Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001287-77.2012.4.03.6104

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: MARCELO ISRAEL DE SOUZA

APELADO: RUMO MALHA PAULISTA S.A.

Advogado do(a) APELADO: LAURO AUGUSTO PASSOS NOVIS FILHO - SP340640-S

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001287-77.2012.4.03.6104

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: MARCELO ISRAEL DE SOUZA

 

APELADO: RUMO MALHA PAULISTA S.A.

Advogados do(a) APELADO: ANA LUIZA GARCIA MACHADO - SP338087-A, CAMILA BARBOSA ANTONIO - SP366399-A, RAFFAELA LOPES CABRAL DE OLIVEIRA - SP391195-A, JOAO CARLOS LIMA DA SILVA - SP338420-A, RAPHAEL DE ALMEIDA MOURA LOUREIRO - SP377461-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

O EXMO. DESEMBARGADOR FEDERAL HÉLIO NOGUEIRA (RELATOR):

 

Trata-se de ação de reintegração de posse ajuizada por Rumo Malha Paulista S.A., atual denominação de ALL – América Latina Logística Malha Paulista S.A., contra Marcelo Israel de Souza, visando à desocupação de faixa de domínio compreendida no km ferroviário 211+139 na estação Manoel da Nóbrega, Município de Pedro de Toledo/SP.

Contra a decisão que declinou da competência para processar e julgar o feito (fls. 76/77), a parte autora interpôs o Agravo de Instrumento nº 0007750-14.2012.4.03.0000, ao qual foi dado provimento, para determinar a intimação da União e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT para que se manifestassem sobre eventual interesse na lide (fls. 110/111). Após manifestação, determinou-se a inclusão da autarquia federal na lide, na qualidade de assistente da autora (fls. 188/189, ID 58439949).

Indeferida a tutela de urgência requerida (fls. 203/205, ID 58439949 e ID 58439950).

Contestação combinada com pedido contraposto, pelo qual o réu requereu a declaração de usucapião da propriedade discutida (fls. 274/286), o qual restou indeferido (fl. 395, ID 58439951).

Sobreveio sentença, que (i) homologou a desistência da reconvenção, extinguindo-a sem resolução de mérito; e (ii) julgou procedente o pedido para reintegrar a autora na posse da área em discussão. Deferido o pedido liminar, para expedição de mandado de reintegração de posse, concedendo, não obstante, o prazo de sessenta dias para desocupação voluntária. Sem custas. Honorários advocatícios fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, observado o disposto no § 3º do artigo 98 do Código de Processo Civil (fls. 398/408, ID 58439952).

Apela o réu (fls. 413/ 427, ID 58439952). Preliminarmente, argui a ocorrência de cerceamento de defesa, porquanto não teria sido dada vista dos autos à Defensoria Pública da União, bem como em razão do indeferimento da prova pericial requerida, a qual não se sujeitaria à preclusão. No mérito, alega a prevalência dos princípios da função social da propriedade, do direito à moradia e da dignidade da pessoa humana, ante a ausência de destinação útil da área discutida, já que a linha férrea estaria desativada. Sustenta, ainda, fazer jus à indenização por benfeitorias edificadas no imóvel.

Com contrarrazões (ID 58439954), subiram os autos.

O pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso foi indeferido nos autos nº 5024544-15.2018.4.03.0000.

O DD. Órgão do Ministério Público Federal manifestou-se pelo regular prosseguimento do feito (ID 128817568).

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 


APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0001287-77.2012.4.03.6104

RELATOR: Gab. 03 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA

APELANTE: MARCELO ISRAEL DE SOUZA

 

APELADO: RUMO MALHA PAULISTA S.A.

Advogados do(a) APELADO: ANA LUIZA GARCIA MACHADO - SP338087-A, CAMILA BARBOSA ANTONIO - SP366399-A, RAFFAELA LOPES CABRAL DE OLIVEIRA - SP391195-A, JOAO CARLOS LIMA DA SILVA - SP338420-A, RAPHAEL DE ALMEIDA MOURA LOUREIRO - SP377461-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

O EXMO. DESEMBARGADOR FEDERAL HÉLIO NOGUEIRA (RELATOR):

 

Inicialmente, afasto a preliminar de nulidade da sentença por falta de intimação pessoal da Defensoria Pública da União. A DPU teve atendido seu pedido de vista dos autos, tendo deles feito carga antes do protocolo do recurso de apelação, como comprovam as fls. 411/412 (ID 58439952).

