Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0004044-50.2017.4.03.6110

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

APELANTE: ASSUNTA MARIA LABRONICI GOMES

Advogado do(a) APELANTE: RENATO PAES DE CAMARGO - SP208695-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0004044-50.2017.4.03.6110

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

APELANTE: ASSUNTA MARIA LABRONICI GOMES

Advogado do(a) APELANTE: RENATO PAES DE CAMARGO - SP208695-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de apelação criminal interposta por Assunta Maria Labronici Gomes contra a sentença (p. 37/51 do Id n. 151736321) que a condenou a 6 (seis) meses de detenção, em regime inicial de cumprimento de pena aberto, pela prática do delito do art. 1º, III do Decreto-lei n. 201/67. A pena privativa de liberdade foi substituída por uma pena restritiva de direitos consistente em prestação de serviços à comunidade pelo tempo da pena substituída. A ré foi condenada ao pagamento, em favor da União (FNDE/PNAE), do valor que não foi destinado, em 2010, para a compra dos produtos oriundos da agricultura familiar (R$ 202.482,00), mais o valor que faltou para completar o percentual dos 30% relativos ao ano de 2011 (R$ 55.731,72), quantias que deverão ser devidamente corrigidas, quando da quitação, com fundamento no art. 387, IV, do Código de Processo Penal c. c.  o art. 91, 1, do Código Penal e o § 20, última parte, do art. 11 do Decreto-lei n. 201/67.

Apela-se, em síntese, com os seguintes argumentos:

a) a verba para a aquisição de produtos alimentícios foi aplicada mesmo sem haver cooperativa organizada, conforme consta do demonstrativo sintético anual da execução físico-financeiro do PNAE, que também indica a situação de não organização de agricultura familiar no município de Boituva (SP) que atendesse ao programa;

b) não havia possibilidade de aquisição de gêneros alimentícios nos moldes legais, de maneira que não restou configurado o delito imputado à acusada, levando-se em conta, ainda, que o valor foi usado para obtenção dos gêneros alimentícios;

c) o relatório da municipalidade do ano de 2011 informa que foi aplicado pelo município 89,57% da verba recebida para aquisição de gêneros alimentícios, ou seja, mais do que o que foi indicado na denúncia;

d) as testemunhas confirmaram em Juízo que não havia cooperativa organizada em Boituva (SP) e que isso não impediu que as verbas fossem para o seu destino, que era a aquisição de gêneros alimentícios, de maneira que não se caracterizou a prática do delito, impondo-se a absolvição da ré;

e) os incisos I e II, do art. 14 da Lei 11.947/09 estabelecem a possibilidade de que a observância do percentual de 30% (trinta por cento) fosse dispensada, o que veio a ser regulamentado em 2013, após os fatos ocorridos em 2010 e 2011;

f) a inexistência de cooperativa ou associação organizada enseja a possibilidade de dispensa de aplicação do percentual de 30% (trinta por cento), de modo a não restar configurado o delito;

g) caso seja mantida a condenação, requer-se que seja reconhecida a continuidade entre os crimes, com o aumento da pena na fração de 1/6 (um sexto);

h) desconsiderando a prova dos autos, o Juízo a quo condenou a acusada ao pagamento do valor que, em tese, não foi destinado,  para a compra dos produtos oriundos da agricultura familiar, ou seja, em 2010, R$ 202.482,00 (duzentos e dois mil, quatrocentos e oitenta e dois reais), e mais o valor que faltou para completar o percentual dos 30% relativos ao ano de 2011, que era R$ 55.731,72 (cinquenta e cinco mil, setecentos e trinta e um reais e setenta e dois centavos),  tudo devidamente corrigido, quando do pagamento;

i) tendo em vista que as verbas foram de fato usadas para a aquisição de alimentação escolar, se afigura desarrazoado determinar a obrigação de devolver os valores que não teriam sido aplicados conforme a destinação legal;

j) requer-se que a pena de prestação de serviços seja substituída por uma prestação pecuniária em quantia razoável, considerados os rendimentos mensais auferidos pela ré como aposentada, a ser paga para entidade pública com destinação social, em razão do atual cenário de pandemia de coronavírus e da idade da acusada (66 anos) (Id n. 151736322).

Foram apresentadas contrarrazões de apelação (Id n. 151736635).

O Ilustre Procurador Regional da República, Dr. Leonardo Cardoso de Freitas, manifestou-se pelo desprovimento do recurso (Id n. 152043393).

É o relatório.

Dispensada a revisão, nos termos regimentais.

 

 

 


APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0004044-50.2017.4.03.6110

RELATOR: Gab. 15 - DES. FED. ANDRÉ NEKATSCHALOW

APELANTE: ASSUNTA MARIA LABRONICI GOMES

Advogado do(a) APELANTE: RENATO PAES DE CAMARGO - SP208695-A

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

 

 

 V O T O

 

Imputação.  A ré Assunta Maria Labronici Gomes foi denunciada pela prática do delito do art. 1º, III, do Decreto-lei n. 201/67, por não ter destinado ao Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, por duas vezes, nos anos de 2010 e 2011, os recursos financeiros da União repassados por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE ao município de Boituva (SP), do qual era prefeita à época dos fatos. 

