APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5007501-30.2020.4.03.6100
RELATOR: Gab. 21 - DES. FED. JOHONSOM DI SALVO
APELANTE: AMANDA MENEZES GONCALVES
Advogados do(a) APELANTE: HUGO THOMAS DE ARAUJO ALBUQUERQUE - SP335233-A, LUCILEI YASUKO MURAKAMI HASHIZUME - SP158802-A, RONALDO MORAES PETRUITIS - SP138732-A, MARCOS YOSHIO SUEOKA - SP199748-A
APELADO: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO PAULO
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5007501-30.2020.4.03.6100 RELATOR: Gab. 21 - DES. FED. JOHONSOM DI SALVO APELANTE: AMANDA MENEZES GONCALVES Advogados do(a) APELANTE: LUCILEI YASUKO MURAKAMI HASHIZUME - SP158802-A, RONALDO MORAES PETRUITIS - SP138732-A, MARCOS YOSHIO SUEOKA - SP199748-A APELADO: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O Excelentíssimo Senhor Desembargador Federal Johonsom di Salvo, Relator: Trata-se de ação ordinária, com pedido de tutela antecipada, ajuizada em 20/04/2020 por AMANDA MENEZES GONÇALVES em face da UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO – UNIFESP objetivando tornar sem efeito o cancelamento de sua matrícula no curso de Medicina, determinado no bojo do Processo Administrativo nº 23546.007011/2019-77, instaurado para averiguação da veracidade da autodeclaração de indígena firmada pela autora para ingresso na universidade. A autora narra que é quartanista do curso de Medicina e que ingressou na UNIFESP pelo concurso vestibular de 2016, como cotista, na forma do edital nº 12/2016. Diz que compareceu à matrícula com sua genitora e sua avó materna e que, na ocasião, foi afirmado que inexistia necessidade de apresentação de documentos para a comprovação de sua origem indígena, bastando a aparência de sua avó materna, ocasião em que lhe foi solicitada a assinatura da autodeclaração indígena. Diz que no terceiro ano do curso se desentendeu com uma colega, que ofendeu sua origem indígena, e que a agressora formulou denúncia de fraude de cota racial à ouvidoria da universidade, o que ensejou a instauração do Processo Administrativo nº 23546.007011/2019-77. Alega que teve o seu direito à ampla defesa violado, a Comissão de Heteroidentificação concluiu pela presença de “marcadores fenótipos compatíveis coma raça branca”, cancelando sua matrícula, sem que sua testemunha (sua avó) fosse ouvida. Sustenta que o edital de ingresso – Edital nº 12/2016 – previu exclusivamente o critério do genótipo e que somente para o vestibular de 2019 está expresso o critério do fenótipo. Sendo assim, defende que preencheu os requisitos exigidos no edital e que alteração posterior não pode alcançar seu direito e ensejar o cancelamento de sua matrícula. Atribuiu à causa o valor de R$ 1.000,00. O pedido de tutela antecipada foi indeferido (ID nº 144000270). A UNIFESP apresentou contestação (ID nº 144000274) e a autora, réplica (ID nº 144000281). Em 12/08/2020 a Juíza a qua proferiu sentença julgando improcedente o pedido por entender que não ouve violação ao devido processo legal e à ampla defesa e que, embora a autodeclaração fosse suficiente para o ingresso, não está excluída a apuração da veracidade da informação. Condenou a autora ao pagamento de honorários advocatícios de 10% do valor atualizado da causa, cuja execução permanecerá suspensa por força do benefício da Justiça Gratuita (ID nº 144001141). Irresignada, a autora interpôs apelação sustentando, em síntese, que o edital que disciplinou o seu ingresso – Edital nº 12/2016 – adotou o critério do genótipo para caracterizar a condição racial, mediante validação da autodeclaração étnico-racial no ato da matrícula. Diz que sua ancestralidade foi comprovada por declaração da Presidente Interina do Conselho Municipal dos Povos Indígenas de São Paulo, Liderança da Etnia Fulni-ô do Estado de São Paulo e Conselheira do Conselho Estadual dos Povos Indígenas – CEPISP, e que cumpriu todos os requisitos exigidos em edital no ato de sua matrícula, não podendo ser exigida a submissão ao critério fenotípico, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica e da razoabilidade. Insiste que a única exigência do edital era a autodeclaração. Alega que está no quarto ano do curso e que o processo administrativo