Com relação ao cerceamento de defesa decorrente do indeferimento da prova pericial, em observância ao artigo 370 do Código de Processo Civil, deve prevalecer a prudente discrição do magistrado no exame da necessidade ou não da realização de prova em audiência, de acordo com as peculiaridades do caso concreto.

Nesse sentido já decidiram o Superior Tribunal de Justiça e esta Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

 

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REEXAME DE PROVAS. SUMULA/STJ. ENUNCIADO 7. DEPOIMENTO PESSOAL. DESISTENCIA IMPLICITA DA PARTE QUE O REQUEREU. PRUDENTE DISCRIÇÃO NO EXAME DAS PROVAS. DEFENSORIA PUBLICA NÃO-INTIMAÇÃO. TRATAMENTO DESIGUAL DAS PARTES. INOCORRENCIA. NOMEAÇÃO DE ADVOGADO DATIVO. RECURSO DESACOLHIDO.

I- NÃO SE HA DE FALAR EM NULIDADE PELA AUSENCIA DO DEPOIMENTO PESSOAL DA AUTORA, APESAR DE ANTERIORMENTE DEFERIDO, SE DISPENSADO PELA PARTE QUE O REQUEREU E PELO MAGISTRADO, EM SUA PRUDENTE DISCRIÇÃO NO EXAME DAS PROVAS.

II- INEXISTE TRATAMENTO DESIGUAL DAS PARTES QUANDO, EM FACE DAS CIRCUNSTANCIAS DA CAUSA E DADA A OMISSÃO DA DEFENSORIA PUBLICA EM ACOMPANHAR A CAUSA, E NOMEADO ADVOGADO DATIVO PARA A REALIZAÇÃO DA AUDIENCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO.

III- E VEDADO EM SEDE DE ESPECIAL DO REEXAME DAS PROVAS DOS AUTOS, A TEOR DO ENUNCIADO 7 DA SUMULA/STJ.

(STJ, REsp 86.430/RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 26/05/1998, DJ 03/08/1998, p. 242)

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUÁRIO. AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL. PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL E PERICIAL CONMTÁBIL. DESNECESSIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA AUSENTE. ENTENDIMENTO DO ARTIGO 130, DO CPC.

1. O artigo 130, do Código de Processo Civil dispõe que, "caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias".

2. Neste caso, não cabe a interferência no entendimento do MM. Juízo a quo sobre a necessidade de produção de provas.

3. Ademais, a questão fiscal relativa à prova do recolhimento das contribuições discutidas pode ser provada documentalmente.

4. Ressalte-se, que o MM. Juízo a quo facultou ao contribuinte a juntada de laudo técnico, o que afasta o cerceamento de defesa.

5. Agravo de instrumento improvido.

(TRF 3ª Região, PRIMEIRA TURMA, AI 0012147-48.2014.4.03.0000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ STEFANINI, julgado em 14/04/2015, e-DJF3 Judicial 1 DATA:24/04/2015)

 

No caso dos autos, não há falar em cerceamento de defesa decorrente da não realização de prova pericial, na medida em que referida prova mostra-se de todo inútil ao deslinde da causa, para o qual basta a prova documental juntada aos autos.

No mérito, o apelo não pode ser acolhido. O apelante se refere à área pública invadida como carecedora de destinação útil, uma vez que a linha férrea estaria desativada. Assim, por não ter função social e em nome do direito constitucional à moradia, sua permanência estaria legitimada.

É certo que o uso da propriedade não se dissocia da sua função social. Todavia, não se pode indiscriminadamente (e convenientemente) concluir que, se a linha férrea em determinado trecho está inoperante, então a propriedade não tem função social e pode ser tomada por particular em nome do direito à moradia.

No presente caso, a propriedade esbulhada consiste em área non aedificandi compreendida dentro da faixa de domínio de linha férrea. Sua função social existe, portanto, estando vinculada à infraestrutura de transporte de cargas. Deve-se considerar que o fato de o trecho ferroviário estar temporariamente inoperante não exclui que venha a ser ativado a qualquer momento, para o que é crucial que não haja habitações clandestinas em sua faixa de domínio.