Consta da denúncia que o art. 14 da Lei n. 11.947/2009 dispõe que "do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas".  

Entretanto, segundo a peça acusatória, no ano de 2010, o município recebeu do FNDE o valor de R$ 674.940,00 (seiscentos e setenta e quatro mil, novecentos e quarenta reais), não tendo destinado qualquer porcentagem dessa quantia para a aquisição de gêneros oriundos da agricultura familiar. E, no ano de 2011, o município recebeu do FNDE R$ 669.000,00 (seiscentos e sessenta e nove mil reais), tendo destinado R$ 114.194,28 (cento e quatorze mil, cento e noventa e quatro reais e vinte e oito centavos) à aquisição de produtos junto aos fornecedores da Agricultura Familiar, que corresponde 17,07% do que foi recebido:

Alegações Gerais: Serão relevantes a todo tempo nesta denúncia, a menos que de outro modo indicado:

1. 0 Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE tem por objetivo "contribuir para o crescimento e o desenvolvimento biopsicossocial, a aprendizagem, o rendimento escolar e a formação de hábitos alimentares saudáveis dos alunos, por meio de ações de educação alimentar e nutricional e da oferta de refeições que cubram as suas necessidades nutricionais durante o período letivo" (artigo 4' da Lei nº 11.947/2009).

2. Para execução do programa, recursos financeiros da União são repassados em parcelas aos Estados, ao Distrito Federal, Municípios e escolas federais, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, em conformidade com o que dispõe o artigo 208 da Constituição Federal. Os recursos são transferidos aos demais entes mediante depósito em conta -corrente específica, devendo ser incluídos nos respectivos orçamentos, e serão utilizados exclusivamente na aquisição de gêneros alimentícios (artigo 51, §§ 1' e 2% da Lei ri' 11.947/2009).

3. A Lei n" 11.947/2009 detalha e regulamenta o referido programa, especificando, dentre diversos outros pontos, as formas de fiscalização e controle, que serão exercidos por órgão da estrutura interna dos entes políticos e por entidades de controle externo. Desta forma, ressalta-se a atuação da Controladoria Geral da União (CGU) para fiscalização da execução do programa, notadamente diante da existência de verbas federais repassadas aos demais entes políticos.

4. Ademais, dispõe o artigo 14 da Lei n' 11.947/2009 que "do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando-se os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas" (sem destaques no original).

Acusação 1

 Artigo 1% 111, do Decreto -Lei n' 201/1967

1. Nos anos de 2010 e 2011, no município de Boituva, SP, ASSUNTA M~ LABRONICI GOMES, à época prefeita do referido município, aplicou indevidamente verbas públicas federais.

2. A Controladoria Geral da União - CGU realizou fiscalização no município de Boituva no período de 15/8/2013 a 28/11/2013, com o objetivo de avaliar a correta aplicação de recursos repassados ao município pelo Ministério da Educação através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE no período compreendido entre 11112010 e 28112/2012 (relatório de demandas externas ri' 00190.019840/2013-89, fis. 294/307). 3. Em conclusão aos trabalhos de fiscalização identificou-se que, nos anos de 20 10 e 2011, os recursos financeiros recebidos para aplicação no Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE não foram aplicados em conformidade com a lei, no tocante ao percentual mínimo destinado a aquisições de produtos provenientes de empreendedores e agricultores familiares e rurais (item 2.1.1.9 - fis. 302 verso/303).

4. 0 artigo 14 da Lei ri' 11.947/2009 determina que no mínimo 30% (trinta por cento) dos recursos recebidos do FNDE para aplicação do PNAE deverão ser utilizados na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações.

5. Contudo, no ano de 2010, o município recebeu do FNDE o montante de R$ 674.940,00, porém não destinou qualquer porcentagem do valor recebido para a aquisição de gêneros oriundos da Agricultura Familiar (fi. 302, verso).

6. Por sua vez, no ano de 2011, o município recebeu do FNDE o montante de R$ 669.000,00, e destinou R$ 114.194,28 à aquisição de produtos junto aos fornecedores da Agricultura Familiar, ou seja, 17,07% dos valores recebidos (fl. 302, verso).

7. Desta forma, tanto em 2010 quanto em 2011, o município de Boituva, SP não destinou o mínimo legal exigido para a aquisição de produtos da Agricultura Familiar.

 8. ASSUNTA MARIA LABRONICI GOMES exerceu mandato de prefeita no município de Boituva, SP entre os anos de 2005 e 2012.

9. Sendo assim, na qualidade de prefeita do município de Boituva, SP, ao ter aplicado indevidamente verbas públicas federais, por dois anos consecutivos, ASSUNTA MARIA LABRONICI GOMES praticou a conduta prevista no artigo 1% III, do Decreto -Lei ri' 20111967, na forma do artigo 71 do Código Penal.

