APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5008612-83.2019.4.03.6100
RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA
APELANTE: UNIÃO FEDERAL
APELADO: MAMOUNE CLAUDE
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5008612-83.2019.4.03.6100 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA APELANTE: UNIÃO FEDERAL APELADO: MAMOUNE CLAUDE R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação e remessa oficial, tida por submetida, contra sentença que concedeu mandado de segurança para garantir processamento de pedido de regularização migratória sem apresentação de passaporte válido, certidão consular e certidão de antecedentes criminais emitida no país de origem, “desde que comprovada sua identidade civil por outros meios satisfatórios”. Apelou a União, alegando que: (1) a impetrante, natural da República do Haiti, ingressou no país, solicitando refúgio, condição cuja renovação foi indeferida pela Polícia Federal, devendo, para regularizar permanência definitiva, apresentar passaporte válido e certidão de antecedentes criminais do país de origem, documentos aos quais não teria acesso por razões financeiras e de perseguições políticas, invocando a aplicação do regime de autorização de residência por acolhida humanitária (artigos 30, c, da Lei 13.445/2017 e 145 do Decreto 9.199/2017); (2) a Resolução Normativa CNIg 97/2017, que regulamentou a concessão de vistos humanitários para haitianos, estabeleceu estrita observância dos demais regulamentos, aplicáveis a todos os imigrantes estrangeiros no país, no caso, os artigos 22 da Lei 13.445/2017, 79 e 80 do Decreto 9.199/2017; (3) na espécie, o ato administrativo é vinculado, inexistindo respaldo legal para dispensa dos documentos legais exigidos; (4) não pode o Judiciário impor à Administração Pública adoção de procedimentos não previstos em lei; (5) inexiste direito subjetivo, líquido e certo do estrangeiro à autorização de residência ou de ingresso em território nacional; e (6) a sentença é nula, por não considerar as informações da autoridade impetrada, devendo ser anulada, ao menos, nos termos do artigo 6º, § 5º, da Lei 12.016/2009. Houve contrarrazões. O Ministério Público Federal opinou pela manutenção da sentença. É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5008612-83.2019.4.03.6100 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS MUTA APELANTE: UNIÃO FEDERAL APELADO: MAMOUNE CLAUDE V O T O Senhores Desembargadores, preliminarmente, não se cogita de nulidade da sentença, pois não foram prestadas informações pela autoridade impetrada na espécie, tampouco demonstrado o cabimento da denegação da ordem com base no artigo 6º, § 5º, da Lei 12.016/2009, que envolve extinção sem resolução do mérito. No mérito, consta dos autos que a impetrante, de nacionalidade haitiana, ingressou no país em 29/04/2014, na condição de solicitante de refúgio, obtendo os respectivos protocolos periodicamente renováveis, o último válido até 13/04/2018. Apresentou, ainda, comprovante de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas – CPF e passaporte da República do Haiti, cuja data de expiração ocorreu quando já estava em território nacional (02/09/2018), além da Carteira de Trabalho e Previdência Social (ID 133122469). Alegou, na inicial, que em abril de 2018 teve a renovação da solicitação de refúgio indeferida e o respectivo protocolo retido, com informação de que deveria proceder à regularização migratória com base em acolhida humanitária, porém, a despeito da flexibilização documental relativa aos beneficiários de tal condição (artigos 20 da Lei 13.445/2017 e 68, § 2º, do Decreto 9.199/2017), a impetrada resiste à regularização da permanência sem a exibição dos documentos previstos no artigo 6º da Portaria Interministerial MJ 10/2018 - certidão de antecedentes criminais do país de origem, certidão consular e passaporte válido, bem como outros documentos haitianos -, não possuindo condições financeiras de obtê-los junto ao país de origem ou à entidade diplomática respectiva no Brasil, por enfrentar perseguições políticas ou consequências ainda persistentes do forte terremoto que assolou aquele país. Como se observa, na presente impetrante não se trata, propriamente, de flexibilização documental para autorização de residência no país, mas regularização migratória, vez que o