Assim, a conduta do apelante, além de ilegal, porquanto contrária à regulação da ocupação de imóveis da União dada pelo Decreto-lei nº 9.760/1946, é também contrária à ética e não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário pela simples invocação do direito à moradia. A carência de moradias dignas não autoriza ninguém a praticar esbulho, como a escassez de recursos não autoriza ninguém a fazer ligações clandestinas de água e esgoto com o intuito de não pagar a taxa correspondente ao serviço, por exemplo.

Quanto ao pedido de indenização por benfeitorias realizadas na área invadida, incabível.

Como visto, a ocupação dos imóveis de titularidade da União está submetida ao regramento instituído pelo Decreto-lei nº 9.760/1946, cujo artigo 71 dispõe que, na falta de assentimento (expresso, inequívoco, válido e atual) da autoridade legitimamente incumbida na sua guarda e zelo, o ocupante poderá ser sumariamente despejado e perderá, sem direito à indenização, tudo quanto haja incorporado ao solo.

Havendo legislação especial sobre a matéria, as disposições do Código Civil acerca da indenização por benfeitorias (artigos 1.219 e 1.220) não se aplicam ao caso. Desse modo, o caso concreto comportaria indenização por benfeitorias e acessões somente se, nos termos do artigo 90 do Decreto-lei nº 9.760/1946, houvesse prévia notificação do proprietário (Poder Público).

Assim, para fazer jus à indenização por acessões e benfeitorias, o administrado tem o ônus de provar: a) a regularidade e a boa-fé da ocupação, exploração ou uso do bem, lastreadas em assentimento expresso, inequívoco, válido e atual; b) o caráter necessário das benfeitorias e das acessões; c) a notificação, escorreita na forma e no conteúdo, do órgão acerca da realização dessas acessões e benfeitorias.

Nesse sentido já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

 

ADMINISTRATIVO. JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO. BEM PÚBLICO. DECRETO-LEI 9.760/46 PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. BEM TOMBADO. ARTS. 11 E 17 DO DECRETO-LEI 25/1937. OCUPAÇÃO POR PARTICULARES. CONSTRUÇÃO. BENFEITORIAS. INDENIZAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO DE RETENÇÃO. DESCABIMENTO. ARTS. 100, 102, 1.196, 1.219 E 1.255 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.

1. Fundado em 1808 por Dom João VI, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro é um dos tesouros do patrimônio natural, histórico, cultural e paisagístico do Brasil, de fama internacional, tendo sido um dos primeiros bens tombados, ainda em 1937, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sob o pálio do então recém-promulgado Decreto-Lei 25/1937.

2. Os remanescentes 140 hectares, que atualmente formam o Jardim Botânico, são de propriedade da União, o que, independentemente das extraordinárias qualidades naturais e culturais, já obriga que qualquer utilização, uso ou exploração privada seja sempre de caráter excepcional, por tempo certo e cabalmente motivada no interesse público.

3. Não obstante leis de sentido e conteúdo induvidosos, que salvaguardam a titularidade dos bens confiados ao controle e gestão do Estado, a história fundiária do Brasil, tanto no campo como na cidade, está, infelizmente até os dias atuais, baseada na indevida apropriação privada dos espaços públicos, com freqüência às claras e, mais grave, até com estímulo censurável, tanto por ação como por leniência, de servidores públicos, precisamente aqueles que deveriam zelar, de maneira intransigente, pela integridade e longevidade do patrimônio nacional.

4. Além de rasgar a Constituição e humilhar o Estado de Direito, substituindo-o, com emprego de força ou manobras jurídicas, pela "lei da selva", a privatização ilegal de espaços públicos, notadamente de bens tombados ou especialmente protegidos, dilapida o patrimônio da sociedade e compromete o seu gozo pelas gerações futuras.

5. Consoante o Código Civil (de 2002), "Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião" (art. 102) e os "de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação" (é o caso do Jardim Botânico), nos termos do art. 100. Mais incisiva ainda a legislação do patrimônio histórico e artístico nacional, quando dispõe que "As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades" (art. 11, do Decreto-Lei 25/1937, grifo acrescentado).

6. A ocupação, a exploração e o uso de bem público - sobretudo os de interesse ambiental-cultural e, com maior razão, aqueles tombados - só se admitem se contarem com expresso, inequívoco, válido e atual assentimento do Poder Público, exigência inafastável tanto pelo Administrador como pelo Juiz, a qual se mantém incólume, independentemente da ancianidade, finalidade (residencial, comercial ou agrícola) ou grau de interferência nos atributos que justificam sua proteção.