violou os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Pugna pela antecipação dos efeitos da tutela a fim de que seja suspenso o cancelamento de sua matrícula e possa realizar todas as atividades acadêmicas. A apelada apresentou contrarrazões (ID nº 144001149). É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5007501-30.2020.4.03.6100 RELATOR: Gab. 21 - DES. FED. JOHONSOM DI SALVO APELANTE: AMANDA MENEZES GONCALVES Advogados do(a) APELANTE: LUCILEI YASUKO MURAKAMI HASHIZUME - SP158802-A, RONALDO MORAES PETRUITIS - SP138732-A, MARCOS YOSHIO SUEOKA - SP199748-A APELADO: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SAO PAULO OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O Excelentíssimo Senhor Desembargador Federal Johonsom di Salvo, Relator: A apelante ingressou no curso de Medicina da Universidade Federal de São Paulo – UNIFES pelo vestibular de 2017, regido pelo Edital nº 12/2016, via Sistema de Reserva de Vagas (cotas). Por força de denúncia de “fraude de cota racial” encaminhada à Ouvidoria da UNIFESP em 18/02/2019, foi instaurada Comissão para averiguação das supostas irregularidades na ocupação de vagas reservadas por critério étnico-racial – Processo Administrativo nº 23089.102294/2019-02. A Comissão de Heteroidentificação concluiu, por unanimidade, que a apelante é “branca, pois apresenta marcadores fenotípicos compatíveis com a raça branca”. Foram analisados três critérios, em ordem hierárquica de importância: em primeiro lugar o fenótipo, em segundo, a identidade (auto-atribuição e atribuição por outros) e, em terceiro, a ancestralidade étnico-racial (genealogia). Em seu parecer, a Pró-Reitora de Graduação assim sintetiza a análise da Comissão: “... a Comissão aponta em seu relatório a ausência de marcadores fenotípicos compatíveis com a condição de indígena informada pela discente, a ausência de relatos de episódios em que a mesma teria sido reconhecida como indígena e o distanciamento com a ancestralidade indígena uma vez que, embora refira a origem de sua bisavó, poucas informações relativas a essa condição são de conhecimento da aluna” (ID nº 144000267). Com base no Relatório Final da Comissão de Heteroidentificação, na Lei nº 12.711/2012 e nos itens 3.5 e 10.1 do Edital do Vestibular UNIFESP 2017, a Pró-Reitoria de Graduação determinou o cancelamento da matrícula da estudante. No controle jurisdicional do processo administrativo, a atuação do Poder Judiciário limita-se à regularidade e legalidade do procedimento, sendo descabido ao Judiciário substituir-se à Comissão de Heteroidentificação e decidir sobre a identidade da apelante. Com efeito, aplica-se ao caso, por identidade de razões, a orientação segundo a qual “Não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade" (STF, RE 632.853, Tema 485 da Repercussão Geral). No mesmo sentido: RMS 62.040/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 27/02/2020. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC nº 41/DF, reconheceu a integral constitucionalidade da Lei de Cotas – Lei nº 12.990/2014, bem como dos mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos, pronunciando ser “legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação (e.g., a exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso), desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. Portanto, a lei adota o critério da autodeclaração, mas legitima a adoção de critérios subsidiários para confirmar a declaração. No entanto, inexiste qualquer regulamentação sobre esses critérios subsidiários de validação da autodeclaração étnico-racial em nosso ordenamento jurídico, cabendo, pois, ao edital do certame defini-los previamente a fim de possibilitar o controle pelo candidato. A propósito, registro que esta Corte já decidiu que “a falta de previsão em edital do critério fenotípico para aferição da condição étnico-racial e sua posterior regulação como critério estrito, durante o curso, não pode prejudicar a candidata que ingressou na universidade mediante autodeclaração, pelo critério genotípico ou de ascendência, também legítimo, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica e da razoabilidade” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5006874-27.2019.