Diante do exposto, o Ministério Público Federal requer o recebimento da denúncia e o prosseguimento do processo, com final condenação. Requer a aplicação, se cabível, da fixação de valor mínimo para reparação de danos causados pela infração, considerando os prejuízos do ofendido (artigo 387, IV, do Código de Processo Penal). (p. 4/7 do Id n. 151736320).

Desvio ou aplicação indevida de rendas ou verbas públicas. Decreto-Lei n. 201/67, art. 1º, III. Crime de mera conduta. O delito do inciso III do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/67 é de mera conduta, de modo que sua consumação prescinde de resultado naturalístico. O bem jurídico tutelado pela norma é a regularidade da Administração e, portanto, consuma-se o crime com a ação de desviar ou aplicar indevidamente rendas ou verbas públicas, em desacordo com sua destinação legal, independentemente de efetivo prejuízo aos cofres municipais:

AÇÃO PENAL. PREFEITO MUNICIPAL. APLICAÇÃO INDEVIDA DE VERBAS SUJEITAS A PRESTAÇÃO DE CONTAS PERANTE ÓRGÃO FEDERAL. ART. 1º, III, DO DECRETO-LEI Nº 201/67. (...) 1. Pratica o delito do art. 1º, III, do DL nº 201/69, na modalidade aplicar indevidamente, o Prefeito que, mesmo diante de prévia dotação e/ou destinação orçamentária dos recursos públicos sob seu gerenciamento, utiliza-os de maneira inadequada, quer aplicando menos do que lhe era exigido quer deixando de aplicar a verba ou a receita. O crime é de mera conduta, prescindindo da efetiva ocorrência de prejuízo aos cofres municipais. (...)

(TRF 4ª Região, AP n. 200404010170436, 4ª Seção, Rel. Des. Fed. Paulo Afonso Brum Vaz, j. 17.12.09)

Materialidade. A materialidade do delito está demonstrada pelo Relatório de Demandas Externas n. 00190.019840/2013-89,   que informa que em fiscalização realizada pela Controladoria Geral da União (CGU) conclui-se que em 2010 foi recebida pelo município de Boituva (SP) verba do FNDE no valor de R$ 674.940,00 (seiscentos e setenta e quatro mil, novecentos e quarenta reais), do qual nada foi destinado para a aquisição de gêneros alimentícios procedentes da agricultura familiar e que em 2011, apenas 17,07%, ou seja, R$ 114.194,28 (cento e catorze mil, cento e noventa e quatro reais e vinte e oito centavos), dos R$ 669.000,00 (seiscentos e sessenta e nove mil reais) recebidos foram destinados aos devidos fornecedores, percentual inferior ao previsto pela legislação. A ré era prefeita do município de Boituva no período de 2010 e 2011 (p. 8/20 do Id n. 151736590 e p. 2 do Id n. 151736591):

a) Fato:

Além dos insumos fornecidos pela empresa ERJ (contrato nº 67/2011) para preparo da Alimentação Escolar, a Prefeitura de Boituva efetuou, com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, a aquisição de gêneros oriundos da agricultura familiar, nos seguintes valores do período analisado:

 

Ano

Valor Aplicado na Agricultura Familiar - AF

Valor Recebido do PNAE

% (percentual) aplicado na AF

2010

0,00

674.940,00

0,00%

2011

114.194,28

669.000,00

17,07%

2012

346.508,43

746.004,00

46,45%

 

Como se verifica, nos anos de 2010 e 2011 a Prefeitura não aplicou o percentual mínimo de 30% na aquisição de gêneros oriundos da Agricultura Familiar, descumprindo o que preceitua o art. 18 da Resolução/CD/FNDE nº 38, de 16/07/2009, que diz:

“Art. 18 Do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) deverá ser utilizado na aquisição de gêneros alimentícios diretamente da Agricultura Familiar e do Empreendedor Familiar Rural ou suas organizações, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas, conforme artigo 14, da Lei nº 11.947/2009.”

b) Evidências:

Consulta repasses de recursos no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação -FNDE.

Relação de pagamentos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar disponibilizado pela Prefeitura de Boituva – SP.

c) Manifestação da Unidade Examinada:

Não houve manifestação.

d) Análise do Controle Interno:

Não se aplica.

Recomendação: 1

Orientar o gestor municipal quanto a operacionalização das aquisições de gêneros alimentícios da agricultura familiar, conforme prevê o art. 24 da Resolução FNDE nº 26/2013, inclusive quanto a regular justificativa de não observância do percentual previsto na Resolução.

e) Conclusão sobre a situação verificada:

Os exames apontaram que no ano de 2010 não houve aquisições junto à Agricultura Familiar e em 2011 essas não atingiram o percentual exigido (p. 2/3 do Id n. 151736591).