7. Datar a ocupação, construção ou exploração de longo tempo, ou a circunstância de ter-se, na origem, constituído regularmente e só depois se transformado em indevida, não purifica sua ilegalidade, nem fragiliza ou afasta os mecanismos que o legislador instituiu para salvaguardar os bens públicos. Irregular é tanto a ocupação, exploração e uso que um dia foram regulares, mas deixaram de sê-lo, como os que, por nunca terem sido, não podem agora vir a sê-lo.

8. No que tange ao Jardim Botânico do Rio, nova ou velha a ocupação, a realidade é uma só: o bem é público, tombado, e qualquer uso, construção ou exploração nos seus domínios demanda rigoroso procedimento administrativo, o que não foi, in casu, observado.

9. Na falta de autorização expressa, inequívoca, válida e atual do titular do domínio, a ocupação de área pública é mera detenção ilícita ("grilagem", na expressão popular), que não gera - nem pode gerar, a menos que se queira, contrariando a mens legis, estimular tais atos condenáveis - direitos, entre eles o de retenção, garantidos somente ao possuidor de boa-fé pelo Código Civil. Precedentes do STJ.

10. Os imóveis pertencentes à União Federal são regidos pelo Decreto-Lei 9.760/46, que em seu art. 71 dispõe que, na falta de assentimento (expresso, inequívoco, válido e atual) da autoridade legitimamente incumbida na sua guarda e zelo, o ocupante poderá ser sumariamente despejado e perderá, sem direito a indenização, tudo quanto haja incorporado ao solo, ficando ainda sujeito ao disposto nos arts. 513, 515 e 517 do Código Civil de 1916.

11. A apropriação, ao arrepio da lei, de terras e imóveis públicos (mais ainda de bem tombado desde 1937), além de acarretar o dever de imediata desocupação da área, dá ensejo à aplicação das sanções administrativas e penais previstas na legislação, bem como à obrigação de reparar eventuais danos causados.

12. Aplica-se às benfeitorias e acessões em área ou imóvel público a lei especial que rege a matéria, e não o Código Civil, daí caber indenização tão-só se houver prévia notificação do proprietário (art. 90 do Decreto-lei 9.760/46).

13. Simples detenção precária não dá ensejo a indenização por acessões e benfeitorias, nem mesmo as ditas necessárias, definidas como "as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore" (Código Civil, art. 96, § 3°). Situação difícil de imaginar em construções que deverão ser demolidas, por imprestabilidade ou incompatibilidade com as finalidades do Jardim Botânico (visitação pública e conservação da flora), a antítese do fim de "conservar o bem ou evitar que se deteriore".

14. Para fazer jus a indenização por acessões e benfeitorias, ao administrado incumbe o ônus de provar: a) a regularidade e a boa-fé da ocupação, exploração ou uso do bem, lastreadas em assentimento expresso, inequívoco, válido e atual; b) o caráter necessário das benfeitorias e das acessões; c) a notificação, escorreita na forma e no conteúdo, do órgão acerca da realização dessas acessões e benfeitorias.

15. Eventual indenização, em nome das acessões e benfeitorias que o ocupante ilegal tenha realizado, deve ser buscada após a desocupação do imóvel, momento e instância em que o Poder Público também terá a oportunidade, a preço de mercado, de cobrar-lhe pelo período em que, irregularmente, ocupou ou explorou o imóvel e por despesas de demolição, assim como pelos danos que tenha causado ao próprio bem, à coletividade e a outros valores legalmente protegidos.

16. Inexiste boa-fé contra expressa determinação legal. Ao revés, entende-se agir de má-fé o particular que, sem título expresso, inequívoco, válido e atual ocupa imóvel público, mesmo depois de notificação para abandoná-lo, situação típica de esbulho permanente, em que cabível a imediata reintegração judicial.

17. Na ocupação, uso ou exploração de bem público, a boa-fé é impresumível, requisitando prova cabal a cargo de quem a alega. Incompatível com a boa-fé agir com o reiterado ânimo de se furtar e até de burlar a letra e o espírito da lei, com sucessivas reformas e ampliações de construção em imóvel público, por isso mesmo feitas à sua conta e risco.