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal CECILIA MARIA PIEDRA MARCONDES, julgado em 24/06/2019, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 28/06/2019). Na singularidade, o edital do vestibular prevê o critério da autodeclaração (itens 2.1.3; 3.4.1 – “o enquadramento de cor (ou raça) dar-se-á mediante autodeclaração do interessado, conforma classificação adotada pelo IBGE” e 7.2.1, “b”). O item 3.5 prevê que “A UNIFESP se reserva o direito de proceder à conferência das informações prestadas pelo candidato, quanto à sua veracidade, a qualquer momento, inclusive junto aos órgãos oficiais e mediante avaliação de profissional interessado, sendo que, ante a constatação de sua falsidade, serão tomadas as providências legais cabíveis (vide item 10.1)”. Já o item 10.1, “d”, estabelece o direito da UNIFESP de proceder à conferência das informações prestadas pelos candidatos matriculados e, no caso de falsidade, cancelar a matrícula de candidato matriculado. O que se constata é que, a despeito das cláusulas que permitem a fiscalização das informações, o edital não contempla previsão de critérios para aferição da condição étnico-racial declarada pelo candidato, sendo manifestamente desarrazoado que, após quase três anos de ingresso da apelante no curso de Medicina, sua matrícula, que foi aceita pela autodeclaração, seja cancelada porque Comissão de Heteroidentificação, não prevista no edital, concluiu que ela é “branca, pois apresenta marcadores fenotípicos compatíveis com a raça branca”. Vale registrar, no ponto, que “se o edital estabelece que a simples declaração habilita o candidato a concorrer nas vagas destinadas a negros e pardos e não fixa os critérios para aferição desta condição, não pode a Administração, posteriormente, sem respaldo legal ou no edital do certame, estabelecer novos critérios ou exigências adicionais, sob pena de afronta ao princípio da vinculação ao edital” (EDcl no AgRg no RMS 47.960/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 15/10/2019). Para corroborar, transcrevo jurisprudência do STJ em casos semelhantes: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ENSINO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 489, § 1º, E 1.022 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/2015. AUSÊNCIA. COTAS RACIAIS. ALTERAÇÃO DOS CRITÉRIOS APÓS A FINALIZAÇÃO DO CERTAME. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Não se configura a ofensa aos arts. 489, § 1º, e 1.022 do Código de Processo Civil/2015, uma vez que a Corte regional julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, em conformidade com o que lhe foi apresentado. 2. O órgão julgador não é obrigado a rebater, um a um, todos os argumentos trazidos pelas partes em defesa da tese que apresentaram. Deve apenas enfrentar a demanda, observando as questões relevantes e imprescindíveis à sua resolução. 3. Em se tratando de disputa de vagas em Universidades Públicas reservadas pelo critério da cota racial, ainda que válida a utilização de parâmetros outros que não a tão só autodeclaração do candidato, há de se garantir, no correspondente processo seletivo, a observância dos princípios da vinculação ao edital, da legítima confiança do administrado e da segurança jurídica. 4. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório impõe o respeito às regras previamente estipuladas por ambas as partes, as quais não podem ser modificadas com o certame já finalizado, como no caso dos autos, porquanto o recorrido realizou concurso vestibular em 2015 e as novas regras foram estabelecidas pela administração em 2016. 5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1794413/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/08/2019, DJe 06/09/2019) CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. CONCURSO PÚBLICO DO TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. CANDIDATO APROVADO NAS VAGAS DESTINADAS AOS NEGROS E PARDOS. CRITÉRIO DA AUTODECLARAÇÃO. PREVISÃO EDITALÍCIA. VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA ESCLARECER QUE NÃO HÁ NECESSIDADE DE DESLOCAR O IMPETRANTE PARA A VAGA DE COTISTA, UMA VEZ EMPOSSADO PELA LISTA GERAL. 