protocolo de solicitação de refúgio, que lhe garantia periodicamente a permanência regular no território brasileiro, foi retido pela autoridade impetrada. Ocorre que a Portaria Interministerial MJ 10/2018, que dispõe sobre a concessão do visto temporário, além de autorização de residência para fins de acolhida humanitária para cidadãos haitianos e apátridas residentes na República do Haiti, prevê que: “Art. 1º A presente Portaria estabelece procedimentos a serem adotados em relação à tramitação dos pedidos de visto temporário e autorização de residência para fins de acolhida humanitária para cidadãos haitianos e apátridas residentes na República do Haiti. Parágrafo único. A hipótese de acolhida humanitária prevista nesta Portaria não prejudica o reconhecimento de outras que possam ser futuramente adotadas pelo Estado brasileiro em portarias próprias. [...] Art. 5º O nacional da República do Haiti e o apátrida que residia no Haiti, que tenham ingressado no Brasil até a data da publicação desta Portaria, poderão apresentar requerimento de autorização de residência para acolhida humanitária perante uma das unidades da Polícia Federal. Parágrafo único. O prazo de residência previsto no caput será de dois anos. Art. 6º O pedido de autorização de residência deverá ser formalizado com os seguintes documentos: I - documento de viagem ou documento oficial de identidade; II - duas fotos 3x4; III - certidão de nascimento ou casamento ou certidão consular, desde que não conste a filiação no documento mencionado no inciso I; IV - certidão de antecedentes criminais dos Estados em que tenha residido no Brasil nos últimos cinco anos; V - declaração, sob as penas da lei, de ausência de antecedentes criminais em qualquer país, nos últimos cinco anos; e VI - comprovante de ingresso até a data da publicação desta Portaria. § 1º Apresentados os documentos mencionados no caput, proceder-se-á ao registro e à emissão da cédula de identidade. § 2º Na hipótese de necessidade de retificação ou complementação dos documentos apresentados, a Polícia Federal notificará o imigrante para assim o fazer no prazo de trinta dias. § 3º Decorrido o prazo sem que o imigrante se manifeste ou caso a documentação esteja incompleta, o processo de avaliação de seu pedido será extinto, sem prejuízo da utilização, em novo processo, dos documentos que foram apresentados e ainda permaneçam válidos. § 4º Indeferido o pedido, aplica-se o disposto no art. 134 do Decreto nº 9.199, de 2017. Art. 7º O imigrante poderá requerer em uma das unidades da Polícia Federal, no período de noventa dias anteriores à expiração do prazo de dois anos previsto nos arts. 4º e 5º, autorização de residência com prazo de validade indeterminado, desde que: I - não tenha se ausentado do Brasil por período superior a noventa dias a cada ano migratório; II - tenha entrado e saído do território nacional exclusivamente pelo controle migratório brasileiro; III - não apresente registros criminais no Brasil; e IV - comprove meios de subsistência. [...]” Constata-se, pois, segundo tal normativo, que a cédula de identidade de estrangeiro pretendida pela impetrante, em razão da retenção do único documento, até então válido, de que dispunha, garantiria também autorização de residência no território nacional (artigo 6º, caput e § 1º). Todavia, suscitando a Resolução Normativa CNIg 97/2017, entende a apelante que a concessão de vistos humanitários para haitianos deve observar também o previsto nos regulamentos aplicáveis aos demais imigrantes, a teor dos artigos 22 da Lei 13.445/2017, 79 e 80 do Decreto 9.199/2017, que assim dispõem: “Art. 22. A identificação civil, o documento de identidade e as formas de gestão da base cadastral dos detentores de vistos diplomático, oficial e de cortesia atenderão a disposições específicas previstas em regulamento.” “Art. 79. Ato do Ministro de Estado da Justiça e Segurança Pública disporá sobre o processamento concomitante dos requerimentos de registro e de autorização de residência, nos casos de sua competência. Art. 80. Ato da Polícia Federal disporá sobre a expedição da Carteira de Registro Nacional Migratório. Parágrafo único. O ato a que se refere o caput definirá o modelo a ser adotado para a Carteira de Registro Nacional Migratório.” Segundo a apelante, para processamento do pedido de residência dos haitianos