Ofício expedido pelo Ministério da Educação confirma que foi repassado para o município de Boituva (SP) no ano de 2010,  a verba no valor de R$ 674.940,00 (seiscentos e setenta e quatro mil, novecentos e quarenta reais) e que 30 % (trinta por cento) dessa quantia, ou seja, R$ 202.482,00 (duzentos e dois mil, quatrocentos e oitenta e dois reais) não havia sido utilizado para a aquisição de produtos alimentícios provenientes de agricultura familiar (Id n. 151736571).

A defesa aduz que em 2010 não existia cooperativa organizada para fornecimento de agricultura familiar no Município de Boituva, de maneira que conforme o art. 18, § 2º, I e II da Lei 11.947/09 haveria a possibilidade de dispensa da aplicação do percentual de 30% (trinta por cento), determinado pela legislação. Acrescenta que a verba foi utilizada para a aquisição de produtos alimentícios. E, que, portanto, não restou configurado o delito.

Entretanto, razão não lhe assiste.

A alegação de que não havia cooperativas organizadas para fornecimento nos moldes da legislação não é suficiente para afastar a comprovação da materialidade do delito.

Não há indicativo da total impossibilidade de cumprimento do que dispõem as normas do PNAE a ensejar suspensão ou justificar a não aplicação de 30% (trinta por cento) da verba recebida por meio do FNDE, conforme determinado pela lei.

 Conforme observado na sentença, não foram trazidos elementos que demonstrassem que foram procurados fornecedores na região, dentro do Estado de São Paulo:

Nada obstante os argumentos da defesa, certo que apenas na comprovada situação de impossibilidade total para o cumprimento das normas relativas ao PNAE, restaria justifícada a conduta da parte denunciada, de modo a excluir a tipicidade do fato.

Por “impossibilidade total para o cumprimento das normas relativas ao PNAE" deve-se compreender, limitando-se à presente questão, o seguinte: a inviabilidade no fornecimento regular e constante dos gêneros alimentícios, como dispensa para a compra dos gêneros diretamente da agricultura familiar, envolve, necessariamente, a tentativa da sua aquisição no mesmo ente federativo em que se localizam as escolas, conforme se conclui da interpretação sistemática envolvendo os arts. 13 e 14, § 20, li, da Lei ri. 11.94712009.

Ou seja, tão somente se admitiria a compra de tais produtos, 0observado procedimento diverso do tratado na lei, caso a Administração Municipal provasse que não obteve êxito em adquirí-los no próprio município onde localizadas as escolas (=Boituva), na região ou até mesmo em outra local situado no Estado de São Paulo (=mesmo ente federativo em que se localizam as escolas, na dicção legislativa).

Não foi o que aconteceu. Inexistem provas de que a Administração Municipal, na época, teria realizado as devidas diligências com o intuito de consultar a existência de fornecedor de tais produtos, esgotando a área definida na lei, no Estado de São Paulo.

Sendo assim, tenho por comprovado o descumprimento, injustificado, no ano de 2010, das normas relativas ao PNAE, pois não houve a destinação dos recursos necessários â compra referida na lei. Resta, por conseguinte, atestada a materialidade do crime narrado na peça acusatória (p.43/44 do Id n. 151736321).

O parecer do CAE sobre a execução do programa PNAE, constante do demonstrativo sintético anual da execução físico-financeira do PNAE (p. 89 do Id n. 151736320), confirma que pela Administração Municipal não foram buscados os produtos em outras regiões do Estado de São Paulo, fazendo referência a ausência desses no município. Tal documento apresenta a versão dos Conselheiros do CAE, que são no mesmo sentido das declarações das testemunhas, e não serve para justificar a não destinação pela Administração Municipal das verbas repassadas pela União nos termos determinados pela legislação.

E, no ano de 2011, mesmo já havendo a cooperativa, apenas parte do valor foi destinado, em percentual inferior aos 30% (trinta por cento) da verba recebida. Nesse ano foi destinado 17,07% do total recebido, faltando, portanto, empenhar mais 12,93% do total, para a aquisição de gêneros oriundos da agricultura familiar.

A defesa confirma que em 2011 não foi empregado o valor correspondente a 30% do total da verba recebida, assim como declararam as testemunhas, ouvidas em sede judicial.

Isso é corroborado pelo relatório do município, que contém relatório analítico dos credores (p. 92/93 do Id n. 151736320), segundo o qual deveria ter sido gasta a quantia de R$ 200.700,00 (duzentos mil e setecentos reais) com tal finalidade (30% de R$ 669.000,00). No entanto, foi efetivamente pago R$ 144.968,28 (cento e quarenta e quatro mil, novecentos e sessenta e oito reais e vinte e oito centavos), o que, repita-se está abaixo dos 30% (trinta por cento), já mencionado, previsto nas normas do PNAE, cumprindo diferenciar que o valor empenhado, R$ 179.766,66 (cento e setenta e nove mil, setecentos e sessenta e seis reais e sessenta e seis centavos), não se confunde com o que foi pago. Sendo certo, que ainda assim, não se teria sido utilizado os 30%  (trinta por cento) como determinado pela legislação do programa.