1. A teor do disposto no art. 1.022 do Código Fux, os Embargos de Declaração destinam-se a suprir omissão, afastar obscuridade ou eliminar contradição existente no julgado, o que não se verifica no caso dos autos, porquanto o acórdão embargado dirimiu todas as questões postas de maneira clara, suficiente e fundamentada. 2. Conforme destacado anteriormente, a questão em debate cinge-se à verificação da suposta ilegalidade no ato administrativo que determinou a nulidade da inscrição do recorrente no concurso público para o cargo de Oficial de Controle Externo, Classe II, do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, conforme Edital 002/2013, em face da ausência de comprovação da afrodescendência declarada para fins de concorrência nas vagas específicas para negros e pardos. 3. Da leitura atenta das cláusulas editalícias que dispõem acerca dos critérios para que o candidato concorra nas vagas destinadas a negros e pardos, verifica-se que o único requisito exigido é a autodeclaração, não havendo qualquer outra previsão ou parâmetro a ser utilizado na fiscalização do sistema de cotas. 4. No caso, o ora embargado, apesar de ter se declarado negro, foi submetido, posteriormente, à uma comissão para aferição dos requisitos. Verificou-se que esta comissão impôs nova exigência: a de ter que comprovar ser filho de mãe ou pai negro, não podendo sua cor de pele ter advindo de seus avós ou outro parente (fls. 104). 5. Portanto, se o edital estabelece que a simples declaração habilita o candidato a concorrer nas vagas destinadas a negros e pardos e não fixa os critérios para aferição desta condição, não pode a Administração, posteriormente, sem respaldo legal ou no edital do certame, estabelecer novos critérios ou exigências adicionais, sob pena de afronta ao princípio da vinculação ao edital. 6. Assim, não há necessidade de esclarecer se a comissão pode ser considerada como responsável pela avaliação, porquanto, no caso, o que houve foi a instituição de nova exigência (aprovação pela comissão) não prevista no edital. Logo, havendo previsão editalícia, é possível a instituição de uma comissão avaliadora dos requisitos para o preenchimento das vagas destinadas a afrodescentes; no caso dos autos, porém, não há essa previsão, por isso a atuação de tal comissão pode ser admitida. 7. Quanto à advertência de que a manutenção do recorrente/impetrante no regime de cotas, apesar de já haver tomado posse no cargo em decorrência da inscrição na lista geral, inviabilizará a posse dos demais candidatos cotistas, abrindo-se a vaga para a lista geral (fls. 587), merece este esclarecimento: uma vez empossado o candidato embargado, não há necessidade de deslocá-lo para a vaga de cotista, tendo em vista que a tutela almejada já foi satisfeita. Inclusive, no item "e" da petição inicial do writ havia pedido no sentido do impetrante ser remetido à lista geral de classificação. 8. No tocante a citação dos demais candidatos aprovados no concurso para integrar a lide, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado quanto à inexistência de litisconsórcio passivo necessário entre todos os candidatos aprovados em concurso público. Neste sentido: AgInt no REsp. 1.690.488/MG, Rel. Min. GURGEL DE FARIA, DJe 20.6.2018; e AREsp 1.244.080/PI, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 16.4.2018. 9. Embargos de Declaração do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL parcialmente acolhidos para esclarecer que não há necessidade de deslocar o impetrante para a vaga de cotista, uma vez empossado pela lista geral. (EDcl no AgRg no RMS 47.960/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 15/10/2019) Destaco, ainda, que a mera existência de previsão editalícia da possibilidade de se fiscalizar as informações prestadas pelo candidato, desacompanhada da previsão dos critérios a serem adotados para a aferição étnico-racial declarada não permite à Administração inovar nas regras originais do certame e instituir comissão e estabelecer critérios e exigências, sob pena de acinte aos princípios da vinculação ao instrumento convocatório, da legítima confiança do candidato e da segurança jurídica. Nesse sentido, colaciono precedente do Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. VAGAS RESERVADAS PARA CANDIDATOS NEGROS. AUTODECLARAÇÃO. ÚNICA EXIGÊNCIA EDITALÍCIA. POSTERIOR REALIZAÇÃO DE ENTREVISTA PARA AFERIÇÃO DO FENÓTIPO SEM PREVISÃO NO EDITAL DE ABERTURA. FALTA DE AMPARO LEGAL. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO. 1. Em se cuidando de disputa de cargos públicos reservados pelo critério da cota racial, ainda que válida a utilização de parâmetros outros que não a tão só autodeclaração do candidato, há de se garantir, no correspondente processo seletivo, a observância dos princípios da vinculação ao edital, da legítima confiança do administrado e da segurança jurídica. 2. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório impõe o respeito às regras previamente estipuladas, as quais não podem ser modificadas com o certame já em andamento. 3. O Edital nº 01/2015 - TJDF, que tornou pública a abertura do concurso público destinado ao provimento de cargos no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, estabeleceu, como critério único para a disputa de vagas reservadas para negros, a autodeclaração do candidato, à qual foi atribuída presunção de veracidade (item 6.2.3), em conformidade, aliás, com o disposto no art. 5º, § 2º, da Resolução CNJ nº 203/2015. 4. Embora o item 6.2.4 do edital originário previsse a possibilidade de se comprovar a falsidade da autodeclaração, nenhuma referência o acompanhou quanto à forma e ao momento em que a Comissão de Concurso poderia chegar a essa constatação. Daí que a posterior implementação de uma fase específica para tal finalidade, não prevista no edital inaugural e com o certame já em andamento, não se revestiu da necessária higidez jurídica, não se podendo, na seara dos concursos públicos, atribuir validade a cláusula editalícia supostamente implícita, quando seu conteúdo possa operar em desfavor do candidato. 5. Nesse contexto, não era lícito à Administração Pública, após a aprovação dos candidatos nas provas objetiva e discursiva, introduzir inovação nas regras originais do certame (no caso concreto, por intermédio do Edital nº 15/2016) para sujeitar os concorrentes a "entrevista" por comissão específica, com o propósito de aferir a pertinência da condição de negros, por eles assim declarada ao momento da inscrição no concurso. À conta dessa conduta, restou afrontado pela Administração, dentre outros, o princípio da vinculação ao instrumento convocatório. Precedente desta Corte em caso assemelhado: AgRg no RMS 47.960/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Primeira Turma, DJe 31/05/2017. 6. Recurso ordinário provido para, reformando o acórdão recorrido, conceder a segurança, determinando-se a reinserção do nome do recorrente na lista dos candidatos que concorreram às vagas destinadas ao provimento por cota racial, respeitada sua classificação em função das notas que obteve no certame. (RMS 54.907/DF, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/04/2018, DJe 18/04/2018) Na mesma toada: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ENSINO SUPERIOR. VESTIBULAR. AÇÃO AFIRMATIVA. COTA RACIAL. AUTODECLARAÇÃO. PREVISÃO NO EDITAL. SUPERVENIENTE MUDANÇA PARA O CRITÉRIO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA RAZOABILIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO NÃO PROVIDO. 1. Hipótese em que os editais que regeram o ingresso da aluna na Faculdade de Medicina da UFMS, em 2017, trouxeram apenas a "autodeclaração" como requisito para matrícula na condição de cotista étnico, sem prever avaliação ulterior para ratificação da matrícula tampouco sem estabelecer o fenótipo como critério norteador para aferir a condição de negro, pardo ou indígena. 2. Compulsando os autos da ação subjacente e do presente recurso, à vista do conjunto fático-probatório e da plausibilidade da tese exposta na exordial do feito de origem, diante da existência de fundamento relevante e de dano irreparável na hipótese de não se determinar a imediata regularização da matrícula da autora, ora agravada, no curso de Medicina, ante o início e continuidade das atividades acadêmicas, em sede de cognição sumária, entende-se que estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência pretendida. 