18. Na gestão e controle dos bens públicos impera o princípio da indisponibilidade, o que significa dizer que eventual inércia ou conivência do servidor público de plantão (inclusive com o recebimento de "aluguel") não tem o condão de, pela porta dos fundos da omissão e do consentimento tácito, autorizar aquilo que, pela porta da frente, seria ilegal, caracterizando, em vez disso, ato de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992), que como tal deve ser tratado e reprimido.

19. A grave crise habitacional que continua a afetar o Brasil não será resolvida, nem seria inteligente que se resolvesse, com o aniquilamento do patrimônio histórico-cultural nacional. Ricos e pobres, cultos e analfabetos, somos todos sócios na titularidade do que sobrou de tangível e intangível da nossa arte e história como Nação. Daí que mutilá-lo ou destruí-lo a pretexto de dar casa e abrigo a uns poucos corresponde a deixar milhões de outros sem teto e, ao mesmo tempo, sem a memória e a herança do passado para narrar e passar a seus descendentes.

20. Recurso Especial não provido.

(STJ, REsp 808.708/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/08/2009, DJe 04/05/2011)

 

No caso, a boa-fé já é de pronto afastada pelo esbulho. Além disso, não se pode considerar como benfeitoria necessária (“as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore”, nos termos do § 3º do artigo 96 do Código Civil) uma construção irregular erigida sobre a área non aedificandi de faixa de domínio de linha férrea, porquanto incompatível com a finalidade do bem e fadada à demolição.

 

Ante o exposto, voto por afastar as preliminares suscitadas e, no mérito, negar provimento à apelação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


O DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ZAUHY:

 

V O T O

Peço vênia ao eminente Relator para dele divergir quanto ao deslinde da causa.

Cuida-se, na origem, de ação de reintegração de posse ajuizada por Rumo Malha Paulista S.A visando à desocupação de faixa de domínio compreendida no km ferroviário 211+139, na estação Manoel da Nóbrega, Município de Pedro de Toledo/SP. O feito foi devidamente processado no primeiro grau de jurisdição, contando, inclusive, com a apresentação de reconvenção por parte do réu, por meio da qual requereu a declaração de usucapião.

Sobreveio, então, sentença proferida pelo juízo de primeiro grau, por meio da qual (i) homologou a desistência da reconvenção, extinguindo-a sem resolução de mérito; e (ii) julgou procedente o pedido de reintegração de posse formulado pela Rumo Malha Paulista S.A, deferindo-se pedido liminar para imediata expedição de mandado de reintegração de posse, com prazo de 60 (sessenta) dias para a desocupação. Houve condenação em honorários advocatícios fixados no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, observada a disposição do art. 98, §3º, do Código de Processo Civil de 2015.

O réu Marcelo Israel de Souza apelou, alegando, em preliminar recursal, o cerceamento do seu direito de defesa, pois não foi dada vista dos autos à Defensoria Pública da União, assim como em razão do indeferimento do requerimento de produção de prova pericial. No mérito recursal, aduz que devem prevalecer os princípios da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, assim como o seu direito à moradia, uma vez que a linha férrea estava desativada. Assevera que faz jus à indenização por benfeitorias que edificou no imóvel cuja posse perdeu.

Foram apresentadas contrarrazões e o Ministério Público Federal se manifestou pelo mero prosseguimento do feito. O eminente relator da apelação, o Desembargador Federal Hélio Nogueira, levou a apelação a julgamento na sessão realizada por esta Egrégia Primeira Turma no dia 26 de maio de 2020, ocasião em que pedi vista dos autos para melhor inteirar-me dos pontos debatidos na lide.

Entendeu o eminente Relator pelo afastamento das preliminares recursais de cerceamento de defesa em razão da ausência de intimação da Defensoria Pública da União e do indeferimento do requerimento de produção da prova pericial. No mérito, Sua Excelência salientou que a reintegração de posse de fato deveria ter sido determinada pelo juízo de primeira instância, uma vez que o imóvel ocupado compreendia área non aedificandi da faixa de domínio de linha férrea, e o esbulho praticado pelo réu não poderia ser legitimado pelo princípio da função social da propriedade e pelo direito à moradia.