Portanto, uma vez que restou demonstrado que não houve a aplicação devida das verbas públicas, o que está em desacordo com a destinação legal, resta configurado o delito art. 1º, III do Decreto-lei n. 201/67.

Observe-se o parecer da Procuradoria Regional da República:

Como bem afirmou o r. decisum, a única justificativa para o não cumprimento das normas do PNAE é no caso de impossibilidade total para tanto, o que justificaria a conduta da parte e excluiria a tipicidade do fato. Porém, o argumento de que não havia cooperativa no ano de 2010 no Município é insatisfatório. Ao observarmos o art. 13 e 14 da Lei 11.947/2009 conclui-se que a aquisição dos gêneros alimentícios deve ser realizada no mesmo ente federativo em que se encontram as escolas, e não há evidências de que a parte buscou outros fornecedores devidos no âmbito do Estado de São Paulo, inclusive em regiões próximas. Importante dizer que apesar do que a apelante relata, de que realizou procedimento licitatório para o fornecimento das merendas à rede escolar, tal fato não a isenta da obrigação de tentar adquirir a compra dos gêneros alimentícios em outros lugares do Estado-membro, utilizando da verba pública conforme dispõe a lei. Com relação ao ano de 2011, quando já haveria uma cooperativa no Município, o mesmo se aplica. Apesar de parte dos 30% ter sido destinado de maneira correta, o valor está abaixo do mínimo legal, podendo se afirmar com clareza de que a então prefeita aplicou indevidamente as verbas públicas do FNDE nos anos de 2010 e 2011. Ainda, como foi bem exposto nas contrarrazões do Órgão Ministerial (Id. 151736635 – p. 3/4), apesar da prefeita atribuir a obrigação da aquisição dos alimentos ao seu secretário da educação, deve ter a ciência do tipo de conduta dos seus escolhidos em seu governo e é a principal responsável pela gestão do Município. Nesse sentido, fica evidente a materialidade do crime, não devendo a apelante ser absolvida. (p. 2/3 do Id n. 152043393).

Comprovada a materialidade delitiva.

Autoria. Resta evidenciada a autoria delitiva.

Carlos Candido de Melo, ouvido como testemunha, em Juízo, declarou que atuava como supervisor dos trabalhos da CGU e que a fiscalização mencionada nos autos foi conduzida por outros dois colegas, tendo sido realizada em 2013, por demanda do departamento da Polícia Federal. Explicou que supervisionou os trabalhos e a produção o relatório.   Asseverou que foram anotadas as constatações verificadas, dentre as quais recordava da questão sobre a aplicação das verbas para compra de alimentos de origem da agricultura familiar, que é tratada nos autos, e com relação à ausência da aquisição desses produtos no contrato de preparação de refeições, do qual também não constava a previsão da utilização da mão de obra das merendeiras que eram servidoras do município. Disse que o contrato foi executado com a utilização do trabalho das merendeiras, sem efetuar o devido desconto. Afirmou que não foi possível apurar todo o desvio de valor em que incorreu a prefeitura de Boituva (SP), por envolver a utilização de tal mão-de-obra. Declarou que durante a fiscalização houve a apresentação de documentos pela prefeitura e foram prestadas algumas informações, tendo então sido produzido o relatório ao final da fiscalização. E foram mantidas as constatações que não foram respondidas pela prefeitura. Confirmou as informações que constavam do relatório feito pela CGU, o qual ratificou em Juízo.  Disse que eram consideradas pela fiscalização as informações constantes do relatório feito pelo Conselho de Alimentação Escolar - CAE do município. Questionado com relação a informação de que no ano de 2010 não havia cooperativa de agricultura familiar do município e que a compra de produtos se deu por meio de empresa que fornecia merenda, explicou que para que fosse caracterizado que se trata de agricultura familiar era necessário que a cooperativa ou o produtor tivesse reconhecimento por parte do Ministério do Desenvolvimento Agrário e não foi essa a situação que foi verificada. Disse que em 2010 não foram adquiridos alimentos de um produtor familiar, que fosse assim reconhecido. Asseverou que no caso de não haver cooperativa ou associação no município haveria a possibilidade de que a aquisição dos alimentos fosse feita de produtores familiares da região. Afirmou que pela fiscalização eram considerados os valores em que constava expressamente o pagamento para fornecedores de agricultura familiar, de acordo com o programa (Id n. 151736627 e n. 151736628).