3. Foram acostados aos autos, dentre outros documentos: i) fotografias da agravada; ii) declaração subscrita pela Dra. Rubenilda dos S. Barbosa, CRM/MS 2163, médica dermatologista, atestando que a agravada apresenta cor da pele parda. 4. Com efeito, até a publicação do Edital Conjunto PROAES/PROGRAD Nº 03/2019, de 15 de fevereiro de 2019, que tornou pública o resultado final da banca de verificação, determinando o cancelamento da matrícula, a agravada já havia cursado dois anos, ou seja, um terço do curso de Medicina, de modo que impedi-la de prosseguir em seus estudos, na pendência da ação, acarretará evidente prejuízo à sua formação acadêmica, contrariando o preceito constitucional de que a educação será incentivada, previsto no art. 205 da CFRB/1988. 5. Registre-se a ausência de perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão, diante do fato de que a vaga em questão na IES já está sendo usufruída pela agravada. 6. No Brasil, foi implementada a política pública denominada de “ações afirmativas”, para favorecer o ingresso de afrodescendentes nas universidades e no serviço público, com o escopo de reparar e compensar, no presente, de um passado repulsivo de discriminação racial, promovendo, assim, o resgate de uma dívida histórica. 7. Do exame das normas de regência sobre as cotas em instituições de ensino superior federais (Lei nº 12.711/2012, Decreto nº 7.824/2012 e Portaria Normativa nº 18/2012, do Ministério da Educação) constata-se que foi adotado pela legislação brasileira o critério da autodeclaração para a caracterização do candidato como negro, pardo ou indígena. 8. Importa destacar que não foram estabelecidos critérios objetivos para confirmar a autodeclaração, de modo que inexiste qualquer regulamentação legal em nosso ordenamento jurídico que estabeleça os critérios para aferição da classificação étnico-racial daquele candidato que se autodeclara como preto, pardo ou indígena, para fins de ingresso no ensino superior em universidades públicas federais. 9. O C. Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a constitucionalidade do sistema de cotas para o ingresso nas universidades públicas federais, no julgamento da ADPF 186/DF. 10. O e. Ministro Relator da ADPF 186/DF, Ricardo Lewandowski, em seu voto, ao examinar se os mecanismos utilizados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em consonância com a ordem jurídica constitucional brasileira, reconheceu que há duas maneiras distintas de identificação: a autoidentificação, que decorre da autodeclaração realizada pelo candidato, e a heteroidentificação, efetuada pela administração universitária, asseverando que ambas são aceitáveis sob o enfoque constitucional. 11. É cediço que as regras editalícias são vinculantes tanto para a Universidade quanto para os candidatos. 12. Do exame dos editais que disciplinaram o ingresso da agravada na UFMS, em juízo de cognição perfuntória, verifica-se que o critério adotado para caracterizar a condição racial da aluna pela IES foi o genotípico ou de ascendência étnica, não havendo qualquer dispositivo em tais normas indicando a possibilidade de utilização de outro critério, no momento da matrícula (ingresso) ou posteriormente (durante o curso), mediante validação da autodeclaração étnico-racial, realizada após a matrícula, por comissão especificamente constituída para esse fim. 13. A falta de previsão em edital do critério fenotípico para aferição da condição étnico-racial e sua posterior regulação como critério estrito, durante o curso, não pode prejudicar a candidata que ingressou na universidade mediante autodeclaração, pelo critério genotípico ou de ascendência, também legítimo, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica e da razoabilidade. 14. Nesse contexto, após o decurso de quase dois anos do ingresso da estudante na UFMS, não se mostra razoável nem em conformidade com a garantia constitucional do devido processo legal que, mediante o Edital Conjunto PROAES/PROGRAD nº 01/2019, de 25 de janeiro de 2019, que constituiu banca de verificação da veracidade da condição de cotista no ingresso do curso da Faculdade de Medicina (FAMED), a IES agravante condicione a regularidade da matrícula bem como a continuidade do curso superior da agravada ao resultado da avaliação, com esteio em critério fenotípico. 