Em arremate, o eminente Relator afastou o requerimento pela indenização em função das benfeitorias realizadas no local, ao argumento de que, havendo normas especiais a reger o tema (o art. 90 do Decreto-Lei n. 9.760/1946), não seria possível incidir à espécie os artigos 1.219 e 1.220 do Código Civil de 2002. O Desembargador Federal Hélio Nogueira assentou que o administrado teria o ônus de comprovar que a sua ocupação seria consentida pela Rumo Malha Paulista S.A e que as benfeitorias realizadas eram necessárias e comunicadas à empresa para que fizesse jus ao recebimento de indenização por elas.

Traçado o contexto subjacente à lide, divirjo do eminente Relator, pelas razões expostas na sequência.

Conforme remansosa lição doutrinária, os bens públicos se dividem em três categorias distintas: a dos bens públicos de uso comum, dos bens públicos de uso especial e a dos bens públicos dominicais ou dominais. A respeito da classificação em referência, assim dispõe o art. 99 do Código Civil de 2002:

 “Art. 99. São bens públicos:

I - os de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças;

II - os de uso especial, tais como edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração federal, estadual, territorial ou municipal, inclusive os de suas autarquias;

III - os dominicais, que constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal, ou real, de cada uma dessas entidades.

Parágrafo único. Não dispondo a lei em contrário, consideram-se dominicais os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público a que se tenha dado estrutura de direito privado.”

Como se percebe pela dicção do dispositivo, não existe uma definição legal do que venham a ser bens públicos de uso especial, de uso comum e os dominicais, pois o preceptivo legal se limitou a recorrer a exemplos do que seriam uns e outros, sem entrar em detalhes acerca dos seus respectivos conceitos. Coube, então, à doutrina assumir tal tarefa de delimitação conceitual das espécies de bens públicos.

Em linhas gerais, são os bens públicos de uso comum do povo aqueles que destinados a uma função pública mais ampla, servindo à coletividade, não admitindo avaliação patrimonial. De seu turno, os bens públicos de uso especial são aqueles que estão afetados ao desempenho de um determinado serviço público ou a uma função pública específica, admitindo efetiva avaliação patrimonial. Por fim, os bens dominicais são aqueles que integram o patrimônio público, mas que não estão afetados ao desempenho de uma função pública específica.

Justamente por não estarem afetados a uma finalidade de interesse público, os bens dominicais são bens patrimoniais disponíveis, ao contrário do que se passa em relação aos bens de uso comum do povo e os bens de uso especial, que não admitem disposição por parte da Administração Pública, a não ser, quanto aos de uso especial, que haja uma desafetação anterior, ou seja, que eles sejam desvinculados da atividade de interesse público para a qual estão servindo.

Nessa ordem de ideias, observo que a desafetação de um bem público é a retirada da finalidade pública que este exercia, e que ela tem o condão de afastar o regime dos bens públicos que até então incidia sobre o bem ou a coisa, inclusive trazendo a possibilidade de posse de particulares sobre o imóvel, e não mera detenção, como se costuma asseverar. Nesse sentido, cumpre transcrever ilustrativo texto a respeito:

“Há entendimento da incompatibilidade da posse de particulares sobre bens públicos. Contra a vontade do Poder Público, teria o particular simples detenção sobre a coisa. Não parece ser exata tal posição, que somente se aplica aos bens públicos de uso comum do povo ou de uso especial. Claro que não possuo a rua sobre a qual transito com o meu veículo, nem o parque onde passo horas de recreio, nem o prédio da repartição onde vou tirar uma certidão. É possível, porém, a posse de particulares sobre bens públicos dominicais, sem destinação pública. Tal posse será ad interdicta e não ad usucapionem, na impossibilidade de o possuidor adquirir a sua propriedade pela via da usucapião. Os demais efeitos da posse, como a tutela possessória, indenização por benfeitorias, direito à percepção de frutos, porém, produzem-se normalmente, contra terceiros e contra o Poder Público, de acordo com a boa-fé ou a má-fé do possuidor.” (Cf. LOUREIRO, Francisco Eduardo. In: Código Civil Comentado: Doutrina e jurisprudência – Lei n. 10.406, de 10.01.2002. Coordenação do Ministro Cezar Peluso. 14 ed. São Paulo: Manole, 2020, p. 1.159)(grifei)

Registro, ainda, que a desafetação pode ocorrer de forma expressa ou tácita. Quer isso significar que um bem público não precisa aguardar a realização de um ato expresso da Administração Pública para que se torne um bem dominical. É possível que essa caracterização decorra de comportamentos da Administração Pública ou de concessionárias de serviços públicos, sobretudo omissivos, que demonstrem que o tratamento dado ao bem é o relativo aos bens dominicais, pois estes já não se prestariam mais ao desempenho de uma função pública.