A testemunha Roberto Carlos Moretti, em Juízo, declarou que à época dos fatos era o secretário de finanças do município de Boituva (SP). Afirmou que foram recebidos os recursos da União e que esses foram devidamente aplicados. Informou que no ano de 2010 não havia cooperativa de produtores organizada no município, que passou a existir em 2011, ano em que foi utilizado o valor correspondente aos 30% (trinta por cento) da verba recebida para a aquisição de produtos oriundos da agricultura familiar. Disse que poderia ter sobrado um saldo pequeno que seria remanejado para o exercício seguinte. Explicou que em 2010 por não existir cooperativa organizada, os produtos foram adquiridos de outro fornecedor. Esclareceu que era separado o valor equivalente a 30% (trinta por cento) para compra de produtos da agricultura familiar e o restante era usado para adquirir outros itens da merenda escolar. Disse que em 2010 foi realizada licitação em que constava que deveriam ser adquiridos alimentos de produtores da região e que em 2011 houve a criação da cooperativa, sendo então os valores separados.  Não soube dizer o percentual aplicado, acrescentando que era superior a 30% (trinta por cento) do total. Declarou que nos casos em que não houvesse produtores no município poderia se adquirir os gêneros alimentícios de outros da região,  do estado, e do País.  Disse que a secretaria não recebera a orientação de entrar em contato com a União, no setor que cuidava do repasse da verba, e que isso teria sido feito pelo departamento de alimentação e do CAE. Não acompanhara a fiscalização feita pela CGU. Afirmou que no ano de 2010 os produtos foram adquiridos do fornecedor de merendas e que na nota fiscal era discriminado o que era proveniente de agricultura familiar. Reafirmou que eram produtores da região e que isso constava de edital de licitação. Asseverou que era feita a aplicação dos recursos regularmente (Id n. 151736623).

Em sede judicial, ouvido como testemunha, Márcio Pedro Marson declarou que na época dos fatos era secretário municipal de educação. Disse que em 2010 havia uma empresa que fornecia merenda para o município e a verba foi repassada para que essa adquirisse os produtos de agricultura familiar. Explicou que a legislação que determinou a aplicação do percentual de 30% (trinta por cento) a ser destinado para a aquisição de produtos da agricultura familiar foi criada em 2009 e não existia associação no município em 2010 que pudesse fornecer os alimentos em conformidade com a lei. Afirmou que a empresa ganhou a licitação e ficou determinado que uma parte dos valores seria usada para merenda e outra para compra de alimentos produzidos por meio de agricultura familiar. Não recordou de detalhes sobre o pagamento, emissão de notas ou prestação de contas. Disse que a cooperativa foi criada no município em 2011. Informou que participava de algumas reuniões do CAE, mas não era membro. Afirmou que a lei determinava o percentual a ser destinado para a compra dos produtos da agricultura familiar da região. Reafirmou que a empresa fez essa aquisição. Asseverou que em relação ao ano de 2011, em prestação de contas, se verificou que foram aplicados mais de 80% (oitenta por cento) do valor para a compra dos produtos conforme determinado pela lei e o saldo foi remanejado para ser usado no exercício seguinte. Disse que não acompanhara a fiscalização feita pela CGU (Id n. 151736624).

A testemunha Roberto Antonio Malatrasi, em Juízo, declarou que à época dos fatos era diretor de contabilidade e orçamento. Afirmou que em 2010 foi usado o percentual de 30% (trinta por cento) da verba recebida da União para pagamento para empresa que fornecia merenda. Acrescentou que foi realizada licitação que determinava que tal percentual seria destinado para a compra de gêneros alimentícios provindos da agricultura familiar. Informou que em 2010 não havia cooperativa de produtores no município. Afirmou que em 2011 foram pagos valores para cooperativa dos produtores do município. Asseverou que nesse ano foi recebida verba no valor de R$ 669.000,00 (seiscentos e sessenta e nove mil reais) e que 30% (trinta por cento) disso deveria ser destinado para a compra de produtos da agricultura familiar. Ou seja, a quantia a ser usada para esse fim era de cerca de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Informou foi aplicado R$ 179.000,00 (cento e setenta e nove mil reais), sobrando um saldo, tendo havido, portanto, a utilização de 89% (oitenta e nove por cento) para compra dos produtos alimentícios da agricultura familiar, do que era devido. Asseverou que em 2011 os alimentos foram adquiridos diretamente da associação dos produtores do município. Não acompanhara a fiscalização realizada pela CGU (Id n. 151736625).

Em seu interrogatório judicial, a ré declarou que era prefeita à época dos fatos e que havia uma equipe de secretários que tomavam as decisões sobre os valores. Afirmou que foi comprada a merenda escolar devidamente. Não sabia detalhes de como era feita a aquisição dos gêneros alimentícios. Afirmou que foi informada pelo secretário da educação sobre não haver cooperativa ou associação de produtores de agricultura familiar no município. Acrescentou que teve ciência de que em 2011 havia sido feita a organização da cooperativa de acordo com a lei. Não participava do pagamento dos valores para os fornecedores e não tinha conhecimento de como isso era feito. Declarou que na qualidade de prefeita não teria condições de ter ciência de tudo que acontecia em todas as secretarias (Id n. 151736627 e n. 151736628).

A defesa não se insurge com relação à autoria delitiva, que resta suficientemente comprovada.