15. Verifica-se que a mudança superveniente para o critério estritamente fenotípico, mediante observância dos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, há de ser aplicada aos alunos ingressantes posteriormente, de modo a possibilitar o controle e a aferição das informações prestadas pelo candidato, a fim de preservar o processo seletivo e o propósito das cotas étnico-raciais, bem como evitar a ocorrência de fraudes. 16. O que não se afigura legítima é a adoção do critério fenotípico, perante uma comissão avaliadora, de modo retroativo, a fim de desconstituir atos anteriores, praticados sob a égide de outra vertente interpretativa da legislação de regência sobre a política pública de cotas raciais. Precedentes do E. TRF da 4ª Região. 17. Destarte, em sede de cognição sumária, própria deste momento processual, tem-se por ilegal o cancelamento da matrícula da aluna com base apenas na conclusão da comissão avaliadora, constituída em 2019, de que a discente não apresenta as características fenotípicas exigidas para ser considerada parda, na medida em que o critério utilizado pela IES, na época do ingresso, era somente a exigência de autodeclaração, sem nenhuma previsão de avaliação posterior para fins de ratificação da matrícula. 18. Portanto, por ora, a decisão agravada deve ser mantida, para garantir à discente a sua reintegração no curso de Medicina até ulterior decisão de mérito. 19. Agravo de instrumento não provido. (TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5006874-27.2019.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal CECILIA MARIA PIEDRA MARCONDES, julgado em 24/06/2019, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 28/06/2019) Portanto, o apelo deve ser provido para tornar sem efeito a decisão que determinou o cancelamento da matrícula da apelante no curso de medicina, por manifesta violação ao edital que regulamentou o concurso vestibular. Tendo em vista o valor muito baixo atribuído à causa (R$ 1.000,00), a fim de evitar a fixação de honorários irrisórios, aplico ao caso a regra inserta no § 8º do art. 85 do Código de Processo Civil para condenar a apelada ao pagamento de honorários advocatícios de R$ 5.000,00, com atualização a partir desta data, nos termos do Manual de Procedimentos para Cálculos da Justiça Federal, montante que considero adequado à complexidade da causa e a remunerar de forma justa e digna o trabalho desempenhado pelo procurador da apelante. Ante o exposto, dou provimento à apelação. É como voto.
E M E N T A
DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. INGRESSO NA UNIVERSIDADE PELO SISTEMA DE COTAS. CRITÉRIO DA AUTODECLARAÇÃO. POSTERIOR INSTAURAÇÃO DE COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ACINTE AO PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AO INSTRUMENTO CONVOCATÓRIO. APELAÇÃO PROVIDA, COM ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA E CONDENAÇÃO DA RÉ AO PAGAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
1. A apelante ingressou no curso de Medicina da Universidade Federal de São Paulo – UNIFES pelo vestibular de 2017, regido pelo Edital nº 12/2016, via Sistema de Reserva de Vagas (cotas). Por força de denúncia de “fraude de cota racial” encaminhada à Ouvidoria da UNIFESP em 18/02/2019, foi instaurada Comissão para averiguação das supostas irregularidades na ocupação de vagas reservadas por critério étnico-racial – Processo Administrativo nº 23089.102294/2019-02.
2. A Comissão de Heteroidentificação concluiu, por unanimidade, que a apelante é “branca, pois apresenta marcadores fenotípicos compatíveis com a raça branca”. Foram analisados três critérios, em ordem hierárquica de importância: em primeiro lugar o fenótipo, em segundo, a identidade (auto-atribuição e atribuição por outros) e, em terceiro, a ancestralidade étnico-racial (genealogia). Com base no Relatório Final da Comissão de Heteroidentificação, na Lei nº 12.711/2012 e nos itens 3.5 e 10.1 do Edital do Vestibular UNIFESP 2017, a Pró-Reitoria de Graduação determinou o cancelamento da matrícula da estudante.