já ingressos no país quando da publicação da Portaria Interministerial MJ 10/2018, além dos documentos nela exigidos (artigo 6º), a impetrante deve ainda possuir os especificados no artigo 129 do Decreto 9.199/2017: “Art. 129. Para instruir o pedido de autorização de residência, o imigrante deverá apresentar, sem prejuízo de outros documentos requeridos em ato do Ministro de Estado competente pelo recebimento da solicitação: I - requerimento de que conste a identificação, a filiação, a data e o local de nascimento e a indicação de endereço e demais meios de contato; II - documento de viagem válido ou outro documento que comprove a sua identidade e a sua nacionalidade, nos termos dos tratados de que o País seja parte; III - documento que comprove a sua filiação, devidamente legalizado e traduzido por tradutor público juramentado, exceto se a informação já constar do documento a que se refere o inciso II; IV - comprovante de recolhimento das taxas migratórias, quando aplicável; V - certidões de antecedentes criminais ou documento equivalente emitido pela autoridade judicial competente de onde tenha residido nos últimos cinco anos; e VI - declaração, sob as penas da lei, de ausência de antecedentes criminais em qualquer país, nos cinco anos anteriores à data da solicitação de autorização de residência. § 1º Para fins de instrução de pedido de nova autorização de residência ou de renovação de prazo de autorização de residência, poderá ser apresentado o documento a que se refere o inciso II do caput ou documento emitido por órgão público brasileiro que comprove a identidade do imigrante, mesmo que este tenha data de validade expirada. § 2º A legalização e a tradução de que tratam o inciso III do caput poderão ser dispensadas se assim disposto em tratados de que o País seja parte. § 3º A tramitação de pedido de autorização de residência ficará condicionada ao pagamento das multas aplicadas com fundamento no disposto neste Decreto.” Tal entendimento, porém, não pode prevalecer, em face, inclusive, do artigo 79 do Decreto 9.199/2017, na medida em que agrava e dificulta a regularização migratória para beneficiários de acolhida humanitária (aumentando o rol de documentos), em vez de abrandá-la, conforme inclusive prevê expressamente a Lei 13.445/2017: “Art. 20. A identificação civil de solicitante de refúgio, de asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário poderá ser realizada com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser” (grifamos). No mesmo sentido o artigo 68, § 2º, do Decreto 9.199/2017: “O registro e a identificação civil das pessoas que tiveram a condição de refugiado ou de apátrida reconhecida, daquelas a quem foi concedido asilo ou daquelas beneficiadas com acolhida humanitária poderão ser realizados com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser” (grifamos). Daí porque não cabe exigir de estrangeira haitiana, beneficiária da acolhida humanitária, que providencie outros documentos além dos previstos na Portaria Interministerial MJ 10/2018 e, dentre estes, somente os que não dependam de atual expedição pelo país de origem ou respectiva representação diplomática no Brasil. Nesta linha, constou da sentença expressamente que “a impetrante comprovou possuir outros documentos aptos a identifica-lo civilmente perante a Delegacia da Polícia Federal de Imigração (passaporte, CPF) de modo que, a inexistência única e exclusiva da certidão de nascimento/casamento/consular não deve ser óbice à regularização da estrangeira impetrante”; ressaltando, porém, que "não há que se falar em dispensa de apresentação dos demais documentos exigidos nos incisos I, II, IV, V e VI do art. 6º da Portaria Interministerial nº 10/2018, posto que não está caracterizada a impossibilidade ou mesmo dificuldade de cumprimento pela estrangeira haitiana”. Assim, foi concedida a ordem apenas para afastar a exigência de apresentação de passaporte válido, certidão consular e certidão de antecedentes criminais emitida no país de origem para o processamento do pedido de regularização migratória (ID 133122582). Sobre regularização migratória e documentação exigível nos casos apreciados, cumpre registrar o que tem decidido a Turma: ApelRemNec 5012986-79.2018.4.03.6100, Rel. Des. Fed. CARLOS MUTA, Intimação via sistema 25/08/2020: “DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE EXPEDIÇÃO DO REGISTRO NACIONAL MIGRATÓRIO (RNM). PASSAPORTE COM PRAZO DE VALIDADE VENCIDO. POSSIBILIDADE. 