A ré era a prefeita de Boituva (SP) nos anos de 2010 e 2011 e revelou em seu interrogatório judicial ter ciência de que não havia cooperativa de produtores de agricultura familiar no município, em 2010, que depois foi organizada em 2011. As declarações da acusada indicam que ela sabia que haveria determinação legal para que percentual da verba repassada pela União ao município fosse deveria ser usada na aquisição de gêneros alimentícios desses fornecedores e que tinha ciência da solução escolhida para o uso dos valores, sabendo  qual foi a destinação dada aos recursos.

Demonstradas a materialidade e a autoria delitiva, a condenação é mantida.

Dosimetria.  A pena-base foi fixada na sentença no mínimo legal, ou seja, 3 (três) meses de detenção para cada delito.

Ausentes circunstâncias atenuantes ou agravantes.

Reconhecido o concurso material, as penas foram somadas, perfazendo a pena total definitiva de 6 (seis) meses de detenção.

Foi estabelecido o regime inicial de cumprimento de pena aberto.

A pena privativa de liberdade foi substituída por 1 (uma) pena restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas, pelo mesmo tempo da condenação.

A defesa requer que seja reconhecida a continuidade entre os crimes, com o aumento da pena na fração de 1/6 (um sexto). Pleiteia que a pena de prestação de serviços seja substituída por uma prestação pecuniária em quantia razoável, considerados os rendimentos mensais auferidos pela ré como aposentada, a ser paga para entidade pública com destinação social, em razão do atual cenário de pandemia de coronavírus e da idade da acusada (66 anos).

Assiste-lhe parcial razão.

O crime continuado, previsto no art. 71 do Código Penal, ocorre “quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro”.

No caso dos autos, verifica-se que em 2010, houve o repasse de verba da União no valor de R$ 674.940,00 (seiscentos e setenta e quatro mil, novecentos e quarenta reais), do qual nenhuma quantia foi destinada para a aquisição dos bens conforme estabelecido em lei e em 2011 ocorreu novo envio de verba, em valor de R$ 669.000,00 (seiscentos e sessenta e nove mil reais) , em relação a qual  foi empregado percentual inferior ao que determina o dispositivo legal.

Considerados os momentos em que foram perpetradas as condutas e que houve o envio de quantias diversas de verbas não se estabelece a continuação entre as condutas. Desse modo, reconhecido o concurso material entre os delitos, a pena é mantida nos moldes determinados na sentença.

Presentes os requisitos do art. 44 do Código Penal, é mantida a substituição por uma pena restritiva de direitos.

O art. 46 do Código Penal estabelece que a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a 6 (seis) meses de privação da liberdade.

Portanto, considerando que a pena fixada foi de 6 (seis) meses de detenção, cumpre substituí-la por uma pena pecuniária, que estabeleço em 2 (dois) salários mínimos, em favor da União, tendo em vista o expressivo valor das verbas que não tiveram destinação de acordo a lei e levando em conta que a ré declarou um rendimento mensal de cerca de R$ 3.000,00 (três mil reais).

Com fundamento no art. 387, IV, do Código de Processo Penal c. c. o art. 91, 1, do Código Penal e o § 20, última parte, do art. 11 do Decreto-lei n. 201/67 e a pedido do Ministério Público Federal, a sentença condenou a denunciada ao pagamento do valor que não foi destinado, em 2010, para a compra dos produtos oriundos da agricultura familiar, mais o valor que faltou para completar o percentual dos 30% relativos ao ano de 2011:

Com fundamento no art. 387, IV, do CPP c/c o art. 91, 1, do CP e o § 20, última parte, do art. 11 do DL 201167 e a pedido do MPF (fl. 11, verso), condeno a denunciada, em favor da União (FNDE/PNAE), no pagamento do valor que não foi destinado, em 2010, para a compra dos produtos oriundos da agricultura familiar - R$ 202.482,00, para a época do fato (=30% de R$ 674.940,00), mais o valor que faltou para completar o percentual dos 30% relativos ao ano de 2011 - R$ 55.731,72, para a época do fato (R$ 200.700, 00 - R$ 144.968,28 - valor efetivamente pago - fl. 92), quantias que deverão ser devidamente corrigidas, quando do pagamento. (p. 51 do Id n. 151736321)

A defesa requer que seja afastada a condenação ao pagamento do valor que não foi destinado para aquisição de gêneros produzidos pela agricultura familiar. Aduz que tendo em vista que as verbas foram de fato usadas para a aquisição de alimentação escolar, se afigura desarrazoado determinar a obrigação de devolver os valores.

Embora estejam comprovadas a materialidade e a autoria delitiva, restando demonstrado que a ré por não destinou, por duas vezes, nos anos de 2010 e 2011, os recursos financeiros da União repassados por meio do FNDE, nos termos determinados pelo PNAE (aquisição de produtos oriundos da agricultura familiar), as declarações das testemunhas, em sede judicial, e os documentos p. 86/94 do Id n. 151736320 indicam a  utilização de quantias para compra de alimentação escolar, de modo que não se afigura razoável fixar o valor mínimo para reparação no total da verba que não foi usada de acordo com a destinação legal. Não há elementos suficientes para concluir que esse valor corresponde ao dano efetivamente causado pela conduta criminosa.