3. No controle jurisdicional do processo administrativo, a atuação do Poder Judiciário limita-se à regularidade e legalidade do procedimento, sendo descabido ao Judiciário substituir-se à Comissão de Heteroidentificação e decidir sobre a identidade da apelante. Com efeito, aplica-se ao caso, por identidade de razões, a orientação segundo a qual “Não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade" (STF, RE 632.853, Tema 485 da Repercussão Geral). No mesmo sentido: RMS 62.040/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 27/02/2020.
4. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC nº 41/DF, reconheceu a integral constitucionalidade da Lei de Cotas – Lei nº 12.990/2014, bem como dos mecanismos para evitar fraudes pelos candidatos, pronunciando ser “legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação (e.g., a exigência de autodeclaração presencial perante a comissão do concurso), desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”. Portanto, a lei adota o critério da autodeclaração, mas legitima a adoção de critérios subsidiários para confirmar a declaração.
5. No entanto, inexiste qualquer regulamentação sobre esses critérios subsidiários de validação da autodeclaração étnico-racial em nosso ordenamento jurídico, cabendo, pois, ao edital do certame defini-los previamente a fim de possibilitar o controle pelo candidato. A propósito, esta Corte já decidiu que “a falta de previsão em edital do critério fenotípico para aferição da condição étnico-racial e sua posterior regulação como critério estrito, durante o curso, não pode prejudicar a candidata que ingressou na universidade mediante autodeclaração, pelo critério genotípico ou de ascendência, também legítimo, sob pena de violação aos princípios da segurança jurídica e da razoabilidade” (TRF 3ª Região, 3ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5006874-27.2019.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal CECILIA MARIA PIEDRA MARCONDES, julgado em 24/06/2019, e - DJF3 Judicial 1 DATA: 28/06/2019).
6. Na singularidade, o edital do vestibular prevê o critério da autodeclaração (itens 2.1.3; 3.4.1 – “o enquadramento de cor (ou raça) dar-se-á mediante autodeclaração do interessado, conforma classificação adotada pelo IBGE” e 7.2.1, “b”). A despeito das cláusulas que permitem a fiscalização das informações, o edital não contempla previsão de critérios para aferição da condição étnico-racial declarada pelo candidato, sendo manifestamente desarrazoado que, após quase três anos de ingresso da apelante no curso de Medicina, sua matrícula, que foi aceita pela autodeclaração, seja cancelada porque Comissão de Heteroidentificação, não prevista no edital, concluiu que ela é “branca, pois apresenta marcadores fenotípicos compatíveis com a raça branca”.
7. “Se o edital estabelece que a simples declaração habilita o candidato a concorrer nas vagas destinadas a negros e pardos e não fixa os critérios para aferição desta condição, não pode a Administração, posteriormente, sem respaldo legal ou no edital do certame, estabelecer novos critérios ou exigências adicionais, sob pena de afronta ao princípio da vinculação ao edital” (EDcl no AgRg no RMS 47.960/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/10/2019, DJe 15/10/2019).
8. A mera existência de previsão editalícia da possibilidade de se fiscalizar as informações prestadas pelo candidato, desacompanhada da previsão dos critérios a serem adotados para a aferição étnico-racial declarada não permite à Administração inovar nas regras originais do certame e instituir comissão e estabelecer critérios e exigências, sob pena de acinte aos princípios da vinculação ao instrumento convocatório, da legítima confiança do candidato e da segurança jurídica. Nesse sentido: RMS 54.907/DF, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/04/2018, DJe 18/04/2018.
9. Tendo em vista o valor muito baixo atribuído à causa (R$ 1.000,00), a fim de evitar a fixação de honorários irrisórios, aplica-se ao caso a regra inserta no § 8º do art. 85 do Código de Processo Civil para condenar a apelada ao pagamento de honorários advocatícios de R$ 5.000,00, com atualização a partir desta data, nos termos do Manual de Procedimentos para Cálculos da Justiça Federal, montante adequado à complexidade da causa e a remunerar de forma justa e digna o trabalho desempenhado pelo procurador da apelante.