1. A controvérsia dos autos refere-se não à permanência do impetrante em território nacional - direito já reconhecido pelo Conselho Nacional de Imigração de forma definitiva por prazo indeterminado nos termos da Resolução Recomendada 08/2006 c/c Resolução Normativa 27/1998 - mas à obtenção do Registro Nacional Migratório (RNM), documento de identificação civil de estrangeiro, mediante a apresentação de documento de viagem com prazo de validade expirado. 2. A função precípua da apresentação do passaporte para regularização migratória é identificar o portador e conferir se, de fato, trata-se da mesma pessoa que teve autorizada a sua permanência no país. Nesse contexto, é de pouca relevância que o documento de viagem esteja fora do prazo de validade previsto pelo Estado emissor, desde que não seja desatualizado, tendo em vista que os dados concernentes à identidade do portador, tais como nome, local e data de nascimento, gênero e nacionalidade, em regra, apenas são repetidos no novo passaporte, cuja diferença se resume ao novo número de identificação e a nova data de validade. 3. O passaporte do agravante, com número idêntico constante na publicação de permanência definitiva no DOU, venceu em 08/01/2016. Por seu turno, o Laissez-Passer do impetrante venceu em 16/04/2018 e a Carteira de Identidade Consular teve a validade expirada em 23/11/2018, após a publicação da decisão que concedeu permanência. Logo, não se mostra razoável condicionar a expedição do Registro Nacional Migratório (RNM) à apresentação de passaporte válido, na medida em que o impetrante já obteve deferimento do pedido de concessão de permanência definitiva no Brasil mediante apresentação de documentos do país de origem, os quais agora restam expirados pelo tempo decorrido. 4. Registre-se que a emissão do Registro Nacional Migratório (RNM) é condicionada à apresentação de passaporte válido do país de origem somente para comprovação de identidade, mesmo já tendo sido o Documento Provisório de Identidade de Estrangeiro expedido pela própria Polícia Federal, com validade até 26/04/2019. 5. No exame do AI 5015144-74.2018.4.03.0000, interposto contra o indeferimento da liminar, a Turma já havia decidido pela aplicação analógica do § 1º do artigo 129 do Decreto 9.199/2017, autorizando a expedição do Registro Nacional Migratório (RNM) mediante apresentação do passaporte que o impetrante detém, vencido em 08/01/2016, pois é documento hábil a comprovar a identidade, mesmo que expirada a validade. 6. Acresça-se que, quando da manifestação nos autos, em primeira instância, aos 27/06/2018, a própria apelante reconheceu que, embora "o documento de viagem "laisser-passer" realmente tem sua validade expirada, [...] a cédula de identidade consular está válida [até 23/11/2018 - ID 54558309. f. 22], documento que, s.m.j., preenche o requisito do art. 129, II, parte final, do Decreto nº 9.199/2017, [...]", assim como constou das informações da autoridade impetrada que "já na vigência da nova ordem migratória, considerando-se tanto as normas regulamentadoras editadas desde então quanto recentes diretivas internas de alinhamento de procedimentos emanadas por instância central da Polícia Federal com competência normativa na seara de imigração, podem ser elencadas as seguintes hipóteses em que o Registro Nacional Migratório - RNM poderá ser feito utilizando-se documento de viagem vencido ou qualquer outro documento de identificação aceito na legislação brasileira: a) o requerente solicita nova autorização de residência ou de renovação de prazo de autorização de residência (já está registrado no Registro Nacional Migratório); b) o requerente é beneficiário de autorização de residência nos casos de concessão de visto consular, de publicação em Diário Oficial da União, de apátridas, de refugiados, de asilados; e c) o requerente é pessoa beneficiada nos casos de acolhida humanitária e para tratamento de saúde, cujas respectivas Portarias Interministeriais dispensam a exigência de documento de viagem válido. Assim, considerando-se o entendimento acima esposado, esclarecemos que a Administração Pública encontra-se pronta para o atendimento do estrangeiro NAGOBA KODJO DODJI FLORENT, desde que a apresentação do passaporte válido seja o único óbice ao processamento e expedição de seu Registro Nacional Migratório - RNM, ressaltando ainda a necessidade de atendimento às demais exigências documentais relativas a casos de registro migratório decorrente de decisão de autorização de residência publicada no Diário Oficial da União". 