Pois bem.

No caso dos autos, a linha férrea próximo da qual se instalou o réu estava completamente abandonada, o que o levou, aliás, a dela se aproximar e se instalar, inclusive implementando benfeitorias no local. O comportamento omissivo da Rumo Malha Paulista S.A esvaiu o bem da finalidade pública para a qual ele se prestava e o caracterizou, para os fins e efeitos do direito à indenização em favor do réu, como um bem dominical.

Se é certo que a aquisição do imóvel pela usucapião e a permanência do réu no local se revelam inviáveis em virtude do regramento legal que impede a proximidade com a linha férrea, tem-se que, de outro lado, nada impede o direito do réu às benfeitorias ali realizadas, vez que a linha férrea não foi devidamente fiscalizada pela Rumo Malha Paulista S.A. ao longo do tempo, situação que emprestou ao imóvel a caracterização de autêntico e verdadeiro bem dominical, sobre o qual incidem normas distintas daquelas aplicáveis aos bens públicos de uso comum e de uso especial.

Registro, por relevante, que quando o Poder Público ou uma concessionária de serviço público são extremamente omissos e recalcitrantes no seu dever de fiscalizar as linhas férreas, permitindo a ocupação de áreas próximas por pessoas de boa-fé, inclusive mediante a construção de benfeitorias, deve o ocupante realmente sair do local, pois não há direito à retenção do imóvel, mas não sem a correspondente indenização a que faz jus. Nesse sentido, transcrevo importante aresto jurisprudencial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região:

“ADMINISTRATIVO. AÇÃO DEMOLITÓRIA. FAIXA NON AEDIFICANDI. PERÍCIA. COMPROVAÇÃO DA LOCALIZAÇÃO DO IMÓVEL. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS. PREPONDERÂNCIA DA SEGURANÇA NO TRÂNSITO SOBRE A LIBERDADE DE EXPLORAÇÃO DE ATIVIDADE PROFISSIONAL. PECUALIARIDADES DO CASO CONCRETO. 1.- Comprovado que o estabelecimento comercial situa-se dentro da área não edificável, conforme laudo pericial, corretas a demolição e limpeza determinadas. 2.- Em caso de eventual colisão dos princípios da liberdade de exploração de atividade profissional ou livre iniciativa em face da segurança pública, deve-se conferir, na espécie, maior peso e importância a este último, sob pena de ficar inviabilizado, em breve espaço de tempo, a circulação automobilística do local. 3- Há, todavia, de ser observada a peculiaridade do caso concreto. Sendo o DNIT extremamente omisso no seu dever de fiscalizar, não zelando adequadamente pela área objeto desta ação, pois há muito tempo tinha conhecimento da ocupação irregular, é de ser mantida a sentença que na área não edificável contígua daquela, caberá ao mesmo indenizar-lhe, antes de exigir-lhe a demolição e saída do local.” (grifei)

(TRF4, AC 5002297-25.2010.4.04.7200, TERCEIRA TURMA, Relatora MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA, juntado aos autos em 09/11/2012)

O valor devido como indenização pelas benfeitorias realizadas é impossível de ser aferido nesta sede recursal, na medida em que ele não foi apurado no primeiro grau de jurisdição. Assim, impõe-se reconhecer o direito à indenização ao apelante (sem o direito de retenção do imóvel), cabendo apurar o montante indenizatório em liquidação por arbitramento.

Ante o exposto, voto por dar parcial provimento ao recurso de apelação interposto, para o fim de garantir ao recorrente a indenização pelas benfeitorias realizadas no imóvel (sem o direito de retenção do bem), em montante a ser apurado em liquidação por arbitramento.

É como voto.


E M E N T A

 

ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE INTIMAÇÃO PESSOAL DA DPU: AFASTADA. CERCEAMENTO DE DEFESA DECORRENTE DO INDEFERIMENTO DE PROVA PERICIAL: INOCORRÊNCIA. CONSTRUÇÃO IRREGULAR EM ÁREA NON AEDIFICANDI DA FAIXA DE DOMÍNIO DE LINHA FÉRREA. ESBULHO NÃO LEGITIMADO PELO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E PELO DIREITO À MORADIA. INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS: NÃO CABIMENTO. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. A DPU teve atendido seu pedido de vista dos autos, tendo deles feito carga antes do protocolo do recurso de apelação, como comprovam as fls. 411/412.

