCB 0535592-93 no valor de R$21.142.603,40: Contrato de Reestruturação financeira (modalidade contratual que deverá ser integralmente utilizada para liquidação/amortização do passivo bancário na CAIXA ou em outra(s) Instituições Financeiras, não sendo objeto de pagamento de dívidas de credores não bancários, e não sendo possível haver liberação de novos recursos à entidade). As garantias em ambas as concessões são idênticas: a) cessão fiduciária de direitos creditórios referente aos recebíveis junto ao Ministério da Saúde, em decorrência da prestação de serviços pela agravada junto ao SUS (equivalente a 01 parcela mensal de cada contrato avençado); b) cessão fiduciária de direitos creditórios de recebíveis de planos de saúde (equivalentes a 02 parcelas mensais de cada contrato avençado); e c) cessão fiduciária de direitos creditórios (aplicação financeira em renda fixa, equivalente a 02 parcelas mensais de cada contrato avençado). A terceira garantia consta na CLÁUSULA DÉCIMA SEXTA de cada um dos contratos.  Informa, ainda, que ambos os contratos encontram-se adimplentes, com os seguintes saldos devedores em 30/04/2020: contrato 0535576-90: R$ 6.931.039,39. contrato 0535592-93: R$ 20.676.651,30.  Sustenta a ausência dos requisitos para a concessão de tutela antecipada.  Entre outros argumentos, afirma que muito embora a parte autora alegue na exordial que precise fazer frente a despesas para enfrentamento da pandemia de COVID-19, não traz qualquer elemento concreto que demonstre tal necessidade, nem qualitativo nem quantitativo, não havendo sequer projeção de gastos e orçamentos, ou demonstração do impacto que o valor cuja liberação é pretendida iria gerar no orçamento da entidade autora ou de que tais valores não poderiam ser obtidos por outros meios.  No entendimento da agravante,  a alegação da parte autora de que a pandemia de COVID-19 configura caso fortuito ou força maior é inócua, na medida em que não se faz nenhuma correlação entre tal fato e a suposta impossibilidade de manter a garantia vinculada aos contratos objeto da ação. Ressalta que a agravante,  enquanto instituição financeira, também é impactada pela pandemia, visto que o índice de inadimplência dos contratos tende a aumentar, o que reforça ainda mais a necessidade das garantias.  A manutenção da tutela deferida na decisão agravada importaria em transferir à CEF e ao FGTS o ônus pela manutenção da saúde pública, desvirtuando a obrigação contratual legalmente estabelecida e incorrendo em quebra da sinalagma obrigacional. Alega, ainda, que as cláusulas contratuais não se tornam abusivas por fatos posteriores, sendo a legalidade do contrato é aferida no momento da celebração.

Recebidos os autos por este Relator, foi proferida decisão que indeferiu o pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso.

Contra tal decisão, a parte agravante interpôs agravo interno (Id. 139115088).

Não foram apresentadas contrarrazões.

É o relatório.

 

 


AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5015156-20.2020.4.03.0000

RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO

AGRAVANTE: CAIXA ECONOMICA FEDERAL

 

AGRAVADO: IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICORDIA DE ARARAS

Advogado do(a) AGRAVADO: CAMILA NAVA AGUIAR - SP354816-N

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FRANCISCO:  

Na ausência de novos argumentos no agravo interno (art. 1.021 do CPC), embutindo questões relativas ao mérito do agravo de instrumento, fica tal recurso prejudicado pela apresentação do feito para julgamento colegiado.

No presente caso, nenhuma das partes trouxe qualquer argumento apto a infirmar o entendimento já manifestado por ocasião da apreciação do pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso.

Passo a transcrever os fundamentos da decisão acima mencionada, por mim lavrada:

 

“Inicialmente, lembro que contrato é um negócio jurídico bilateral na medida em que retrata o acordo de vontades com o fim de criar, modificar ou extinguir direitos, gerando obrigações aos envolvidos; vale dizer, o contrato estabelece relação jurídica entre credor e devedor, podendo aquele exigir o cumprimento da prestação por este assumida.

Há dois vetores que norteiam as relações contratuais: o primeiro é autonomia de vontade, que confere às partes liberdade para estabelecer ou não avenças, fixando seu conteúdo desde que em harmonia com as leis e a ordem pública; o segundo é obrigatoriedade, pois uma vez firmado o acordo de vontades, as partes devem cumprir o contratado (primado “pacta sunt servanda”), garantidor da seriedade e da segurança jurídica. Qualquer alteração do contrato deverá ocorrer de forma voluntária e bilateral, salvo em casos como mudanças decorrentes de atos normativos supervenientes (cuja eficácia se viabilize sem prejuízo ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido) ou situações imprevistas e extraordinárias que alterem o equilíbrio do que foi pactuado.

A situação trazida aos autos, contudo, exige maiores ponderações.