7. Apelação e remessa oficial desprovidas.” AI 5015457-98.2019.4.03.0000, Rel. Des. Fed. CECILIA MARCONDES, Intimação via sistema 09/10/2019: “DIREITO CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL. MANDADO DE SEGURANÇA. REGULARIZAÇÃO MIGRATÓRIA. PEDIDO DE RESIDÊNCIA PERMANENTE. ESTRANGEIRA SOLICITANTE DE REFÚGIO E COM PROLE BRASILEIRA. DISPENSA DE APRESENTAÇÃO DE CERTIDÃO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS DO PAÍS DE ORIGEM E DE PASSAPORTE VÁLIDO. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL DO CASO CONCRETO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. 1. Discute-se no presente recurso sobre a existência ou não de direito líquido e certo à desnecessidade de apresentação de certidão de antecedentes criminais emitida pelo país de origem e do passaporte válido para o processamento de pedido de residência permanente, fundada na reunião familiar ou em acolhida humanitária. 2. Consoante o art. 5º, inciso LXIX, da Constituição Federal: "conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público". 3. Dessa forma, o mandado de segurança configura ação constitucional que visa a proteger o titular de direito líquido e certo, lesado ou sob ameaça de lesão, não amparado por "habeas corpus" ou "habeas data", em casos de ilegalidade ou abuso de poder, por conduta comissiva ou omissiva. 4. Anota-se que o mandado de segurança é via processual adequada para a agravada manifestar a irresignação em apreço, tendo em vista a potencial violação ao direito de regularização migratória. 5. Importa frisar que o Estatuto dos Refugiados (Convenção da ONU de 1951) prevê a flexibilização das exigências documentais e regras procedimentais, diante das condições especiais dos refugiados, que se apresentam em situação de urgência ante a fuga do país de origem. O mesmo tratamento foi conferido pelos artigos 43 e 44 da Lei nº 9.474/1997. 6. O art. 20 da Lei de Migração - Lei nº 13.445/2017 prevê a flexibilização documental para a identificação civil do solicitante de refúgio. 7. Na hipótese dos autos, a agravada, solicitante de refúgio com prole brasileira, veio ao país em busca de condições mínimas de sobrevivência, diante da persistente crise social e humanitária no Haiti, seu país de origem. Assim, cabível afastar a exigência de documentos que não possui a agravada condições de obter em decorrência da grave situação política do país de origem. 8. Com efeito, exigir da impetrante, ora agravada, a apresentação de documentação que não possui condições de obter, significa obstar a possibilidade de regularização da sua situação migratória. 9. Negar à impetrante o processe o processamento do pedido de autorização de residência com base em reunião familiar somente por impossibilidade de apresentação de documentos que não podem ser obtidos caracteriza violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 10. Considerando-se as especificidades do caso concreto, não se aplica, à agravada, a exigência trazida no art. 129, inciso V, do Decreto nº 9.199/2017, qual seja, apresentação de "certidões de antecedentes criminais ou documento equivalente emitido pela autoridade judicial competente de onde tenha residido nos últimos cinco anos". 11. De outro giro, verifica-se que a função precípua da apresentação do passaporte para regularização migratória é identificar o portador e conferir se, de fato, trata-se da mesma pessoa que teve autorizada a sua permanência no país. 12. Nesse contexto, é de pouca relevância que o documento de viagem esteja fora do prazo de validade previsto pelo Estado emissor, desde que não seja desatualizado, tendo em vista que os dados concernentes à identidade do portador, tais como nome, local e data de nascimento, gênero e nacionalidade, em regra, apenas são repetidos no novo passaporte, cuja diferença será somente o novo número de identificação e a nova data de validade. 13. Agravo de instrumento não provido.” Ante o exposto, nego provimento à apelação e à remessa oficial, tida por submetida. É como voto.