2. Em observância ao artigo 370 do Código de Processo Civil, deve prevalecer a prudente discrição do magistrado no exame da necessidade ou não da realização de prova em audiência, de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Precedentes.

3. No caso dos autos, não há falar em cerceamento de defesa decorrente da não realização de prova pericial, na medida em que referida prova mostra-se de todo inútil ao deslinde da causa, para o qual basta a prova documental juntada aos autos.

4. É certo que o uso da propriedade não se dissocia da sua função social. Todavia, não se pode indiscriminadamente (e convenientemente) concluir que, se a linha férrea em determinado trecho está inoperante, então a propriedade não tem função social e pode ser tomada por particular em nome do direito à moradia.

5. No presente caso, a propriedade esbulhada consiste em área non aedificandi compreendida dentro da faixa de domínio de linha férrea. Sua função social existe, portanto, estando vinculada à infraestrutura de transporte de cargas. Deve-se considerar que o fato de o trecho ferroviário estar temporariamente inoperante não exclui que venha a ser ativado a qualquer momento, para o que é crucial que não haja habitações clandestinas em sua faixa de domínio.

6. A conduta do apelante, além de ilegal, porquanto contrária à regulação da ocupação de imóveis da União dada pelo Decreto-lei nº 9.760/1946, é também contrária à ética e não pode ser chancelada pelo Poder Judiciário pela simples invocação do direito à moradia. A carência de moradias dignas não autoriza ninguém a praticar esbulho, como a escassez de recursos não autoriza ninguém a fazer ligações clandestinas de água e esgoto com o intuito de não pagar a taxa correspondente ao serviço, por exemplo.

7. A ocupação dos imóveis de titularidade da União está submetida ao regramento instituído pelo Decreto-lei nº 9.760/1946, cujo artigo 71 dispõe que, na falta de assentimento (expresso, inequívoco, válido e atual) da autoridade legitimamente incumbida na sua guarda e zelo, o ocupante poderá ser sumariamente despejado e perderá, sem direito à indenização, tudo quanto haja incorporado ao solo.

8. Havendo legislação especial sobre a matéria, as disposições do Código Civil acerca da indenização por benfeitorias (artigos 1.219 e 1.220) não se aplicam ao caso. Desse modo, o caso concreto comportaria indenização por benfeitorias e acessões somente se, nos termos do artigo 90 do Decreto-lei nº 9.760/1946, houvesse prévia notificação do proprietário (Poder Público).

10. Para fazer jus à indenização por acessões e benfeitorias, o administrado tem o ônus de provar: a) a regularidade e a boa-fé da ocupação, exploração ou uso do bem, lastreadas em assentimento expresso, inequívoco, válido e atual; b) o caráter necessário das benfeitorias e das acessões; c) a notificação, escorreita na forma e no conteúdo, do órgão acerca da realização dessas acessões e benfeitorias. Precedente.

11. No caso, a boa-fé já é de pronto afastada pelo esbulho. Além disso, não se pode considerar como benfeitoria necessária (“as que têm por fim conservar o bem ou evitar que se deteriore”, nos termos do § 3º do artigo 96 do Código Civil) uma construção irregular erigida sobre a área non aedificandi de faixa de domínio de linha férrea, porquanto incompatível com a finalidade do bem e fadada à demolição.

12. Preliminares afastadas. Apelação não provida.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, prosseguindo no julgamento, nos termos do artigo 942 do Código de Processo Civil, a Primeira Turma, por maioria, afastou as preliminares suscitadas e, no mérito, negou provimento à apelação, nos termos do voto do senhor Desembargador Federal relator, acompanhado pelos votos dos senhores Desembargadores Federais Valdeci dos Santos, Cotrim Guimarães e Carlos Francisco; vencido o senhor Desembargador Federal Wilson Zauhy, que lhe dava parcial provimento para o fim de garantir ao recorrente a indenização pelas benfeitorias realizadas no imóvel (sem o direito de retenção do bem), em montante a ser apurado em liquidação por arbitramento, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.