Como ressaltado na decisão agravada, não se está diante de um contrato comercial, em que ambos os polos da relação possuem finalidade lucrativa. Em verdade, trata-se de contrato civil pactuado por uma associação benemérita, sem vocação lucrativa, prestadora de serviço relacionado ao direito fundamental à saúde.

Além disso, é certamente emergente e preocupante a situação enfrentada no Brasil diante do avanço da pandemia causada pelo COVID-19, com inegáveis prejuízos nas esferas de particulares e de entes estatais, sobretudo com danos humanitários expressivos. Sociedade e Estado têm interesses e deveres jurídicos convergentes nesse contexto de emergência, uma vez que a solidariedade emerge como primado do sistema jurídico brasileiro (art. 3º, I, da Constituição da República), realçada nesse período extraordinário, com repercussões em diversas áreas do ordenamento positivado. Porém, outras regências jurídicas específicas impõem tratamentos diferenciados em certos aspectos.

Há de se considerar, no caso dos autos, que os integrantes do terceiro setor, cujo comprometimento com finalidades sociais e a ausência de propósitos lucrativos, estão próximos aos entes estatais, e justificam tratamento assemelhado ao dado a estes últimos.

A parte agravada, por sua área de atuação, sofrerá grande impacto e maior demanda de pessoal, serviços e insumos no período de enfrentamento da Pandemia do COVID-19, a justificar seu pleito lançado nos autos de origem. Tais circunstâncias, por si só, se prestariam à mitigação do princípio do pacta sunt servanda no caso em apreciação.

Aliado a este aspecto, há de se considerar a ausência do requisito da urgência, eis que não há notícia de inadimplência nas operações contratadas.

Note-se, por fim, que as garantias levantadas por força da decisão agravada correspondem a valor mínimo do saldo devedor das operações contratadas (percentual de cerca de 5% no caso de uma das operações e 4% no caso da outra), conforme valores atualizados pela agravante na petição constante no ID. 134865999 , o que é indicativo de que as demais garantias fixadas nos contratos é que consistem seu mais vigoroso sustento.

Tais circunstâncias reforçam a convicção acerca do acerto da decisão agravada.

 

Ausente qualquer motivo para alteração, entendo que a decisão deve ser mantida.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao agravo de instrumento. No mais, julgo prejudicado o agravo interno.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO.   CONTRATO CIVIL. ASSOCIAÇÃO BENEMÉRITA. DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE.  PANDEMIA. COVID-19. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO.

- Na ausência de novos argumentos no agravo interno (art. 1.021 do CPC), embutindo questões relativas ao mérito do agravo de instrumento, fica tal recurso prejudicado pela apresentação do feito para julgamento colegiado.

- Contrato é um negócio jurídico bilateral na medida em que retrata o acordo de vontades com o fim de criar, modificar ou extinguir direitos, gerando obrigações aos envolvidos; vale dizer, o contrato estabelece relação jurídica entre credor e devedor, podendo aquele exigir o cumprimento da prestação por este assumida. A situação trazida aos autos, contudo, não diz respeito a contrato comercial, em que ambos os polos da relação possuem finalidade lucrativa. Trata-se de contrato civil pactuado por uma associação benemérita, sem vocação lucrativa, prestadora de serviço relacionado ao direito fundamental à saúde.

- É certamente emergente e preocupante a situação enfrentada no Brasil diante do avanço da pandemia causada pelo novo coronavírus (que gera a COVID-19), com inegáveis prejuízos nas esferas de particulares e de entes estatais, sobretudo com danos humanitários expressivos. Sociedade e Estado têm interesses e deveres jurídicos convergentes nesse contexto de emergência, uma vez que a solidariedade emerge como primado do sistema jurídico brasileiro (art. 3º, I, da Constituição da República), realçada nesse período extraordinário, com repercussões em diversas áreas do ordenamento positivado. Porém, outras regências jurídicas específicas impõem tratamentos diferenciados em certos aspectos. Os integrantes do terceiro setor, cujo comprometimento com finalidades sociais e a ausência de propósitos lucrativos, estão próximos aos entes estatais, e justificam tratamento assemelhado ao dado a estes últimos.

- A parte agravada, por sua área de atuação, sofrerá grande impacto e maior demanda de pessoal, serviços e insumos no período de enfrentamento da pandemia, a justificar seu pleito lançado nos autos de origem. Tais circunstâncias, por si só, se prestariam à mitigação do primado do pacta sunt servanda no caso em apreciação.

- Ausência do requisito da urgência nas alegações da CEF, eis que não há notícia de inadimplência nas operações contratadas.

- As garantias levantadas por força da decisão agravada correspondem a valor mínimo do saldo devedor das operações contratadas (percentual de cerca de 5% no caso de uma das operações e 4% no caso da outra), conforme valores atualizados pela agravante na petição constante no ID. 134865999 , o que é indicativo de que as demais garantias fixadas nos contratos é que consistem seu mais vigoroso sustento.

- Agravo de instrumento improvido. Agravo interno prejudicado.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Segunda Turma decidiu, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento e julgar prejudicado o agravo interno, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.