E M E N T A
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REGULARIZAÇÃO MIGRATÓRIA. ESTRANGEIRA BENEFICIADA COM ACOLHIDA HUMANITÁRIA. CERTIDÃO DE ANTECEDENTES CRIMINAIS DO PAÍS DE ORIGEM, CERTIDÃO CONSULAR E PASSAPORTE VÁLIDO. DISPENSA.
1. Não se cogita de nulidade da sentença, pois não foram prestadas informações pela autoridade impetrada na espécie, e tampouco demonstrado o cabimento da denegação da ordem com base no artigo 6º, § 5º, da Lei 12.016/2009, que envolve extinção sem resolução do mérito.
2. No mérito, a impetrante, nacional do Haiti, ingressou no pais em 29/04/2014, pleiteando não flexibilização documental para autorização de residência no país, mas para regularização migratória, pois o protocolo de solicitação de refúgio, que lhe garantia periodicamente a permanência regular no território brasileiro, foi retido pela autoridade impetrada, que informou a necessidade de regularização migratória com base em acolhida humanitária.
3. A Portaria Interministerial MJ 10/2018, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e autorização de residência para acolhida humanitária para cidadãos haitianos e apátridas residentes na República do Haiti, prevê que a cédula de identidade de estrangeiro pretendida pela impetrante, em razão da retenção do único documento, até então válido, de que dispunha, garante autorização de residência no território nacional (artigo 6º, caput e § 1º).
4. Além do documentos previstos no artigo 6º da Portaria Interministerial MJ 10/2018, a autoridade impetrada exige outros com base no artigo 129 do Decreto 9.199/2017. Ocorre que tal posicionamento agrava a situação dos beneficiários de acolhida humanitária (aumentando o rol de documentos), em vez de justamente abrandá-la e favorecer a regularização migratória, o que contraria a Lei 13.445/2017: “Art. 20. A identificação civil de solicitante de refúgio, de asilo, de reconhecimento de apatridia e de acolhimento humanitário poderá ser realizada com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser”. No mesmo sentido o artigo 68, § 2º, do Decreto 9.199/2017: “O registro e a identificação civil das pessoas que tiveram a condição de refugiado ou de apátrida reconhecida, daquelas a quem foi concedido asilo ou daquelas beneficiadas com acolhida humanitária poderão ser realizados com a apresentação dos documentos de que o imigrante dispuser”.
5. Não se pode exigir da estrangeira haitiana, beneficiária da acolhida humanitária, que oferte documentos outros que não os previstos na Portaria Interministerial MJ 10/2018 e, dentre estes, somente os que não dependam de atual expedição pelo seu país de origem ou respectiva representação diplomática no Brasil.
6. A sentença observou que “a impetrante comprovou possuir outros documentos aptos a identifica-lo civilmente perante a Delegacia da Polícia Federal de Imigração (passaporte, CPF) de modo que, a inexistência única e exclusiva da certidão de nascimento/casamento/consular não deve ser óbice à regularização da estrangeira impetrante”; destacando, porém, que “não há que se falar em dispensa de apresentação dos demais documentos exigidos nos incisos I, II, IV, V e VI do art. 6º da Portaria Interministerial nº 10/2018, posto que não está caracterizada a impossibilidade ou mesmo dificuldade de cumprimento pela estrangeira haitiana”.
7. Confirmação da concessão parcial da ordem para afastar a exigência de passaporte válido, certidão consular e certidão de antecedentes criminais emitida no país de origem para o processamento do pedido de regularização migratória.
8. Apelação e remessa oficial, tida por submetida, desprovidas.