Ante o exposto, DOU PARCIAL PROVIMENTO à apelação da defesa para que a pena privativa de liberdade fixada para a ré Assunta Maria Labronici Gomes, pela prática do delito do art. 1º, III do Decreto-lei n. 201/67, seja substituída por uma pena restritiva de direitos, consistente na prestação pecuniária de 2 (dois) salários em favor da União e para afastar a condenação ao pagamento do valor que não foi destinado a compra de produtos oriundos da agricultura familiar, com fundamento no art. 387, IV, do Código de Processo Penal. Mantidos os demais termos da sentença.

É o voto.



E M E N T A

 

 

PENAL. PROCESSO PENAL. ART. 1º, III DO DECRETO-LEI N. 201/67. DESVIO OU APLICAÇÃO INDEVIDA DE RENDAS OU VERBAS PÚBLICAS. CRIME DE MERA CONDUTA. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DOSIMETRIA. ART. 387, IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

1. O delito do inciso III do art. 1º do Decreto-Lei n. 201/67 é de mera conduta, de modo que sua consumação prescinde de resultado naturalístico. O bem jurídico tutelado pela norma é a regularidade da Administração e, portanto, consuma-se o crime com a ação de desviar ou aplicar indevidamente rendas ou verbas públicas, em desacordo com sua destinação legal, independentemente de efetivo prejuízo aos cofres municipais.

2. A alegação de que não havia cooperativas organizadas para fornecimento nos moldes da legislação não é suficiente para afastar a comprovação da materialidade do delito. Não há indicativo da total impossibilidade de cumprimento do que dispõem as normas do PNAE a ensejar suspensão ou justificar a não aplicação de 30% (trinta por cento) da verba recebida por meio do FNDE, conforme determinado pela lei.  Como observado na sentença, não foram trazidos elementos que demonstrassem que foram procurados fornecedores na região, dentro do Estado de São Paulo. E, no ano de 2011, mesmo já havendo a cooperativa, apenas parte do valor foi destinado, em percentual inferior aos 30% (trinta por cento) da verba recebida. Nesse ano foi destinado 17,07% do total recebido, faltando, portanto, empenhar mais 12,93% do total, para a aquisição de gêneros oriundos da agricultura familiar. A defesa confirma que em 2011 não foi empregado o valor correspondente a 30% do total da verba recebida, assim como declararam as testemunhas, ouvidas em sede judicial.

3. A ré era a prefeita de Boituva (SP) nos anos de 2010 e 2011 e revelou em seu interrogatório judicial ter ciência de que não havia cooperativa de produtores de agricultura familiar no município em 2010, que depois foi organizada em 2011. As declarações da acusada indicam que ela sabia que haveria determinação legal para que percentual da verba repassada pela União ao município fosse deveria ser usada na aquisição de gêneros alimentícios desses fornecedores e que tinha ciência da solução escolhida para o uso dos valores, sabendo  qual foi a destinação dada aos recursos.

4. O art. 46 do Código Penal estabelece que a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a 6 (seis) meses de privação da liberdade. Portanto, considerando que a pena fixada foi de 6 (seis) meses de detenção, cumpre substituí-la por uma pena pecuniária, que estabeleço em 2 (dois) salários mínimos, em favor da União, tendo em vista o expressivo valor das verbas que não tiveram destinação de acordo a lei e levando em conta que a ré declarou um rendimento mensal de cerca de R$ 3.000,00 (três mil reais).

5. Embora estejam comprovadas a materialidade e a autoria delitiva, restando demonstrado que a ré por não destinou, por duas vezes, nos anos de 2010 e 2011, os recursos financeiros da União repassados por meio do FNDE, nos termos determinados pelo PNAE (aquisição de produtos oriundos da agricultura familiar), as declarações das testemunhas, em sede judicial, e os documentos p. 86/94 do Id n. 151736320 indicam a  utilização de quantias para compra de alimentação escolar, de modo que não se afigura razoável fixar o valor mínimo para reparação no total da verba que não foi usada de acordo com a destinação legal. Não há elementos suficientes para concluir que esse valor corresponde ao dano efetivamente causado pela conduta criminosa.

6. Apelação parcialmente provida.

 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Turma, por unanimidade, decidiu, DAR PARCIAL PROVIMENTO à apelação da defesa para que a pena privativa de liberdade fixada para a ré Assunta Maria Labronici Gomes, pela prática do delito do art. 1º, III do Decreto-lei n. 201/67, seja substituída por uma pena restritiva de direitos, consistente na prestação pecuniária de 2 (dois) salários em favor da União e para afastar a condenação ao pagamento do valor que não foi destinado a compra de produtos oriundos da agricultura familiar, com fundamento no art. 387, IV, do Código de Processo Penal. Mantidos os demais termos da sentença, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.